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segunda-feira, 15 de julho de 2024

O Púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos, de Anna Virginia Ballousier

Editora: Todavia

Opinião: ★★★☆☆

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ISBN: 978-65-5692-578-3

Páginas: 208

Sinopse: Em 1987, o Congresso formou sua primeira bancada evangélica, um forte indicativo da disposição dessa vertente religiosa para extrapolar os templos e se envolver de maneira mais direta nas discussões políticas e sociais do país, ditando seus rumos. A fé evangélica hoje alcança um terço dos brasileiros, e em breve terá o mesmo número de fiéis que o catolicismo romano. Estimuladas pelo sucesso popular de líderes como Edir Macedo, Silas Malafaia, Valdemiro Santiago e o casal Estevam e Sonia Hernandes, entre outros, as novas e novíssimas igrejas evangélicas têm transformado o perfil econômico e ideológico de seus rebanhos. Temas como aborto, casamento, sexualidade e prosperidade ganharam novos sentidos e práticas nos púlpitos (reais e virtuais) e na vida cotidiana dos fiéis, questionando as concepções seculares e católicas predominantes no debate público. A jornalista Anna Virginia Balloussier, habituada a conviver com os evangélicos, embora não integre suas fileiras, propõe um novo olhar sobre os crentes e sua fé. Através de entrevistas com personalidades do movimento evangélico, entre lideranças e fiéis anônimos, a autora dá voz a um segmento da população usualmente menosprezado. O livro apresenta uma narrativa histórica da fé evangélica no Brasil ao mesmo tempo que analisa suas convicções religiosas, morais e políticas, marcadas pela diversidade de visões sobre Deus, o diabo e o mundo.



As razões para a contração católica já passaram por vasto escrutínio acadêmico. Resumamos assim: a hierarquia rígida da linhagem cristã pioneira, com uma cadeia de poder verticalizada que coloca o papa e os concílios ecumênicos no topo, dá pouca mobilidade ao catolicismo. Fora que formar um padre demora anos, e já não há mais muita gente interessada no ofício que atraía uma legião de aspirantes nos tempos coloniais, quando era normal que famílias com muitos filhos dessem “um para Deus”. Elas asseguravam, assim, ensino gratuito de qualidade para ao menos um dos rebentos nos seminários e, por tabela, os viam conquistar o status social embutido no sacerdócio.

Já os pastores nadam de braçadas no mar aberto do evangelicalismo, em que, na prática, qualquer um pode alcançar o sonho da igreja própria a partir de um denominador teológico comum. Daí a customização da fé que tudo comporta, da igreja em São Paulo que prega o Evangelho ao som de heavy metal (a Crash Church) à goiana que instituiu um culto para pets, recebendo provocações do tipo “quem vai pregar é um pastor-alemão?”.”

 

 

“A igreja é, mais do que nunca, um espaço de sociabilidade, em que o importante são os encontros e a diversão. A vinculação a uma única instituição perdeu muito da força que teve no passado. Fiéis vão atrás da denominação que lhes traga mais benefícios, usando-a para fins utilitaristas, sem o compromisso de fincar raízes. Se a conversão significava uma carteira de identidade, agora se assimila a um cartão fidelidade, em que, completada a cartela, exige-se o prometido brinde. A flutuação dos convertidos, a perambulação por templos, acirra a concorrência interna e irrita o bispo Edir Macedo. Eu escutei uma das broncas que ele deu nos fiéis que oscilavam entre a sua Universal, e outra igreja.

Era 2012, e Macedo não estava feliz com a arrancada de outros agentes neopentecostais. “Não ouça nenhum pastor. Fixe-se aqui”, ele instruiu no culto. Fez uma alegoria com “misturar vinhos” para afirmar que muita mistureba denominacional pode dar pileque moral.

Eu pergunto: quem fica curado assim? […] Andando feito piolho na cabeça dos outros. Você quer ser livre, defina sua vida, sua fé. Você se encaixou bem na igreja “a”, então fique nessa igreja. Não liguem a televisão tentando buscar outros canais que falem de Jesus. Todo mundo fala de Jesus, até o diabo fala de Jesus.”

 

 

A bispa Sonia Hernandes já se sentiu uma evangélica de araque que precisou guerrear contra demônios internos para redescobrir a fé. De luta, afinal, ela entende. Quando a conheci, em 2013, ela se disse fã de UFC. “Vitor Belfort, né? Minotauro, Pezão, Anderson Silva… Tudo de bom!”, ia listando lutadores dessa modalidade que tanto admira, os olhos amendoados brilhando. Também reluziam o colar com pingente de pomba (o símbolo do Espírito Santo), cravejado de brilhantes, os cinco anéis dourados, o brinco com pérolas e as lantejoulas azuis e verdes de sua baby-look, que formavam o nome de Jesus.

A Renascer em Cristo, igreja que fundou com o marido, o apóstolo Estevam Hernandes, havia criado o URF — Ultimate Reborn Fight —, ou “a luta definitiva do renascido”, disputado pelos fiéis. Sonia vinha de uma sucessão de nocautes. Em 2009, uma unidade da Renascer desabou na zona sul de São Paulo, com mortos, feridos, investigações do Ministério Público e um catatau de ações de fiéis que responsabilizaram a denominação pelo desmoronamento. Em 2012, Sonia foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal por lavagem de dinheiro. A corte acabou extinguindo o processo por entender que a acusação contra a bispa e o marido citava “organização criminosa”, um tipo penal que ainda não existia na legislação brasileira — só viraria crime no ano seguinte. Além disso, três anos antes, seu primogênito, o bispo Tid, entrou em estado vegetativo após uma malsucedida cirurgia de redução de estômago. Ele ficou em coma até morrer, em 2016.

Reencontrei a bispa algumas vezes na última década. O encontro mais recente foi na Marcha para Jesus, evento de origem britânica que ela importou para o Brasil junto com o marido em 1993. De novo ela brilha. Na baby-look da vez, pedrarias em verde, amarelo e azul emulam as cores da bandeira nacional. Continua vaidosa, com muita maquiagem e muitas joias. A vaidade, diz, está em seu sangue libanês. A avó não dormia sem batom. “O que muita gente chama de vaidade é meio cultural. Lápis no olho aprendi a passar… tinha o quê, nove anos de idade?” Pergunto se ela sempre foi evangélica ou se a fé lhe veio mais tarde. Sonia responde que ambos. “Eu não saberia viver sem Jesus. Nasci num lar evangélico. Meus pais se conheceram num seminário, então fui criada na igreja. Mas eu não era convertida. Gozado, né?”

Sonia diz que sempre seguiu à risca o que acredita ser o manual do bom cristão. O primeiro namorado, Estevam, que conheceu aos treze anos, virou seu marido. Casou com ele aos dezenove, de vestido de cauda longa feito por uma tia. Logo vieram os filhos. Estava grávida de Fernanda, que hoje é bispa como ela, quando Estevam foi lesado por “uma pessoa bem desonesta” na empresa em que trabalhava como diretor de marketing. “Essa pessoa acabou dando um golpe no mercado e também na gente. O Estevam foi fiador de um monte de coisa. Então a gente perdeu tudo por conta dessa fiança.”

Na mesma época, o pastor da igreja que Sonia frequentava morreu. Formada em nutrição, ela teve que descartar vários estágios, “os melhores”, incompatíveis com sua gestação. Acabou aceitando um na ala de queimados do Hospital das Clínicas, que abandonou em menos de uma semana. “Cheirava podre. Não conseguia ficar lá.” Nem o romance ia bem. “Meu casamento estava um caos. Eu falava uma coisa, e ele entendia outra.”

Tudo havia degringolado muito rápido aos olhos da fiel de 23 anos. “Eu tinha feito tudo certo, e deu tudo errado. Sempre saía para evangelizar nas minhas férias. Era o meu prazer, a minha alegria. E agora eu só queria morrer.” Não era uma maneira de falar. “Eu fiz um plano para tirar a minha vida e a dos meus dois filhos. Eu ia pôr veneno de rato na mamadeira das crianças e depois tomar. Achava que já ia pro inferno. Inferno por um, inferno por três. Pelo menos não ia deixar eles aqui pra falar: ‘ah, sua mãe se suicidou’.”

Ela lembra que fazia muito frio na tarde escolhida para matar a prole e depois a si mesma. Era junho de 1981. Os filhos estavam com um (Fernanda) e dois (Tid) anos de idade. A campainha tocou. “Fui abrir, e era um pastor. Ele trouxe uma palavra para mim. ‘Olha, você ainda vai continuar com muita guerra, mas Deus tem um grande plano para você’. Sonia viu um sinal ali. Desistiu do projeto suicida. Dali para a frente, as coisas de fato começaram a melhorar, segundo ela.

Estevam trabalhava no marketing da filial brasileira da Xerox.

Ele começou a prosperar de uma forma absurda, sobrenatural. E eu comecei a orar de manhã. O Estevam saía, eu ajoelhava e orava, falava, “Deus, ou mata meu marido ou me mata, que eu não aguento, dá um jeito na minha vida”. Não podia trabalhar, não tinha com quem deixar as crianças. Uma loucura. Pra que serviu tudo o que tenho de bom, todos os diplomas, se não tenho onde enfiar meus filhos pra ir trabalhar? E aí ouvi uma voz: “ame-o, ame-o”. No primeiro dia, parei de orar, deve ser demônio. No segundo, de novo a voz. No terceiro eu falei: “então desce aqui e ama ele!”. E Deus foi me ensinando a amar meu marido. Uma tia veio em casa e começou a me ensinar a ser casada, algo que eu não sabia.

Sonia conta que foi Jesus quem a salvou de si mesma. Daí veio a conversão de uma evangélica que só então compreendia o que era caminhar com Deus de verdade. (...)

Uma dessas predições, diz, mostrou onde deveria ser a primeira sede própria do império religioso que a bispa e o apóstolo começaram a construir em meados dos anos 1980. “Tinha um ponto de ônibus na frente.” Ela conta que sentiu o sopro de Deus ao passar pela paulistana avenida Lins de Vasconcelos e vislumbrar um prédio à venda, que já servira a um cinema e uma agência de automóveis. Foi o edifício cujo teto colapsou em 2009.”

 

 

“O batismo deve ser feito sempre em nome do Deus trino, ou seja, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A água é o duto da fé, tendo o próprio Cristo se batizado no rio Jordão, o mesmo onde o deputado Jair Bolsonaro, em 2016, no mesmo dia em que o Senado autorizou a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, se deixou submergir pelas mãos do pastor Everaldo, futuro presidiário e presidente de seu partido à época, o Partido Social Cristão.

Everaldo liderou a excursão parlamentar que contou com os filhos políticos de Bolsonaro. Questiona se o patriarca do clã acredita que Jesus “morreu na cruz”, “ressuscitou”, “está vivo para todo o sempre” e é o “salvador da humanidade”. O pré-candidato a presidente diz sim para tudo e afunda no perímetro cercado do rio até a túnica branca, que alugou por menos de dez dólares, se ensopar toda. O pastor o levanta de volta e graceja: “Peso pesado!”. Completa-se o aceno meramente simbólico ao eleitorado evangélico, já que Bolsonaro continuou se declarando católico.”

 

 

Silas Bitencourt não quer ninguém para baixo nesta noite. “O Levanta Varão é um estimulante sexual que fiz voltado para o público gospel”, diz sobre o produto que anuncia como o principal patrocinador do espetáculo.

O frasco acomoda sessenta cápsulas tingidas de corante azul, para lhes garantir a mesma coloração do Viagra. A fórmula contém cafeína, taurina, guaraná e maca peruana. Assemelha-se a outros suplementos alimentares que prometem elevar a disposição do público consumidor, e, nesse caso, a de um membro bem específico dele. “Eu precisava lançar, porque muitos crentes não iam de repente entrar numa sex shop e comprar produtos assim”, Silas explica.

Entre evangélicos, “varão” é um termo de lastro bíblico comumente empregado para se referir ao homem temente a Deus. A contrapartida feminina é “varoa”. Ambos viraram pronomes de tratamento nas igrejas, quase tão populares quanto “irmão” e “irmã”. Quando promete levantar o varão com suas pílulas energéticas, Silas mira muito além do trocadilho. Ele sabe que o mercado gospel é uma terra de oportunidades, e está decidido a não perder nenhuma.”

 

 

“Silas não consegue estar em um só lugar. Tem uma lista extensa de projetos que inclui um serviço de engajamento em redes sociais, que vende pacotes de cinquenta comentários e curtidas por 250 reais, e um canil virtual, o Rei do Lulu, “o maior site especializado em compra e venda de filhotes de lulus-da-pomerânia”. Sua expertise, contudo, reside em cartografar carências no mercado vibrante, mas muitas vezes amador, do gospel.

Não é pouca coisa. Hoje os evangélicos são mais de 60 milhões no país Um latifúndio de gente que por muito tempo se viu sub-representada na mídia e nos espaços de consumo. Não estavam nas novelas, tampouco nas pautas jornalísticas — salvo em reportagens com alguma denúncia embutida. Tinham fome de produtos adaptados para seu paladar evangelizado, mas nenhuma grande marca estava disposta a saciá-los. Pipocavam ali e acolá algumas exceções, mas só para confirmar a regra do fenômeno de massa alijado da esfera pública. O jeito foi criar uma indústria paralela para fabricar oferta para tanta demanda.”

 

 

“O dono da Renascer recorre ao marketing pesado.

O primeiro passo foi arrendar oito horas de programação na rádio Imprensa de São Paulo. A exposição na emissora o fez conhecido. Nos programas, ele dava prioridade a músicas evangélicas internacionais por considerar as nacionais “muito ruins”. E para que elas fossem bem recebidas, Estevam Hernandes passou a chamá-las de gospel. Abbud fez todo o planejamento.

O apóstolo rebate a ideia de que, como alardeava Raul Seixas, o rock era do diabo, “e os crentes acreditavam na conversa do Raul”. Aposta em bandas de rock cristão, como Katsbarnea e Oficina G3. Para a primeira, compôs hits como “Extra, extra”, campeã do Fico (Festival Interno do Colégio Objetivo). A arquitetura evangélica precisa se acomodar à visão de fé vislumbrada por Estevam. “Ele mudou o ambiente de culto para torná-lo mais agradável aos visitantes atraídos pela música e desacostumados com os ritos da igreja. O púlpito se transformou em palco, estruturado com luzes coloridas, neon e fumaça”, afirma Moura.

O bispo Edir Macedo entra no jogo em 1991, com a Line Records, gravadora sob guarida da sua Igreja Universal do Reino de Deus. O selo foi responsável por lançar cantores que se tornariam referência no estilo. Alguns haviam despontado no show de calouros de Raul Gil, apresentador da Record, a emissora de Macedo, e líder de audiência naquela virada de século. É o caso de Robinson Monteiro, o Anjo, que encontrei anos depois no reality show bolado por Silas Bitencourt. Com DEUS ACIMA DE TODOS escrito em pedraria reluzente na camisa, o cantor me disse que via um propósito no programa que transbordava a competição em si. “As pessoas precisam saber que a Igreja também se diverte.”

Mara Maravilha é outra participante do Culto da Resistência contratada pela gravadora de Macedo, que atraiu artistas convertidos que trocaram música secular por gospel. A sertaneja Sula Miranda e os pagodeiros Salgadinho (ex-Katinguelê) e Régis Danese (ex-Só Pra Contrariar) também entraram no bonde.

“Apesar de ter uma grande instituição na retaguarda e artistas que movimentavam boa parte dos rendimentos gospel, a Line Records não conseguiu vencer as dívidas e as disputas de poder”, afirma Moura. Ela afundou em 2012. Macedo caiu atirando. “Não vou errar se falar: 99% desse pessoal que canta por aí é tudo endemoniado, tudo perturbado”, disse o líder evangélico na época. “O diabo também promove dentro da igreja grandes cantores, cantoras e que fazem grandes sucessos, mas aquele sucesso é justamente uma mensagem subliminar para iludir os crentes.”

A barafunda envolve peixes grandes do segmento. Ana Paula Valadão foi tida como um dos alvos de Edir Macedo. Silas Malafaia, que tem a Central Gospel Music, tomou suas dores. “O povo não percebe o que está por trás. É que a gravadora [Line Records] dele não está com nada. A gravadora dele está dando prejuízo há anos.” Ao dizer que “o jogo é comercial”, o pastor se referia à entrada de Ana Paula no quadro da Som Livre, selo do Grupo Globo, concorrente direto da Record.

Foi nesse período que as grandes gravadoras acordaram para a mina de ouro que havia sob seus narizes. A sonolência acabou por motivos óbvios. Ora, elas estavam apanhando com a crise na indústria fonográfica. Aqueles artistas que ignoravam eram bons de venda, e, como bônus, seu público era menos dado a comprar cópias não originais. A pirataria ameaçava fulminar a indústria fonográfica. Não que evangélicos nunca caíssem em tentação, mas havia um discurso, nas igrejas, colérico com as falsificações.

Álbuns do estilo vinham com uma etiqueta na contracapa, lembra Moura: PIRATARIA É CRIME E PECADO. Uma referência do livro bíblico de Jeremias complementava o aviso: “Ai daquele que constrói a sua casa sem justiça, e seus aposentos sem direito, que faz o seu próximo trabalhar de graça e não lhe dá o seu salário”. Até o bispo Edir Macedo já passou um pito em quem incorre na prática. “Elimine a mentira da sua vida, não adquira nada que seja pirateado, porque você estará compactuando com o próprio diabo ao fazer isso”, litigou em mensagem na Rede Aleluia, rádio ligada à Universal.”

 

 

“Chamado para ser repórter da Globo em 1981, e com crachá da casa até 2018, Tonico Ferreira reconhece o desprezo crônico pelo bloco religioso. Quando lhe pergunto sobre o tratamento que os ex-patrões davam àquela massa cristã que começava a encorpar, ele diz:

Os evangélicos no Brasil foram esquecidos por toda a mídia, não só pela TV Globo. E foi um desconhecimento movido não por decisão editorial, mas pelo fato de a elite cultural e acadêmica ter dificuldade em acolher os valores mais conservadores da sociedade. Jornalistas tendem a achar que essas pessoas são atrasadas, burras, preconceituosas e não merecem ser ouvidas.

Tonico acha também que, de certa forma, o jornalismo dormiu no ponto. Demorou para se tocar das fissuras na hegemonia católica que chegariam como forças tectônicas nos anos seguintes. “Muito brusca e não captada por editores”, a migração de fatia considerável da população para igrejas evangélicas atropelou bastante gente nas redações, afirma.

O premiado jornalista passou por TV Cultura, SBT e Globo, e também por mídias impressas, como Folha de S.Paulo e Realidade. “O que eu posso dizer é que os evangélicos foram ignorados por todos os meios jornalísticos pelos quais passei em cinquenta anos de profissão. Desde os semanários de esquerda e de oposição ao regime militar até as grandes redes de televisão do país no período democrático.” O único pastor evangélico que entrevistou na vida foi Jaime Wright, “mas com temas de direitos humanos, e não religiosos”. O presbiteriano conduziu, ao lado de d. Paulo Evaristo Arns e do rabino Henry Sobel, um ato ecumênico em memória de Vladimir Herzog, morto pela ditadura militar no chumbado ano de 1975.

Já perdeu a conta, por outro lado, de quantas entrevistas fez com padres, freiras e bispos católicos. Com cardeais brasileiros ele lembra. Foram sete: Hélder Câmara, Evaristo Arns, Agnelo Rossi, Lucas Moreira Neves, Cláudio Hummes, Odilo Scherer e Orani Tempesta.

Quando os evangélicos cresceram e se multiplicaram no Brasil, era como se tivessem surgido do nada. De onde veio aquela força capaz de mudar o rumo de eleições, faminta por produtos culturais que refletissem seus valores?”

 

 

O conceito de acossamento, que esmalta de vulnerabilidade social os mais de 60 milhões de crentes brasileiros, virou um cacoete discursivo entre políticos que dizem advogar por esse contingente. Não é de todo errado, mas também não reflete o espaço que os evangélicos conquistaram no debate político do Brasil. A minoria que Sóstenes evoca triplicou de tamanho desde a redemocratização do país, quando o segmento começou a deixar para trás um antigo lema que por décadas o guiou: “crente não se mete em política”. O substituto explica por que os evangélicos, que passaram décadas tão interessados na vida política do país quanto em promoção de cerveja no mercado, chegaram com tudo às casas legislativas da nação. “Irmão vota em irmão”, a nova palavra de ordem, foi também o nome de um livro que Josué Sylvestre, assessor do Senado e membro da Assembleia de Deus, lançou em 1986. “Crente vota em crente porque, do contrário, não tem condições de afirmar que é mesmo crente”, diz no livro. Também convoca os pares a escolher “filhos da Luz” para “espancar as trevas da corrupção, da idolatria, da feitiçaria, da estagnação econômica, do obscurantismo, implantados por homens que não temem a Deus nos palácios e nas casas legislativas”.”

 

 

O que ficou, hoje, é a penalização prevista no Código Penal, contra quem faz e quem recebe o procedimento. Só em três situações há o que chamamos de aborto legal: se houver risco à vida da mãe, o feto for anencefálico (direito assegurado pelo STF em 2012)ou a gravidez resultar de estupro.

Nos anos seguintes, os evangélicos não se empenharam para derrubar essas possibilidades abortivas, diz a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, que estudou questões de gênero na Igreja Universal.

Apesar de a pauta estar na Constituinte e nas discussões sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos [de 2009, no governo Lula], não havia uma mobilização pública por parte de igrejas. A maioria sempre disse seguir a Constituição. Essa agenda não tinha uma visibilidade capaz de produzir engajamento de ir para a rua, como vimos em 2020 com a menina de dez anos que engravidou após um estupro.

Teixeira se refere à menina capixaba “com cara de bebê ainda, muito calada, com olhar muito triste e, ao mesmo tempo, tão segura”, como relatou depois, à Folha de S.Paulo, uma enfermeira envolvida na operação. A criança se agarrou a uma girafa de pelúcia enquanto interrompia uma gravidez. Era seu desejo e o da família. O companheiro de uma tia a estuprava desde seus seis anos, e ela, criada por avós, vendedores de coco, órfã de mãe e com o pai preso, engravidou dele após entrar na puberdade.

O aborto, em seu caso, é um direito garantido por duas condições descritas no Código Penal: gravidez após estupro e risco de morte (seu corpo infantil poderia não suportar a gestação). Ainda assim, ela precisou entrar no hospital escondida no porta-malas de um carro, porque o portão principal do hospital que aceitou realizar o procedimento (outro já havia se recusado) estava tomado por ativistas cristãos. O grupo formou um paredão para chamar os médicos de assassinos. Reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que Damares Alves, então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Jair Bolsonaro, interveio nos bastidores para impedir que a criança fosse submetida a um aborto.

Onze anos antes, em 2009, um coliseu midiático se ocupou de um caso similar, desta vez com uma menina de nove anos grávida de gêmeos. A menina tinha 1,32 metro e foi violentada pelo padrasto. Em 2016, o médico que havia conduzido o aborto deu uma entrevista à BBC sobre aquele dia. “[Ela] tinha menstruado uma vez só e não entendia o que estava acontecendo, embora fosse dito para ela o que era uma gravidez. Ela achava que estava doente e ia para o hospital tirar o tumor. Estava sempre com uma boneca.”

O obstetra Olímpio Moraes acabou excomungado pela Igreja Católica, e o aborto que fez ajudou a selar a aliança entre ultraconservadores católicos e evangélicos. A fúria de religiosos voltou a cair sobre o dr. Moraes onze anos depois, quando ele topou fazer o aborto na criança violentada no Espírito Santo. Na época, Malafaia foi um dos pastores a trombetear contra “esse miserável desse médico aborteiro”, que ele jurou que ia “pagar um preço caro diante de Deus”.”

 

 

“A estratégia evangelizadora ganhou nova cara nos anos 1980. Inspirados por televangelistas americanos como Jimmy Swaggart, um primo do cantor Jerry Lee Lewis que impactou uma legião de pastores, e também por um canadense que fez carreira religiosa no Brasil, o bispo Robert McAlister, líderes como Malafaia passaram a ver instrumentos antes repudiados por pares como aliados da causa evangélica. Compraram horários nas grades televisivas, principal canal de comunicação com as massas da época, para disseminar seus princípios cristãos. E foram ativando, de pregação em pregação, um combo teológico assim descrito pelo sociólogo da religião peruano José Luis Pérez Guadalupe:

As concepções bíblico-teológicas sobre o mundo e a política mudaram radicalmente no continente, e os novos evangélicos latino-americanos não apenas participam e desfrutam do mundo sem o menor remorso (“Teologia da Prosperidade”), como também buscam purificá-lo (“Teologia da Guerra Espiritual”) e conquistá-lo (“Teologia do Domínio” ou “Reconstrucionismo”).

Complementares, essas teologias compartilham uma ideia-base de que o crente não deve ser apático à realidade que o cerca, como se encarasse o reino de Deus como uma recompensa futura para quem vivesse sob um rígido cânone cristão. Pelo contrário: em vez de deixar o mundo à mercê dos ímpios, deveriam dele se apropriar. Ou já era, o diabo triunfou.

A doutrina que legitima a busca por uma vida próspera é a mais conhecida do trio, mas não ficaria de pé sem o respaldo das outras duas. A chamada Teologia da Guerra Espiritual estabelece um duelo constante entre forças do bem e do mal. No campo individual, revela-se nos tantos cultos de libertação que prometem expulsar demônios do corpo de alguém que sucumbiu a malignidades e, portanto, não consegue avançar. De problemas de saúde a infortúnios financeiros, muito é colocado na conta de diabos literais. Essas potências demoníacas também se fariam presentes na esfera pública, e o dever moral do bom cristão seria dar seu máximo para expurgá-las. Na nova ordem evangélica, predominante nos templos, elas podem se traduzir nas drogas, no aborto e nas relações homoafetivas, por exemplo. O inimigo natural seriam aqui as tais “MMA, Minorias Mimadas Autoritárias”, vistas como diques que impedem o bem de progredir na Terra.

A Teologia do Domínio é o ápice dessa compreensão de que os evangélicos têm o compromisso de dominar áreas sensíveis da sociedade, carentes da presença de Deus. Ocupar esses lugares antes que alguma alternativa nefasta se apodere deles é mais do que predisposição, é predestinação. Se você acredita que a vontade divina vai numa direção, por que cruzaria os braços e assistiria impassível ao mundo ir na contramão?

“Na realidade”, aponta o sociólogo Guadalupe,

o reconstrucionismo não é uma proposta totalmente nova, pois suas bases teológicas foram originalmente formuladas em círculos calvinistas ultraconservadores e, mais tarde, recuperadas por ativistas políticos carismáticos e neopentecostais em busca de uma legitimidade teológica para conquistar o poder sob uma suposta superioridade moral evangélica e a subordinação do sistema legal do Estado às leis bíblicas.

Um poder que pode se manifestar na atividade política, com a conquista de posições diversas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Como resumiu Silas Malafaia às portas da eleição municipal de 2020, “a cidadania no céu não anula a cidadania terrena”. É preciso, segundo o pastor, interpretar corretamente a Bíblia: “Quando Jesus fala ‘dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’, ele quer dizer que temos que cumprir nossa função como cidadãos da Terra e como cidadãos do céu. Não abra mão de votar e ter a oportunidade de escolher governantes que defendam os valores cristãos”.

A política é uma expressão poderosa dessa ideologia da subjugação, mas não é a única. Aqui entra uma quarta corrente para defender a imprescindibilidade de ter mais evangélicos em zonas de influência social: a Teologia dos Sete Montes. Marisa Lobo e eu trocamos mensagens uma década depois do nosso encontro em Congonhas. Nelas, a psicóloga evoca um autor cristão peruano que fez relativo sucesso na bolha evangélica.”

 

 

Márcio passou o bastão para um dos filhos e um outro nome da igreja. Retirou-se de cena após anunciar a morte do ex-ator Guilherme de Pádua, que assassinou a colega Daniella Perez em 1992 e anos depois virou pastor da Lagoinha. “Caiu e morreu. Morreu agora, agorinha”, Márcio comunicou, sorrindo, o fato fúnebre num vídeo postado nas redes sociais. O tom insólito pôs em xeque suas faculdades mentais, e assim André Valadão herdou do pai o controle de centenas de templos da marca evangélica.

Ao contrário de Márcio, de perfil conciliatório, André é muito mais dado a controvérsias que rebentam o cercadinho evangélico. Seu extremismo foi inchando ao passo que as guerras culturais ganhavam centralidade nos púlpitos. Se antes era visto como figura periférica pela cúpula da religião, um playboy que teria sido despachado para liderar a Lagoinha em Orlando porque dava dor de cabeça ao patriarca, em 2022 ele virou um dos protagonistas no embate entre setores conservadores e progressistas da sociedade.

Seu respaldo à reeleição de Jair Bolsonaro lhe rendeu inclusive dissabores com o Tribunal Superior Eleitoral. André mentiu dizendo ter recebido ordens de Alexandre de Moraes, ojerizado pelo bolsonarismo por seu papel como presidente da corte e ministro do Supremo Tribunal Federal, para se retratar por acusações feitas contra o petista Lula naquele pleito. A meta, sair de vítima da censura do Judiciário, foi alcançada em parte, com múltiplos desagravos dentro do polo conservador. Mas ricocheteou contra ele próprio quando ficou claro que a história não era nada daquilo que estava vendendo.

André garantiu mais quinze minutos de infâmia entre fileiras progressistas no ano seguinte, quando usou a Lagoinha Church Orlando para liderar uma campanha anti-LGBTQIA+ tão virulenta que irritou até mesmo pastores que veem a diversidade sexual e de gênero como um mal a ser combatido. Ele escolheu a dedo o mês de junho, em que se celebra o Orgulho LGBTQIA+, para lançar o bordão “Deus odeia o orgulho”. Semanas depois, dobrou a carga e disse ser preciso “resetar” membros dessa comunidade e que, se Deus pudesse, “matava tudo e começava tudo de novo”.

A radicalização no clã não para em André Valadão. Sua irmã mais velha, Ana Paula, já declarou que a homossexualidade colide com “o que Deus determinou”, e “taí a aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte e contamina as mulheres”. Mariana, a caçula dos três irmãos, é esposa do pastor Felippe Valadão, que pegou da família o sobrenome e a inclinação para se indispor com minorias. Em 2022, ele investiu contra religiões de matriz africana durante um evento da prefeitura de Itaboraí, na região metropolitana do Rio. “De ontem para hoje tinha quatro despachos aqui na frente do palco. Avisa aí para esses endemoniados de Itaboraí: o tempo da bagunça espiritual acabou, meu filho. A igreja está na rua! A igreja está de pé!”, discursou na cidade fluminense.

Os Valadão simbolizam essa premissa, disseminada em várias igrejas contemporâneas, de que impor sua visão de mundo para o resto da sociedade é um imperativo da fé evangélica. Afinal, que cristão fajuto você seria, uma vez conhecendo a verdade de Jesus Cristo, se não se esforçasse para iluminar quem vive nas trevas da ignorância, numa vida apartada dos valores que você entende por soberanos e inegociáveis?”

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