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sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Marxismo e filosofia (Parte I), de Karl Korsch

Editora: UFRJ

ISBN: 978-85-7108-329-5

Tradução e apresentação: José Paulo Netto

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 172

Sinopse: Em Marxismo e filosofia, Korsch procura aplicar a dialética ao marxismo, numa época em que a teoria marxista ainda se colocava como um espaço aberto de indagações sobre a história, a filosofia, a cultura e a política (e, pois, sobre a própria essência teórica e prática do marxismo). A condenação do texto, tachado de revisionista e neo-hegeliano pela Terceira Internacional em 1924, levou Korsch a escrever uma anticrítica, também presente nesta edição, que traz ainda outros quatro artigos do autor.


 

“Contundente e apaixonado, o ensaio de Korsch, escrito na maturidade dos seus 37 anos, é o que de mais seminal ele produziu em sua vida. Apoia-se numa tese central: a de que a debilidade prático-política revelada pela capitulação socialdemocrata do 4 de agosto de 1914 — quando, no dizer de Rosa Luxemburg, a socialdemocracia “tornou-se um cadáver malcheiroso” — manifestou mais do que inépcia política ou traição (sem, naturalmente, excluí-las); trazendo à luz uma tendência perceptível há décadas, tinha raízes teóricas, condensadas no abandono da dialética materialista de Marx-Engels — abandono devido à incompreensão, própria do marxismo vulgar, da relação entre a ciência fundada pelos dois pensadores e a filosofia.

Com a revolução na ordem do dia (1917 = “prólogo da revolução mundial”), a problematização desenvolvida por Korsch, sem subestimar seu nível teórico, é medularmente política: trata-se de adequar a teoria do proletariado à sua práxis, que, neste momento, é práxis política revolucionária. Mais: trata-se de fazer a teoria constituir-se como se constituiu originalmente em Marx-Engels — como expressão (teórica) do movimento revolucionário do proletariado. E a condição elementar para tanto consiste em trazer à teoria a dialética que, posta a atualidade da revolução, estava no primeiro plano da realidade histórica. Se já se determinara que não há política revolucionária sem teoria revolucionária,19 em Korsch se determina que o caráter revolucionário da teoria está hipotecado ao seu método/conteúdo dialético — e, para garantir este caráter, a ciência fundada por Marx-Engels ainda não prescinde da filosofia (de uma filosofia determinada), ainda (quando a revolução mundial está no seu “prólogo” — depois tudo se transformará, até as ciências matemáticas!) é, também ela, a seu modo, filosofia.20 (...)

A relação teoria/práxis é posta por Korsch como uma relação imediata e direta: seu texto não deixa dúvidas quanto a este ponto. Se ele busca mediações entre a filosofia de Hegel e a revolução burguesa,21 não o faz com os mesmos cuidado e rigor quando busca pensar o marxismo, especialmente o que lhe era contemporâneo; se pesquisa mediações, para ser consequente com a afirmação hegeliana que tanto aprecia (a filosofia vista como “a sua época apreendida pelo pensamento”) quando trata da relação filosofia burguesa/realidade, no caso do marxismo contenta-se com a efetiva abstração segundo a qual a “nova ciência de Marx e de Engels” é a “expressão geral do movimento revolucionário autônomo do proletariado”. Esta concepção não é exclusiva da argumentação central de Marxismo e filosofia: é a concepção de Korsch nos anos 1920 — reafirmada noutro texto, de março de 1923, em que o “socialismo científico” é identificado à “consciência de classe organizada do proletariado”.22 Não há equívoco nessas abstrações, mas lhes falta a concreção que as tornaria verdadeiras. Substantivamente, Korsch acaba por pensar a teoria (de Marx-Engels) não mais que como a expressão — racional e científica — da práxis.

Do ponto de vista teórico, a mais evidente consequência necessária dessa concepção é, no limite, uma distinção puramente formal entre teoria e práxis ou, ainda, a dissolução da peculiaridade teórica na práxis. Uma tal concepção redutora da teoria, além de implicações específicas, limita compulsoriamente a compreensão das instâncias mediadoras da práxis política — não é casual que Marxismo e filosofia não pronuncie uma só palavra sobre a problemática da organização do proletariado revolucionário, uma só frase sobre o partido revolucionário (sua natureza, sua estrutura, sua função, seus limites etc.).23

19 Lenin, já em Que fazer?, anotara que “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário” (ver Obras escolhidas em três tomos. Lisboa: Avante!; Moscou: Progresso, 1977, v. 1, p. 96-97). A observação sobre a matemática está num texto que precede a elaboração de Marxismo e filosofia (ver, infra, o capitulo “A concepção materialista da história”, de 1922); quanto a filosofia, como Korsch nota depois da publicação de Marxismo e filosofia, no comunismo ela não será mais que “um ponto de vista ultrapassado” (ver, infra, o capitulo “A dialética materialista”, de 1924); ha plena continuidade entre essas considerações e o núcleo teórico de Marxismo e filosofia.

20 A observação sobre a matemática está num texto que precede a elaboração de Marxismo e filosofia (ver, infra, o capítulo “A concepção materialista da história”, de 1922); quanto à filosofia, como Korsch nota depois da publicação de Marxismo e filosofia, no comunismo ela não será mais que “um ponto de vista ultrapassado” (ver, infra, o capítulo “A dialética materialista”, de 1924); há plena continuidade entre essas considerações e o núcleo teórico de Marxismo e filosofia.

21 Há diferenças entre a apreciação de Korsch sobre a filosofia de Hegel em Marxismo e filosofia e aquela que ele enuncia após a Segunda Guerra Mundial, expressa numas sumárias “Teses sobre Hegel e a revolução” (reproduzidas no número 16, de 1959, da revista parisiense Arguments).

22 Ver, infra, o capítulo “A dialética de Marx”.

23 Quanto a isso, e flagrante a diferença, que já sugerimos, entre Marxismo e filosofia e História e consciência de classe.

(José Paulo Netto)

 

 

“Mas este ensaio de Korsch é, como referimos, seminal — nele comparecem, ainda que sem desdobramentos intensivos, algumas ideias absolutamente fecundantes, à época e depois (sejamos diretos: atuais hoje), para o desenvolvimento da tradição marxista. Três delas, entre outras, merecem a atenção do leitor.

A primeira diz respeito à concepção da obra marxiana como exemplar de uma sólida e coerente unidade. Mesmo assinalando inflexões na constituição do pensamento de Marx (e de Engels), sublinhando alterações, enfatizando giros — por exemplo, a diferença introduzida na reflexão de Marx pela descoberta da relevância da crítica da economia política na análise social —, Korsch sustenta a inteireza unitária (não identitária) da teoria social de Marx.

Em segundo lugar (e, de alguma forma, em estreita relação com o anterior), a claríssima recusa de compatibilizar esta teoria social com os “recortes epistemológicos” que passaram a fundar (e legitimar) as ciências sociais. Há, em Marxismo e filosofia, uma concepção de fundo — mais que argumentos — para demonstrar a genética relação de exclusão entre a “ciência do proletariado” e a discursividade das disciplinas sociais autônomas e parcelares. Em terceiro lugar, Korsch contribui decisivamente para esclarecer a relação Marx-Hegel: são fundamentais as suas observações acerca, de uma parte, da indescartabilidade da filosofia hegeliana para a constituição da nova dialética de Marx e, de outra, do caráter extremamente complexo das operações teórico-críticas que permitiram a Marx fundar uma “nova ciência”, reduzindo a pó a vulgarização relativa à mera “inversão” materialista.”

(José Paulo Netto)

 

 

“Em termos hegeliano-marxistas, o surgimento da teoria marxista é tão-somente o “outro momento” do surgimento do movimento proletário real; os dois momentos tomados em conjunto constituem a totalidade concreta do processo histórico.”

 

 

“Produto da dissolução da filosofia de Hegel” (esta é a concepção dominante); “colapso titânico do idealismo alemão” (Plenge); uma “concepção de mundo (Weltanschauung) fundada na negação dos valores” (Schulze-Gävernitz). O caráter absurdo típico dessa concepção do marxismo revela-se claramente no fato de os elementos do sistema marxista que ela considera o seu “espírito maligno”, precipitados do céu do idealismo alemão para os abismos infernais do materialismo, já estarem em geral presentes nos sistemas da filosofia idealista burguesa, incorporados por Marx sem modificações sensíveis — por exemplo, a ideia da necessidade do mal para o desenvolvimento do gênero humano (Kant, Hegel), a ideia da necessária relação entre o crescimento da riqueza e o da miséria na sociedade burguesa (Hegel, Filosofia do direito, parágrafos 243, 244 e 245 [ver, na ed. port. cit., p. 193-195]). Trata-se, por consequência, das formas pelas quais a classe burguesa, no apogeu do seu desenvolvimento, tomou em certa medida consciência de seus próprios antagonismos de classe. O progresso realizado por Marx consiste em ter apreendido tais antagonismos — que a consciência burguesa absolutizara e tornara insolúveis na teoria e na prática — não como algo natural e absoluto, mas histórico e relativo e, pois, superáveis, prática e teoricamente, numa forma superior de organização social. Esses filósofos burgueses concebem, portanto, o marxismo ainda de uma forma limitada pela perspectiva burguesa e, pois, negativa e falsa.”

 

 

“Assim como os objetivos essenciais do movimento operário não podem realizar-se no marco da sociedade burguesa e do seu Estado, também a filosofia própria a esta sociedade não pode compreender a natureza das concepções gerais nas quais, de um modo consciente e autônomo, se expressa o movimento revolucionário proletário. O ponto de vista burguês, portanto, deve deter-se necessariamente — exceto no caso de se dispor a deixar de ser “burguês”, ou seja, se dispuser-se a suprimir a si mesmo — na mesma altura em que é obrigado a deter-se na práxis social.”

 

 

“Atribuir à teoria uma existência independente do movimento real é uma concepção não materialista nem sequer dialética, mesmo no sentido hegeliano: é uma concepção simplesmente metafísica idealista.”

 

 

“Nos anos 1840, quando Marx e Engels empreenderam, primeiro no plano teórico e filosófico, o combate revolucionário pela emancipação da classe que “não está em oposição parcial às consequências da sociedade existente, mas sim em oposição geral às suas condições de existência”,56 estavam convencidos de atacar assim um dos elementos mais importantes deste tipo de sociedade. Sobre o editorial do número 179, de 1842, da Kölnische Zeitung (Gazeta de Colônia), Marx já escrevera: “A filosofia não se situa fora do mundo, tal como o cérebro não se situa fora do homem pela simples razão de não se encontrar no seu estômago”.57 Mais tarde, na “Introdução” à Crítica da filosofia do direito de Hegel — texto em que, conforme Marx dirá, quinze anos depois, no prefácio à Crítica da economia política, ele realizara a passagem definitiva a seu ponto de vista materialista ulterior —, anotou, no mesmo sentido, que “a própria filosofia passada pertence a este mundo e é o seu complemento, ainda que ideal”.58 E o dialético Marx, no momento em que transita da concepção idealista à materialista, afirma expressamente que a fração política prática cometia à época, na Alemanha, ao rejeitar toda filosofia, um erro tão grande quanto o que cometia a fração política teórica ao não condenar a filosofia como tal. Esta última acreditava, de fato, que podia combater o mundo alemão na sua realidade situando-se na perspectiva da filosofia, ou seja, a partir das exigências que extraía ou pretendia extrair da filosofia (como mais tarde o fará Lassalle, tendo Fichte como referência), e, assim, não levava em conta que o próprio ponto de vista filosófico pertencia a este mundo alemão. Mas a fração política prática, que pretendia realizar a negação da filosofia “voltando as costas à filosofia, olhando para qualquer outra parte e murmurando um punhado de frases triviais e mal-humoradas” sobre ela, também se encontrava, no fundo, aprisionada nos mesmos limites: também ela se recusava “a inserir a filosofia na realidade alemã”. Assim, a fração teórica supunha “poder realizar (praticamente) a filosofia sem a superar (teoricamente)”; mas a fração prática cometia erro análogo ao querer superar (praticamente) a filosofia sem realizá-la (teoricamente), ou seja, sem concebê-la como realidade.59

Vê-se nitidamente em que sentido Marx (e Engels, que, à mesma época, concluía uma evolução semelhante, como ambos, posteriormente, reconheceram inúmeras vezes60) já tinha efetivamente superado, nesta altura, o ponto de vista filosófico dos seus anos de estudante; mas, também, vê-se em que sentido esta superação ainda conserva um caráter filosófico. Três ordens diferentes de razões nos autorizam a falar de uma superação do ponto de vista filosófico. Primeiro, o ponto de vista teórico em que Marx se coloca agora está em oposição não apenas parcial às consequências, mas em oposição geral aos princípios orientadores de toda a filosofia alemã precedente — da qual Hegel, para Marx e Engels, era o representante maior. Em segundo lugar, esta oposição não era somente uma oposição à filosofia, no fundo a cabeça ou o complemento ideal do mundo existente: era uma oposição à totalidade deste mundo. Finalmente, e sobretudo, esta oposição não era puramente teórica: era, simultaneamente, prática e ativa. Eis o que afirma categoricamente a última das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”. No entanto, esta superação do ponto de vista puramente filosófico ainda conserva um caráter profundamente filosófico; para verificá-lo, basta considerar como esta nova ciência do proletariado, que Marx coloca no lugar da filosofia idealista burguesa e que pela sua orientação e objetivos se opõe radicalmente às filosofias precedentes, diferencia-se tão pouco destas pela sua natureza teórica. Já toda a filosofia do idealismo alemão tendera, mesmo no plano teórico, a ser mais que uma teoria e uma filosofia — o que se compreende facilmente ao se levar em conta sua relação dialética, antes referida, com o movimento revolucionário burguês que, na prática, lhe era contemporâneo (algo que será nosso objeto num trabalho futuro). Em Hegel, esta tendência — característica de todos os seus predecessores (Kant, Schelling e, particularmente, Fichte) — parece, à primeira vista, sofrer uma inversão; mas, na realidade, ele atribuiu à filosofia uma missão que desborda o domínio propriamente teórico e, em certo sentido, é de ordem prática, missão que não consiste, é óbvio, como em Marx, na transformação do mundo, mas, ao contrário, em reconciliar, mediante o conceito e a compreensão (Einsicht), a Razão enquanto Espírito consciente de si com a Razão enquanto Realidade dada.61 Contudo, não se pode sustentar que, colocando-se este objetivo de significação universal (que, para a linguagem corrente, constitui mesmo a própria essência de toda filosofia), a filosofia idealista alemã, de Kant a Hegel, tenha deixado de ser uma filosofia; com maior razão, é infundado declarar que a teoria de Marx não é mais uma teoria filosófica porque pretende desempenhar uma tarefa não mais puramente teórica, mas simultaneamente revolucionária e prática. Pode-se afirmar, ao contrário, que o materialismo dialético de Marx e de Engels, tal como se exprime nas onze Teses sobre Feuerbach e nos textos da mesma época, publicados ou inéditos,62 deve absolutamente ser considerado, na sua natureza teórica, como uma filosofia — mais precisamente, deve ser considerado uma filosofia revolucionária que se insere como tal nas lutas revolucionárias que então se travam em todas as esferas da realidade social contra o regime existente e que se coloca como tarefa lutar efetivamente numa esfera determinada desta realidade, a esfera da filosofia, com o objetivo de chegar, no exato momento em que se realize a superação do conjunto da realidade social existente, à superação real da filosofia mesma, que é parte integrante — ainda que ideal — desta realidade. Como Marx diz: “Não podeis superar a filosofia sem realizá-la”.63

É de concluir-se, pois, que, para os revolucionários Marx e Engels, no momento mesmo em que transitavam do idealismo dialético de Hegel para o materialismo dialético, a superação da filosofia não significava, de forma alguma, o seu simples abandono. E para se compreender a sua atitude ulterior em face da filosofia, é essencial tomar como ponto de partida e ter sempre presente um fato incontestável: Marx e Engels já eram dialéticos antes de se tornarem materialistas. A significação do seu materialismo estará necessariamente comprometida, do modo mais nefasto e mais irreparável, quando se perde de vista que, desde o início, ele foi histórico e dialético — ou seja, um materialismo cujo objetivo é compreender teoricamente e revolucionar praticamente a totalidade da vida histórica e social —, e que assim permaneceu, ao contrário do materialismo científico abstrato de Feuerbach e de todos os materialismos abstratos, burgueses ou marxistas vulgares, que o precederam ou sucederam. Poderia ocorrer, e de fato ocorreu, que, no desenvolvimento do seu princípio materialista, Marx e Engels atribuíssem à filosofia um peso menos importante no processo histórico-social que aquele que inicialmente lhe conferiram. Todavia, para uma concepção verdadeiramente dialética e materialista do processo histórico, seria impossível fazer (e Marx e Engels nunca o fizeram) que a ideologia filosófica, ou mesmo a ideologia em geral, deixasse de ser um elemento efetivo do conjunto da realidade histórico-social, isto é, um elemento que é preciso compreender em sua realidade segundo uma teoria materialista e que é preciso revolucionar na sua realidade mediante uma práxis materialista.

Nas suas Teses sobre Feuerbach, o jovem Marx opôs o seu novo materialismo não apenas ao idealismo filosófico, mas também, e vigorosamente, a todas as formas precedentes do materialismo; do mesmo modo, em todos os seus escritos posteriores, Marx e Engels sublinharam a oposição do seu materialismo dialético ao materialismo vulgar, não dialético e abstrato; em particular, tinham consciência da importância considerável dessa oposição no que concerne à interpretação teórica das realidades “espirituais” (ideológicas) e à atitude prática a ser tomada em face delas. Marx observa a propósito das representações intelectuais em geral e do método adequado a uma verdadeira história crítica das religiões:

Em realidade, é muito mais fácil descobrir o cerne terreno das nebulosas representações religiosas, analisando-as, do que, seguindo o caminho oposto, descobrir, partindo das relações da vida real, as formas celestiais correspondentes a essas relações. Este último é o único método materialista e, portanto, científico.64

Ora, uma práxis revolucionária que se limitasse à ação direta contra o núcleo terreno das concepções nebulosas da ideologia, sem se preocupar com a revolução e a superação das próprias ideologias, seria naturalmente tão abstrata e não dialética quanto o método teórico assim descrito, que se contenta, como o de Feuerbach, com a remissão de todas as representações ideológicas ao seu núcleo terreno.

Ao adotar esta atitude negativa e abstrata em face do caráter real da ideologia, o marxismo vulgar comete o mesmo erro que os teóricos do proletariado que, apoiando-se na ideia marxista do condicionamento econômico das relações jurídicas, das formas de Estado e de toda ação política, quiseram dela deduzir que o proletariado poderia e deveria limitar-se à ação econômica direta.65 Sabe-se com que vigor Marx opôs-se a tendências similares, especialmente em sua polêmica contra Proudhon, mas também noutras oportunidades. Ao longo de sua vida, todas as vezes em que se defrontou com uma concepção desse gênero (que, ainda hoje, sobrevive no sindicalismo), Marx sempre sublinhou, com a máxima energia, que esse “desprezo transcendental” em face do Estado e da ação política é absolutamente não materialista e, por consequência, insuficiente no plano teórico e nefasto no plano político.66 Esta concepção dialética das relações entre a economia e a política tornou-se uma parte essencial da teoria marxista — e a tal ponto que mesmo o marxismo vulgar da Segunda Internacional, se negligenciou in concreto a elucidação dos problemas da transição política revolucionária, não pôde negar a sua existência in abstracto. Entre os marxistas ortodoxos, nenhum sustentou que o interesse teórico e prático pelas questões políticas era, para o marxismo, um ponto de vista ultrapassado. Isto era deixado para os sindicalistas, que jamais tiveram a pretensão de ser marxistas ortodoxos, ainda que alguns deles se dissessem vinculados a Marx. Em troca, no tocante às realidades ideológicas, inúmeros bons marxistas assumiram e assumem uma posição teórica e prática inteiramente comparável àquela dos sindicalistas em face das realidades políticas. Estes materialistas, diante da negação sindicalista da ação política, replicam, seguindo a Marx, que “o movimento social não exclui o movimento político”67 e, respondendo ao anarquismo, frequentemente sublinham que, mesmo após a revolução vitoriosa do proletariado e apesar de todas as transformações que o Estado burguês vai sofrer, a realidade política subsistirá ainda por largo tempo. Mas estes mesmos materialistas manifestam um desprezo transcendental, tipicamente anarcossindicalista, quando se lhes assinala que a tarefa espiritual que se impõe no domínio ideológico não pode ser substituída, ou tornada supérflua, nem pelo movimento social da luta de classe proletária, nem. pela união dos movimentos social e político. Ainda atualmente, a maioria dos teóricos marxistas concebe a realidade desses fatos “espirituais” apenas num sentido puramente negativo, totalmente abstrato e não dialético, em vez de aplicar rigorosamente a este domínio da realidade social o único método materialista e, por consequência, científico em que insistiram Marx e Engels. Dever-se-ia fazer um esforço para compreender, ao lado da vida social e política, a vida espiritual; para compreender, ao lado do ser e do devir social no sentido mais amplo (a economia, a política, o direito etc.), a própria consciência social, nas suas diversas manifestações, como um elemento real, ainda que ideal (ou “ideológico”), da realidade histórica em sua totalidade. Mas, em lugar disto, define-se toda a consciência do modo mais abstrato (num regresso à metafísica dualista) como reflexo dos processos materiais, tomados como os únicos reais, reflexo inteira ou relativamente dependente, porém, em última instância, sempre dependente daqueles.68

56 Nachlass, v. 1, p. 397 [na ed. bras. cit. da Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 155-156].

57 Nachlass, v. 1, p. 259.

58 Nachlass, v. 1, p. 390. [A Gazeta de Colônia, diário conservador e católico publicado desde 1802, contrapunha as suas posições às defendidas pela Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), que Marx dirigia em 1842. O artigo em questão — “O editorial do número 179 da Gazeta de Colônia” — foi publicado nas edições de nos 191 (10 de julho de 1842), 193 (12 de julho de 1842) e 195 (14 de julho de 1842) da Gazeta Renana; a frase recolhida por Korsch encontra-se nesta última edição.]

59 Nachlass, v. 1, p. 390-391 [na ed. bras. cit. da Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 150-151].

60 Ver, por exemplo, a observação de Marx no seu prefácio à Crítica da economia política (1859), p. lvi-lvii [na ed. bras. cit. de Para a crítica da economia política, p. 24-26].

61 Ver o prefácio à Filosofia do direito, ed. Meiner, p. 15-16 [na ed. port. citada, p. 11-13], bem como as observações de Herlander, citado na nota 53.

62 Incluem-se entre tais textos, além da Crítica da filosofia do direito de Hegel, já mencionada, a crítica de A questão judaica, de Bauer, de 1843-1844 [ver K. Marx. Para a questão judaica. Lisboa: Avante!, 1997] e A sagrada família, de 1844 [a publicação desta obra é de fevereiro de 1845 (N. do T.)] e, sobretudo, o grande acerto de contas com a filosofia pós-hegeliana a que Marx e Engels se dedicaram, em conjunto, em 1845, no manuscrito de A ideologia alemã. A importância deste último para o nosso problema surge já na passagem do prefácio a A sagrada família, no qual os autores anunciam que exporão positivamente, nos seus próximos trabalhos, as suas ideias acerca de “novas doutrinas filosóficas e sociais” [ver K. Marx e F. Engels. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 16]. Infelizmente, esse manuscrito — de relevância capital para quem quiser analisar de modo fiel e exaustivo o problema das relações entre o marxismo e a filosofia — permanece parcialmente inédito até hoje [ao tempo em que Korsch escreveu Marxismo e filosofia, só se conheciam fragmentos dessa obra; há ed. bras. integral: K. Marx e F. Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007]. Mas as partes publicadas, especialmente “São Max” (Dokument des Sozialismus [Documentos do Socialismo], n. 3, p. 17 e ss.) e “O concílio de Leipzig” (Archivfür Sozialwissenschaft und Sozialpolitik [Arquivo de Ciência Social e Política Social], n. 47, p. 773 e ss.), mais as informações muito interessantes fornecidas por Gustav Mayer sobre a parte ainda inédita deste material (ver a sua Biografia de Engels, v. 1, p. 239-260), mostram que é aqui que se deve procurar o enunciado do princípio materialista dialético de Marx e Engels na sua totalidade e não no Manifesto comunista ou no prefácio à Crítica da economia política, onde a apresentação deste princípio é unilateral — acentuada, no primeiro, a sua significação revolucionária prática e, no segundo, a sua significação teórica, econômica e histórica. Perde-se frequentemente de vista que as célebres frases do prefácio à Crítica da economia política sobre a concepção materialista da história têm por objetivo apresentar ao leitor “o fio condutor do estudo da sociedade” de que Marx se serviu nas suas pesquisas sobre economia política, e que ele, por esta precisa razão, não exprimiu, nesta passagem, a totalidade do seu novo princípio materialista dialético; e, no entanto, isto ressalta claramente, tanto do conteúdo quanto da forma dessas observações. Por exemplo, lê-se: numa era de revolução social, os homens tomam consciência do conflito que irrompeu e ingressam na luta; a humanidade só se propõe certas tarefas sob determinadas condições; e mesmo a época de grandes transformações está acompanhada de uma consciência determinada. Como se verifica, a questão do sujeito histórico que realiza realmente esta transformação da sociedade, com uma consciência justa ou falsa, não é minimamente tratada. Por consequência, se se quiser tomar o princípio materialista dialético em sua totalidade, é indispensável completar a descrição aqui oferecida por Marx da sua nova concepção da história com os seus outros escritos e os de Engels (sobretudo aqueles do primeiro período, além de O capital e dos pequenos textos dos últimos anos). Foi o que tentei fazer há um ano, em minha pequena obra Kernpunkte der materialischen Geschichtsauffassung, cit.

63 [Ver, na ed. bras. cit. da Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 151.]

64 Ver Das Kapital, livro 1, p. 336, nota 89 [na ed. bras. cit., livro 1, v. 1, p. 425, nota 89], bem como a quarta tese das Teses sobre Feuerbach [na ed. bras. De A ideologia alemã, cit., p. 534 e 538], inteiramente concorde com esta passagem. Como se vê claramente, o que Marx considera aqui como o único método materialista e, por consequência, científico é justamente o método materialista dialético, que se opõe ao método materialista abstrato e deficiente. Ver igualmente, na carta de Engels a Mehring, de 14 de julho de 1893 (reproduzida nos meus Kernpunkte..., p. 55-56 [ver F. Fernandes (org.). Marx-Engels / História. São Paulo: Ática, 1983, p. 465]), as observações sobre o que falta ao método materialista empregado por este último na sua Lenda de Lessing e que, diz Engels, “nas coisas de Marx e minhas não foi regularmente destacado de modo suficiente”: “Nós colocamos inicialmente — e tínhamos de fazê-lo — a ênfase principal, antes de mais nada, em derivar dos fatos econômicos básicos as concepções políticas, jurídicas e demais concepções ideológicas, bem como os atos mediados por elas. Com isso, negligenciamos o lado formal em função do conteúdo: o modo e a maneira como essas concepções etc. surgem”. Veremos, em seguida, que esta autocrítica de Engels, referida a escritos seus e de Marx, só em pequena medida é pertinente ao método que utilizaram. A unilateralidade apontada por Engels aparece bem menos em Marx do que nele e, mesmo em relação a seus próprios trabalhos, é menor do que sugere essa autocrítica. E é preciso dizer que, pela sua convicção de não ter levado suficientemente em conta a forma, Engels, na sua última fase, cometeu por vezes o erro de considerá-la de modo não dialético e errôneo — pensamos em todas aquelas passagens do Anti-Dühring, de Ludwig Feuerbach e especialmente das suas últimas cartas, coligidas por Bernstein (Dokumente des Sozialismus, n. 2, p. 65 e ss.), relativas ao “campo de aplicação da concepção materialista da história”, passagens em que Engels, a nosso juízo, tende a cometer o erro que Hegel denunciou no apêndice ao parágrafo 156 da sua Enciclopédia (Werke, v. 6, p. 308-309), um “comportamento inteiramente sem conceitos”; em termos hegelianos, Engels não ascende ao conceito, retornando às categorias de reação, ação recíproca etc.

65 Este ponto de vista é expresso, caracteristicamente, nas observações em que Proudhon explica a Marx, na sua famosa carta de maio de 1846 (Nachlass, v. 2, p. 336), como colocava o problema: “reintroduzir na sociedade, por uma combinação econômica, as riquezas que dela foram extraídas por uma outra combinação econômica. Noutros termos: na economia política, voltar a teoria da Propriedade contra a Propriedade, de modo a engendrar o que os senhores, socialistas alemães, chamam comunidade” [na ed. bras. cit. de Miséria da filosofia, p. 202]. Marx, em troca, mesmo quando ainda não havia elaborado o seu ponto de vista materialista dialético, já percebera claramente a relação dialética que obriga a colocar e resolver — teórica e praticamente — as questões econômicas no plano político: ver, por exemplo, a carta a Ruge, de setembro de 1843, na qual Marx responde aos “socialistas vulgares”, para os quais questões políticas, como a da diferença entre o sistema estamental e o sistema representativo, eram “absolutamente negligenciáveis”, com a indicação dialética de que “esta questão apenas exprime, no plano político, a diferença entre o reino do homem e o reino da propriedade privada” (Nachlass, v. 1, p. 382).

66 Ver, em particular, as últimas páginas de Miséria da filosofia.

67 [Referência a um dos últimos parágrafos de Miséria da filosofia (na ed. bras. citada, p. 160), em que Marx afirma: “Não se diga que o movimento social exclui o movimento político. Não há, jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo, social”.]

68 Sobre a questão de saber até que ponto Engels, em seu último período, fez algumas concessões a este ponto de vista, ver, supra, a nota 64.

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