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terça-feira, 8 de março de 2022

Dicionário analítico do Ocidente medieval (Volume I, Parte II) – Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (Orgs.)

Editora: UNESP

ISBN: 978-85-393-0685-5

Tradução (coord.): Hilário Franco Júnior

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 754

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Sinopse: Ver Parte I




“Em suma, a melhor definição “da” fronteira medieval parece-me ser aquela de Pierre Toubert: “A fronteira jamais é linear, a não ser por abstração: ela é uma zona. Ela é estática apenas na aparência. Ela é sempre a resultante de um movimento e apenas materializa no espaço um precário estado de equilíbrio [...] . O movimento que cria ou sustenta uma fronteira é constituído pela intervenção de numerosos componentes de diferentes ordens (demográficos, econômicos, linguísticos, religiosos, geopolíticos etc.) [...]. A fronteira nunca é um obstáculo ou uma simples barreira, mas uma membrana viva ou [...] um ‘órgão periférico.’ [...] A fronteira parece, muitas vezes, produzir, talvez, 'gêneros de vida específicos', como o do 'soldado-camponês'. Ela cria, em todo caso, um estilo de vida cujos caracteres fundamentais são a violência e o desrespeito às normas e aos mecanismos de enquadramento social que prevalecem nas zonas centrais. O mundo da fronteira é assim, por excelência o do out law”.” (Jacques Le Goff)

 

 

“Enfim, o que a cidade representa para o cristianismo medieval? O cristianismo, que se implantou inicialmente nas cidades antigas e assimilou os camponeses (pagam) aos pagãos, reencontrou-se nas cidades medievais? A cidade episcopal da Alta Idade Média foi a prefiguração, o núcleo, da cidade medieval? Ou o cristianismo do primeiro milênio ruralizou-se a ponto de ter tido dificuldades para se reurbanizar? Ou, ainda, o cristianismo criou, antes do século X, modelos ideológicos ou concretos que constituíram as estruturas que acolheriam o urbanismo medieval? A cidade medieval foi a cidade de Deus? O mosteiro, “cidade refúgio”, foi um modelo para a cidade da Idade Média?

A maioria dos grandes medievalistas do século XX interessados pelas cidades medievais insistiu na separação entre a cidade antiga e a cidade medieval, mas eles não estão de acordo nem quanto à época dessa ruptura, nem, sobretudo, sobre as causas da aparição e desenvolvimento das cidades medievais. O belga Henri Pirenne e o francês Maurice Lombard concordaram quanto à grande importância das conquistas árabes que se seguiram, no século VII, ao nascimento do Islã, mas atribuíram a elas consequências opostas para a cidade cristã ocidental. Para Pirenne, o fechamento do Mediterrâneo, resultado das conquistas árabes dos séculos VI e VIII, estancou o grande comércio, a economia monetária e provocou a morte da antiga rede urbana. Quando ocorreu a retomada do século X, foi ou a partir dos subúrbios recém-criados para o renascente comércio, ou a partir de criações ex nihilo. Maurice Lombard, por sua parte, tomando posição oposta às teses de Pirenne, atribui a retomada do grande comércio e da circulação monetária à demanda econômica do mundo muçulmano, justamente o estímulo comercial que suscita o nascimento da cidade medieval. Por outro lado, alguns historiadores insistem em afirmar a continuidade urbana entre a Antiguidade e a Idade Média. Adrian Verhulst, por exemplo, assegura que em Bruges, Antuérpia, Gand e Tournai, como em Cambrai ou Arras, a cidade antiga tinha sobrevivido durante a Alta Idade Média e que, a partir do século IX, o renascimento urbano manifestou-se não sob a influência do comércio internacional, mas a partir do alargamento do raio local da atividade econômica dos núcleos pré-urbanos de origem antiga.

Do mesmo modo, colocando a pergunta: “Mercadores ou tecelões?”, Charles Verlinden afirma: “A indústria é a causa primeira da transformação demográfica da qual o nascimento e desenvolvimento das cidades flamengas são a consequência. O comércio ali nasceu da indústria, e não o contrário”.

De fato, é difícil privilegiar o comércio ou o artesanato mais do que um outro aspecto do novo conjunto econômico que engloba a comercialização do excedente da produção agrícola, o aumento da quantidade dos materiais disponíveis para o artesanato (lã, matérias para tingimento, couro, ferro), a criação de feiras e mercados para as trocas próximas e distantes, os progressos da economia monetária com a cunhagem de moedas e a multiplicação de cambistas que se transformarão pouco a pouco em banqueiros. Mas todo esse conjunto leva ao progresso urbano. E sobretudo o aumento da produção agrícola e o desenvolvimento do artesanato urbano explicam – o que o comércio não pode fazer – o crescimento demográfico, sem o qual dificilmente se teria produzido o grande movimento de povoamento urbano.

Não se deve também, no nascimento da cidade medieval, negligenciar o papel dos lugares estáveis nascidos da vontade de proteger os produtos do crescimento agrícola da zona rural vizinha, ou os resultados das trocas comerciais. Tais lugares fortificados (castra) estiveram – sob impulso ou da aristocracia guerreira, ou dos condes, ou dos reis, ou mesmo algumas vezes de certos mosteiros – na origem de núcleos urbanos, de burgos de onde saíram as cidades. Esse foi especificamente o caso das regiões periféricas que entraram tardiamente na Cristandade, como a Hungria e a Polônia, onde esses núcleos urbanos fortificados foram mais tarde chamados em eslavo de grod, gorad, grall, brad, ou gard. Mesmo nas regiões há muito tempo cristãs, como a Gália, que viria a se tornar a França, os “burgos fortificados” (Vendôme é um exemplo disso) estiveram na origem de novas cidades, no contexto do progresso econômico, rural, comercial, artesanal (A. Chedeville). Tal processo ocorreu paulatinamente, na longa duração, mesmo conhecendo uma certa aceleração por volta do ano I000 e no século XI.

A cidade medieval é, antes de mais nada, uma sociedade da abundância, concentrada num pequeno espaço em meio a vastas regiões pouco povoadas. Em seguida, é um lugar de produção e de trocas, onde se articulam o artesanato e o comércio, sustentados por uma economia monetária. É também o centro de um sistema de valores particular, do qual emerge a prática laboriosa e criativa do trabalho, o gosto pelo negócio e pelo dinheiro, a inclinação para o luxo, o senso da beleza. É ainda um sistema de organização de um espaço fechado com muralhas, onde se penetra por portas e se caminha por ruas e praças, e que é guarnecido por torres. Mas também é um organismo social e político baseado na vizinhança, no qual os mais ricos não formam uma hierarquia e sim um grupo de iguais – sentados lado a lado – que governa uma massa unânime e solidária. Em contraste com o tempo tradicional, enquadrado e ritmado pelos regrados sinos da Igreja, essa sociedade laica urbana conquistou um tempo comunitário, em que sinos laicos indicam a irregularidade das chamadas à revolta, à defesa, à ajuda (J. Rossiaud).

Se a economia foi decisiva na gênese da cidade medieval, o que também a caracterizou foi a criação, lenta, mas sancionada por atos e acontecimentos decisivos, de novas instituições, as instituições urbanas medievais, como bem viu Henri Pirenne. Essas instituições, aliás, frequentemente tiveram como finalidade, ou em todo caso como consequência, permitir eu proteger a atividade econômica urbana e reconhecer a importância dos meios econômicos e sociais, que são seus principais atores: artesãos e sobretudo mercadores. Esses atos assumiam a forma de outorga, pelo poder senhorial ou público (conde, rei, bispo) do direito de mercado, de feiras, de supressão de taxas sobre as mercadorias e as trocas. Esse fenômeno foi chamado de “obtenção de franquias” ou de “liberdades urbanas”. Seu ponto culminante foi a conquista, pelos citadinos, de uma autonomia institucional e política denominada “comuna”. O “movimento comunal”, sobre o qual muitas vezes se concentrou a atenção dos historiadores, especialmente os do século XIX, está longe de ter sido geral, e o sistema que ele estabeleceu só pode ser definido como “democrático” por uma ilusão anacrônica. O direito de “burguesia” foi conquistado apenas por uma minoria. A autonomia urbana, muitas vezes, só foi conseguida pelo conjunto dos cidadãos ou por uma parte deles, graças a pressões que podiam ir até a revolta e o emprego da força. (...)

Nas cidades mais ou menos autônomas, ao lado dos mercadores e dos artesãos, firmam-se pessoas dedicadas às leis de todo tipo, especialistas do direito dos quais se beneficiam a cidade e os notários. A escrita triunfa cedo nas cidades. (...)

Entre o s séculos XI e XIV, a cidade medieval, modelada pelas novas atividades, pelos novos grupos dominantes, pelos novos poderes, oferece pouco a pouco uma nova imagem, material e simbólica, que desempenha um grande papel na formação do imaginário urbano. É uma cidade vertical dentro de seus muros, eriçada de campanários de igrejas e de torres de casas ricas e poderosas, uma “Manhattan” que afirma seu poder e se eleva em direção a Deus. O bairro e, mais ainda, a rua são elementos essenciais da paisagem urbana, e a rua delimita um espaço público e um espaço privado. É um permanente canteiro de obras onde se individualizam jardins, cemitérios e pontes.

A cidade, lugar de múltiplas solidariedades, exerce uma função de promoção social, de integração e, cada vez mais no final da Idade Média, também de exclusão, de marginalização. Ela acolhe doentes para os quais constrói hospitais, e também viajantes, peregrinos. Comporta uma multiplicidade de centros, mas em breve um novo lugar torna-se um centro essencial, se não o centro da cidade por excelência: o mercado. Enfim, quando se constitui um governo laico urbano, aparecem novos monumentos, novos “pontos quentes” da cidade: mercados cobertos, prefeitura, torre de vigia. Lá se encontram os instrumentos do novo poder urbano: as balanças, os pesos e medidas, os registros e os cofres com cartas e privilégios, o relógio que ressoa o tempo dos burgueses.

A cidade domina os campos circundantes e um território mais ou menos vasto, além dos subúrbios, ele mesmo mais ou menos extenso, sobre o qual ela exerce maiores ou menores poderes jurídicos, econômicos, políticos.” (Jacques Le Goff)

 

 

“Cultura e mentalidade urbanas

Graças às canções de gestas e aos romances cortesãos do século XII, podem-se distinguir diversos tipos de comportamento, aliás frequentemente misturados.

O primeiro é o do desprezo e do medo. O beneditino Guiberto de Nogent, no começo do século XII, exclama: “Comuna, palavra nova, palavra detestável!”. No Percival, de Chrétien de Troyes, a moça nobre que socorre Gauvain lança aos citadinos revoltados que querem formar uma comuna: “Ralé, gentalha enraivecida, gente suja! Que diabos disseram a vocês para vir aqui?”

O segundo é o da cobiça. Longe de desdenhar as cidades, os guerreiros são atraídos pelas suas belezas e suas riquezas. Mas se o fazem é para explorá-las sem mudar seu tipo de vida. As cidades são, para eles, lugares de cobranças e exações econômicas, de alegria e bases de atividade guerreira: lugares de defesa, centros de organização de torneios, bases de expedições guerreiras. É a cidade-presa, uma mulher a ser conquistada.

No entanto, há também uma idealização. A cidade não é só bela, boa e rica, ela é também o lugar de coabitação harmoniosa entre as classes, especialmente cavaleiros e burgueses, sob a égide do rei. É a utopia social urbana. Ora, com exceção da Itália, onde, para grande escândalo de um Oto de Freising, os nobres estão lado a lado com artesãos e mercadores, os guerreiros mantêm-se afastados das cidades no século XII. Os textos que possuímos sugerem uma oposição fundamental com respeito à residência: as cidades para mercadores e burgueses, os castelos e as florestas para barões e cavaleiros.

Também para outros, clérigos ou intelectuais urbanos, a cidade é maravilhosa. O louvor às cidades torna-se um gênero literário e as cidades adquirem origens míticas. Aos santos padroeiros, acrescentam-se heróis fundadores, a partir do modelo de Rômulo e Remo, fundadores de Roma, amamentados pela loba. Se as maravilhas de Roma, celebradas no século XII pelo mestre Gregório, são maravilhas antigas, as de Milão, louvadas pelo pedagogo Bonvesino de la Riva no século III, são bem modernas, contemporâneas.

Na ordem das representações, a cidade não ocupa, na Idade Média, o mesmo lugar que na Antiguidade. Se, fisicamente, como pensava Marc Bloch, cidade e campo não estavam rigorosamente separados na Antiguidade, mentalmente a oposição entre elas era muito forte. Do lado da cidade (urbs) e de seus habitantes (os cives) estavam a cultura, a polidez, as boas maneiras – origem das palavras “urbano”, “urbanidade”, “civilidade”, “civilização”. Do lado do campo (rus) e de seus habitantes (os rustici), a grosseria, a incultura, a selvageria, lembradas nas palavras “rústico”, “rusticidade”, “rustre”.1 O sistema de valores que se liga ao espaço é diferente na Idade Média. Apesar do acentuado desprezo ao camponês, expresso pela palavra “vilão”, e do renascimento, sobretudo na Baixa Idade Média, de uma oposição entre “civilidade” (termo que aparece em meados do século XIV) e “rusticidade” (um pouco mais tardio, em torno de I380) os confrontos entre valores essenciais são outros. Eles opõem, de um lado, todo o mundo habitado, cultivado e construído, e, do outro, cidades, aldeias, castelos, campos e o universo inculto, o mundo ambíguo e inquietante que os homens da Idade Média chamam às vezes de “deserto”, retomando o termo e a ideologia que ele possui no Oriente monástico, deserto que no Ocidente cristão é a “floresta”. Diante da ordem feudal ou burguesa, ele é a desordem.

A grande oposição medieval dos sistemas de valores situa-se entre “cortesia” e “vilania”. A cidade, como tal, não produz modelos éticos para o conjunto da sociedade. Os burgueses esforçam-se para imitar e assimilar os modelos aristocráticos, para serem probos (prud’hommes) e corteses, o que é particularmente verdadeiro na Itália.

Não se deve exagerar, a partir da cidade, a originalidade e a força da burguesia medieval na sociedade feudal. Se é correto dizer que a cidade, pela divisão do trabalho e pelo impulso dado à economia monetária introduziu no modo de produção feudal um fermento que com o tempo iria destruí-lo, não se deve esquecer que a especialização profissional talvez tenha começado com os ministeriales dos grandes domínios dos senhores eclesiásticos e laicos; não se deve esquecer que a “revolução” do moinho atingiu tanto os campos quanto as cidades; que o sistema senhorial sucedeu ao sistema dominial, tão bem adaptado à economia monetária e ao setor urbano; que o essencial sempre repousara na produção agrícola; que o burguês, ao lado dos ganhos mercantis e da especulação imobiliária na cidade, tem como único desejo investir no campo e comprar feudos. Se é verdade que os burgueses abalaram o sistema de valores feudal (hierárquico, guerreiro e perdulário), instaurando uma ordem algo igualitária, sobretudo no século XII e princípios do XIII, ou melhor, uma hierarquia mais horizontal que vertical – adorando o lucro e a contabilidade, aspirando à paz e à segurança, fazendo do espaço urbano um espaço de liberdade (Stadtluft macht frei, “o ar da cidade traz a liberdade”, diziam os alemães) ou de liberdades, no plural, quer dizer de privilégios –, não é menos verdade que os burgueses completaram o modo de impostos feudal por formas de taxação urbana que se acomodaram muito bem com as relações de produção feudal e se esforçaram para assimilar o sistema de valores cavaleiresco e aristocrático. Os artistas ligados aos meios nobiliários procuram, por sua vez, no momento em que parece haver um confronto entre a sociedade cavaleiresca e a sociedade burguesa, apagar essa oposição. Nos romances cortesãos, cidade e castelo são muitas vezes sinônimos, por contraposição às terras baixas, aos campos, à floresta.

Não creio que tenha havido um sistema urbano medieval. Mas acredito que houve, no interior do sistema feudal, um fenômeno urbano original, importante, que apresenta características comuns em toda a parte e que, inscrito no espaço e no funcionamento do sistema feudal, estabeleceu uma “rede” urbana.

A originalidade desse fenômeno urbano em nenhum lugar aparece melhor que na área da cultura, apesar do peso dos modelos nobres. Existiu uma cultura urbana medieval. Essa cultura é, evidentemente, tributária do cristianismo. O cristianismo leva para a cidade uma doutrina ambígua. Se há uma teologia da cidade no cristianismo, ela oscila entre a negação e a afirmação. De um lado, Henoc, Sodoma, Babel, Babilônia. Do outro, Jerusalém, a cidade de Deus. Mesmo a Jerusalém terrestre é suspeita. E as relações da Jerusalém celeste com a cidade terrestre refletem toda a ambiguidade da escatologia cristã. Entretanto, do Gênesis ao Apocalipse, a Bíblia manifesta uma crescente urbanização do Além, substituindo o Paraíso, o jardim dos primeiros tempos, pela cidade dos últimos tempos.

Nos rincões do Ocidente, o mosteiro tinha feito surgir um novo modelo urbano. Com efeito, o mosteiro “constituía uma cidade com uma nova concepção: associação, ou melhor, fraternidade de homens com aspirações comuns, reunidos não apenas durante cerimônias ocasionais, mas para uma permanente coabitação” (L. Mumford).

No entanto, mesmo se, como pensa Georges Duby, a arquitetura cisterciense do século XII prefigura a arquitetura urbana da época gótica, é essencialmente contra a cultura monástica que vai se instalar uma cultura urbana nos séculos XII e XIII. De forma mais ampla, a cidade terá que lutar contra as tradições que a Igreja havia adquirido durante a Alta Idade Média, quando ela estava – apesar da rede das cidades episcopais – profundamente ruralizada. Aliás, paradoxalmente, quando a Igreja se aproveitar com atraso do grande desenvolvimento urbano e do espetacular crescimento demográfico das cidades, será para estender até elas uma estrutura rural, a da paróquia, que se multiplica no espaço urbano na virada dos séculos XII e XIII.

Durante o século XII, vê-se a Igreja hesitar e tentar cristianizar a cidade a partir das velhas estruturas desta. A hesitação é marcada pela oscilação entre o louvor às novas Jerusaléns e a condenação às novas Babilônias. A cidade cujo crescimento e renome são mais espetaculares, Paris, é particularmente objeto dessas atitudes contraditórias. São Bernardo acorre gritando para os mestres e estudantes que começam a povoar a Montanha Santa Genoveva: “Fujam do meio da Babilônia, fujam e salvem suas almas. Voltem-se todos juntos para as cidades do recolhimento (isto é, os mosteiros)”. O abade Filipe de Harvengt, por outro lado, escreve para um jovem discípulo: “Impelido pelo amor à ciência, você está em Paris, encontrou essa Jerusalém que tantos desejam”. E os goliardos, esses estudantes errantes, fazem coro: “Paris, paraíso na terra, rosa do mundo, bálsamo do universo”.

A novidade urbana é, sem dúvida, ruidosa na ordem escolar e intelectual. Em face das igrejas monásticas isoladas nos seus rincões rurais ou florestais e de recrutamento nobiliário, as velhas escolas dos capítulos catedralícios e dos mosteiros urbanos tentam inicialmente satisfazer as necessidades que deram origem ao crescimento urbano. No século XII, as escolas episcopais de Laon, e depois de Chartres, de Saint-Victor de Paris e enfim de Notre-Dame de Paris esforçaram-se por adaptar o ensino tradicional da Igreja às novas realidades urbanas. Seu sucesso é efêmero. O movimento leva para as novas escolas urbanas mestres que com frequência receberam apenas as ordens menores, para poder desfrutar dos privilégios de clérigos sem estar sujeitos à disciplina dos padres e dos monges – é o caso de Abelardo. Eles ensinam para estudantes que lhes pagam pelas novas técnicas intelectuais baseadas na dialética, nas rationes (razões), e que se formam pela discussão, a disputatio, que é o fundamento de um novo método científico, a escolástica. Assim, no canteiro urbano aparece um novo trabalhador, um novo profissional, um mercador de palavras (dizem seus inimigos) ao lado do mercador de bens, que na virada dos séculos XII ao XIII agrupam-se nas novas corporações ou universidades.

No centro dessa nova atividade intelectual estão a troca, função essencial da cidade, e a discussão pública, na qual se distinguem também os heréticos, que sabem utilizar maravilhosamente o novo espaço urbano para organizar seus encontros. No fim do século XII, Estêvão de Tournai, abade de Sainte-Geneviève, que está em posição privilegiada para observar a efervescência escolar, enche-se de indignação: “Violando as constituições sagradas, discutem-se publicamente os mistérios da divindade, a encarnação do Verbo [...]. A indivisível Trindade é cortada e posta em pedaços nas esquinas. Tantos erros quanto doutores, tantos escândalos quanto auditórios, tantas blasfêmias quanto praças públicas”.

A praça pública, que não se confunde sempre com o mercado, é realmente o cadinho, o lar da cultura urbana, lugar de trocas, lugar de criação. Isso não é verdadeiro só para a cultura erudita dos clérigos, mas também para a cultura popular dos leigos, que em sua grande maioria são camponeses recentemente urbanizados. Essa cultura é em primeiro lugar cômica, satírica, paródica. Longe do choro silencioso dos monges, das piadas pesadas dos gabs senhoriais das quais as canções de gestas e os romances cortesãos nos trouxeram o eco, o riso popular abafado nos campos vem soar nas praças públicas das cidades.

Se a cidade medieval torna-se o lugar de um folclore urbanizado, um espaço de charivaris, de gritos de trabalho, de festas, onde é frequentemente difícil distinguir o eco do campo da criação popular urbana, esse interesse da cidade pelo folclore do campo não foi bem recebido por todos os citadinos. Em fins do século XIII, Adão de la Halle deixa transparecer em O jogo da folhagem sua preocupação com a presença provocante, em pleno coração do teatro da cidade, de fadas e da velha bruxa de Dame Douce, portadoras de uma cultura selvagem e zombeteira.

Mas, no século XIII, a Igreja encontra a cidade. Primeiro na teologia, na qual a metáfora urbana floresce (é o caso de uma importante passagem da Suma de Guilherme de Auvergne, bispo de Paris de I230 a I250, em que ele tenta sistematizar os sete sacramentos a partir da imagem da cidade) e na qual São Tomás de Aquino e seus discípulos, a maioria mestres parisienses, emprestam de Aristóteles a sua ideia do homem como “animal político”, isto é, urbano. Mas sobretudo no coração do próprio tecido urbano, pois, com a criação das Ordens Mendicantes – ordem de religiosos urbanos que dão as costas para a vida monástica para se instalar nas cidades e cujos conventos, numa rede copiada da rede urbana, logo se tornam um dos “pontos quentes” da cidade –, aparece um novo comportamento religioso e um apostolado especificamente urbano. A partir do final do século XII, os leigos e as mulheres também ingressam na religiosidade urbana e fornecem santos e santas. Foi o caso do mercador Homebon, canonizado em Cremona por Inocente III, em II99. Na Itália central, as santas urbanas são cada vez mais numerosas nos séculos XIII e XIV, como Miquelina de Pesaro, terciária franciscana morta em I356, venerada pela família senhorial dos Malatesta, por famílias de notáveis da cidade e festejada como “padroeira da pátria”. Homens e sobretudo mulheres ligados às Ordens Mendicantes destacam-se numa posição intermediária entre a condição laica e o estado religioso, participando de ordens terceiras, florescentes nas cidades italianas. Em Flandres e nas regiões vizinhas, outro grande polo de florescimento urbano, multiplicam-se as beguinas, a mais célebre das quais é Maria de Oignies, que se tornou beguina reclusa em I207. As mulheres, de forma geral, impõem-se na sociedade urbana, especialmente nas atividades econômicas: não é raro ver mulheres como chefes de empresa.

 

O citadino

Se há “um homem medieval”, um dos seus principais tipos é o citadino. “O que há de comum entre o mendigo e o burguês, o cônego e a prostituta, todos eles citadinos? Entre o habitante de Florença e o de Montbrisson? Entre o novo citadino da primeira fase de crescimento e seu descendente do século XV? Suas condições são diferentes, da mesma forma que suas mentalidades, mas o cônego forçosamente cruza com a prostituta, o mendigo e o burguês. Uns e outros não podem se ignorar e se integram no mesmo pequeno universo de povoamento denso que impõe formas de sociabilidade desconhecidas nas aldeias, uma forma de vida específica, com uso diário de dinheiro e, para alguns, uma abertura obrigatória para o mundo” (J. Rossiaud).

O citadino é um homem acostumado com a diversidade e a mudança. Ele vive no meio de vizinhos e amigos, numa “privacidade alargada”. É membro de uma ou diversas confrarias. Também está integrado na comunidade urbana pela participação em numerosas festas que ela organiza, e nas quais se manifesta sua personalidade. É um “cidadão cerimonial”. Se não consegue sempre atingir a cortesia, ele se sobressai por sua civilidade e suas boas maneiras.

A cidade elaborou, sobretudo, uma cultura comunitária feita para as novas coletividades urbanas, cultura forjada pela escola, pela praça pública, pela caverna, pelo teatro, pela pregação, mas que também contribuiu para a emancipação do casal e do indivíduo. Ali se vê a estrutura familiar mudar com a evolução do dote, que no meio urbano se constitui essencialmente de bens móveis e dinheiro. A cidade é uma pessoa, feita de pessoas que ela modela. O citadino, e mais especificamente o mercador medieval, é um “homem dessa rede que liga os diferentes centros urbanos entre si”, “um homem aberto para o exterior, receptivo às influências trazidas pelas estradas que desembocam na sua cidade vindas de outras cidades; um homem que, graças a essa abertura e a essas contribuições contínuas, cria, ou pelo menos desenvolve e enriquece, suas funções psicológicas e, num certo sentido por meio da confrontação, toma nitidamente consciência do seu eu...” (M. Lombard).

 

A cidade em crise a caminho da modernidade

As cidades foram as primeiras atingidas pela crise econômica proveniente de uma relativa superprodução, da interrupção progressiva do crescimento demográfico, da instabilidade monetária e das perturbações do comércio oriental ligadas ao avanço dos turcos em direção a Bizâncio e a Cristandade. Mas as cidades também tinham suas forças e seus trunfos, que lhes permitiram reagir melhor que o campo.

As calamidades dos séculos XIV e XV não pouparam as cidades. Os habitantes de Toulouse, por exemplo, suportaram, entre I4I0 e I483, seis severos períodos de fome, seis pestes ou epidemias, oito grandes incêndios ou inundações, operações militares ou agressões de bandidos durante vinte anos e duas importantes revoltas sociais. Das quatro pontes sobre o rio Garonne que existiam no final do século XIII, só uma subsistiu, os subúrbios desapareceram, perdeu-se um terço da população.

A guerra era quase endêmica durante esse período. Na França (Guerra dos Cem Anos); na Itália, sujeita a terríveis conflitos armados entre as cidades e a numerosas operações militares nos Estados da Igreja; na Península Ibérica, devastada pelas guerras civis; na Inglaterra, no século XV, quando da Guerra das Duas Rosas... As cidades tiveram de construir novas muralhas ou consertar as antigas, o que arruinou suas finanças e impôs aos citadinos pesadas cargas fiscais, que aumentaram o descontentamento dos habitantes menos ricos, sobre os quais aquelas cobranças pesavam mais.

Foi o tempo das grandes revoltas sociais urbanas. Desde o período I260-I280, greves e motins haviam estourado, especialmente na França setentrional, em Flandres e nas regiões vizinhas. Nos séculos XIV e XV, ocorreram verdadeiras rebeliões e sublevações urbanas, fomentadas sobretudo pelos trabalhadores, mas com a participação de burgueses ou mesmo de nobres. É o caso de Bruges em I302; da Flandres marítima e depois de Gand, com Jacó Van Artevelde de I337 até I345; de Paris em I357 (em I358 com Estêvão Marcel, de novo com os maillotins2 em I382, e ainda com o açougueiro Caboche em I4I3); em Florença, com a grande sublevação dos operários têxteis (os Ciompi) em I378; em Londres e em outros pontos da Inglaterra com a revolta dos trabalhadores, conduzidos pelo tecelão Wat Tyler em I38I. Essas revoltas são dirigidas tanto contra o rei quanto contra os ricos, os poderosos burgueses que controlam as instituições urbanas.

Com efeito, a crise econômica exaspera as tensões sociais entre ricos e pobres, os “gordos” e os “magros”, o popolo grasso e o popolo minuto, como se diz na Itália. As corporações fecham-se, os conflitos são quase constantes entre as corporações superiores e as corporações inferiores, os mercadores e os artesãos. Os marginais multiplicam-se, sobretudo numa grande cidade como Paris: desempregados de longo tempo, vagabundos, sem-teto, delinquentes e prostitutas, entre os quais a fronteira é flutuante.

Os judeus são um caso à parte. Mais e mais urbanizados e dedicados a certas profissões e à usura por estarem excluídos do trabalho da terra, desde o século XI, são vítimas de perseguições que podem culminar em um pogrom. No século XIV, eles são expulsos da França e da Inglaterra, massacrados na Alemanha em I348 como vítimas expiatórias da peste, cada vez mais confinados na Europa meridional num apartheid urbano que dá origem aos guetos, salvo em limitados oásis de tolerância, como o Condado Venaissin e os Estados Pontifícios, a Provença ou a Polônia. Na Península Ibérica de fins do século XV, eles são convertidos à força ou expulsos.

De maneira geral, a topografia social urbana, o zoneamento urbano, está cada vez mais de acordo com a estratificação social, criando bairros de estrangeiros, de pobres, de marginais. A repressão urbana contra os desempregados e os criminosos cresce, sem grande sucesso.

A sorte das cidades é diferente conforme seu tamanho ou seu contexto político. As grandes cidades afirmam-se sempre mais. Algumas se ampliam e consolidam sua influência sobre seus territórios.” (Jacques Le Goff)

I Grosseiro, boçal. [N.T.]

2 Nome dado aos parisienses que, na sua revolta contra a opressão fiscal utilizaram como arma o maillet, um tipo de maça. [N.T.]

 

 

“É pela associação de um “corpo” e de uma “alma” que a tradição ocidental comumente define a pessoa humana. Essa associação, sua estrutura binária, os termos que a constituem, parecem fatos a tal ponto evidentes que nós os projetamos voluntariamente e sem maior precaução sobre outras culturas ou sobre períodos históricos diferentes. Mas é no mínimo arriscado prejulgar o caráter universal de tais categorias e da natureza de sua relação. Mesmo no Ocidente, nada autoriza, a priori, afirmar que a oposição de corpo e alma, radicalizada por certas correntes da moral religiosa ou – por razões diversas – pela filosofia cartesiana, seja sempre e em todo lugar igualmente traçada. Somente a constatação, sem dúvida feita por todos os homens, da finitude de sua existência corporal – traída pelos sinais de envelhecimento, a evidência da morte, a alteração irredutível do cadáver, a dissolução das carnes – e, inversamente, o reconhecimento por cada um da faculdade que tem de transcender seus limites pelas faculdades de sua “alma” (o pensamento, a memória, o sonho, a crença), podem ser considerados características universais. Mas cada cultura atribui tais observações à sua própria concepção de pessoa, a seu próprio sistema.” (Jean-Claude Schmitt)

 

 

Corpus e anima

As palavras corpus e anima são citadas sem cessar nos textos medievais , em relação e , em geral, em oposição uma à outra. Essas palavras designam ora em sentido próprio os componentes da pessoa humana, ora são objeto de usos metafóricos que devemos igualmente levar em consideração. Elas dizem respeito também a níveis de discurso variados: pertencem, pode-se dizer, à linguagem cotidiana e, a esse título, encontrarão equivalentes imediatos nas línguas vernáculas. Têm um papel central na tradição psicofisiológica que, desde a Antiguidade, atravessa toda a Idade Média. Sobretudo, são objeto de comentários teológicos e éticos em número realmente ilimitado, uma vez que sua relação informa sobre o drama da existência humana tal como a concebiam os autores medievais. Essas concepções são produto de tradições culturais diferentes e muitas vezes divergentes, algumas das quais anteriores ao cristianismo, ao qual se fundiram, sejam elas oriundas do paganismo greco-romano ou da herança veterotestamentária. Pode-se atribuir a primeira síntese a São Paulo: foi ele que lançou as bases de uma representação cristã das relações entre corpo e alma e, portanto, da pessoa humana. Tal representação virá a evoluir, mas a pregnância das definições originais ainda se verifica ao longo de toda a Idade Média.

Na tradição platônica, a alma não é criada, ela preexiste por toda a eternidade ao corpo no qual encontra uma habitação provisória. Tal concepção alimenta uma forte desvalorização da existência carnal e terrestre, rebaixada ao escalão de aparência ilusória da qual o homem deve buscar fugir se aspira a viver em conformidade com os impulsos superiores da alma. Vale dizer que essas ideias não poderão ser recebidas sem modificação pelo cristianismo medieval, uma vez que contradizem a noção cristã de criação por Deus de cada alma individual. Mas compreende-se também a atração que exerceram sobre as correntes ascéticas que, desde Orígenes (I85-252), não cessaram de atravessar a cultura cristã e que puderam conduzir, contra o ideal de medida própria à moral comum, a expressões mais radicais, às vezes julgadas heterodoxas, de “desprezo do corpo”.

Além disso, a influência, em parte concorrente, da filosofia de Aristóteles sobre o pensamento cristão revela uma outra tentativa de síntese, correspondendo a uma concepção mais dinâmica e, se se ousar dizer assim, mais igualitária do corpo e da alma: para Aristóteles, “a alma é a forma do corpo”, fórmula frequentemente comentada e da qual é verossímil que se possa encontrar eco em Santo Agostinho quando este afirma que “a alma é uma substância racional criada para reger um corpo” (De quantitate anime, XIII, 22). As partes, as necessidades e o movimento “naturais” desse corpo são cada vez mais levados em conta, a ponto de, no século XIII, tornarem-se objeto de observação empírica e de ciência.

Se a filosofia greco-romana, em seus diferentes componentes, legou à Idade Média uma terminologia de categorias que permite pensar a relação entre alma e corpo, a tradição judaico-cristã permitiu inscrever essa relação em seu grande mito universal do devir da humanidade, do Gênesis à ressurreição dos mortos e ao Juízo Final, passando pela paixão de Cristo, que chancela seu sentido cristão. Nesse quadro, cada destino individual tem seu lugar, aventura indissociável de um corpo e de uma alma que tendem à salvação. A dupla relação do corpo e da alma como do singular e do universal permite, com efeito, definir a singularidade do pensamento cristão, uma vez que cada homem é portador das consequências da falta original, embora recebendo a faculdade de se libertar para vir a ser o artífice principal de sua salvação.” (Jean-Claude Schmitt)

 

 

“Contudo, nos últimos séculos da Idade Média, o coração é mais o substituto da alma do que sua sede. A esse título, não é oposto ao corpo, mas à carne. Tomás de Celano conta, por exemplo, como primeiro São Francisco recebeu em seu “coração”, na pequena igreja de São Damiano, a marca do crucifixo, que se manifesta mais tarde em sua “carne” pela aparição dos estigmas. Não é, pois, um elemento isolado que se modifica, mas toda uma relação. A oposição entre alma e corpo tende a ceder lugar à oposição entre o coração e a carne, que se firma de outra maneira, mais afetiva e mais ambivalente: o coração é mais carnal que a alma, a carne é um valor, tanto quanto a matéria.

Assim, a dialética do corpo e da alma evolui em todos o s níveis em que ela é observada: nas “práticas” do corpo e da alma, nas imagens de sua relação, nas categorias do pensamento racional ou ainda nas metáforas que lhe dão uma abrangência mais geral.” (Jean-Claude Schmitt)

 

 

“O cavaleiro cortesão continua, antes de tudo , um guerreiro que deve demonstrar todas as virtudes guerreiras, deve brilhar em todos os exercícios militares e, de forma geral, nos esportivos Ao mesmo tempo, porém, não pode mais ser inculto e analfabeto, não saber ler e escrever. A curialitas rejeita a oposição fundamental entre clerici-litterati e milites-illitterati. Certamente, o perfeito cavaleiro não vai às escolas para aprender o latim e as artes liberais. Entretanto, é bom que ele saiba ler e escrever, que se enriqueça de certa cultura, a fim de que os clérigos o louvem não por ser um litteratus, mas pelo menos suficientemente letrado (satis litteratus), quase letrado (quasi litteratus). Proeza e saber ainda representavam pouco. A curialitas exige, igualmente, certa maneira de ser, certo modo de viver. É preciso saber conduzir-se bem, não simplesmente demonstrar virtude e piedade, mas estar de acordo com as boas maneiras, “saber dizer e fazer”, saber portar-se de acordo com os usos e modos da corte. À mesa, por exemplo, onde não existem guardanapos e as taças são, frequentemente, comuns a dois comensais, é necessário limpar a boca antes de beber. Mas como? Na toalha? Não! Alguns recomendavam limpar com a mão. Outros condenavam esse uso. Para esses, a elegância estava em limpar na manga. Do mesmo modo, para assoar. Nem toalha nem com os dedos, mas na manga. Assim, a curialitas também se definia por alguns manuais de comportamento que davam até conselhos de higiene. Ser cortês era também limpar as unhas.

Para exprimir a perfeição dessas boas maneiras, uma palavra aparece constantemente: elegantia. Conhecia-se a polidez de um cortesão pela elegância de seus modos (elegantia morum). Somente ele sabia verdadeiramente comer, beber, falar, jogar xadrez, combater com a lança, enfim, sobretudo, conduzir-se com as mulheres. Foi Gaston Paris quem, em I883, primeiramente falou de “amor cortês”. Desde então, a erudição obstinou-se em definir com precisão o que tinha sido o amor cortês. Sem muito sucesso, aparentemente. Primeiro, porque os diferentes gêneros literários – épica, lírica etc. – não dão dele a mesma imagem. Depois, porque a pesquisa talvez não tenha formulado aos textos as questões relevantes. Uma coisa é certa: o amante cortês deve se submeter à sua dama e servi-la. São questões secundárias perguntar se amor cortês e casamento são compatíveis, se o amor cortês condena amar uma dama socialmente inacessível, se o amor cortês deve parar nos beijos e renunciar à realização do desejo. Afinal, nada impede o amor conjugal e o amor carnal de serem corteses. O que torna o amor cortês, é a elegância do amante, sua delicadeza – os historiadores diziam com razão, havia dois séculos: sua galanteria. O amante cortês respeita as regras de um código amoroso; sua conduta está de acordo com a boa educação. Conduzir-se bem no amor é, junto com comer bem e vestir-se bem, um dos aspectos da curialitas. E, por definição, somente um cortesão sabe praticar essa arte de amar, enquanto um camponês, como diz André Capelão, fará amor “naturalmente, como um cavalo e um burro” (naturaliter, sicut equus et mulus).

A cortesia, em geral, e o amor cortês, em particular, são a síntese de contribuições bastante diversas. Já se observou a influência da Bíblia e do Cântico dos cânticos, da literatura de Ovídio, da poesia carolíngia, da literatura dos Espelhos feita para os príncipes desde o século IX. Notou-se também a influência de fontes contemporâneas. O serviço amoroso é um reflexo do serviço vassálico. A exaltação da dama é paralela à glorificação da Virgem, ou da mulher como desejou Roberto de Arbrissel ao fundar Fontevraud. O essencial talvez, nessa síntese, é que os clérigos desempenharam nela um papel primordial. A cortesia é um modelo fornecido pelos clérigos aos cavaleiros, para lhes mostrar como bem conduzir-se, particularmente com as damas.

Os cavaleiros, os clérigos e as damas foram, portanto, os três pilares dessa cultura tão original que foi a cultura das cortes nos séculos XI e XII. Mais precisamente, ouvintes, inspiradores ou autores, eles explicam os traços originais da literatura desse tempo, que no essencial não era uma literatura monástica, e sim uma literatura de corte. Para a edificação dos senhores e das damas da corte, sábios clérigos escreveram em latim a vida de santos, obras históricas, Espelhos. A dificuldade era que o público ao qual se dirigiam raramente sabia ler e mais raramente ainda entendia o latim. Era necessário, portanto, dizer-lhe na sua língua o que havia sido escrito em latim. Pouco adiantava, já que o assunto deixava o público impassível. Mais que as vidas de santos, aquele público preferia ouvir as proezas de Rolando ou de Artur. Assim, clerical e cavaleiresca, a literatura da corte era escrita e oral, latina e vernácula, e os gêneros e temas tratados seguiam os gostos e as modas de seu público.

E onde melhor do que nesse paraíso de cortesia o jovem cavaleiro teria podido aprender, ao mesmo tempo, a arte da lança e as boas maneiras? As escolas formavam os clérigos, as cortes formavam os cavaleiros. Quando atingiam a adolescência, o conde de Guines mandava seus filhos à corte do conde de Flandres, seu senhor, para que aprendessem a arte de combater e as boas maneiras (moribus erudiendus et militaribus officiis diligenter... introducendus). A corte era o centro de formação pedagógica da nobreza.

Ela realizava bem seu papel, pois, sendo itinerante, deslocava-se de uma residência a outra, construída segundo suas necessidades e seu feitio. Esses palácios e castelos deviam garantir a segurança do senhor e da corte, permitir sua vida cotidiana. Ora, se em tempos comuns um senhor estava acompanhado por algumas dezenas de pessoas, em outras ocasiões, seus cortesãos podiam ser algumas centenas. Nos seus grandes dias, a corte imperial contava com mais de mil pessoas. O centro da residência era, então, uma grande sala, mais ou menos vasta, mais ou menos luxuosa, a única que permitia esse momento essencial da vida cortesã que era a festa da corte.

A festa da corte obedecia, inicialmente, ao calendário litúrgico. A reunião mais importante era, tradicionalmente, a de Pentecostes. A festa da corte também tinha uma função política. Permitia ao senhor aparecer com todo o seu fausto (decus, nitor = glória, magnificência), cercado de todos os seus vassalos. A távola redonda do rei Artur transforma todos os seus vassalos em iguais. Mas ela é uma utopia que contradiz a realidade. De fato, desde a época feudal, a corte era uma sociedade hierarquizada, atenta à minúcia da precedência. Festa do senhor, a festa da corte era, entretanto, mais ainda a festa da cavalaria, à qual devia trazer alegria e prazeres. A cerimônia da investidura de novos cavaleiros e o torneio eram incluídos na principal parte da festa. O primeiro torneio historicamente conhecido data de I095. Sua grande época foi a segunda metade do século XII. O local preferido era a França do norte, onde ocorria talvez um torneio a cada quinze dias. O torneio, que levava os cavaleiros à prática das armas, sob o olhar atento das damas, resumia toda cortesia.

Se muitos celebraram a corte como o lugar ideal onde se podia desenvolver a curialitas, outros a amaldiçoaram. Sobretudo os clérigos que tinham vivido na corte do rei Henrique II, da Inglaterra (II54-II89), como João de Salisbury ou Gautier Map. Para eles, longe de ser um local de cortesia, a corte era um lugar de ódio e de inveja, de ambição e de bajulação. Era um lugar de desordem, no qual os clérigos que não residiam em suas dioceses perdiam sua alma , e os cavaleiros suas virtudes. Muitos poucos, na verdade, preocupavam-se em se tornar cavaleiros letrados (milites litterati). Incitando-os a agradar as mulheres, a usar cabelos compridos e anelados, vestes de seda e sapatos de bico levantado, a corte com muita frequência fazia deles milites effeminati. A corte pode nos parecer um meio ideal onde ocorriam as mais proveitosas fusões, mas, para aqueles clérigos formados segundo as claras distinções que a reforma gregoriana havia introduzido, ela era o lugar de todas as desordens, onde clérigos não eram mais clérigos, cavaleiros não eram mais cavaleiros, homens não eram mais homens. Para eles, a corte era um inferno.” (Bernard Guenée)

 

 

“No cristianismo medieval, Deus não é somente objeto de crença, mas também objeto de um discurso articulado, racional. Em sentido próprio, tal discurso é a teologia. A palavra vem da filosofia grega pagã, mais precisamente de Platão (República, II, I8, 379a), com o sentido de “discurso sobre os deuses”. Para Aristóteles, a teologia é a “filosofia primeira”, que trata do divino. Para Plutarco, ela coroa toda a filosofia. Por intermédio dos neoplatônicos, a noção passa para os Pais da Igreja, gregos e latinos.

A denúncia pelos Pais da Igreja e pelos concílios de desvios heterodoxos que ameaçam a Igreja dos primeiros séculos leva à primeira elaboração da teologia cristã. Todas aquelas heresias punham em causa a nova noção de Deus: o dogma da Trindade, a afirmação da dupla natureza divina e humana, do Cristo. O arianismo, por exemplo, é condenado no Concílio de Niceia (325), que define o Cristo como sendo da mesma substância do Pai. Em 43I, a teologia dá um importante passo quando o Concílio de Éfeso atribui a Maria o título de Theotokos, “Mãe de Deus”, para manifestar que seu Filho é, ao mesmo tempo, Deus e homem. No século V ainda, na parte oriental do Império, os monofisitas pretendem reconhecer apenas uma única natureza, a humana, no Cristo pregado na cruz. Dessa vez, é o Concílio de Calcedônia (45I) que os condena. Da sua parte, os pelagianos atribuem um tal valor ao livre-arbítrio do homem que este torna-se como que independente de Deus. Santo Agostinho opõe-se a eles sublinhando o papel fundamental da graça divina, que dá ao homem a possibilidade de adquirir, por seus méritos, o direito à salvação. Ele estabelece também os fundamentos do debate sobre a predestinação e as obras, que ressurgirá sobretudo a partir do século XII (Santo Anselmo) e de maneira ainda mais candente no momento da Reforma Protestante.

Os Pais da Igreja desenvolveram um discurso teológico argumentado e sistemático não somente para refutar as diversas heresias trinitárias, mas também para confrontar os cismáticos. O desacordo teológico com Bizâncio concerne, em primeiro lugar, à questão de saber se o Espírito procede do Pai e do Filho (Filioque), como pretende a Igreja Romana, ou somente do Pai, como afirma Bizâncio. São tais conflitos que engendraram, estimularam e permitiram afinar a teologia cristã.” (Jean-Claude Schmitt)

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