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terça-feira, 8 de março de 2022

Dicionário analítico do Ocidente medieval (Volume I, Parte I), de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (Orgs.)

Editora: UNESP

ISBN: 978-85-7665-361-5

Tradução (coord.): Hilário Franco Júnior

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 754

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Sinopse: Com o objetivo de não apenas fornecer informações, mas traduzir o constante desenvolvimento da história da Idade Média, os historiadores franceses Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt se lançaram na empreitada de organizar o Dicionário analítico do Ocidente medieval, publicado agora no Brasil pela Editora Unesp. Guia para percorrer a Idade Média, as centenas de verbetes convidam o leitor a pensar no passado e analisá-lo, servindo como ferramenta para se pensar os caminhos que levaram a civilização ocidental aos dias de hoje.

“Este dicionário é ‘analítico’ porque põe em destaque todo um sistema de noções que dá conta do sistema medieval, conjunto complexo, aberto, sem qualquer determinismo estrito que constitua um todo, uma civilização”, escrevem Le Goff e Schmitt. “Os autores quiseram informar sobre uma época bastante extensa (dez séculos, se considerarmos todo o tempo que separa a Antiguidade tardia do Renascimento, ainda muito medieval), mas principalmente demonstrar as significações desse período, explicá-lo. Isso foi feito mediante cerca de sessenta noções, de dez a quinze páginas cada uma, constituindo uma série de verbetes que, apesar de sua densidade, são abertos e claros.”

Escrito por 66 medievalistas de nove nacionalidades, a obra se compõe de dois volumes que, dado seu caráter de dicionário, não impõe uma ordem obrigatória de leitura. “Ele conseguiu integrar os métodos e as conquistas das recentes renovações da História desde a criação, na França, da revista dos Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929”, explicam os autores.

“Não é preciso entender os princípios básicos da teoria da gravitação para andar com os pés no chão, ou os mecanismos da fisiologia para sentir sono e fome, mas, para melhor exercer seu papel político, social, econômico e cultural, é importante que cada cidadão das democracias ocidentais do século XXI conheça a trajetória histórica de sua sociedade e a de outras com as quais ela se relaciona mais intimamente”, anota o coordenador da equipe de tradução do texto, Hilário Franco Júnior. Os volumes contam ainda com cadernos com ilustrações coloridas sobre os temas abordados.

A obra monumental sobre a Idade Média organizada por Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt, que agora sai em nova edição revista, deslinda o complexo sistema de noções que constitui o tema do medievo. Organizada em forma de dicionário, traz verbetes que seguem três linhas magnas de orientação: o traçado de uma história do imaginário sobre a Idade Média; a busca de uma Antropologia histórica, ou seja, a história em diálogo com as ciências sociais; e o olhar desconfiado sobre noções pétreas sobre um período repleto de problemáticas que, em grande parte, ainda tentamos solucionar.


 

O poder da Igreja

A peça essencial do sistema não foi o Paraíso, mas o Inferno. A Igreja Católica, para incitar os fiéis a trabalhar por sua salvação, apresenta-lhes mais o medo do Inferno do que o desejo do Paraíso. Diante da morte, eles temiam menos a própria morte do que o Inferno. Assim se instala, apesar de algumas nuanças, um cristianismo do medo. Essas práticas mostram como a Igreja medieval utiliza o Além para assentar sua dominação sobre os cristãos e justificar a ordem do mundo pela qual ela vela. Em seu ensinamento sobre o Juízo Final, ela dá um papel essencial, como porteiro do Paraíso, a São Pedro, o chefe da Igreja. Sobretudo, em sua pastoral, ela põe em evidência, notadamente na pregação, a função do Além criado por Deus para corrigir as desigualdades e as injustiças da sociedade terrena. Lembrando que todos os homens são irmãos, filhos de Deus, e a seus olhos desiguais apenas por sua fé e seu comportamento, ela acalmava os excessos dos poderosos e dos maus daqui de baixo, mas sobretudo a impaciência dos pobres e dos oprimidos, pela evocação dos misericordiosos. Assim se explica por que, desde Santo Agostinho, a Igreja combateu tão energicamente todos os revolucionários e reformadores que apelaram para o advento da terra de santos que fará reinar a justiça no fim dos tempos, durante o longo período do Milênio de que fala o Apocalipse. Ela condenou os milenaristas como heréticos. O Além foi, assim, em outra visão da história que tinha suas referências escriturais, mais um elemento nas lutas ideológicas da Idade Média.

 

Nova geografia do Além: um terceiro lugar, o Purgatório

O Além cristão bipolar permaneceu sem modificações até o século XII. Grandes mudanças religiosas e sociais levaram então ao nascimento de uma nova sociedade que transformou sua visão do mundo não somente Aqui, mas também no Além. Santo Agostinho havia dividido os homens em quatro categorias: os “completamente bons”, destinados ao Paraíso; os “completamente maus”, enviados ao Inferno; os “não totalmente bons” e os “não totalmente maus”, dos quais não se sabia muito bem a sorte que Deus lhes reservava. Imaginou-se que os defuntos que pela ocasião da morte só estavam carregados de pecados “leves” desfaziam-se deles sofrendo “penas purgatórias” por meio de um “fogo purgatório”, semelhante ao fogo do Inferno e situado em “lugares purgatórios”. A localização desses lugares continuava muito vaga. O papa Gregório Magno, em fins do século VI, imaginou que eles poderiam se encontrar na terra, mas a solução mais frequente foi distinguir no Inferno uma geena inferior, o Inferno propriamente dito, de onde não se saía nunca, e uma geena superior, de onde se poderia, depois de um tempo mais ou menos longo de suplícios e purgação, subir ao Paraíso. Na segunda metade do século XII, inventou-se um lugar independente para esses eleitos sob sursis, o Purgatório. Esse foi o “terceiro lugar do Além”, intermediário entre o Paraíso e o Inferno, lugar que desaparecerá no Juízo Final, esvaziado de seus habitantes, todos elevados ao Céu. O tempo de estadia no Purgatório dependia de três fatores. Ele era, primeiro, proporcional à quantidade de pecados (chamados doravante “veniais”, isto é, remissíveis, por oposição aos pecados mortais, irremissíveis para evitar o fogo do Inferno) dos quais o defunto estava carregado no momento de sua morte. Dependia, em seguida, dos “sufrágios” (preces, esmolas, missas) que os vivos, parentes ou amigos, pagavam para abreviar o tempo de purgatório de certas “almas”. Por fim, a Igreja, mediante pagamento em dinheiro, podia obter para certos defuntos o perdão integral ou parcial de seu tempo restante de purgatório. Tais foram as “indulgências”, que a Igreja tornou objeto de um comércio cada vez maior a partir do século XIII. O Purgatório, enfim, era de sentido único: não se saía dele senão para ir ao Paraíso, não se podia “retroceder” para o Inferno.

Foi grande a importância desse terceiro lugar, que esvaziava parcialmente o Inferno e substituía o sistema binário do Além por um sistema mais complexo e mais flexível, adequado à evolução dos “estados” sociais na terra e que foi largamente difundido pelos frades das Ordens Mendicantes criadas no começo do século XIII (dominicanos, franciscanos). Ele assegurou o triunfo do julgamento individual no momento da morte e, completando o sistema da confissão individual obrigatória para todos os vivos ao menos uma vez por ano, determinado pelo IV Concílio de Latrão (I2I5), contribuiu grandemente para a afirmação do indivíduo em relação aos grupos e às ordens, o que caracteriza o fim da Idade Média. O Purgatório transformou as estruturas e os comportamentos sociais do Aqui. Esteve na origem de uma matematização dos pecados e das penitências que engendrou, nesse tempo de desenvolvimento do comércio e dos mercadores, uma “contabilidade do Além”. Enfim, aumentou consideravelmente o poder da Igreja (que no século XIII fez da existência do Purgatório um dogma) sobre os mortos, estendendo ao Além do Purgatório, por intermédio dos sufrágios e das indulgências, que dependiam dela, um poder de jurisdição que anteriormente pertencia apenas a Deus.” (Jacques Le Goff)

 

 

“A submissão, amansamento ou adestramento individuais de certos animais selvagens aconteceu durante toda a Idade Média, mas a verdadeira domesticação estendeu-se por milênios e ainda está em curso, com a constituição de espécies ou de raças diferentes das primitivas.” (Robert Delort)

 

 

“A reflexão sobre a significação do anjo da guarda individual é retomada no final do século XIV pelos sermões de Ludolfo da Saxônia, Vicente Ferrer e João Gerson, e termina com o reconhecimento da primeira festa solene dos anjos da guarda pela bula pontifícia de I5I8, a pedido do bispo de Rodez, Francisco de Estaing. Assim, a devoção aos anjos da guarda, individuais ou coletivos, aparece como o legado essencial da angelologia medieval à piedade moderna.

Em Gerson, tal devoção ainda está ligada à ascensão mística, de acordo com a perspectiva dionisina; todavia, parece que o anjo surge mais frequentemente como uma resposta à necessidade de proteção. Dois aspectos destacam-se nessa figura: o guardião-combatente e o guia da alma. O primeiro traço, mais precoce, se enraíza na função guerreira de São Miguel e ocupa seu lugar na visão do mundo como teatro de um combate sem trégua entre anjos e demônios. A onipresença angélica parece fazer eco à onipresença do Diabo. É difícil não vislumbrar, por trás da “explosão demográfica dos anjos” nas iluminuras e nas margens dos livros de horas, suportes da piedade das elites laicas, uma resposta aos medos e angústias da salvação. O universo angélico fornecia uma inesgotável reserva de intercessores e a visão reconfortante de um universo povoado de espíritos benfazejos.

O anjo-guia ganha importância em razão da insistência da pastoral sobre a salvação pessoal. Miguel permanece o modelo do guardião e guia da alma, embora a ele se junte o arcanjo Rafael, promovido a patrono dos viajantes no século XV. Desde a década de I330, a Peregrinação da alma, de Guilherme de Digulleville, valoriza a dupla formada pela atina e seu anjo da guarda. No fim do século XV, A arte de bem morrer põe em cena o anjo e o demônio ao redor do leito do moribundo. A morte é o momento-chave do combate terrestre entre os dois campos: o anjo é aquele que prepara o agonizante, que orienta seus pensamentos, que lhe permite frustrar as últimas artimanhas do demônio. A devoção ao protetor individual é tanto mais forte quanto mais se dissemina a crença nos imensos poderes do demônio, posta em relevo por uma poderosa iconografia. Satã não parece mais ligado à sua natureza angélica, e sim ter adquirido uma tal autonomia que surge como rival de Deus.

A devoção ao anjo da guarda provocou práticas ilícitas, mesmo porque a própria Igreja atribuía aos anjos possibilidades de ação concreta. A invocação das potências celestes para fins utilitários e a transmissão de conhecimentos por parte dos anjos caracterizam a “arte angélica”, suscetível de bloquear o caminho dos ardis do demônio. A devoção ao anjo da guarda insere-se na consciência da assimilação escatológica dos homens aos seres celestes, estes representando o estado espiritual esperado por aqueles. Os monges não têm mais o monopólio da “angelidade”, pois os leigos doravante acedem a ela por meio de sua participação na liturgia e de sua vida devota. Além disso, o próprio conteúdo da noção de vida angélica se alarga: atribui-se aos anjos atividades intelectuais ou materiais, embora a imitação dos anjos não se reduza à de sua função contemplativa e litúrgica. Essa evolução é inseparável do interesse marcadamente crescente pelos anjos inferiores, quer dizer, pelos anjos ativos, em contato permanente com o universo físico e com os homens.

Mas a relação com o anjo toma, desde o século XV, uma coloração sentimental que enfraquece seriamente sua significação. O movimento dinâmico que une o Céu e a terra é concebido mais como um vai-e-vem de anjos da guarda, conselheiros e intercessores aos quais se solicita ajuda, do que como participação gradual na luz divina. Em tal esquema, a hierarquia angélica se esbate e os anjos superiores, serafins, querubins e tronos, não têm mais lugar.

A respeito da imagem de anjo, os visionários do século XV quase não se afastam de seus predecessores do XIII: Francisca Romana e Margarida Kempe viam seus anjos da guarda sob o aspecto de uma criança, à qual a primeira delas atribui a idade de 9 anos, o que é uma maneira nova de afirmar que ele pertence ao último dos coros celestes. Parece que se assiste a um processo de rejuvenescimento do ser angélico, que toma a forma de uma “feminização” ou de uma “infantilização”. De início homem jovem, o anjo passa a ser visto depois como andrógino, adolescente, criança e nenê. De fato, o século XV cria a imagem do putto, esse sincretismo entre o anjo e o Cupido antigo, que veio a ser uma das representações mais correntes do ser celeste nos séculos XVI e XVII. O rejuvenescimento do sobrenatural estaria relacionado com a própria ideia de Renascimento? É a mitologia greco-latina que é solicitada nesse processo, mais do que as bases bíblicas, apesar da alusão evangélica aos anjos das crianças (Mateus I8, I0). A imagem sincrética do putto associou-se ao fenômeno de crescimento quantitativo da presença angélica nos manuscritos, para empobrecer singularmente o peso espiritual do ser angélico.

Por detrás de uma aparência de uniformidade doutrinal, abalada, porém, por heresias ou influências estrangeiras, percebe-se uma gradual modificação do sistema angelofânico da tradição cristã ocidental. Essa evolução é caracterizada pelo distanciamento do substrato bíblico, sobre o qual se havia desenvolvido a dimensão teofânica do anjo. A imitação de Cristo, na sua natureza humana e sofredora, suplantou a imitação dos anjos, concebida primeiro de modo litúrgico e contemplativo, depois em termos de integração de estados espirituais hierarquizados e de participação na luz divina. A “antropologia angélica” não desapareceu, mas abriu-se a novas formas, respondendo às necessidades dos leigos. Em compensação, o declínio do anjo como forma de manifestação do Cristo e como potência mediadora ressalta o desmoronamento do sentido teofânico bíblico. À “angelidade” do homem sucedeu progressivamente a humanidade do anjo. O processo parece correspondente ao de Cristo. Tornado confidente, conselheiro e intercessor, o anjo experimenta sentimentos humanos e adota as atitudes do devoto. As tendências opostas da iconografia do fim da Idade Média, atribuindo ao ser celeste uma corporeidade etérea, luminosa e feminina, ou, ao contrário, a pesada corporeidade do puttto, traduzem certa ruptura na tradição. O fim da hegemonia do modelo monástico, centrado sobre a imitação dos anjos, a diversificação das vias espirituais nascida da evolução da sociedade medieval, a pressão das heresias, as tendências ao sincretismo intelectual ou artístico, explicam em boa medida a amplitude da transformação da figura angélica e a sobrevivência do anjo da guarda, que permanece sozinho, face a face com o homem, após a Idade Média. Assim, os anjos aparecem como reveladores das inflexões e das mutações do cristianismo ocidental; exprimem sua tonalidade particular.” (Philippe Faure)

 

 

“A longa prática das assembleias da Igreja

Quer tenham escrupulosamente cumprido seu dever dominical – desde 506, um concílio realizado em Agde tornou a missa obrigatória aos domingos – ou preferido ignorar a convocação do sino, os cristãos da época medieval viveram num tempo marcado por exortações a fazer uma pausa em suas ocupações e se dirigir a Deus. Inspirado na sucessão das estações, o calendário litúrgico contribuía para transcender o curso regular dos dias e colocava os heróis epônimos locais em um “panteão” com as dimensões do universo católico.

Ainda que os dados quantitativos sobre comparecimento à missa sejam muito raros e de exploração delicada, é certo que a participação ativa dos fiéis na refeição eucarística perdeu importância enquanto era exaltado o papel sacrificial e consagratório do celebrante, a ponto de ser considerado um ato meritório a recitação solitária das preces do cânone por parte de um único religioso. Contudo, mesmo no crepúsculo da Idade Média, a missa nunca deixou de ser uma ocasião de reunião e a igreja paroquial um lugar de afirmação de identidade. Prova da crescente vontade de associar os vivos e os mortos conhecidos dos assistentes à comemoração da paixão do Cristo, é a insistência nos dois. mementos, o rápido desenvolvimento das missas votivas, a inclusão nas preces da homilia de pedidos ditados pelo pertencimento a uma entidade política e a introdução do ritual da paz. Este último, onde a troca do beijo na boca foi substituída pela circulação de um objeto destinado a ser beijado, veio contrabalançar o uso da prece para os amigos, a qual supunha, pelo menos implicitamente, a maldição dos inimigos.

A construção de uma igreja para nela celebrar a missa constituiu um acontecimento, se não fundador, pelo menos fundamental na história das comunidades rurais. Antes que se estabelecesse a rede de paróquias, a partir do século X, os cristãos da Idade Média formaram células de vida ao redor dos corpos de seus ancestrais. Não se tem certeza se a implantação dos cemitérios precedeu ou seguiu a dos edifícios de culto, mas o esquema da aldeia organizada em torno de sua igreja-necrópole prevaleceu em todo o Ocidente. A instalação de pias batismais no santuário conferindo-lhe a categoria de igreja paroquial implantou um sistema no qual cada fiel era ritualmente introduzido, desde seu nascimento, no seio de uma comunidade por muito tempo confundida com a sociedade.

Enquanto se formavam as paróquias, a ordem clerical impunha-se como uma das componentes maiores do mundo medieval e se apropriava da própria noção de Igreja. A separação entre clérigos, únicos habilitados a entrar no coro, e a massa de leigos, abrigados no resto do edifício, caracterizavam aqueles locais. Dotado de uma estrutura piramidal, o clero, entretanto, nem sempre obedeceu aos impulsos de cima para baixo. Até o fim do século XI, o exercício da colegialidade episcopal prevaleceu sobre a primazia romana. Mais tarde, após um período de relativo equilíbrio, a monarquia pontifical desenvolveu-se e finalmente superou um período de terríveis dificuldades, durante as quais as assembleias conciliares apareceram como rivais do papa no exercício da soberania. Mas, quer tenham servido ou não ao desenvolvimento do poder pontifical (tanto do papa quanto do bispo), as reuniões de clérigos de todos os escalões – deado, diocese, província, região, circunscrição política ou mundo cristão – foram uma constante na vida da Igreja medieval. Teoricamente aceitos para assistir a essas reuniões, os leigos só foram em geral lá representados por seus chefes políticos.

No primeiro Concílio de Niceia (325), vemos que a celebração de assembleias conciliares era considerada um costume. A tradição fixou em oito o número dessas reuniões excepcionais, qualificadas de ecumênicas e convocadas pelo imperador do Oriente, que de Niceia ao IV Concílio de Constantinopla, em 869, trouxeram respostas precisas às controvérsias dogmáticas e disciplinares que agitavam a Cristandade. Após a ruptura com a ortodoxia (I054), a Igreja latina reatou por conta própria esse modo de resolução de antagonismos. Os canonistas revalorizaram então o antigo princípio Quod omnes tangit ab obnmibus debet tractari (“aquilo que concerne a todos deve ser tratado por todos”), essencial para o desenvolvimento de todo corpo social e político. Na assembleia de todos os bispos, sucessores dos apóstolos, eles viam a Igreja reunida e visitada pelo Espírito Santo. Buscava-se também a unanimidade para cada decisão e, inversamente, eram vistos como cismáticos aqueles que se abstinham intencionalmente de participar da celebração ou que se recusavam a aplicar os decretos firmados naquela ocasião. Somente os bispos deliberavam e votavam, as demais pessoas convocadas desempenhavam um papel de assistência ou de conselho.

Ostentando ou não a etiqueta de ecumênicos (apesar da ausência quase total das Igrejas orientais), todas as grandes assembleias conciliares que se seguiram à de Latrão I (II23) tiveram uma grande repercussão no Ocidente, seja porque tomaram decisões políticas plenas de consequências (deposição do imperador Frederico II em Lyon I, em I245), seja porque envolveram um grande número de pessoas (segundo as estimativas, entre 800 e I.200 padres em Latrão IV, em I2I5), seja porque duraram vários anos, o recorde pertencia ao Concílio de Basileia (I43I-I449), que se colocou como verdadeiro parlamento da Igreja.

Contrariamente a vários concílios gerais, com frequência reunidos por iniciativa do poder laico, o caráter eclesiástico dos concílios reunidos pelo bispo metropolitano em uma província eclesiástica não precisa ser demonstrado. A antiga disciplina, codificada pelo Concílio de Latrão IV, determinava a organização de um concílio, mesmo que sua celebração fosse anual, com o objetivo de corrigir abusos e regulamentar os costumes. Além dos bispos da província, o arcebispo convidava os principais dignitários eclesiásticos, tanto regulares como seculares, para sessões de aproximadamente uma semana. A instituição parece ter funcionado notavelmente no século XIII. Ela ocupou um lugar de destaque no pensamento dos reformadores dos séculos posteriores: eles viam nela tanto um eficaz instrumento de purificação moral como um contrapeso necessário às pretensões absolutistas da cúria romana.

As decisões das assembleias conciliares das épocas antigas sempre constituíram uma referência de grande autoridade. Fielmente compiladas em épocas nas quais a escrita era rara, elas formam o coração das coleções canônicas e, por conseguinte, o fundo insubmersível do direito da Igreja. A legislação pontifical, com o reforço das “falsas decretais” isidorianas, tendia a substituí-lo, mas sempre precisou se harmonizar com esse antigo e venerável patrimônio que funcionava por meio de um colegiado. Em especial, a nomeação dos bispos pela assembleia de clérigos e de fiéis da cidade era vista como regra. Na prática diocesana, ocorreu uma dupla evolução: os procedimentos que, como a aclamação, eram os mais aptos a camuflar as imposições foram, progressivamente, eliminados em benefício da escolha feita por um grupo restrito de homens de boa reputação. Ao mesmo tempo, a composição desse colégio eleitoral tendeu a se manter, excluindo todos aqueles que não fossem cônegos da catedral. Nos séculos XII e XIII, esses últimos desempenharam plenamente seu papel de grandes eleitores, beneficiando-se da tranquilidade de seu claustro para organizar escrutínios quando não chegavam a um acordo sobre um nome: cada um exprimia então, oralmente ou por escrito, sua opinião para escrutinadores designados pelo conjunto dos votantes, os quais contabilizavam em seguida os votos e proclamavam os resultados. Os cônegos encontraram-se, de facto, desprovidos de suas prerrogativas a partir do final do século XIII, diante das pressões conjugadas dos príncipes e do papa; os recursos apresentados na cúria pelos perdedores das votações favoreceram as intervenções pontificais, a tal ponto que se caminhou quase imperceptivelmente em direção a um regime centralizador, visto, no entanto, como de exceção.” (Helène Millet)

 

 

“Em um Império que soube manter até seus últimos momentos escolas laicas muito semelhantes às do inundo greco-romano, e que se proclamará sempre romano, o fato de seu programa escolar do enkykliospaideusis (“educação geral”), do qual o cristianismo apenas expurgou os traços pagãos demasiadamente visíveis, não reservar qualquer lugar à geografia – mesmo nos períodos de apogeu cultural dos séculos IX-X ou dos séculos XIII-XV – não nos deve surpreender: trata-se de um saber que permanece implícito, que se evita o máximo possível reproduzir porque é “técnico”, como a estenografia ou o direito, estes também excluídos e considerados pouco dignos. Ana Comneno, que conhece bem o Ocidente, pede desculpas a seu leitor quando se vê obrigada a dar algumas informações a respeito dos “bárbaros” ou simplesmente citar seus nomes. Se os bizantinos são os homens mais cultos da Idade Média, eles possuem também uma cultura cujos contornos foram enrijecidos pela cristianização, pois o povo romano considera-se duplamente privilegiado, tanto por sua velha cultura grega quanto por ter sido eleito por Deus. Também não é casual que os gregos medievais comecem a fornecer verdadeiros ensinamentos sobre o mundo exterior no momento em que, conscientes de certa esclerose de seu sistema educativo, soberanos dos séculos XIII ao XV, como Andrônico II, João Cantacuzeno e Manuel II Paleólogo, dotam o Império de um ensino superior parcialmente inspirado na experiência universitária ocidental e cuja qualidade levará Enéas Sílvio Piccolomini, o futuro papa Pio II, a dizer que ninguém podia se considerar verdadeiramente culto antes de ter completado sua educação em Constantinopla.”

 

 

“O direito de fortificar, ligado ao poder de comando, o ban, é um direito público, regalista. Mas, consideremos que o castelo tenha sido construído sem autorização de príncipe, em terras patrimoniais do castelão, ou que este tenha recebido delegação da autoridade pública; o fato é que o ban (e com ele a polícia e a justiça) foi usurpado pelo detentor do castelo. Michel Bur mostrou que a primeira idade feudal é revolucionária em relação ao regime anterior: o castelo – e especialmente o castelo de colina – é o instrumento dessa revolução; ele enraíza o poder no solo. É ao redor do castelo que gravitam os vassalos – todos os feudos do reino da França dependem da torre do Louvre –, é do castelo que vem e pesa a autoridade sobre os habitantes rurais. É então natural que a colina, elemento topográfico, mais estável que as construções, tenha se tornado o símbolo do poder. Sobre a colina abandonada em benefício de um novo castelo, frequentemente se continuou a produzir a justiça senhorial. Explica-se dessa forma o furor dos senhores do sul da França em recortar os relevos em forma de colina. (...)

Em todos os casos, o resultado da atração exercida pelo castelo é a concentração do hábitat camponês em detrimento das aglomerações anteriores, menores e dispersas. Aliás, o fenômeno é geral, ou largamente presente em todo o Ocidente, e o agrupamento se dá mesmo na ausência do castelo. Mas não na ausência do senhorio. O impulso do movimento de concentração dos hábitats que acompanha, pelo menos na cronologia, o estabelecimento do regime feudal, não deve ser buscado na opressão, nem no medo das guerras ou das invasões (sarracenas, por exemplo), nem nas vantagens econômicas. É a necessidade de ordem, mesmo sendo uma ordem dura e severa, a necessidade de paz civil, mesmo se permanece precária, que leva os homens a se reunir sob a dominação senhorial e, então, frequentemente sob a proteção das defesas castrenses.” (Jean-Marie Pesez)

 

 

“Na França, em compensação, Igreja e cavalaria relacionaram-se desde cedo, em razão do enfraquecimento do poder real nos séculos X e X. A Igreja tentou controlar a ordem pública e impregnar a cavalaria com seus ideais e ritos, sem consegui-lo totalmente.

 

Igreja e cavalaria

O ideal de não violência praticado por Jesus e pelo cristianismo primitivo não sobreviveu, pelo menos na Igreja oficial, à chegada ao poder dos imperadores cristãos. Desde o século V, Santo Agostinho justifica o recurso à guerra empreendida por autoridades legítimas para proteger a “pátria” (logo assimilada à Cristandade e à Igreja) ou para recuperar um bem injustamente espoliado. Essa defesa da comunidade compete aos imperadores no Império Romano decadente, depois aos reis e aos príncipes no mundo “bárbaro” que o sucede no Ocidente. A proibição de derramar sangue persiste para os eclesiásticos e, sobretudo, os monges, que em vários campos aparecem como herdeiros e continuadores dos primeiros cristãos de quem perpetuam certos valores, particularmente os da não violência. A sociedade cristã, desde então, cinde-se em dois grupos de homens, cujos ideais não são mais os mesmos. Os monges e os clérigos, milites Dei, servem a Deus no mosteiro por meio da oração, ou no mundo por meio dos sacramentos; os leigos, milites saeculi, vivem no “século”, mantêm os primeiros ou protegem-nos. A essa divisão em dois estados, laico e eclesiástico, superpõe-se, a partir do século X, uma divisão funcional representando as três ordens que subsistirão até o fim da Idade Média e mesmo até a Revolução de I789: expressa-se pela célebre fórmula de Adalberon de Laon, no começo do século XI, segundo a qual a casa de Deus, que se crê una, está na verdade dividida em três, uns rezam, outros combatem, outros trabalham.

Existe, portanto, realmente, um 0rdo militum, uma ordem de guerreiros. Aos olhos da Igreja, sua importância cresce na proporção que dela necessita. Depois da era carolíngia, estabeleceu-se no Ocidente uma nova sociedade, denominada feudal, caracterizada pelo declínio do poder central, sobretudo na França, e pelo desenvolvimento dos principados, depois das castelanias (século X-XI). Doravante, a ordem pública está nas mãos dos castelões, assistidos por seus guerreiros. São eles que comandam, julgam e recebem as taxas. São eles que fazem reinar a ordem ou a desordem.

A Igreja, para defender seus membros e bens e para tentar refrear a violência desses guerreiros (milites), começa por brandir as armas espirituais de que dispõe: a privação dos sacramentos coletiva (interdito) ou individual (excomunhão). Do século X ao XII, com as instituições de paz, ela tenta induzir os guerreiros a prestar juramento de não atacar, roubar ou extorquir os que não podem se defender: eclesiásticos, mulheres nobres não acompanhadas, camponeses e camponesas, pobres e desprotegidos em geral. É a “paz de Deus”, de origem meridional (Le Puy, 975; Charroux, 989; Narbonne, 990 etc.); pouco depois, a “trégua de Deus” tenta subtrair à violência não somente os seres vivos, mas também as datas: festas solenes, dias santos, descanso semanal, depois estendido, em lembrança da paixão de Cristo, ao período da quinta-feira à noite à segunda de manhã. Pode-se comparar essa limitação voluntária imposta aos guerreiros a uma verdadeira ascese, porém insuficiente para assegurar a ordem. Testemunham-no a multiplicação de concílios e assembleias de paz. O objetivo dessas instituições de paz não é colocar a guerra fora da lei, sendo ela privada, mas reservar seu uso a um período limitado e a uma categoria determinada de indivíduos, que praticam entre eles esse esporte perigoso: os guerreiros profissionais. Trata-se de promulgar regras para eles, um código deontológico impregnado de valores cristãos.

A Igreja logo enfatiza o escândalo que constitui a guerra no interior da Cristandade. “Aquele que mata um cristão derrama o sangue de Cristo” (Narbonne, I054). Revezando-se com os mosteiros da Ordem Cluniacense, o papado esforça-se para empenhar os cavaleiros no combate contra os muçulmanos, na Espanha (Reconquista) ou na Terra Santa (cruzadas). O sermão de Urbano II em Clermont (I095) situa-se na linha direta das instituições de paz, e a primeira cruzada pode ser considerada como sua consequência lógica. O papa condena os guerreiros cristãos que se matam por algumas moedas, com risco para a alma; ao contrário, exalta os que, por Deus, deixam a família para libertar o sepulcro do Senhor. Os que viessem a morrer em tal expedição de peregrinação guerreira alcançavam infalivelmente as palmas do martírio. Os cavaleiros cruzados, como os mártires outrora e os monges recentemente, podem, portanto, ornar-se com o termo milites Christi. Mas a Cruzada não é a cavalaria! Os cavaleiros não são todos cruzados e quando dela participam, é por uma espécie de penitência, para remir os pecados de... sua cavalaria!

A Igreja conseguiu institucionalizar a Cruzada, mas não totalmente a cavalaria. A criação das ordens dos monges-guerreiros, templários ou hospitalários, testemunha essa derrota. Contudo, ela tentou por outras vias, em especial a liturgia do adubamento*. Para proteger-se, desde o século X os estabelecimentos eclesiásticos recrutaram guerreiros (milites ecclesiat) ou confiaram-se à proteção de senhores laicos, nomeados como defensores ou advogados (defensores, advocati). Foi por ocasião dessas investiduras de tipo vassálico, que a Igreja organizou rituais reunindo fórmulas de bênção das armas e estandartes, outrora reservados a reis e príncipes, por isso impregnados da antiga ideologia real de proteção das igrejas e dos fracos. O ordo de Cambrai (século XI) é o que melhor representa esses rituais. Essas fórmulas ainda estão em grande parte ausentes dos testemunhos que possuímos para o século XII de rituais de adubamento de cavaleiros “comuns”. Em compensação, no século XIII e mais ainda no XIV, elas invadem os rituais de adubamento e contribuem para introduzir no conjunto da cavalaria o antigo ideal régio de proteção da Igreja, da viúva” do órfão e dos fracos em geral.

Assim, a ideologia cavaleiresca agrega-se tardiamente à cavalaria. Além disso, trata-se aqui apenas da faceta religiosa dessa ideologia. Existe outra, aristocrática e laica, profana, que se mistura àquela para conferir à cavalaria a ética que lhe é própria.” (Jean Flori)

* Este termo técnico (adoubement) não está dicionarizado em português, mas o verbo adubar, nas acepções de “equipar”, “preparar”, “temperar”, decorre desses mesmos sentidos do francês adouber (significativamente surgido em I080, na Chanson de Roland, do qual derivou por volta de II50 aquele substantivo para indicar a cerimônia de entrega das armas e equipamento que fazia de alguém um cavaleiro. [HFJ]

 

 

Torneios e exercícios de cavalaria

O cavaleiro aprendiz, antes de ser adubado, serve “pelas armas”, quase sempre como escudeiro, a um senhor de seu parentesco, de preferência um tio materno, de posição superior à sua. Polindo-lhe as armas, esfregando-lhe os cavalos, assistindo-o nos combates, servindo-o à mesa e na caça, ele familiariza-se com o essencial da vida cavaleiresca. Desse modo, pode treinar para combate nos exercícios de quintaine, em que se procura atingir com a lança um manequim 0u um escudo, e de behourds, justas de treinamento mais próximas do combate real. Quanto aos cavaleiros, aperfeiçoam sua técnica em torneios, que surgem a partir de meados do século XI e se multiplicam no século seguinte, apesar das repetidas proibições da Igreja (Clermont, II30). Até o fim do século XII, esses torneios não se diferenciam das guerras verdadeiras, de que são réplica codificada. Como na guerra feudal, dois campos se opõem, em combates coletivos feitos de ataques compactos e de emboscadas destinadas a isolar do grupo alguns indivíduos, se possível bem-nascidos ou de prestígio, a fim de capturá-los para obter resgate ou desmontá-los para se apossar de seu cavalo. O objetivo, nos torneios como na guerra, consiste mais em acumular o saque e ampliar a glória do que em matar o adversário, mesmo que tais acidentes não sejam raros, tão completa é a semelhança entre torneios e combates guerreiros. É também a oportunidade para os cavaleiros pobres de atrair a atenção de algum patrono rico e entrar para sua “equipe”, a seu serviço. O prestígio da façanha cavaleiresca também pode ganhar os favores de uma rica viúva e, graças ao casamento, assegurar a promoção social do herói. Pelo menos esse é o sonho dos cavaleiros pobres.

Utilitários, mas prestigiosos desde a origem, os torneios tornam-se mais faustosos e menos perigosos com o decorrer do tempo, com o surgimento das armaduras e das armas “para diversão” (sem ponta de ferro) que, sem anular totalmente os riscos, distanciam, contudo, os torneios da verdadeira guerra. A proeza torna-se mais individual, mais teatral, e os grandes torneios “flamejantes” dos séculos XIV e XV tomam rumos suntuários: a nobreza procura neles se afirmar, tranquilizar e distrair ante a crescente ameaça econômica e social da burguesia.

Destinados a aumentar a coesão dos esquadrões de cavaleiros por meio de exercícios em conjunto, da camaradagem guerreira e dos prazeres compartilhados, os torneios contribuíram incontestavelmente para criar a mentalidade cavaleiresca e elaborar uma ética própria à cavalaria: culto da coragem e do heroísmo, respeito ao código deontológico que poupa, por interesse ou por ideal, o homem desarmado ou caído por terra; respeito à palavra dada; zelo pela reputação, ampliada pela bravura de uns e pela generosidade de outros.” (Jean Flori)

 

 

“Os romances de aventuras traduzem essa tendência. Tomam, inicialmente, a forma dos romances antigos, de que Eneias, Heitor ou Alexandre representam os heróis. Repõem a Antiguidade em moda e introduzem nas mentalidades elementos da moral laica, sobretudo um ideal novo, que também se encontra nos trovadores provençais: a cortesia que exalta as boas maneiras, o serviço à senhora, o amor dito “cortesão”, naturalmente adúltero, desprezando o casamento e desdenhando o ciúme. Pelo que já se disse, deve-se ver aí uma elaboração ideológica da pequena nobreza? É possível. Mas pode-se também sustentar que os príncipes e senhores usaram os modelos cortesãos em proveito próprio, para atrair os cavaleiros. Em troca, está claro que o ideal cortesão se opõe radicalmente à moral tradicional da Igreja: ele canta o amor sensual, o apelo aos favores da dama casada, a procura do luxo e da moda, o brilho dos tecidos, das riquezas e das cores, a bravura guerreira desinteressada, o porte imponente, a altivez, mesmo a arrogância aristocráticas. O fato de essas colorações cortesãs não terem cessado de impregnar as obras literárias diz muito da influência laica e mundana que se exerce sobre a mentalidade da cavalaria e penetra sua ideologia.

As origens célticas e míticas da “matéria da Bretanha” contribuem ainda mais para aumentar essa influência. Os romances arturianos exalam um perturbador perfume de maravilhoso pagão que a posterior cristianização de alguns de seus temas não dissipa totalmente. Eles idealizam um novo tipo de herói, o cavaleiro errante em busca de aventuras, força sobrenatural que, como o amor, o impele a ultrapassar, a dilatar ao máximo os limites do inacessível. Lancelote representa o modelo dessa cavalaria mundana. Nele reúnem-se as virtudes guerreiras dos heróis épicos e os valores corteses dos romances antigos. Esse ideal cavaleiresco, totalmente profano, de moral ambígua, marca profundamente as mentalidades dos escritores da Idade Média, de Chrétien de Troyes a Froissart.

Evidentemente, a Igreja opõe-se-lhe e condena-o. Mas é tal a aceitação desses romances pelo público, aristocrático ou não, que seria impossível refrear semelhante torrente; melhor tentar revertê-la. Assiste-se, então, à cristianização da maior parte dos temas arturianos. É assim que o Graal, profano no início, ganha cores religiosas, e que sua demanda se reveste de sentido eucarístico. Galaaz, piedoso, místico e puro, encarna a cavalaria “celestial”, cuja imagem a Igreja tenta impor à cavalaria “terrena” de Alexandre, Lancelote e Percival.

Ao mesmo tempo, começa a idealização da Cruzada e o ciclo épico de Godofredo de Bulhão populariza seu herói, o cavaleiro cruzado. Em meados do século XIII, o tema dos “Novos Bravos” faculta a elaboração de uma espécie de história santa da cavalaria, que, através da Antiguidade e de seus modelos (Heitor, Alexandre, César), liga os heróis da cavalaria cristã (Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão) aos da cavalaria bíblica (Josué, Davi e Judas Macabeu).

Trata-se de uma tentativa de recuperação ideológica. Ao longo da sua história, a cavalaria não deixou de venerar valores que a Igreja oficial condenava. Esta podia, sem dúvida, aprovar a fidelidade vassálica ou monárquica, as virtudes do companheirismo, a exaltação da coragem moral e física dos guerreiros cristãos colocando a espada a serviço da pátria e da Cristandade. Mas a essas virtudes sempre se misturaram aspectos mais aristocráticos, mais claramente profanos, como a busca exacerbada da façanha guerreira, a preocupação com a glória e o nome, o sentido excessivo de honra e linhagem facultando a faide, a vingança, os costumes mundanos da cortesia, sua exaltação do amor como valor supremo, seu desprezo pelo casamento etc. A própria liberalidade era ambígua. Aliás, ela é antes uma virtude aristocrática que cavaleiresca: a nobreza proporciona jantares, oferece torneios e festas suntuosas, cede cavalos e armas, ouro e prata, vestimentas e tecidos preciosos. Contrariamente à burguesia “cúpida”, que acumula, a nobreza dilapida, resplandece. Ela redistribui as riquezas, mas os cavaleiros são, na verdade, os primeiros, mesmo os únicos beneficiários das generosidades ostentatórias. Porque generosidade não é caridade, e dádiva não é esmola.

Todos esses valores profanos, aristocráticos e mundanos misturam-se ao ideal de luta pela fé cristã ou de proteção das igrejas, das viúvas e dos órfãos, que a Igreja tentava havia muito tempo imputar à cavalaria como sua missão particular, transferida dos reis. Sem recusá-la, a cavalaria do século XI ao XIV, fabricou uma ideologia muito mais complexa, multiforme, cambiante e fascinante.” (Jean Flori)

 

 

“A história desenrola-se sempre nos lugares, no espaço. Tanto quanto às datas e aos tempos, o historiador deve estar atento a essa característica fundamental da história.

Mas o espaço não é um continente inerte, mais ou menos valorizado, mais ou menos orientado; é mais do que um quadro, é diferente de um quadro no qual a história se desenrolaria em relativa independência. O espaço produz a história tanto quanto é modificado e construído por ela. Entre os elementos espaciais que estruturam a evolução dos conjuntos históricos, nada há de mais revelador dessa interação e dessas transformações que a relação entre centro (s) e periferia (s), e a observação de sua evolução dentro de seus limites.

Uma sociedade, uma civilização, tem seus limites, é um todo. Uma periferia na Idade Média é uma história de ocupação e exploração do solo, portanto de demografia e de economia, de urbanização, de sistema social e político: em situações-limite, feudalismo e Estado. É uma história militar: conquista e defesa são os elementos essenciais do fenômeno periférico; uma história tecnológica: a introdução, o encontro, a combinação das técnicas militares, agrícolas e artesanais são aspectos capitais das situações periféricas; uma história da religião: a conversão é um elemento fundamental, a criação de bispados, as formas de evangelização, o comportamento das ordens religiosas, as práticas litúrgicas; uma história da cultura: confluência da escrita e da oralidade dos repertórios artísticos, difusão de estilos; uma história dos costumes: encontro de hábitos vestimentares e alimentares (que se tornam, na periferia, a Europa do vinh0 e da cerveja, a Europa das gorduras vegetais e das gorduras animais?); uma história, enfim, do imaginário: há um lugar que mais faça sonhar que um limite, uma frente, um horizonte, uma fronteira?

Numa perspectiva de “antropologia territorial”, a história das relações segundo as realidades concretas e as representações entre centro e periferia na Idade Média abarca todo o campo histórico e geográfico da sociedade do Ocidente medieval.

As relações centro/periferia podem, como em todos os outros períodos, exprimir-se por movimentos centrípetos e/ou centrífugos. Durante a maior parte da Idade Média, o essencial desses movimentos é centrífugo. Das regiões centrais há mais tempo romanizadas e cristianizadas, eles partem em direção às periferias. Mas, durante o primeiro período, do século V ao X, o principal movimento foi centrípeto, designado pelos termos “invasão”, “deslocamento de povos” ou “migrações”. As periferias penetram em direção ao centro. Essas migrações, vindas de periferias próximas ou longínquas, foram complexas. A instalação dos francos na Gália, por exemplo, situa-se num longo processo de aculturação recíproca entre francos e galo-romanos, iniciado no século II e só encerrado por volta do século VII. Aculturação bem-sucedida, apesar das fases de violência, guerras e destruição, uma vez que ela acaba em uma verdadeira fusão entre as duas populações, sob o impulso da Igreja, dos chefes bárbaros e das elites sociais eclesiásticas e laicas. As periferias não evoluem apenas de forma brutal por meio de invasões mais ou menos repentinas e maciças, mas são constituídas de infiltrações de longa duração.

Uma periferia revelou-se de particular importância, a periferia oriental. Não somente porque ela é um objeto de desenvolvimentos e de confrontos especialmente fortes entre germanos e bálticos, germanos e eslavos, germanos e húngaros, mas porque foi a mais aberta, a que acabou por fim por colidir com a periferia de dois outros conjuntos de sociedades e de duas civilizações que a bloquearam. Um primeiro contato negativo a aprofundou, no coração da Europa, uma cisão fundamental que ainda hoje é uma linha divisória interna capital, aquela que separa a Europa marcada pela Cristandade latina daquela marcada pela Cristandade grega, a Europa de Roma e a de Bizâncio. Ela acentuou a fronteira entre a parte ocidental e a parte oriental do Império Romano. Do lado de cá, na Cristandade latina, a Polônia, o Estado tcheco e a Eslováquia (a grande aposta da missão de Cirilo e Metódio), a Hungria, a Eslovênia e a Croácia; do lado de lá, as regiões ocidentais do antigo império russo e soviético, e a própria Rússia, a Romênia, a Bulgária, a Sérvia, a Macedônia e a Grécia.

O outro choque foi com o Islã. Ele compreendeu dois aspectos. Um foi o retorno para os territórios cristãos, impulsionado pelo centro, de uma periferia mediterrânea conquistada pelos muçulmanos nos séculos VII e VIII, ao passo que a periferia da África do Norte, a periferia de Agostinho, tão importante nos primeiros séculos do cristianismo, era definitivamente perdida. Essa periferia meridional, incluindo a Itália do Sul, a Sicília e a Península Ibérica, foi objeto de uma reconquista particularmente ativa e vitoriosa na Península Ibérica nos séculos XI e XII (a Reconquista propriamente dita) e completada pela tomada total do reino muçulmano de Granada em I492. Ela permaneceu uma periferia de um tipo especial. Em compensação, a conquista de uma periferia longínqua de além-mar, a Terra Santa de Jerusalém, nos séculos XII e XIII, encerrou-se com uma reconquista muçulmana.

Não se deve esquecer uma Europa periférica interior com o seu universo de florestas e pântanos, as periferias em volta de cada cidade, de quase cada aldeia, de cada mosteiro, de cada castelo.” (Jacques Le Goff)

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