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terça-feira, 22 de outubro de 2019

História e dialética: Estudos sobre a metodologia da dialética marxista (Parte II), de Leo Kofler

Editora: UFRJ

ISBN: 978-85-7108-351-6

Tradução: José Paulo Netto

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 240

Sinopse: Ver Parte I


“Com o exposto, esperamos ter esclarecido suficientemente a importância fundamental que o pensamento da totalidade possui para o método dialético. Se, como indicamos, as categorias, sob a forma em que se oferecem ao pensamento ordinário, não são o que parecem ser — ou seja, não são coisas, mas expressões de relações sociais que tomam a aparência de relações entre coisas —, a dissolução desta ilusão só se pode obter mediante o estudo da conexão dialética total dos momentos. Já a noção geral, avançada por Marx na Miséria da filosofia, segundo a qual as categorias são somente expressões das relações de produção, supõe uma compreensão profunda do movimento dialético da totalidade social. Alcançar o pensamento da totalidade em sua expressão mais adequada implica desenvolver teoricamente todas as formas imanentes do movimento da realidade (e que se unificam dialeticamente umas com as outras); e desenvolver tanto este movimento mesmo como o processo, a contradição, a conversão da quantidade em qualidade (salto), a unidade, o desenvolvimento do conteúdo a partir da forma (da essência a partir da aparência) e, ao mesmo tempo, refazer todas essas operações em sentido inverso.

Por isto, entre as várias definições, coincidentes entre si, que Lenin oferece da dialética, aquela que inclui todas as outras e, portanto, é a mais abrangente, é a que parte da relação dialética entre momento e todo, entre relativo e absoluto, consistindo em que, “na dialética [objetiva], a diferença entre o relativo e o absoluto é relativa”.25 Lenin nos propõe algumas definições, como, por exemplo: a dialética é “a pesquisa das contradições no interior da essência da coisa mesma”; “a dialética é a doutrina que ensina como os contrários podem ser idênticos”; a dialética é “a doutrina da unidade dos contrários”; “eis aqui [...] a essência da dialética: a distinção do unitário e o conhecimento dos seus elementos contrários”. Insistimos em que tais definições só são possíveis se supõem um profundo conhecimento do caráter da realidade como a conexão das manifestações, isto é, essencialmente como totalidade. O entusiasmo de Lenin por aquelas expressões de Hegel em que o universal é concebido “não apenas” como “universal abstrato, mas como o universal que compreende em si a riqueza do particular” (ou seja, como a dependência dialética e recíproca de qualidade e totalidade), este entusiasmo se explica por sua correta apreciação da importância fundamental que esta concepção tem para a dialética. À margem desta passagem, Lenin anotou “p. ex., ‘capital’” e exclamou: “fórmula magnífica: ‘Não apenas como universal abstrato, mas como o universal que compreende em si a riqueza do particular, do singular’ (toda a riqueza do particular e do singular?)!!! Très bien!26 Percebe-se facilmente que, nesta passagem, Lenin de fato identifica o universal com a totalidade. É o que podemos ver no texto em que identifica as principais características da dialética: “As relações de cada coisa (fenômeno etc.) não são somente múltiplas; são, em geral, universais. Cada coisa (fenômeno, processo etc.) está ligada a todas as outras”.27 É significativo que Lenin destaque “todas” com itálico. Estas ideias são completamente diferentes daquela redução da dialética, ainda hoje muito difundida, a “insípidas tricotomias” (Marx) e à “manipulação de artifícios triviais” (Engels), na qual — da concepção de história de Hegel, que, do ponto de vista do método, marcou época — não resta mais do que um esquematismo vazio, caracterizado por Lenin como “inerte, pobre, ressequido”.”

25 V. I. Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, p. 286

26 Ibid., p. 17.

27 Ibid., p. 145.

 

 

“Já Vico observara que o entendimento tem a peculiaridade de fragmentar a realidade unitária. A crítica — que deve ser considerada genial para a sua época — ao princípio da fragmentação da realidade no racionalismo cartesiano levou Vico a descobrir o significado metodológico da totalidade, o que o converteu num dos mais importantes precursores da dialética. A profundidade do seu pensamento revela-se sobretudo na medida em que ele formulou teoricamente a natureza fragmentadora da função do entendimento (manifestada, do modo mais claro, na ciência natural matemática), empenhando-se, ainda que com recursos insuficientes, por encontrar uma via de acesso ao pensamento da totalidade. Seu erro consistiu, principalmente, em considerar que aquela via era possível somente para o mundo histórico e não também para a ciência natural. Depois de Vico, apenas Hegel recolheu suas indicações e as elaborou; a teoria hegeliana do entendimento é, por assim dizer, o reverso negativo da sua teoria da totalidade, constituindo, junto com esta, a verdadeira base de todo o seu sistema dialético.

Em face desta questão, o que tem a dizer a teoria da dialética? Cumpre afirmar, em primeiro lugar, que todo o problema da dialética inexistiria como problema não fosse a contradição entre a unidade essencial do processo real e a unilateralidade da faculdade humana do entendimento, orientada para o fenômeno parcial. Contudo, as coisas são muito mais complexas. De fato, nem a realidade é mera unidade e totalidade indiferenciada quanto ao conteúdo, nem o pensamento reage à realidade unicamente fragmentando-a. Ao contrário, a realidade tem como momentos a parte, a qualidade, a manifestação singular; e o pensamento pode reagir diante da conexão entre os fenômenos de modo particular, representando-a: com efeito, ela se reflete como unidade já na ação espontânea, pré-teórica e inconsciente do pensamento comum. Assim como a realidade objetiva está atravessada pela contradição entre particularidade e unidade, também o entendimento que a reflete é dialeticamente contraditório, uma vez que — segundo sua própria natureza — comporta-se diante de tal realidade de modo simultaneamente unificador e fragmentador.

De onde provém esta estrutura dialeticamente contraditória da nossa consciência? Ela se explica pela sua função natural e prática, isto é, pelo fato de que a inteligência humana, em sua origem e desenvolvimento histórico-biológico e em sua necessidade de enfrentar a realidade, adequou-se à natureza contraditória desta última e elaborou uma forma de reação conceitual congruente com ela. O caráter contraditório da consciência se explica, pois, do modo mais natural. Em primeiro lugar, ela deve propiciar ao indivíduo, na sua atividade — especialmente na sua atividade prática, no trabalho dirigido à satisfação das necessidades da vida —, a separação (ou, se se quiser, a abstração) entre a singularidade (que, num instante dado, por alguma razão, prende o seu interesse) e a multiplicidade e o confuso entrelaçamento das suas conexões e nexos reais. Por outro lado, toda atividade humana está sempre vinculada aos fenômenos que se encontram fora do seu interesse imediato; mesmo para a consciência orientada unilateralmente para um objeto determinado da atividade, este permanece sempre, ao mesmo tempo, em estreito contato com a grande massa dos fenômenos, pelo menos daqueles que se movem em sua imediata proximidade. E não poderia ser diferente, uma vez que só assim o trabalho pode alcançar a mobilidade que lhe é própria e que se expressa sobretudo na tendência, inerente a toda atividade, a comportar-se de modo “criador” e a descobrir espontaneamente novas alternativas, para além das tarefas bem delimitadas que lhe foram conscientemente fixadas. Mesmo se imaginarmos um ato de trabalho fundado num propósito estritamente delimitado e detalhadamente projetado, seria impossível executá-lo sem manter contato com a conexão geral dos fenômenos — o que, ademais, ocorre espontaneamente (ou seja, sem que o indivíduo tenha consciência disto). Por conseguinte, mesmo nos casos em que examinamos a maneira reativa da consciência em sua forma mais simples e originária, verificamos a contraditoriedade interna da sua apropriação do mundo circundante, que responde cabalmente à estrutura contraditória da própria realidade, consistente em ser tanto plenitude qualitativa (oposição) quanto unidade. Na linguagem da dialética, podemos dizer que o entendimento opera, simultaneamente, de modo imediato e mediador.”

 

 

“Na Dialética da natureza,2 contra o empirismo obtuso que aceita acriticamente a realidade em seu modo de manifestação metafísico (e do qual o racionalismo, no fundo, é apenas uma variedade), Engels sublinhava a peculiar capacidade do pensamento para antecipar, de modo criador e certamente sob a forma de hipóteses, resultados que depois se comprovariam com exatidão. Esta capacidade só se explica a partir da mencionada propriedade da consciência de vivenciar a realidade como um todo, como conexão dinâmica, em que todos os fenômenos se condicionam e se sustentam mutuamente e se formam uns nos outros — vivência que é anterior à “experiência” consciente, fragmentadora (e, como tal, metafísica), que se apodera da realidade de modo imediato. Compreendendo muito bem a unilateralidade e a insuficiência do conhecimento que procede unicamente por via indutiva e “empírica”, Engels exige que a generalização indutiva seja completada pela dedutiva — o que só é possível porque o pensamento possui a capacidade de se inspirar na conexão da realidade, sempre presente nele de maneira inconsciente, e de formular generalizações hipotéticas com auxílio do raciocínio e da dedução, ou seja, de tomar plena consciência do que é dado inconscientemente, relacionando-o com o já conhecido. Engels não quer dizer outra coisa quando escreve, no Anti-Dühring, que “aqui fracassam os métodos do empirismo e somente pode servir de ajuda o pensamento teórico3.”

2 [Há tradução ao português: F. Engels, Dialética da natureza, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000]

3 F. Engels, Anti-Dühring, 1948, p. 410.

 

 

Não podemos representar o movimento, não podemos expressá-lo, mensurá-lo, copiá-lo em nossa mente sem romper o contínuo, sem desmontá-lo, simplificá-lo, fragmentá-lo [!], sem matar o que é vivo. A cópia do movimento pelo pensamento é sempre uma simplificação, uma destruição do que é vivo; e isto não vale somente para o pensamento, mas também para a sensação e não apenas em relação ao movimento, mas para qualquer concepção. Precisamente nisto reside a essência da dialética, expressa na fórmula: unidade, identidade dos contrários.8

Todos os clássicos do marxismo têm um mesmo juízo sobre o modo fragmentador e metafísico como opera o entendimento. Assim como Hegel já identificara o modo de reação unilateral, e portanto metafísico, do entendimento com o “senso comum” não científico,9 Engels se refere em termos semelhantes ao “sadio entendimento do homem”, que permanece prisioneiro dos “opostos não mediados.”10 Engels então observa que este modo de pensar metafísico ainda predomina entre os pesquisadores. Também no seu artigo sobre “Para a crítica da economia política, de Marx”, Engels critica a metafísica do “entendimento burguês e ordinário”;11 e Marx, no livro III de O capital, refere-se com ironia ao “racional abstrato da representação burguesa”.12 E uma passagem interessante encontra-se em A sagrada família, na qual Marx contrapõe o materialismo ingênuo de Bacon ao materialismo posterior; diz Marx que, em Bacon, “a matéria sorri ao homem num brilho poético-sensual” e contém em si “os germes de um desenvolvimento multilateral”, enquanto o materialismo posterior se torna “unilateral” e se “apresenta como um intelectualismo”: “A sensualidade perde seu colorido e se converte na sensualidade abstrata do geômetra”.13

A descoberta do caráter da função “conforme o entendimento” — ou seja, metafísica — da nossa consciência pôs sob uma luz completamente nova sobretudo o conceito de fato, conceito que engendra as suas fantasmagorias metafísicas sob a capa de um intelectualismo armado com a exatidão e a nitidez cristalina. A força desta categoria de fato, divinizada pela ciência histórica, reside em que lhe é inerente a ilusão de dar as costas a toda metafísica; e, mais que isso, de representar um deus ex machina na superação de qualquer modo de pensar metafísico. Mas se, no pensamento burguês (e por razões históricas que não exporemos aqui), a investigação teórica se concentrou cada vez mais, até chegar a um grotesco fanatismo, no “faticamente dado”, isto é, no que pode ser apreendido como isolado e descritível com “exatidão” (o que ocorreu primeiro na ciência natural desde os séculos XVI e XVII, depois na filosofia desde os séculos XVII e XVIII e, a partir do século XIX, em máximo grau, na ciência histórica), logo veio à cena a correspondente reação. Surgiu a dúvida de se esses fatos singulares, apresentados com exatidão, deveriam ser inseridos numa conexão provida de sentido e a suspeita de que a ciência dos fatos, tão senhora de si no seu pedantismo, poucas vezes conhece os fatos em seu conteúdo interno e, por isso, frequentemente colide com a verdade objetiva. Essa crescente incerteza se expressou no século XIX e se expressa atualmente em fenômenos indicadores de uma crise, tal como se revela nos debates sobre o método da historiografia e sobre a chamada “compreensão”. Neste sentido, destacam-se a polêmica dos economistas acerca do que deve constituir o objeto principal da ciência econômica (a investigação do singular ou a das leis) e a dos historiadores sobre a base metodológica do seu estudo (a pesquisa do singular ou do todo).”

8 V. I. Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, 1949, p. 195.

9 G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, v. l, 1948, p, 26.

10 F. Engels, Anti-Dühring, p. 24.

11 F. Engels, “Karl Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie” [“Karl Marx, Para a crítica da economia política”), reimpresso em K. Marx, Eine Sammlung von Erinnerungen und Aufsätzen [Uma coletânea de evocações e ensaios], 1947, p. 151. [Há tradução ao português deste texto em K. Marx e F. Engels, Obras escolhidas em três volumes, Rio de Janeiro, v. 1, 1961.]

12 K. Marx, Das Kapital, v. 3, 1949, p. 871.

13 Marx e F. Engels, Die heilige Familie, in Frühschriften, Kroner, 1932, v. 1, p. 389.

 

 

“A paulatina emancipação desta dependência direta da natureza e, sobretudo, o interesse prático da burguesia, que desde o século XVI participou do processo produtivo e manteve uma posição revolucionária antifeudal, deram origem a um desenvolvimento sem precedentes do conhecimento objetivo, mesmo que não se possa falar de uma superioridade radical da capacidade de conhecimento burguesa em relação à pré-burguesa. É característico que a ciência burguesa tenha alcançado seus maiores triunfos no campo da ciência natural e que a filosofia burguesa tenha se inspirado principalmente nos conhecimentos matemáticos e nos da ciência natural. Sabemos que o pensamento espontâneo da totalidade — que, como tendência, mostrou-se vigoroso na época pré-burguesa e nos primeiros tempos da burguesia — perdeu-se progressivamente com a individualização e a atomização crescentes do processo social; e que, por todo lado, impôs-se a especialização da ciência e seu fenômeno concomitante, ou seja, a divinização do fato singular e isolado. Aquilo que a consciência moderna costuma reconhecer como o triunfo gigantesco da ciência a partir dos séculos XVI e XVII foi conquistado, na verdade, ao preço da renúncia ao conhecimento da realidade como um todo unitário. A riqueza e a variedade das visões parciais ocultaram a indigência do conhecimento da essência do todo. (...)

Aquilo que na época pré-capitalista, quando a consciência ainda não se havia deformado em sentido unilateral e individualista, significava apenas a forma dialética e contraditória mediante a qual o entendimento se apropria da realidade, converte-se — sob as condições do desenvolvimento objetivo do capitalismo — num limite insuperável: das duas capacidades espontâneas da consciência, que já descrevemos (apropriar-se conceitualmente da realidade em suas partes ou em sua totalidade), uma delas — claro que a capacidade fragmentadora, desbordando os âmbitos de sua função natural e psicológica — converteu-se na base de formações de natureza ideológica, isto é, metafísicas, no sentido de que representavam uma apreensão inadequada (racionalista-fragmentadora) da realidade.”

19 A. von Martin., Soziologie der Renaissance [Sociologia do Renascimento]. 1949, p. 21, 25, 26, 30, 33, 39, 47 e 48.

20 Ibid., p. 22.

21 Ibid., p. 25 e 30.

22 Ibid., p. 25.

23 Marx, Das Kapital, v, 1, 1947, p. 88.

24 Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, 1909, p. xiv. [Há tradução ao português desta obra: Para a crítica da economia política, São Paulo: Abril Cultural, col. “Os economistas”, 1982.]

25 Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, p. 248.

 

 

“Nos grandes utopistas, opera a mesma contradição e sob idêntica forma: a contradição rígida entre a realidade e o ideal, que exigências práticas levam a uma superação aparente, mediante a ingênua esperança de que a realidade submeter-se-á ao ideal. Tem razão Ernst Bloch quando afirma: “Nos utopistas abstratos, a luz dos sonhos ilumina um espaço vazio: o dado teria de adequar-se à ideia”.6

6: E. Bloch, Freiheit und Ordnung [Liberdade e ordem], 1947, p. 150.

 

 

“Devemos, então, nos remontar aos elementos últimos do ser do homem na sua série genética. Assim como ao animal, também ao homem a natureza oferece os recursos que lhe permitem manter a sua vida. Mas, enquanto o animal se apropria desses meios de vida passivamente, por instinto (ou seja, obedecendo a estímulos nervosos), o homem, para alcançar seus fins, necessita de uma reação na qual a consciência intervenha — precisa da mediação do seu pensamento. Esta mediação consiste em tomar previamente consciência do ato que deve praticar e, como consequência necessária, em dirigir o pensamento para um fim. Em O capital, Marx escreve: “Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho, aparece um resultado que já existia antes, idealmente, na imaginação do trabalhador. Ele não opera uma mera mudança de forma na matéria natural: realiza na matéria natural, ao mesmo tempo, o seu fim”.7 Ora, a realização ativa do fim prático antecipado é o trabalho.

O animal desconhece fins e, portanto, desconhece o trabalho. Mas, já que os fins não se estabelecem de maneira arbitrária — uma vez que dependem dos objetos naturais e são, por isto, determinados causalmente —, o mesmo ocorre com o trabalho. Em primeiro lugar, o trabalho deve dirigir-se a seus objetos e, em segundo, aos meios com os quais faz das coisas naturais, transformando-as, objetos seus — os instrumentos. Já neste ponto da relação entre natureza e homem torna-se manifesta a unidade da contradição entre causalidade e ação segundo fins. Mas é tão certo que, com isto, se obteve um conhecimento dialético decisivo quanto seria falso deter-se aqui. Tomar as condições objetivas como o fator determinante último equivale a recair no materialismo mecanicista, por mais que este ponto de vista seja sustentado atualmente com muita frequência. As condições objetivas representam um fator mais ou menos constante a partir do qual não se pode deduzir a dinâmica social. Aludimos, com isto, às condições naturais externas. Os instrumentos são principalmente produtos da atividade humana e elementos de um mundo de condições criado pelo próprio homem.

Uma das descobertas mais importantes da teoria marxista da sociedade é que a legalidade econômica nunca transcende os marcos das condições sociais. Por este motivo, Marx trata como condições sociais as relações que, conforme sua aparência, estariam determinadas por coisas — neste sentido, mostra-as como fenômenos categoriais da reificação (dinheiro, máquina, capital, mercadoria, valor). No entanto, ao mesmo tempo, a ligação com as coisas persiste, na medida em que todas as relações econômicas apresentam esta forma especifica única, a partir da qual são concebíveis: a atividade econômica do homem se orienta necessariamente para objetos da natureza. Mas a sociologia vulgar esquece que o trabalho — que, servindo-se de instrumentos, se apropria de objetos que encontra na natureza — só domina as propriedades peculiares dos objetos na medida em que isto é permitido pelo nível de desenvolvimento alcançado pela sociedade, que, como é notório, não está determinado pelos objetos da natureza e, sim, pelas relações que os homens estabelecem “na produção social da sua vida”, relações que, por seu turno, correspondem a “um nível determinado das forças produtivas materiais”.8 E, já que a série dos “níveis” das forças produtivas, seu desenvolvimento, só se pode apreender como o desenvolvimento dos modos de emprego das forças da natureza na produção (sob relações de produção dadas, com as quais entram logo em contradição as forças produtivas superiores desenvolvidas com base em tais relações), então também aqui não transcendemos em nada os marcos da atividade social. Por desenvolvimento das forças produtivas, há que se entender apenas, em termos gerais, o desenvolvimento dos instrumentos de produção por parte do próprio homem — e tais instrumentos, em sentido lato, incluem os fatores organicamente integrados a ele, como o homem e a experiência do trabalho. Marx, que em lugar de instrumentos de produção usa “meios de trabalho”, sublinha com isto o aspecto ativo na relação entre homem e natureza: o trabalhador “utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas para que elas operem, de acordo com a meta do trabalhador, como meio para dominar outras coisas”9.

Neste processo, a natureza, com toda a sua riqueza, é a premissa universal e o objeto da atividade humana; esta atividade, ao contrário, não é o objeto da natureza: a natureza é apenas objeto universal do trabalho humano”, diz Marx, sublinhando assim esta caracterização.10 A passagem seguinte mostra de forma cristalina a consequência com que Marx atribui às coisas naturais o caráter de objetos da atividade: “O que diferencia as épocas econômicas não é o que se produz, mas o modo e os meios de trabalho com que se produz”.11 Portanto, caso se queira encontrar o fator último que está na raiz das “relações econômicas”, devemos localizá-lo no trabalho, na atividade dirigida à apropriação das coisas da natureza. “Consequentemente, no processo de trabalho, a atividade do homem opera, com o meio de trabalho, uma transformação dos objetos do trabalho previamente projetada”12 — é isto e não o inverso! De seu lado, a terra oferece o objeto passivo, ou seja, a premissa material, “o meio de trabalho universal”, “pois proporciona ao trabalhador o locus standi e ao seu processo [de trabalho] o espaço de ação (field of employment)”.13

Pensado porém, nestes termos gerais, o conceito de trabalho é ainda uma abstração vazia. Efetivamente, todo trabalho é social. Se o “trabalho é, antes de mais nada, um processo entre homem e natureza, um processo no qual o homem impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza mediante a sua própria ação”; e se o homem desperta pelo trabalho as “potencialidades adormecidas na natureza e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais”14 — esta “ação” só é possível como ação social, já que o homem é um ser socializado, isto é, um ser “que somente pode individualizar-se na sociedade”.15 Mas qual é o princípio que produz a socialização pela qual o homem entra numa relação necessária e indissolúvel com seus próximos? O trabalho. Uma vez que o animal não trabalha, afirma corretamente A ideologia alemã, “para o animal, a relação com outros não existe como relação”16.

Trabalho e sociedade mantêm, portanto, uma relação recíproca, dialética e funcional. Esta conclusão lança uma nova luz sobre o problema da relação entre atividade dirigida a fins e conexão causal. Se, com algum direito, pudemos afirmar que o trabalho revela certa dependência causal em face dos objetos naturais, esta determinação seria altamente unilateral — e, por isto mesmo, falsa — se fosse considerada suficiente em si mesma. Com efeito, a forma da conexão causal do processo de trabalho com as propriedades dos objetos da natureza não está determinada apenas pela forma destes últimos; não é rígida, mas extremamente variável: um mesmo objeto natural, provido de qualidades bem definidas e constantes, pode converter-se em objeto de trabalho das mais diferentes maneiras conforme o nível de desenvolvimento do modo de emprego social das forças produtivas. Não se pode desconhecer o condicionamento causal do trabalho pelo seu objeto, mas a forma concreta desta causalidade não está determinada pelo objeto, como se este possuísse uma autonomia metafísica — está determinada pelo movimento interior, legal-causal, da sociedade, que constitui a base efetiva de todo o processo da ação recíproca entre natureza e homem.”

7 K. Marx, Das Kapital, ed. cit., v. 1, p. 186.

8 Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, 1909, p. lv e ss.

9 Marx, Das Kapital. ed. cit., v. 1, p. 187.

10 Ibid., p. 186

11 Ibid., p. 188

12 Ibid., p. 189.

13 Ibid., p. 188.

14 Ibid., p. 185.

15 K. Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, p. xiv.

16 K. Marx e F. Engels, Die deutsche Ideologie, in Frühschriften, Kröner, 1932, v. 2, p. 21.

 

 

“Como a experiência o demonstra, cada grupo de partidários de um ou outro juízo empenha-se em trazer para suas teses todas as “provas” possíveis — coisa fácil de se fazer com um pouco de esperteza, já que nada é mais dúctil do que a história.”

 

 

“Uma prova suficiente de que os fenômenos espirituais dependem, necessariamente, das condições sociais não é alcançável por uma via unilateralmente descritiva. O único meio para obtê-la é investigar a gênese do homem; mais precisamente, é investigar os fatores que “produzem” o homem, antes de mais nada aqueles que essencialmente o distinguem dos animais, como o trabalho e a consciência. A partir daí, a investigação pode proceder à exposição concreta do ser histórico da consciência, de seus conteúdos e de suas formas. Uma investigação como esta — que, como demonstramos antes, é a única correta porque avança a partir da gênese — conduz necessariamente a compreender como “práxis revolucionária” a atividade humana e a sua coincidência com a transformação das circunstâncias segundo leis.29 Mas isto equivale, clara e diretamente, a conceber o aspecto ideal do processo, o fator espiritual, em seu caráter determinado e em sua dependência das condições sociais nesta autoprodução prática da sociedade; ou, formulando de modo mais concreto: dado que o trabalho orientado à apropriação e transformação (a serviço da vida) dos objetos naturais inicia o processo de humanização (como o demonstra a análise da gênese da espécie humana), o pensamento só pode ser compreendido como um elemento dependente do trabalho e da práxis — só pode ser compreendido como meio de ambos. E o fato de que as relações sociais se tornem mais complexas como consequência do desenvolvimento da sociedade em nada pode modificar este princípio. Precisamente a elaboração da relação concreta entre ser e consciência que se manifesta no conceito de práxis funda este outro conceito, o da totalidade social, que tanta importância tem no materialismo histórico e que, sem dúvida, é verdadeiro, não vazio, uma vez que se adequa efetivamente à realidade. Mas justamente porque o materialismo histórico revela o modo em que é possível na prática a unidade do diverso — em nosso caso, de ser e de consciência —, provando assim que a sociedade constitui um todo de relações mediadas dialeticamente em seus momentos contraditórios, a insistência unilateral no “fator econômico” é tão falsa quanto sua subestimação em favor da totalidade. (...)

Marx e Engels, contudo, distinguem-se essencialmente de seus predecessores no que diz respeito à descoberta do fator econômico. Se sua conquista tivesse se constituído apenas em descobrir “também” um fator econômico, há muito que eles estariam esquecidos. E o mérito da sua descoberta tampouco consistiu em terem alcançado uma visão mais exata das bases do processo social, que é certamente uma premissa necessária; consistiu, sobretudo, em que demonstraram pela primeira vez o modo de conceber como unidade a multiplicidade dos momentos contraditórios e de apreender os aspectos e manifestações do ser social aparente e completamente desconectados entre si como fatores que necessariamente se articulam no interior de um todo único. Plekhanov compreendeu com profundidade a essência do materialismo histórico; em Sobre a concepção materialista da história, depois de submeter a uma crítica detalhada a teoria do fator econômico sustentada pela sociologia vulgar, anotou:

O fator histórico-social é uma abstração. Graças ao processo de abstração, os diferentes aspectos do todo social tomam a forma de categorias separadas, e os diversos modos de expressão e as exteriorizações da atividade social — moral, direito, formas econômicas etc. — tornam-se em nosso cérebro forças particulares que, por assim dizer, suscitam e condicionam tal atividade e aparecem como suas causas últimas. Uma vez surgida a teoria dos fatores, necessariamente se instauram discussões para saber qual deles deve ser considerado o dominante.

E Plekhanov conclui:

Por mais justa e útil que, em sua época, tenha sido a teoria dos fatores, atualmente ela não resiste à crítica. Ela desmembra [leia-se: “fragmenta”, “despedaça”] a atividade do homem social e transforma seus diversos aspectos e exteriorizações em forças particulares que pretensamente determinariam o desenvolvimento histórico da sociedade. Esta teoria desempenhou, na pré-história da ciência da sociedade, o mesmo papel que a teoria das forças físicas singulares cumpriu nas ciências da natureza. Os progressos destas conduziram à teoria da unidade das forças físicas: a moderna teoria da energia. De igual modo, os progressos da ciência da sociedade teriam que conduzir, como resultado da análise social, à substituição da teoria dos fatores por uma concepção sintética da vida social. Esta, ademais, não é exclusiva do materialismo histórico; encontramo-la em Hegel, que lhe atribuiu a tarefa de explicar cientificamente o processo histórico-social em seu conjunto, inclusive aqueles aspectos e exteriorizações da atividade do homem social que se apresentam ao pensamento abstrato como fatores singulares.33

Para compreender corretamente esta passagem, é preciso colocar entre aspas a palavra “fatores”. De fato, Plekhanov não nega que a vida social apresente diferentes aspectos; apenas rechaça a ideia de que se possa atribuir a eles uma autonomia especial, já que, com isto, seria suprimida a unidade do processo. A crítica de Plekhanov conserva toda sua validade, uma vez que os sociólogos vulgares voltaram a “esquecer” completamente o nível de compreensão já alcançado pelo marxismo, que difere essencialmente das concepções “similares” que o precederam.

Podemos sintetizar assim a relação entre o fator econômico e o todo social: a “economia” — que, como o demonstra a investigação da gênese do homem, é a práxis posta a serviço da produção e da reprodução da vida social — representa aquela força determinante pela qual se constitui o processo histórico como uma totalidade que configura todos os momentos em unidade dialética. Daqui deriva uma conclusão, decisiva para o nosso tema: no interior de uma teoria do todo unitário ou da totalidade do processo, não tem cabimento uma compreensão unilateral “apenas da forma do objeto”, isto é, mecanicista, que exclui ou desvaloriza o papel da atividade que se realiza por intermédio da consciência, compreensão do tipo daquela que Marx censurou ao velho materialismo na primeira das suas Teses sobre Feuerbach; mas tampouco se admite uma compreensão baseada somente na forma da atividade subjetiva, como se sustenta no idealismo. Sensibilidade e atividade, legalidade causal e projeção consciente de fins constituem uma unidade dialética e contraditória: a “atividade sensível, a práxis”. A concepção do processo como realizado sem a intervenção da consciência isto é, como se o homem não participasse dele, introduzindo-lhe o seu pensamento e a sua consciência de si —, considerando-o a posteriori e contemplativamente, é qualificada por Marx e Engels como própria do ponto de vista da “contemplação” e a designam como “contemplativa” (sobre isto, veja-se a diferença, já exposta, entre “intuitivo” e “contemplativo”). Tanto nas Teses sobre Feuerbach quanto em A ideologia alemã, Marx e Engels censuram ao materialismo, especialmente o de Feuerbach, que sua “concepção do mundo sensível se limite [...] à sua mera contemplação passiva”.34 O conceito marxista de “atividade sensível” ou de “práxis” rechaça tanto a interpretação mecanicista do materialismo histórico, que omite o verdadeiro papel da consciência no processo social, quanto a interpretação idealista e subjetivista, que exclui a relação com o econômico em todo aquele processo. (...)

Marx mostra que a relação dialética entre contingência e lei coincide precisamente com a que existe entre o capricho dos indivíduos e o processo objetivo, que transcende a consciência subjetiva e se impõe, portanto, de maneira inconsciente. Estamos aqui, ao mesmo tempo, diante do princípio da unidade dialética da contradição entre sujeito e objeto. A base última da realização deste princípio é o trabalho. Trabalho é aquele comportamento ativo dirigido ao mundo das coisas, a partir do qual se desenvolve uma relação determinada com o próximo. Por esta via, o trabalho se torna “ponto nodal dos esforços individuais” e dos “interesses sociais”; e, nele, “o subjetivo se converte em objetivo”.35 Esta passagem do subjetivo ao objetivo, porém, se realiza de maneira inteiramente inconsciente. A integração dialética entre esta passagem da atividade subjetiva a um processo objetivo e a passagem deste processo objetivo, que se torna condição, a atividade subjetiva constitui a forma mais geral da legalidade social, que se impõe acima da consciência dos indivíduos e que permanece inteiramente inconsciente para eles. A contradição entre o que se realiza através da consciência e o que opera acima dela, entre subjetividade e objetividade, atividade dirigida a um fim e dependência a leis — esta contradição se suprime dialeticamente no interior do movimento universal da totalidade social.”

32 G. Plekhanov, Über die materialistische Geschichtsaufflassung, 1946, p. 10. [Há tradução ao português: A concepção materialista da história, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980]

33 Ibid., p. 12.

34 Marx e F. Engels, Die deutsche Ideologie, in Frühschriften, ed. cite. v. 2, p. 15.

35 G. Lukács, Der junge Hegel, p. 613.

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