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terça-feira, 22 de outubro de 2019

História e dialética: Estudos sobre a metodologia da dialética marxista (Parte III) — Leo Kofler

Editora: UFRJ

ISBN: 978-85-7108-351-6

Tradução: José Paulo Netto

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 240

Sinopse: Ver Parte I

 

“As formas complexas das tentativas para conhecer o ser social, coincidentes com os movimentos da falsa consciência, não são algo contingente — mesmo que se apresentem em figuras frequentemente acidentais —, mas são resultados necessários do processo social. Sua necessidade, porém, seria incompreensível se as ideologias fossem meras “imagens especulares”; já que elas, de qualquer maneira, deformam e refletem a aparência do ser social, careceria de toda importância a forma contingente que adquirem. Somente se percebermos que a consciência ideológica exerce uma função prática na sociedade é que poderemos compreender que a sua forma não é arbitrária, mas deve adequar-se de algum modo à totalidade do processo, tal como um tijolo numa construção. As ideologias não são imagens especulares meramente passivas, no interior das quais o homem encontraria um prazer irresponsável; são, ao contrário, a expressão da passagem necessária da ação e da vontade do homem pela sua consciência. Para poder agir, a sociedade (tal como ocorre na célula-matriz de qualquer atividade, o trabalho) tem que conceber o projeto que só depois converterá em ações. Portanto, o pensamento do homem não se restringe a considerar a posteriori o que já aconteceu; para usarmos as palavras de Marx, ele não se comporta de maneira puramente “contemplativa”, mas participa do próprio processo. A tomada de consciência sobre o próprio ser é a forma (seria melhor dizer a condição, desde que se entendesse corretamente a palavra) mediante a qual se projeta a finalidade da atividade prática imediata: considerando-a na perspectiva histórica ampla, é a forma por intermédio da qual uma classe pode colocar-se objetivos históricos e dar os passos necessários para realizá-los.

A complexidade e a diversidade dos fenômenos ideológicos concretos podem ocultar esta função das ideologias; e os próprios ideólogos podem imaginar que estão exclusivamente a serviço do conhecimento “puro” da realidade, perseguindo um fim desinteressado. Mas, apesar disto, suas ideias sobre o objeto são, na verdade, as ideias do objeto, são momentos necessários — e, por isto, dependentes no processo da autocriação da história. O aspecto ativo deste processo, mediador dialético de atividade e passividade, sujeito e objeto, pensamento e ser, é inconcebível sem a intervenção da atividade pensante. E, quando se concebe a atividade social de maneira puramente mecanicista, como expressão passiva da “lei” e consequentemente de modo objetivista (isto é, sem considerar o fato de que a atividade só pode ser subjetiva e operar com a ajuda do pensamento projetando fins conscientes), quando isso ocorre a admissão do papel essencial da atividade no processo social se converte numa afirmação vazia e numa retórica. Nesta concepção, o homem só atua aparentemente: ele se cristaliza em passividade, uma vez que seu pensamento não é mais do que uma série de ideias acerca do que já ocorreu e não pode, absolutamente, converter-se em atividade.

Nem mesmo Hegel, o fundador da teoria da unidade dialética entre sujeito e objeto, conseguiu resolver este problema, impedido que foi pelos limites idealistas da sua concepção. É muito instrutiva a crítica que Marx e Engels lhe dirigiram. Engels, em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, observa que Hegel concebe a realização da Ideia absoluta como a de uma finalidade pré-estabelecida. E, sem dúvida, essa suposição de um telos estabelecido de antemão — e que, portanto, direciona a história, por assim dizer, a partir de fora — está em flagrante contradição com a própria concepção fundamental de Hegel, segundo a qual a história se realizaria na forma da identidade entre o sujeito e o objeto no processo histórico. Também Marx censura Hegel por não ter superado a cisão entre pensamento e ser, sujeito e objeto; censura-o porque seu sujeito não participa verdadeiramente do “fazer” histórico, já que somente a posteriori (apenas na filosofia) se resgata a si mesmo; porque, ao invés de participar diretamente na história como portador subjetivo do autoconhecimento histórico do processo objetivo, não pode fazer mais do que reconhecer, a posteriori, o acontecido. Marx critica em Hegel o fato de que seu Espírito absoluto “só aparentemente faz a história”:

Já em Hegel o Espírito absoluto tem o seu material nas massas e sua expressão correspondente na filosofia. O filósofo aparece, então, apenas como o órgão com o qual o Espírito absoluto, que faz a história, alcança a consciência com posterioridade, depois de concluído o movimento. A esta consciência posterior do filósofo se reduz a sua participação na história, pois o movimento efetivo atualiza o Espírito absoluto por vias inconscientes. O filósofo entra em cena post festum. Hegel incorreu num duplo equívoco: primeiro, quando declarou que a filosofia é o ser-aí do Espírito absoluto e, ao mesmo tempo, recusou-se, em troca, a proclamar o indivíduo filosófico real como o Espírito absoluto; e, depois, quando só em aparência admitiu o Espírito absoluto enquanto tal como produtor da história. De fato, posto que o Espírito absoluto apenas post festum, como Espírito criador do mundo, alcança a consciência, a sua produção da história existe somente na consciência, na imaginação especulativa.40

Relativamente ao tema deste capítulo, é de extrema importância observar que esta dualidade apontada por Marx consiste na mesma segmentação metafísica e na mesma contraposição mecânica entre princípio movente e princípio movido e, também, entre pensamento e ser, características da sociologia vulgar materialista e burguesa. E, do ponto de vista da dialética, não há nenhuma diferença radical de que em Hegel seja o Espírito absoluto (isto é, um princípio mitológico e não materialista) que cumpra a função que o meio natural desempenhava no velho materialismo ou que o “fator econômico” exerce na deformação atual do marxismo pela sociologia vulgar. Quanto ao método, tais concepções chegam ao mesmo resultado: na incapacidade da história para se apropriar da dimensão pensante e ativa, isto é, a incapacidade — tanto dos filósofos idealistas quanto dos materialistas vulgares — de conceber o processo histórico como unidade dialética de atividade e lei, de pensamento e ser. Se, na teoria mecanicista da história, esta é movida desde o exterior por uma lei mecanicamente concebida, na filosofia hegeliana o Espírito absoluto faz o mesmo — e, em ambos os casos, permanece intocado o caráter contemplativo. Por isto, Marx pôde censurar Hegel (o qual, apesar do seu esforço muitas vezes fecundo para esclarecer a essência da relação sujeito-objeto, não se ateve consequentemente às suas próprias conclusões) por ter feito que seu Espírito absoluto realize o movimento efetivo por vias “inconscientes” e que, permanecendo de certo modo fora da história, só aparentemente a crie — por isto, o movimento da história, em Hegel, é tão cego quanto na teoria mecanicista da história. Na realidade, e não meramente na ilusão, o Espírito absoluto produziria a história se, por meio do papel que Hegel lhe atribui (ser o conhecimento de si da história), adquirisse uma dimensão prática, ou seja: se, em cada instante do processo histórico, se tornasse momento necessário da autocriação dialético-legal deste processo, ou, mais precisamente, da relação dialética entre sujeito e objeto.”

40 Marx e F. Engels, Die heilige Familie, in Frühschriften, ed. cit., v. 1, p. 381 e ss.

 

 

“Cabe afirmar, em primeiro lugar, que é da própria essência do interesse de classe o fazer-se passar por interesse “sagrado” supraindividual e o identificar-se com o interesse geral. Se ele, porém, acaba por entrar em cena como um poder por assim dizer suprahumano, como a aparência do eterno, a razão disto não reside nele mesmo, mas nas circunstâncias objetivas de que o homem depende e que não controla. Na sociedade pré-capitalista, este nexo de dependência é relativamente simples: a natureza que domina o homem e lhe aparece como um ser místico lhe proporciona o motivo para mistificar seu próprio ser e adequar a sua filosofia a esta tendência à mistificação. Esta, ademais, é apenas a forma da ideologia, cujo conteúdo é determinado em cada caso pelo interesse concreto de classe, por mais que as formações conceituais abstratas contribuam para a sua expressão.

Na sociedade capitalista, aquele nexo é infinitamente mais complexo. Aqui, a mistificação não é introduzida na sociedade a partir de fora: a mistificação constitui a sua essência. Por uma parte, na esfera do ser da sociedade burguesa e urbana nascente, a dependência direta da natureza externa cede cada vez mais o passo a uma aplicação “mais livre” das forças produtivas; o trabalho subordina crescentemente às suas exigências a atividade intelectual e, em função da difusão do intercâmbio de mercadorias, a relação entre os indivíduos se reduz cada vez mais ao contrato livre, que passa a substituir as relações de dependência tradicionais e irracionais da sociedade feudal e agrária. Esta relação livre baseada no contrato, sem dúvida, é apenas a forma sob a qual a se oculta a necessidade econômica no modo de comportamento dos indivíduos. No entanto, a diferença em relação à Idade Média feudal é fundamental. As forças naturais que antes se apresentavam como algo exterior e como coisas, são socializadas; no pensamento burguês, a natureza perde gradualmente o aspecto de algo misterioso e indomável e as forças naturais são despojadas cada vez mais do seu caráter reificado e irracional, à medida que são incorporadas conscientemente (ou seja, pela via do conhecimento e do cálculo próprios à ratio) à atividade. O misticismo da natureza é dissolvido pela ratio que, em seguida, converte-se no fator dominante da consciência social.

Mas, por outra parte, esta racionalização do processo e da consciência é apenas ideológica e formal. De fato, por trás da forma da racionalização do ser, avança com ímpeto crescente o obscurecimento e a irracionalização do processo, à medida que se tornam mais complexas as relações da economia mercantil, com base no desenvolvimento das forças produtivas potenciado pela divisão do trabalho. Inverte-se a situação: se, na época pré-capitalista, a impenetrabilidade das relações se revestia de uma crosta mística tomada de empréstimo à natureza, nas condições da sociedade individualista produtora de mercadorias se sobrepõe ao processo (que, como tal, tornou-se impenetrável e indomável) uma capa tomada da ratio, que se adensa velozmente, municiada por seus precisos instrumentos de mensuração e seus critérios de evidência. A ilusão se origina do fato de que, a partir do âmbito específico da atividade individual (isto é, de um âmbito parcial da sociedade, estritamente delimitado), estende-se ilimitadamente o poder do entendimento. Esta racionalização de um âmbito parcial é justamente a premissa para a mistificação do todo.

Se é verdade que o indivíduo burguês controla por completo o âmbito parcial no interior do qual se move — apenas na medida, naturalmente, em que a “razão” controla a consideração das condições exteriores —, também é verdade que os supostos sob os quais isto ocorre permanecem ignorados. E devem continuar ignorados, uma vez que a autonomia desse âmbito parcial é só aparente; na verdade, no seu interior operam determinações que surgem do movimento do processo total. E precisamente os principais supostos são os que parecem pertencer com exclusividade a esse âmbito parcial: o trabalho e seu produto. Quanto a seu valor, este se estabelece seguindo leis que existem fora desse âmbito parcial e que, portanto, se subtraem à apreensão da ratio individual. Assim, é incorreto explicar, como frequentemente se tenta fazê-lo, a mistificação do processo total capitalista tomando por base única a sua pulverização em atos parciais independentes entre si, ou seja, com base na anarquia capitalista. Esta é apenas a condição geral da irracionalidade do todo, da instauração de leis supraindividuais e indomáveis. Tal como a concorrência não pode ser utilizada como explicação dos fenômenos econômicos, também a reificação não pode ser explicada pela anarquia. Ao conceito de anarquia aplica-se o que Marx afirma acerca da concorrência:

A análise científica da concorrência só se torna possível quando se conceitualiza a natureza íntima do capital, assim como o movimento aparente dos astros só se torna compreensível para quem conhece o seu movimento real, que não é perceptível pelos sentidos.24

Uma reflexão simples nos convencerá de que a anarquia capitalista, por si só, nada explica; ao contrário, ela é que necessita de explicação. Se aquele âmbito parcial fosse inteiramente cognoscível e transparente para os indivíduos que nele se movem — cognoscível na realidade e não somente de acordo com as representações que dele se fazem —, o processo em seu conjunto não se apresentaria como um enigma, apesar da anarquia social, e seriam supérfluas as tentativas para conhecê-lo cientificamente. No melhor dos casos, o conceito de anarquia não é mais do que sinônimo do processo total, enquanto opaco e fragmentado — e, para que seja possível obter alguma explicação, primeiro é preciso analisar o próprio processo.

É por isto que Engels não inicia a sua famosa exposição do caráter contraditório da economia capitalista, no Anti-Dühring, tratando da anarquia: ele parte da transformação dos “produtos, de produtos individuais em produtos sociais” e do que resulta desta transformação — isto é, do fato de que nenhum operário pode dizer: “eu fiz este produto e, portanto, este é meu produto”.25 A causa disto é a divisão do trabalho. Só se pode estudar e compreender o processo total da reificação a partir deste ponto: a conversão da relação entre operário e produto em algo irracional.

Esta conversão permite que as mercadorias possam ser trocadas umas pelas outras no mercado sem que a evocação, mesmo a mais remota, do quantum de valor aderido a elas precise desempenhar qualquer papel. Para saber que era vítima de uma “fraude”, o companheiro das corporações medievais necessitava somente comparar o seu salário semanal — que ele recebia, por exemplo, em troca da entrega de quatro pares de botas por semana — com o rendimento do mestre. (Evidentemente, ele não podia saber, como Marx haveria de demonstrar, que mais-valia e lucro não constituem uma fraude vulgar, mas resultam da diferença entre força de trabalho e trabalho.) Mas, na época do apogeu das corporações, o companheiro aceitava essa “fraude” por considerá-la o preço devido pela aprendizagem e pela sua expectativa de chegar à condição de mestre.

Os operários modernos, em troca, não podem apreender espontaneamente este nexo, mesmo que se esforcem para tanto (exceto se a ciência os auxiliar). A relação entre quantum de trabalho e produto já estava oculta no interior da unidade produtiva em consequência da divisão do trabalho imperante no processo produtivo; e, com maior razão, a mercadoria se autonomiza do homem no mercado, onde o seu valor parece determinar-se segundo meras relações entre coisas, com base, precisamente, em sua prévia autonomização no interior da unidade produtiva. A mercadoria aparece assim como ente natural, não humano, ou coisa “fatal” (no dizer de Marx): em seu movimento imprevisível, ela domina o homem, ao invés de ser dominada por ele. Começa aqui o processo da reificação que, todavia, vai ainda mais além. Com efeito, também o valor do trabalho (que a consciência ingênua não distingue da força de trabalho), mensurado pela quantidade de mercadorias necessárias à sua produção, aparece aqui como um fator que seria determinado por premissas que têm o caráter de coisas — e assim pode engendrar-se a ilusão de que o operário recebe um valor integral em troca do trabalho que ofereceu. (Nos casos em que a miséria leva o operário a supor o contrário, o salário parco lhe aparece como uma fraude vulgar e a sua elevação como eliminação dessa fraude.) “O trabalho aparece — diz Marx — como trabalho pago”. “O valor do trabalho [não é mais do que] uma expressão irracional do valor da força de trabalho”,26 que parece determinar-se segundo relações de valor inteiramente alienadas e reificadas.”

24 K. Marx, Das Kapital, v, 1, p. 331.

25 F. Engels, Die Entwicklung des Sozialismus, ed. cit., p. 46.

26 K. Marx, Das Kapital, ed. cit., v. 1, p. 565 e 564.

 

 

“Decerto, a ingenuidade com que o indivíduo da sociedade capitalista toma por verdadeira a aparência mais reificada dos fenômenos do âmbito parcial lhe deixa, formalmente, a possibilidade de racionalizar cada vez mais a sua atividade e, com isto, reforça o seu sentimento de “liberdade”; mas o impede de compreender a relação entre a parte e o todo, para a qual, ademais, a atomização do processo social em uma infinidade de atos individuais já o tornara cego. Em suma, torna-se irreconhecível para ele o que constitui a condição verdadeira e real da sua ação: o fato de que o processo total que rege o âmbito parcial cancela a sua “liberdade” e orienta (sem que ele o saiba) a atividade individual numa determinada direção, com o auxílio de momentos que em aparência são simples coisas, como o valor (preço) do trabalho, o valor do produto etc. Ao mesmo tempo, isto significa — na medida em que a reificação de determinados momentos do âmbito parcial não é contingente nem arbitrária, mas toma a sua forma concreta às leis do todo — tais momentos (e sem que isto reduza a ilusão da liberdade) se convertem, sem que o indivíduo tenha consciência disto, em elos mediadores entre o âmbito parcial e o todo, ou, o que é o mesmo, na condição para a transformação da atividade subjetiva em legalidade objetiva.

Tomemos como exemplo a relação entre trabalho e produto. Sabemos já que, na produção regida pela divisão do trabalho, o trabalho se autonomiza do seu produto, com o que o seu valor se torna incompreensível. Para a consciência burguesa, o valor que efetivamente se impõe é regido pelos “preços” que se alcançam no mercado, ou seja, segundo regras inescrutáveis que governam o ato da troca na esfera das relações totais — regras que aparecem como próprias da relação, não humana, entre coisas. Por isto, o empresário não gasta seus neurônios com elas: simplesmente pressupõe os valores ditados pelo mercado como condições naturais para o funcionamento do seu âmbito parcial. A relação entre este âmbito parcial e o todo aparece-lhe como engendrada exclusivamente pelo “cálculo” subjetivo e, portanto, não pela sua necessidade imanente sujeita a leis. Ele reconhece esta necessidade somente nos nexos objetivos e supostamente submetidos a “leis naturais”, ou seja, nexos que existem fora da sua atividade e são dela independentes. No interior do seu âmbito direto de atividade, ele considera fatos como o valor ou o preço do trabalho e do produto unicamente como a premissa geral da sua atividade, premissa que é própria ao mundo das coisas tanto quanto às coisas naturais de que necessita.

Esta incapacidade (resultante do processo descrito) para perceber a conexão legal entre a atividade subjetiva e o movimento objetivo do todo acentua o sentimento de “liberdade”, mas, ao mesmo tempo, também o sentimento de estar submetido a poderes indomáveis. Esta contradição — que, na realidade, não é mais do que uma contradição dialética que se apresenta no interior da unidade de subjetividade e objetividade — se reflete na consciência reificada do indivíduo burguês como antinomia insuprimível. Por isto, o indivíduo não tem consciência de que a natureza e o sentido da sua atividade aparentemente “livres” estão, na verdade, submetidos, a cada instante, à necessidade objetiva. Eis como isto ocorre: o indivíduo — precisamente na medida em que sua atividade dirigida à racionalização do âmbito parcial parte de fenômenos que, aparentemente, fazem parte do mundo da natureza e das coisas — coloca “livremente” como base desta atividade apenas aquelas metas que lhe são ditadas pelo movimento econômico (sujeito a leis) do todo, precisamente através da mediação destes fenômenos que, em essência, permanecem desconhecidos para ele. E é o “cálculo” que cria aquele espaço para o jogo do pensamento, espaço em cujos limites, e de um modo não consciente para o indivíduo, se opera a adequação entre “liberdade” individual e necessidade objetiva.”

 

 

“Entre outras coisas, o que interdita ao pensamento burguês o caminho para a compreensão da totalidade é o fato de o todo lhe aparecer como um sistema de relações entre efetividades sujeitas a leis no sentido da lei natural, frente às quais o pensamento se comporta extrinsecamente, de modo contemplativo. Tão logo o pensamento — que, como sabemos, é apenas um elemento necessário da atividade subjetiva que opera no objetivo — exclui a si mesmo da totalidade por via da contraposição entre ser e pensamento, o todo se converte previamente em parte, que a teoria burguesa acaba, porém, por confundir com o todo. Nisto reside o segredo, por exemplo, dos limites com que colidem os inúmeros sistemas da sociologia burguesa empenhada na busca de “leis”. A proclamação da liberdade e da função onímoda do pensamento (história, filosofia, ciência jurídica, ética), independentemente e à parte das ciências voltadas para o esclarecimento das leis (sociologia, economia política, psicologia social), apenas exprime a impotência para a apropriação teórica da realidade. Esta cisão das ciências, ainda que só em sua aparência externa, é uma prova a mais da incapacidade do pensamento burguês para conceber como unidade a subjetividade e a objetividade, a atividade e a lei, o pensamento e o processo objetivo. Assim como a atitude contemplativa resulta da fixação na ilusão categorial, a aceitação desta é, ao mesmo tempo, resultado daquela fixação: são equivalentes. Para semelhante modo de pensar, o pensamento aparece tão alheio à lei como esta àquele. A realidade se divide na esfera da necessidade e na esfera da liberdade. E, no interior desta última, a dilaceração continua, pois não apenas se distingue o homem praticamente ativo do “pensador” puro, mas ambos são concebidos como opostos não mediados. No entanto, apesar dessa identidade entre atitude contemplativa e reificação, que acabamos de assinalar, é mais correto afirmar que o aprisionamento do pensamento burguês àquela atitude não é a causa da sua incapacidade para superar a reificação; esta causa reside no fato de que este pensamento é prisioneiro da reificação, que constitui a causa da incapacidade para superar a contemplatividade. De qualquer forma, não há dúvida de que, no interior desta relação, o modo de pensar contemplativo constitui o limite metodológico que impede que se verifique a estrutura reificada da consciência burguesa.”

 

 

“Com efeito, a dialética requer que se tenha continuamente em conta a totalidade do concreto e a riqueza qualitativa do processo, que ela concebe como unidade dialético-contraditória do múltiplo — e esta exigência, em suma, é a de que se tenha em conta a plenitude dos “fatos”.”

 

 

“O materialismo histórico, como toda dialética e precisamente porque constitui um sistema dialético, é necessariamente “individualizante” e generalizante” ao mesmo tempo. Com efeito, os momentos e suas propriedades qualitativas singulares aparecem nele como inelimináveis em sua individualidade, como momentos que, no interior do todo e através dele, se põem e se cancelam dialeticamente. Em todo caso, o problema que se coloca é o seguinte: de que modo o materialismo histórico consegue apreender, ao mesmo tempo, os momentos na sua particularidade qualitativa e na sua generalidade no interior de uma lei, isto é, submetidos a uma abstração legal?

A concepção materialista da história o consegue mediante a sua apreciação — radicalmente diversa de qualquer outra corrente histórica ou sociológica — do papel da transformação das circunstâncias no processo histórico e da sua consequente importância para o conhecimento da sociedade. Se, no conceito não dialético de lei, como o sabe qualquer lógico, há que abstrair continuamente a transformação para que se possa formular o próprio conceito de lei, na dialética ocorre exatamente o contrário. O traço que diferencia o conceito de lei do materialismo histórico de qualquer sociologia consiste na inclusão do momento da transformação das condições econômicas (ou seja, a sua dinâmica) na lei, com o que ele se liberta de qualquer rigidez metafísica e se qualifica para apreender dinamicamente o processo. Esta abertura para considerar a transformação, o processo e as condições econômico-dinâmicas que o produzem permite conceitualizar cada manifestação em sua singularidade, que se determina pelo lugar que lhe cabe no movimento, como também em sua dependência e universalidade, explicável igualmente pelo mesmo determinismo do processo.

Nesta concepção dinâmica da realidade, própria de toda dialética, o singular é concebido ao mesmo tempo em sua determinação pelo todo, em sua universalidade; o singular, portanto, não apenas é conservado; precisamente porque é concebido como momento de um todo que se move a si mesmo, que põe os momentos contraditórios e os supera, é reconhecido também em sua essência oculta ao pensamento não dialético. E somente aqui revela a sua verdadeira função histórica, dissimulada sob a aparência dos “fatos”, função na qual reside justamente a sua essência. Quando o pensamento burguês se esforça por descobrir também a essência das manifestações singulares (isto é, quando não se resigna a colecionar fatos “puros ou a passar à generalização sociológica desprezando a manifestação singular), evade-se para a interpretação subjetiva ou para a construção metafísica, o que é equivalente. O materialismo histórico resolve este problema na medida em que, por um lado, procura as premissas concretas para uma abordagem dinâmica da história mediante a sua teoria (extraída da realidade) da contradição, continuamente renovada, entre as forças produtivas e as relações sociais e da subversão de toda a sociedade, resultante da solução desta contradição; e, por outro lado, concebe o caráter dinâmico da sociedade, assim compreendido, como ao mesmo tempo constituído de tal modo que, através dele, os momentos aparecem necessária e essencialmente referidos uns aos outros. Com isto, o materialismo histórico descobriu o princípio com cuja ajuda tais momentos podem ser conceitualizados, tanto em sua singularidade quanto em sua superação no todo. Assim, o princípio dialético da articulação entre singularidade e universalidade, que permite desvelar a essência dos fenômenos, eleva-se à condição de princípio teórico da abordagem dialética da história. É, portanto, infundada a censura de Rickert, para quem o materialismo histórico não reconheceria nos fenômenos o singular, sacrificado no altar da sua sujeição a uma lei; ao contrário, o materialismo histórico reforça a sua cognoscibilidade remetendo os “fatos” (apreensíveis pelo entendimento metafísico apenas no seu isolamento) ao processo contraditório da totalidade, do qual eles emergem — e esta remissão foi preparada, no plano do método, pela teoria da dialética.”

 

 

“Como ser dotado de vontade e que, portanto, só age pela mediação desta, o homem possui a faculdade de dirigir a sua ação para fins que escolhe. Esta faculdade, própria da consciência e que distingue radicalmente o homem do animal (que só possui instinto), proporciona-lhe o sentimento da autonomia, da liberdade. Este sentimento — que poderíamos chamar de “vivência” — é uma condição psicológica posta pelo fato de que o homem, em sua ação, sempre se propõe determinados fins, condição sem a qual este comportamento seria impossível. Sem esta vivência da liberdade não haveria interesse em iniciar discussões, tomar decisões e propor-se fins: o homem não se distinguiria do animal, cujo comportamento é meramente instintivo. Se consideramos, então, o indivíduo isolado, necessariamente surge a ilusão da liberdade incondicionada da vontade. Mas o resultado é muito diferente se o estudamos em sua conexão, não isoladamente, mas no interior da sua vinculação social. A vivência da liberdade da vontade, própria da consciência, revela seu outro aspecto, que resulta da relação social com o próximo e com a sociedade em seu conjunto e entra em contradição dialética com a liberdade: o homem se adequa às possibilidades objetivas que colocam determinados limites às suas decisões e à ação nela baseada — e o faz através da sua própria vontade e, ao mesmo tempo, determinado pelas condições gerais da existência, que transcendem a sua vontade subjetiva. Isto é: no circuito do social, o homem submete-se à causalidade. Mas a causalidade social de nenhum modo elimina a faculdade de escolher entre diversos fins: não elimina a consciência da liberdade. No entanto, a vinculação do homem às condições de vida vigentes para ele e que existem independentemente da sua vontade (ou seja, a cadeia causal a que o homem está submetido) serve-se precisamente daquela faculdade para se impor: com efeito, a relação entre liberdade e causalidade representa apenas a relação entre subjetividade e objetividade, constitutiva de todo o social, mas agora considerada do ângulo psicológico e não do ponto de vista da sociedade.

Portanto, embora a consciência, que distingue o homem do animal enquanto este é impulsionado meramente pelos instintos, se singularize pela propriedade da vontade, o homem não é apenas um volitivo: é também um ser dependente de condições que existem fora da sua vontade. E, assim como as condições sociais objetivas constituem o permanente estímulo para que a vontade se decida “livremente” num sentido determinado, esta decisão é, por sua vez, a condição para que se engendrem as relações sociais objetivas. O ininterrupto processo de conversão dialética da subjetividade em objetividade — e o seu inverso — representa a forma de existência mais geral da sociedade; e qualquer tentativa de explicar um fenômeno da vida humana prescindindo dele tem por resultado aquelas determinações rígidas, unilaterais e deformadoras que se contradizem permanentemente entre si e constituem o motivo dessas intermináveis polêmicas que não chegam a nada porque, a partir da premissa falsa do pensamento metafísico, todas as opiniões em confronto adquirem uma aparência de justificação.”

 

 

“A grande conquista da dialética consistiu em superar a oposição metafísica entre o singular e o universal, concebendo a realidade como processo e incorporando assim a lei da transformação das circunstâncias.”

 

 

“Cada época engendra necessariamente a sua forma particular de ilusão, explicável por sua estrutura econômica e pelas leis que a regem, e esta ilusão se impõe igualmente à consideração retrospectiva, o que dá origem a uma nova dificuldade para o conhecimento da verdadeira essencialidade do passado.”

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