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sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Marxismo e filosofia (Parte III), de Karl Korsch

Editora: UFRJ

ISBN: 978-85-7108-329-5

Tradução e apresentação: José Paulo Netto

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 172

Sinopse: Ver Parte I



“De fato, como Lenin compreende a passagem da dialética idealista de Hegel ao materialismo dialético de Marx e de Engels? Compreende-a como a pura e simples substituição da concepção idealista que está na base do método dialético em Hegel por uma outra concepção filosófica, não mais “idealista” e sim “materialista”; e ele parece não suspeitar que uma tal “inversão materialista” do idealismo hegeliano só poderia conduzir, no melhor dos casos, a uma alteração terminológica: o Absoluto já não seria o “Espírito”, e sim a “Matéria”. O materialismo de Lenin, porém, encerra algo ainda mais grave. Ele não anula apenas a última inversão materialista da dialética idealista de Hegel, realizada por Marx e Engels; ele faz retroceder todo o confronto entre materialismo e idealismo a um nível de desenvolvimento histórico anterior ao alcançado pela filosofia idealista alemã de Kant a Hegel. Desde a dissolução da metafísica de Leibniz e de Wolff, iniciada com a filosofia transcendental de Kant e levada a seu termo pela dialética de Hegel, o “Absoluto” fora definitivamente banido do ser (tanto do ser do “espírito” quanto do ser da “matéria”) e transferido ao movimento dialético da “ideia”. A inversão materialista desta dialética idealista de Hegel por Marx e Engels consistiu simplesmente em liberá-la do seu último invólucro mistificador, em descobrir no “automovimento dialético da Ideia” o movimento histórico real aí dissimulado e em proclamar como último e único “Absoluto” este movimento revolucionário.37 Mas eis que Lenin retorna às oposições absolutas entre o “pensamento” e o “ser”, o “espírito” e a “matéria”, já superadas dialeticamente por Hegel e que foram objeto, nos séculos XVII e XVIII, da controvérsia filosófica — e, ainda, em parte religiosa — que opunha as duas tendências da Aufklärung.38

Naturalmente, um tal materialismo, que tem como ponto de partida a representação metafísica de um Ser dado no absoluto, nada tem realmente a ver — apesar de todas as insistências formais — com uma concepção dialética universal e sobretudo dialético-materialista. Lenin e os seus seguidores transportam unilateralmente a dialética ao objeto (vale dizer, à natureza e à história) e descrevem o conhecimento como simples reflexo e reprodução passivos deste ser objetivo na consciência subjetiva; assim, suprimem efetivamente toda relação dialética entre o ser e a consciência e, por uma consequência necessária, entre a teoria e a práxis. Não contentes em pagar, desta forma, um involuntário tribulo ao “kantismo” que tinham ardentemente combatido, não contentes em fazer retroceder a questão das relações entre a totalidade do ser histórico e todas as formas históricas existentes da consciência (já postas amplamente pela dialética de Hegel e, especialmente, pela dialética materialista de Marx e de Engels) e de retornar ao problema “gnosiológico” muito mais limitado das relações entre o objeto e o sujeito do conhecimento, eles concebem este conhecimento como um processo evolutivo que se desenrola sem enfrentar contradições fundamentais e como uma progressão infinita em direção a uma Verdade absoluta. Abandonando completamente a concepção materialista dialética que Marx tinha das relações entre a teoria e a práxis, tanto em geral quanto em face do movimento revolucionário, eles retornam à oposição — a mais abstrata possível — entre uma teoria pura que descobre as verdades e uma prática pura que aplica à realidade essas verdades enfim descobertas. “A unidade real de teoria e prática se realiza na transformação prática da realidade pelo movimento revolucionário, que se apoia nas leis de desenvolvimento do real descobertas pela teoria”. É com este dualismo, que corresponde cabalmente às representações do mais vulgar idealismo burguês, que um intérprete filosófico de Lenin (que não se afasta um milímetro da doutrina do mestre) opera a degradação da magistral unidade dialético-materialista da “práxis revolucionária” de Marx.39

Outra consequência inevitável dessa deliberada ênfase no materialismo às expensas da dialética é a esterilidade dessa filosofia materialista em face do desenvolvimento efetivo das ciências sociais e das ciências da natureza. De fato, tornou-se moda, no marxismo ocidental, enfatizar o “método” materialista dialético e os resultados obtidos graças a ele nas ciências e na filosofia, mas esta atitude ignorava totalmente o espírito da dialética, sobretudo da dialética materialista. Com efeito, para uma concepção dialética, método e conteúdo são inseparáveis e, segundo a fórmula bem conhecida de Marx, “a forma não tem valor se não é a forma de um conteúdo’’.40 Subjaz àquela ênfase, todavia, a ideia inteiramente correta de que a importância assumida pelo materialismo dialético, desde a metade do século XIX, nas ciências sociais e nas ciências da natureza diz respeito, antes de mais nada, ao seu método.41

37 Ver, de uma parte, a conhecida passagem do posfácio à segunda edição de O capital, de 1873, e, de outra, nos parágrafos introdutórios do seu Ludwig Feuerbach, a apreciação de Engels sobre “a significação real e o caráter revolucionário” da filosofia de Hegel, que ele considera como “o coroamento de todo o movimento filosófico iniciado com Kant”. Nas frases iniciais de Ludwig Feuerbach: “O conservadorismo desta concepção é relativo; seu caráter revolucionário é absoluto; é o único absoluto que ela deixa de pé” [ver, na ed. bras. cit., p. 172-173]. É desnecessário observar que o termo absoluto tem, seja em Engels, seja em nosso próprio texto, um sentido figurado — precisamente quando, de repente, Lenin e os seus recomeçaram a falar alegremente de um Ser absoluto e de uma Verdade absoluta num sentido que nada tem de figurado!

38 Ver, na Fenomenologia do espírito, a notável crítica histórica — a despeito da inevitável mistificação idealista nela contida — que Hegel dirige contra as duas tendências da Aufklärung nos séculos XVII e XVIII: “Um dos iluminismos denomina essência absoluta esse absoluto sem predicados que está para além da consciência efetiva no pensamento do qual se partiu; o outro, o chama matéria. Se fossem distinguidos como Natureza e Espírito ou Deus, faltaria então ao existir carente de consciência de si mesmo, para ser natureza, a riqueza da vida desenvolvida; e faltaria ao Espírito ou Deus a consciência que em si mesma se diferencia. Os dois são pura e simplesmente o mesmo conceito, como vimos. A diferença não reside na Coisa, mas puramente apenas nos diversos pontos de partida das duas formações, e no fato de que cada uma se fixa em um ponto próprio no movimento do pensar. Se fossem mais adiante, teriam de se encontrar e de reconhecer como o mesmo o que para um — como ele pretende — é uma abominação e, para o outro, uma loucura” [G. W. F. Hegel. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, v. 2, p. 89]. Ver também, em A sagrada família, a crítica materialista que Marx dirige não a esta apresentação de Hegel do materialismo e do teísmo como “as duas partes de um só e mesmo princípio”, mas ao ralo xarope que dela extrai Bruno Bauer (Nachlass, v. 2, p. 231 e ss. [ver K. Marx e F. Engels. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 143 e ss.]).

39 Ver, de um lado, as Teses sobre Feuerbach, de Marx (1845) e, de outro, a exposição da relação “dialética” entre teoria e práxis revolucionária por A. Deborin, na sua anticrítica contra Lukács (“Lukács und seine Kritik des Marxismus” [citado supra, na nota 28], p. 640 e ss.). Seria supérfluo demonstrar detalhadamente que Lenin vincula resolutamente a teoria de Marx a uma concepção não dialética, o que se pode constatar em cada linha da sua obra filosófica; observemos apenas que, nessa obra, cujas quase quatrocentas páginas tratam das relações entre o ser e a consciência, ele as toma somente a partir do ponto de vista gnosiológico mais abstrato. Ele jamais situa o conhecimento no mesmo plano das outras formas histórico-sociais da consciência, jamais o examina como fenômeno histórico, como “superestrutura” ideológica da respectiva estrutura econômica da sociedade (ver o prefácio de Marx à Crítica da economia política) ou como simples “expressões gerais de relações efetivas de uma luta de classes que existe” (Manifesto comunista...) [ver K. Marx e F. Engels. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998, p. 21].

40 Ver Nachlass, v. 1, p. 319. [Esta exata fórmula de Marx, a que Korsch retornará, encontra-se em texto não vertido ao português — precisamente num dos artigos da série em que, na Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), Marx analisou os debates da VI Dieta renana acerca da lei sobre os roubos de lenha (edição de 3 de novembro de 1842).]

Isto foi reconhecido à época pelo mestre de Lenin em filosofia, o teórico russo Plekhanov, considerado durante algum tempo por toda a ortodoxia marxista do Ocidente e do Oriente como a verdadeira autoridade em todas as questões filosóficas do marxismo. Por exemplo, ele escreve em Questões fundamentais do marxismo (publicado em alemão em 1913 [ed. bras.: Rio de Janeiro, Vitória, 1956]), quando passa da exposição da filosofia materialista à discussão do método materialista dialético e de sua aplicação às ciências da natureza e às ciências sociais: “A concepção materialista da história tem, antes de tudo [!], uma significação metodológica”. No plano filosófico, as relações entre Plekhanov e Lenin são tais que é o discípulo que, aceitando cegamente o essencial das doutrinas do mestre, leva-as às últimas consequências, desembaraçando-se de quaisquer outras considerações. É, pois, historicamente inexato descrever como uma consequência do seu “desvio socialpatriótico” durante a guerra a “revisão”, por Plekhanov, em seu último período, e por sua discípula Axelrod-Orthodox, de suas concepções filosóficas anteriores “no sentido de uma aproximação à filosofia de Kant”, como o fazem os bolcheviques, mas também, por exemplo, o menchevique de esquerda Schifrin (ver o seu estudo crítico sobre o “marxismo soviético”, em Gesellschaft, v. 4, n. 7, p. 46 e nota 6). Na realidade, Plekhanov, já antes e em particular nas primeira e segunda edições (1902 e 1905) da sua tradução de Ludwig Feuerbach, de Engels, estava próximo — muito mais do que Lenin em qualquer momento — da teoria do conhecimento tingida de kantismo de alguns cientistas modernos. Ver, na nota 7 da edição alemã de Materialismo e empirio-criticismo, as duas formulações da “teoria dos hieróglifos” de Plekhanov; o autor desta nota, L. Rudas, retomando servilmente a concepção que Lenin sustentava por razões táticas, apresenta a segunda fórmula como uma retificação do que, na primeira, seria “equívoco”. Mas, quando se comparam as duas fórmulas de modo científico e imparcial, conclui-se que Plekhanov, em 1905, quando recusa à coisa em si “qualquer forma” fora da sua ação sobre nós, é, no mínimo, tão agnóstico no sentido leninista do termo como quando, em 1902, caracteriza as nossas sensações como “uma espécie de hieróglifos” que, sem serem semelhantes aos eventos, “traduzem, todavia, de um modo perfeitamente correto tanto os próprios eventos quanto — e isto é o essencial — as relações que mantêm entre si”. A única vantagem desta última fórmula sobre a primeira é que ela “não faz qualquer concessão terminológica aos adversários” e, portanto, que a incompreensão total do problema gnosiológico sobre o qual repousa toda a teoria dos hieróglifos torna-se menos visível sob estas novas vestes. Detive-me, detalhadamente, sobre esta questão no meu Auseinandersetzung mit Kautsky, p. 111 e ss. [A edição portuguesa citada de Materialismo e empiriocriticismo não contém a nota de Rudas mencionada por Korsch; mas há referência à questão, na nota editorial 75, p. 283-284.]

 

 

“Eis por que declaramos expressamente que a continuação da luta proletária revolucionária — que, em Marxismo e filosofia, designamos como “ditadura ideológica” — distingue-se por três aspectos do sistema de opressão intelectual que, em nome do que se chama “ditadura do proletariado”, se exerce hoje na Rússia. Em primeiro lugar, ela é uma ditadura do proletariado, não uma ditadura sobre o proletariado. Em segundo lugar, é uma ditadura da classe, não do Partido ou dos dirigentes do Partido. Enfim, e acima de tudo, é uma ditadura revolucionária, um simples elemento no processo de transformação social radical que, com a supressão das classes e dos seus antagonismos, cria as condições para a “extinção do Estado” e, simultaneamente, para a supressão de toda coerção ideológica. Assim compreendida, a “ditadura ideológica” tem por tarefa essencial suprimir as suas próprias causas materiais e ideológicas, tornando-se ela mesma inútil e impossível. E o que distinguirá, desde o primeiro dia, esta ditadura proletária autêntica de todas as suas contrafações é que ela não criará somente as condições de uma tal liberdade espiritual para “todos” os trabalhadores, mas também para “cada um deles” tomados como tais — liberdade que jamais existiu, em qualquer parte, para os escravos assalariados do capital, oprimidos física e intelectualmente na sociedade de classes burguesa, a despeito de toda “democracia” ou “liberdade de pensamento” que se possa invocar. Esta concretização do conceito marxiano de ditadura proletária revolucionária faz desaparecer a contradição que, sem esta determinação mais precisa, pareceria subsistir entre a exigência de uma “ditadura ideológica” e o princípio essencialmente crítico e revolucionário do método materialista dialético e da concepção comunista do mundo. Tanto nos seus fins quanto nos seus meios, o socialismo é um combate pela realização da liberdade.

 

 

(Korsch comenta aqui o famoso trecho do prefácio de 1859 de Para a crítica da economia política, que pode ser acessado nesse link.)

“Como Marx assinala expressamente, não se deve procurar nessas frases, tal como se apresentam, mais que um “fio condutor” para o estudo dos dados empíricos (isto é, históricos) da vida social do homem; posteriormente, Marx manifestou-se mais de uma vez contra os que nelas procuraram ver algo mais que aquele “fio condutor”.

Contudo, é indubitável que, por trás dessas frases, há mais do que elas exprimem imediatamente. Não apreenderemos todo o seu sentido se nos limitarmos a ver nelas o enunciado hipotético de um “princípio heurístico”. Elas contêm o essencial do que Marx escreveu antes e depois e nelas se encontra o que merece — mais do que qualquer das pretensas “filosofias” produzidas pela época burguesa moderna — o título de “visão filosófica” de mundo. De fato, a rígida separação entre a teoria e a práxis, que justamente caracteriza essa época, e que a filosofia da Antiguidade e da Idade Média desconheceu, é aqui, pela primeira vez nos tempos modernos, completamente superada (o que Hegel já preparara, ao elaborar o seu método dialético). Páginas atrás, citamos algumas palavras de uma célebre passagem do Manifesto comunista concernentes à significação das “concepções teóricas” no sistema do comunismo marxista:

[...] as concepções teóricas dos comunistas não repousam sobre ideias, princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. Elas apenas exprimem, em termos gerais, as condições reais de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve sob nossos olhos.

Eis aqui a antítese exata da ideologia burguesa, que repousa sobre os princípios e os ideais teóricos considerados como essências ideais válidas em si mesmas, autônomos em face da realidade comum, terrena e material, de sorte que o mundo pode ser melhorado a partir de uma Ideia que lhe é exterior. Tais palavras do Manifesto comunista encontram fundamentação, a mais precisa e detalhada, nas onze Teses sobre Feuerbach, redigidas por Marx para a sua “clarificação pessoal”, em 1845, mais tarde dadas à luz por Friedrich Engels como um apêndice de suas próprias ideias filosóficas (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, 1888). As onze Teses sobre Feuerbach contêm muito mais do que “o embrião genial da nova concepção de mundo”, que é como Engels as apresenta. Nelas se encontra, com um audacioso rigor e uma luminosa clareza, toda a concepção filosófica fundamental do marxismo. Sob esses onze golpes sabiamente dirigidos, vemos destruídos todos os suportes em que se apoiava a filosofia burguesa. Marx não se detém minimamente no dualismo banal entre pensamento e ser, vontade e ação, que ainda hoje caracteriza a filosofia vulgar da época burguesa — ele empreende imediatamente a crítica dos dois grandes grupos de sistemas filosóficos que já tinham aparentemente ultrapassado, no interior do mundo burguês, esse dualismo: de um lado, o sistema do “materialismo” anterior, que culmina em Feuerbach; de outro, o sistema do “idealismo” de Kant-Fichte-Hegel. Ambos têm seu caráter equivocado posto a nu e, em seu lugar, surge o novo materialismo que dissipa todos os mistérios da teoria de um só golpe ao situar o homem, como ser ao mesmo tempo pensante e atuante, no mundo; e ao tomar agora a objetividade do mundo em seu conjunto como o “produto” da “atividade” do “homem socializado” (vergesellschafteten). Esta inflexão filosófica decisiva se exprime de modo mais conciso e significativo na oitava tese: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão desta prática”.5

Para compreender o que há de verdadeiramente novo nesta concepção de Marx, é necessário tomar consciência do que a distingue, de um lado, do “idealismo” e, de outro, do “materialismo” que a precederam. Em oposição ao “idealismo”, que, mesmo na filosofia hegeliana da identidade, contém sempre visivelmente o “além” como momento principal, o “materialismo” de Marx situa-se sempre no âmbito de um “aquém” plenamente realizado: não apenas todos os “ideais” ético-práticos, mas igualmente todas as “verdades” teóricas têm, para Marx, uma natureza estritamente terrena. Que os deuses eternos cuidem das verdades divinas e eternas! Todas as verdades que disseram ou dirão respeito a nós, seres terrenos, são de natureza terrena e, portanto, estão submetidas — sem qualquer privilégio — à “caducidade” e a todas as outras chamadas “insuficiências” dos fenômenos terrenos. Contudo, de outra parte e ao contrário do que frequentemente imaginou o antigo “materialismo”, nada no mundo do homem é um ser morto, um jogo cego de forças inconscientes e de matéria sem sentido — assim como não o são as “verdades”. Todas as “verdades” humanas são sobretudo, como o próprio homem que as pensa, um produto — e um produto humano, à diferença dos chamados puros “produtos da natureza” (que, enquanto naturais, não podem ser, no sentido próprio da palavra, “produtos”!). Elas são, pois, em termos mais precisos, um produto social, criado ao mesmo tempo que outros produtos da atividade humana pela cooperação dos homens no marco da divisão do trabalho, nas condições naturais e sociais de produção de uma época determinada da história da natureza e da história humana.

Temos, agora, a chave de toda a “concepção materialista da sociedade” de Karl Marx. Todos os fenômenos do mundo real em que se desenvolve a nossa existência de seres pensantes e de seres atuantes — ou de seres ao mesmo tempo pensantes e atuantes — dividem-se em dois grupos principais: de uma parte, pertencemos (nós e tudo quanto existe) a um mundo que podemos considerar como “natureza”, um mundo “não humano”, totalmente independente do nosso pensamento, da nossa vontade e da nossa ação; de outra parte, enquanto seres capazes de pensar, querer e agir, estamos situados num mundo sobre o qual exercemos uma ação prática, cujos efeitos práticos experimentamos e que, portanto, podemos considerar essencialmente como nosso produto, da mesma forma que somos produto dele. Entretanto, esses dois mundos, o mundo natural e o mundo da prática histórica e social, não existem separadamente — constituem, na realidade, um só mundo —, e a sua unidade advém de que ambos estão envolvidos na existência passiva-ativa dos seres humanos, que continuamente reproduzem (pela sua atividade coletiva no marco da divisão do trabalho e pelo seu pensamento) o conjunto da sua realidade. Mas o vínculo entre esses dois mundos assim considerados só pode residir na economia ou, mais exatamente, na “produção material”; Marx o disse expressamente numa “Introdução geral” à sua crítica da economia política, “esboçada” em 1857 também para o seu “esclarecimento pessoal”:6 a vida histórica e social do homem se constitui, se renova e se desenvolve sob a interação de múltiplos fatores e, dentre todos estes, é o processo de produção material que os “vincula” a todos entre si e os organiza numa unidade real.”

5 [Ver K. Marx e F. Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007,p. 534 e 539.]

6 Esta “Introdução”, que nos oferece o resumo mais profundo das premissas da investigação de Marx, foi publicada pela primeira vez na Neue Zeit, v. 21,n. 1, p. 710 e ss. [Ver, supra, a nota 35, no capítulo “Marxismo e filosofia”.]

 

 

“Já é tempo de colocar um ponto final na concepção superficial que visualiza o trânsito da dialética de Hegel à dialética de Marx como uma operação tão simples que se poderia efetivar meramente por uma “inflexão” ou “inversão” de um método que, quanto a todo o resto, permaneceria inalterado. É verdade que há passos muito conhecidos de Marx nos quais ele caracteriza a diferença entre o seu próprio método e o de Hegel dessa maneira abstrata, como uma simples contraposição. Mas se penetrarmos na práxis teórica de Marx, ao invés de determinar a essência do seu método a partir de citações, rapidamente veremos que aquele “trânsito” metodológico — como todas as passagens desta natureza longe de aparecer como uma inflexão puramente abstrata, envolve um conteúdo concreto de enorme riqueza.

Ao tempo em que a economia clássica desenvolvia a lei do valor sob a forma “mistificada”, abstrata, a-histórica que Ricardo lhe conferira, a filosofia alemã tentou, também ela de forma mística e abstrata, superar intelectualmente os limites do pensamento burguês. Assim como a lei do valor de Ricardo, o “método dialético” — elaborado, como tal lei, à mesma época revolucionária da sociedade burguesa — transcende esta sociedade nas suas consequências (do mesmo modo como o movimento revolucionário prático da burguesia já a ultrapassa parcialmente, em seus fins, enquanto o movimento revolucionário proletário ainda não se constitui “autonomamente”). Mas todos os conhecimentos adquiridos graças à economia e à filosofia burguesas permanecem, em última análise, conhecimentos “puros”: seus conceitos são o “ser restabelecido”, e suas teorias, o mero “reflexo” passivo deste ser, puras “ideologias” no sentido mais estrito e preciso desta palavra em Marx. A ciência econômica e a filosofia burguesas podiam reconhecer as “contradições”, as “antinomias” da economia e do pensamento burgueses e até torná-las transparentes; mas, no fim das contas, tinham de deixá-las subsistir. Essa espécie de encantamento só pode ser rompida pela nova ciência do proletariado, que não é nem pretende ser, como a ciência burguesa, uma “pura” ciência teórica, e sim, ao mesmo tempo, uma práxis revolucionária (umwälzende Praxis). A economia política de Karl Marx e a dialética materialista do proletariado conduzem, na sua implementação prática, à resolução daquelas contradições na realidade da vida social e, por sua vez, do pensamento, que dela é parte constitutiva. Compreende-se, assim, que Karl Marx atribua à consciência de classe proletária e ao seu método dialético-materialista uma força que o método da filosofia burguesa jamais teve, inclusive em sua forma última, a mais rica e mais elevada, a de Hegel. Somente o proletariado mostra-se capaz, mediante o desenvolvimento da sua consciência de classe, tornada tendencialmente prática, de superar o limite de uma última “Imediaticidade” ou uma última “Abstração” — limites que subsistem e se tornam manifestos nas suas contradições insuperáveis no marco da perspectiva de um conhecimento puro e mesmo da dialética idealista de Hegel. É aqui — e não numa mera “inflexão” ou “inversão” abstratas — que reside o desenvolvimento revolucionário da dialética idealista e da filosofia burguesa clássica em uma dialética materialista, dialética que Marx estabeleceu teoricamente como método da ciência e da práxis novas do proletariado e que Lenin empregou teórica e praticamente.

Ora, se se considera sob este ponto de vista o “trânsito” da dialética burguesa de Hegel à dialética proletária de Marx e Lenin, verifica-se que é absurdo pensar a concepção da dialética materialista como um “sistema” autônomo. Somente um dialético idealista pode pretender autonomizar todas as formas do pensamento (determinações, categorias) — de que, por uma parte, fazemos uso consciente na práxis, na ciência e na filosofia, e, por outra parte, perpassam instintiva e inconscientemente o nosso espírito — do objeto da intuição, da imaginação e do desejo, com o qual estão ordinariamente envolvidas, para considerá-las em si mesmas, como um objeto particular. O último e maior dos dialéticos idealistas, o burguês Hegel, já denunciara em parte a “falsidade” de um tal ponto de vista e “introduziu o conteúdo na lógica” (ver as precisões feitas no prefácio à segunda edição da Lógica, ed. Lasson, p. 17 e ss.). Mas, para o dialético materialista, este procedimento é absurdo. Uma dialética verdadeiramente “materialista” não pode dizer rigorosamente nada das determinações do pensamento em si mesmas, nem das suas inter-relações, fazendo abstração do seu conteúdo histórico concreto. Apenas de um ponto de vista idealista (isto é, burguês), a dialética poderia — atendendo à demanda de Thalheimer — “esclarecer a relação interna, universal, sistemática, de todas as categorias do pensamento”. Em troca, do ponto de vista materialista, é preciso retomar, a propósito de todas as categorias ou determinações do pensamento em geral, o que Marx observou em relação às “categorias econômicas”: elas não mantêm entre si relações “na ideia” (concepção obscura que valeu a Proudhon a severa censura de Marx), não estão numa “relação interna sistemática”; ao contrário, o seu encadeamento, em aparência puramente lógico e sistemático, é “determinado pelas relações que elas mantêm entre si na sociedade burguesa moderna”. Com a transformação da realidade e da práxis históricas, transformam-se também as categorias do pensamento e todas as suas relações. Negligenciar esta correspondência histórica e pretender enquadrar as determinações do pensamento e suas relações num sistema abstrato significa sacrificar a dialética “materialista”, proletária e revolucionária a um modo de pensar que só teoricamente beneficiou-se da inversão “materialista” e que continua a ser, na realidade prática, a velha dialética “idealista” da filosofia burguesa. A dialética materialista do proletariado não pode ser ensinada de forma abstrata, nem mesmo com a ajuda de pretensos exemplos, como uma ciência particular que dispõe de um objeto próprio. Ela só pode ser aplicada concretamente na práxis da revolução proletária e numa teoria que seja parte constitutiva, imanente e real desta práxis revolucionária.”

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