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sábado, 3 de abril de 2021

Karl Marx: uma biografia (Parte III), de José Paulo Netto

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-438-4

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 816

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Sinopse: Ver Parte I


 

“Nas 23 páginas originais do Manifesto Comunista, Marx e Engels articulam uma argumentação que se desenvolve de modo cristalino, didático e linear. Não nos preocupemos em detalhar essa argumentação – tratemos tão só de aludir a ela para observar sobretudo aspectos que consideramos mais relevantes na apreciação do seu texto.

Na abertura, os autores esclarecem que a razão de ser do panfleto é expor abertamente as concepções e os objetivos assumidos pelos comunistas. Seu primeiro capítulo apresenta uma notável síntese histórica do papel revolucionário da burguesia na construção de um novo mundo; depois de sumariar a grandiosidade do protagonismo burguês, Marx e Engels assinalam as contradições da ordem social por ele constituída e a necessidade da sua superação, postas as novas lutas de classes que nela emergem. No segundo capítulo, abordam a relação dos comunistas com a força social que opera mais consequentemente no sentido dessa superação, a classe operária, formulando uma teoria do partido dos comunistas, concebido não como uma organização à parte ou como um segmento especial ao lado de outros partidos operários, e sim como a fração mais decidida deles, peculiarizada por compreender teoricamente as condições do movimento proletário e representar sempre o interesse desse movimento na sua totalidade; fazem a crítica das instituições da sociedade burguesa e apontam como alternativa a revolução do proletariado, que concretiza “a conquista da democracia pela luta”, e aí formulam, em dez tópicos, as medidas que configuram o programa econômico-social dos comunistas. O terceiro capítulo discute e critica as tendências que, à época, incidiam no movimento operário. O último capítulo trata da relação dos comunistas com os outros partidos e agrupamentos políticos de oposição ao status quo.

Note-se que o Manifesto se inscreve numa tradição histórica e política: a própria forma manifesto não era original em 1848. Se, no plano político, ele não aparece como um raio em céu sereno – de fato, o movimento dos trabalhadores já realizara grandes mobilizações (por exemplo, na Inglaterra, das ações luddistas às greves organizadas pelos cartistas; na França, a insurreição dos trabalhadores da seda em Lyon, em 1831; na Alemanha, a rebelião dos tecelões da Silésia, em 1844) –, no plano programático ele recolhe reivindicações que já estavam generalizadas entre os operários (por exemplo, a demanda da educação pública e gratuita). Por outro lado, muitas das críticas à sociedade burguesa apresentadas no Manifesto já tinham sido avançadas por representantes do chamado socialismo utópico (por exemplo, Fourier).

O Manifesto, todavia, conjuga a sua vinculação à tradição do movimento dos trabalhadores e dos precursores do socialismo com dimensões e características realmente inéditas – ele é, em realidade, tanto um coroamento e uma continuidade daquela tradição quanto uma ruptura em relação a ela. São tais dimensões/características inéditas que, subordinando os componentes de continuidade, fazem dele um documento – teórico e político – objetivamente revolucionário.

A primeira inovação do Manifesto, a meu juízo, é a consideração das lutas de classes como força motriz da dinâmica sociopolítica da sociedade burguesa. Se os historiadores românticos da revolução francesa já a haviam interpretado à luz do confronto entre classes, é no Manifesto que elas são tomadas como centrais nos processos de transformação social. Inscrito na tradição dos manifestos, que vinha pelo menos de Babeuf (Molon, Graco Babeuf, 2002), o documento de 1848 foi o primeiro elaborado a partir da perspectiva de classe do proletariado como dinamizadora da ação política de massas vocacionada a promover transformações revolucionárias – a revolução não é projetada como resultante de golpes de mão de heróis conspiradores (tradição que vinha de Babeuf e encontrava um sucessor da importância de Blanqui): resultante da intervenção sociopolítica das massas, a revolução proletária não é um movimento de minorias, mas da imensa maioria.

A segunda inovação introduzida é que, pela primeira vez, o programa anticapitalista da classe revolucionária é proposto não como a expressão de vontades e desejos generosos e, menos ainda, como um receiturário formulado por visionários ou profetas. O programa da Liga dos Comunistas, resumido nos dez pontos apresentados no Manifesto, vem embasado nas tendências de desenvolvimento inferíveis da realidade da sociedade burguesa: é da análise dessa sociedade que Marx e Engels extraem a viabilidade do programa que propõem[136]. Não há na sua proposição o lastro voluntarista/subjetivista que até então marcava as propostas dos grandes reformadores sociais; a inspiração e o espírito utópicos são deslocados pela investigação teórica de tendências reais e pela prospecção das alternativas concretas nelas contidas – muitos anos depois, Engels observará que esse deslocamento corresponde ao trânsito do “socialismo utópico ao socialismo científico”. Essa concepção, já expressa em momentos anteriores das suas pesquisas[137], é inequivocamente retomada no Manifesto:

As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo nenhum, em ideias ou em princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas expressões gerais de relações efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se processa diante de nossos olhos.

De fato, até seus últimos anos de vida, Marx e Engels recusaram claramente qualquer veleidade utópica, antes ancorando-se no mais profundo senso de realidade. Estreitamente vinculada ao realismo político próprio do pensamento de Marx e Engels – mas realismo que contempla o papel ativo e criador dos sujeitos sociais concretos – está também uma terceira inovação que faz do Manifesto um texto verdadeiramente revolucionário. Antes do documento de 1848, os reformadores sociais e os revolucionários procuravam sustentar as suas propostas ou num determinismo histórico que imaginava a humanidade em marcha inexorável no rumo do progresso, ou numa concepção voluntarista que supunha que a vontade dos homens atuaria livremente, sem quaisquer limites objetivos. Marx e Engels superaram esses dois pontos de partida tradicionais. De um lado, no documento de 1848, rechaçaram o “determinismo do progresso”: recusaram nitidamente a ideia de que a revolução proletária e/ou a nova sociedade (comunista) seriam necessariamente vitoriosas – basta ler, logo nos primeiros parágrafos do capítulo I do Manifesto, o que escreveram: as lutas de classes terminaram sempre “ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou com a destruição das classes em luta”. Mais claro, impossível: a resultante das lutas de classes pode ser um avanço social, mas igualmente pode redundar na mútua destruição dos antagonistas. De outro lado, também abandonaram qualquer concepção apoiada na ideia da onipotência da vontade humana: é visível no texto de 1848, sobretudo no seu primeiro capítulo, que o movimento operário e a sua fração revolucionária atuam a partir do desenvolvimento objetivo do modo de produção capitalista (o nível alcançado pelas forças produtivas, a constituição do mercado mundial etc. nos marcos da propriedade privada burguesa[138]). A vontade revolucionária se constitui nos marcos e limites reais postos pelas condições vigentes na sociedade capitalista (seus coveiros são também produto da burguesia); mas a vontade organizada dos trabalhadores, conhecendo aqueles marcos e limites, pode conceber um factível projeto de transformação social radical e estrutural. Alguns anos depois da publicação do Manifesto, num texto de 1852 (O 18 de brumário de Luís Bonaparte), Marx sintetizou em fórmula célebre as ideias subjacentes a essa concepção da relação entre os limites e as possibilidades dos sujeitos políticos:

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. (Marx, 2011b, p. 25)

A relação determinada que o Manifesto atribui aos homens e suas circunstâncias (na sua posição de autores/atores) tem direta conexão com o caráter do documento: simultaneamente, é expressão teórica do movimento operário e a convocação para a sua organização política; é tanto construção de natureza cognitiva quanto apelo à ação revolucionária. Enfim, cumpre destacar outro traço pertinente e definidor do Manifesto: a concepção internacionalista que satura a sua teoria revolucionária[139]. Com Marx e Engels, a demanda da revolução transcende os espaços nacionais – emerge das contradições postas na sociedade burguesa pelo modo de produção capitalista em macroescala. É evidente que essa concepção não desonera os revolucionários das suas tarefas nacionais: no documento, lê-se que “o proletariado de cada país tem, naturalmente, que começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia”; entretanto, a própria dinâmica capitalista promove o desaparecimento “[d]os isolamentos e [d]as oposições nacionais dos povos” e “o domínio do proletariado fá-los-á desaparecer ainda mais depressa”, porque, mediante a revolução que liquidará o antagonismo das classes no interior das nações, desaparecerá “a hostilidade entre as nações”. Por isso, o Manifesto insiste em que a “unidade de ação do proletariado, pelo menos dos países civilizados, é uma das primeiras condições da sua libertação”.

Escrito por dois pensadores que ainda estavam longe do seu inteiro desenvolvimento e da sua plena maturidade intelectuais (Marx ainda não completara 30 anos e Engels tinha menos de 28), o Manifesto apresenta formulações que seus autores haveriam de retificar e/ou revisar ulteriormente. Indiquemos, para ilustrar, duas delas.

A primeira diz respeito a uma tese muito importante que aparece explícita no documento de 1848: segundo os seus autores, a situação operária, sob o modo de produção capitalista, tende necessariamente a piorar, aprisionando o proletário na rede da degradação das suas condições de trabalho e de vida (leiam-se frases do penúltimo parágrafo do capítulo I do Manifesto, onde se afirma que o “operário moderno”, com o desenvolvimento da indústria, “longe de elevar-se”, “afunda-se cada vez mais, indo abaixo das condições de sua própria classe”, passando a “indigente”). Essa tese, assumida, como já vimos, por Marx na Miséria da filosofia, e conforme a qual o proletário estaria submetido a um inevitável processo de pauperização absoluta, apoia-se numa teoria dos salários que não é consistente; ora, como o mesmo Marx mostrou posteriormente, a pauperização absoluta não é uma tendência irrecorrível do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Marx revisa e retifica essa concepção da pauperização absoluta no Livro I de O capital (1867), operando com uma teoria dos salários mais adequada e elaborada e introduzindo a ideia de pauperização relativa.

A segunda relaciona-se à determinação da própria classe proletária. No Manifesto, essa determinação não se concretiza com uma clara concepção da essência exploradora da relação entre capital e trabalho; embora seja mencionada a posição do proletariado como classe explorada, ele aparece sobretudo como classe oprimida. Marx, ainda sem extrair da teoria do valor que acolhera havia pouco (ele a incorporara, expressa e publicamente, na já citada Miséria da filosofia) as suas implicações basilares, não tem condições de precisar e determinar com rigor a natureza da exploração capitalista – faltam-lhe os instrumentos analíticos e a suficiente crítica da economia política para compreender uma categoria nuclear, a categoria de mais-valia. Só depois, em especial a partir de 1857-1858, ele se qualifica para operar com essa categoria, que em O capital comparece plenamente elaborada.

Questões de outro tipo podem se colocar no que tange ao programa econômico-social dos comunistas proposto no documento de 1848. É certo que a sua formulação/aplicação prática é evidentemente conjuntural. É isso, aliás, que Marx e Engels reconhecem e admitem mal passados 25 anos da publicação do Manifesto: com efeito, para a sua reedição alemã de 1872, os dois escreveram um prefácio no qual afirmam que aquela parte do fim do capítulo II deveria ser “redigida de modo diferente” e justificam tal verificação da seguinte maneira:

Em face do imenso desenvolvimento da grande indústria nos últimos vinte e cinco anos e, com ele, do progresso da organização do partido da classe operária […], este programa está hoje, num passo ou noutro, antiquado. [lxxxi]

Vê-se: Marx e Engels não pensavam que as suas proposições prático-políticas fossem independentes do desenvolvimento das forças produtivas e dos avanços do movimento operário. O fato – por eles consignado nesse prefácio – de considerarem que os “princípios gerais” do Manifesto se conservavam válidos também não deve ser visto como indicador de que seriam intocáveis: na verdade, e isto não diz respeito somente ao documento de 1848, Marx e Engels sempre estiveram abertos e sensíveis a críticas e nunca patrocinaram a sacralização das suas concepções, teses e formulações. Qualquer leitura que se fizesse delas com espírito talmúdico ou fundamentalista lhes era estranha (mormente em sua correspondência dos anos 1880-1890, são inúmeras as passagens em que Engels insiste em que a sua – de Marx e dele – teoria não pode ser tomada “de um modo dogmático, como uma doutrina”, como um “credo”, mas deve ser pensada como um “guia de estudo”). Com efeito, Marx e Engels estiveram dispostos a revisar concepções e teses sempre que o aprofundamento da sua teoria, a prática social, fenômenos e processos emergentes ou novas análises e pesquisas o exigissem.

Precisamente uma tal atitude parece-me dever ser a do leitor contemporâneo do Manifesto, que se aproxima do documento 170 anos depois da sua redação. Ao longo de mais de um século e meio, a sociedade burguesa experimentou grandes transformações (sobre as quais o movimento operário, em suas várias vertentes, incidiu ponderavelmente e que igualmente o modificaram); algumas dessas transformações evidenciam que o Manifesto apresenta, em face da contemporaneidade, limites e insuficiências – vejamos, apenas para sinalizá-los, duas ordens de fenômenos. Em primeiro lugar, o desenvolvimento capitalista desses mais de 170 anos operou uma profunda diferenciação no universo do sujeito revolucionário considerado no Manifesto; embora Marx e Engels, quer no documento de 1848, quer em suas obras posteriores, nunca tenham suposto aquele sujeito, o proletariado, como algo homogêneo, tudo indica que subestimaram a sua heterogeneidade e a sua diferenciação interna. Ora, é certo que a diferenciação hoje existente no interior do proletariado acarreta substantivas implicações no seu comportamento sociopolítico; torna-se necessário, pois, conhecer a estrutura do proletariado contemporâneo para determinar com alguma precisão o seu potencial revolucionário (está fora de questão, aqui, a enganosa retórica do “fim do trabalho”, do “fim da classe operária” etc.). Por outra parte, de acordo com o Manifesto, como se lê no primeiro capítulo, “a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se […] por ter simplificado os antagonismos de classe” – e é fato que a sociedade, como os autores afirmam em seguida, continua polarizada por dois campos hostis (burguesia/proletariado); a prática social contemporânea, no entanto, indica que os “antagonismos de classe” não se verificam como “simplificados” – ao contrário, têm-se tornado muito mais complexos e pluridimensionais.

Não são apenas essas duas alusões, contudo, que sinalizam que o Manifesto tem limites e insuficiências. Pense-se, por exemplo, que se o Manifesto antecipa, premonitoriamente, a explosão revolucionária de 1848, não menciona, em absoluto, a possibilidade do seu fracasso; aliás, a expectativa da revolução a curto prazo marca os escritos de Marx e Engels daquele tempo (só na Contribuição à crítica da economia política, de 1859, Marx compreenderia as razões pelas quais a revolução social cobre o espaço de toda uma “época histórica”). Ou, também, esta outra indicação: o Manifesto dá como que por suposto o internacionalismo do proletariado – e já tivemos suficientes provas de que a constituição de uma consciência política capaz de superar as limitações e os efeitos deletérios das ideologias nacionalistas é, ainda hoje, mais um projeto que um processo[141].

Decisivo, porém, na apreciação do Manifesto, é algo que vai muito além da listagem dos seus limites e eventuais anacronismos: é a verificação de que ele, na sua substancialidade, resistiu vigorosamente às provas da história e do tempo.

É mesmo assombrosa a atualidade desse documento, inteiramente perceptível na sua primorosa antecipação, com precisão cirúrgica, dos principais traços pertinentes à sociedade burguesa madura, nossa contemporânea, que Marx e Engels oferecem ao leitor no primeiro capítulo do Manifesto. Atente-se: nessas páginas, escritas entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, não está a descrição da sociedade burguesa da época, mas a configuração que ela haveria de possuir mais de um século depois, na plenitude do seu desenvolvimento; portanto, a palavra “descrição” não é a mais adequada para denotar a extraordinária (ante)visão de Marx e Engels sobre a sociedade burguesa tardia. Com efeito, vacinados desde jovens contra o empirismo rasteiro e o positivismo medíocre, os dois autores não se restringem a “fotografar” a realidade burguesa – seu método de pesquisa (que, em 1848, ainda não estava suficientemente elaborado) apreende e detecta tendências estruturais, donde a capacidade de antecipar, no plano teórico, elementos que a realidade imediata estava longe de evidenciar. Em 1848, a caracterização que Marx e Engels fazem da sociedade burguesa aparece quase como um exercício de ficção científica, mas, um século e tanto depois, refigura admiravelmente o nosso mundo: como anotou Hobsbawm (Sobre história, 1998, p. 300), “o mundo transformado pelo capitalismo que ele [o Manifesto] descrevia em 1848 […] é reconhecidamente o mundo no qual vivemos 150 anos depois”.

Que a apreensão da realidade profunda da dinâmica da sociedade burguesa já é patente no Manifesto demonstram-no cabalmente as notações referentes ao movimento da economia capitalista. Ainda que sem o embasamento de um pleno domínio da crítica da economia política (pleno domínio que Marx só adquiriria a partir da segunda metade dos anos 1850), aquelas notações – relativas à constituição do mercado mundial, à centralização dos meios de produção e à concentração do capital e da propriedade, ao revolucionário acúmulo das forças produtivas com a incorporação das ciências, à recorrência das crises – desvelam/revelam processos que permanecem ativamente operantes e acentuados na sociedade contemporânea.

A densidade e a solidez teóricas do Manifesto são (ainda que os desenvolvimentos posteriores da pesquisa de Marx e de Engels viessem a lhes oferecer novos fundamentos e revisar outros) elementos que respondem pela resistente atualidade do documento. E a elas também se deve creditar a sua atual relevância política, expressa, por exemplo, numa questão absolutamente crucial: a da concentração/centralização do poder econômico e político. Esta não se restringe tão somente à concepção de Estado que o Manifesto formula (segundo a qual o Executivo do Estado moderno opera como “um comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa”), mas se complementa com a indicação de que a dinâmica capitalista conduz à centralização política[142]. A referida relevância mostra-se, inclusive, como imprescindível orientadora para o posicionamento e a ação políticos na quadra contemporânea, em que, na sequência da crise terminal do “socialismo real”, amplos setores (outrora) comunistas parecem perder-se na perplexidade, na capitulação ou no imobilismo – leiam-se, para verificar a clareza e a contundência dessa orientação, os três parágrafos que precedem imediatamente o último do Manifesto.

Enfim, a relevância atual do documento de 1848 contém-se inclusive nas problemáticas que, sem resolvê-las, ele levanta. Talvez a mais importante delas seja a do caráter democrático dos desdobramentos da revolução que, para o Manifesto, é obra de um “movimento autônomo da imensa maioria no interesse da imensa maioria”; o problema subjacente é o de como articular as necessárias (para a revolução) “intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas” à democracia, que se deverá erguer com “a passagem do proletariado a classe dominante” [29]. Em termos que não os do Manifesto, aqui aflora o problema de como sincronizar a socialização da economia com a socialização do poder político; o documento tem o mérito de instigar à pesquisa do problema, mas não o soluciona, como, aliás, também não o fizeram as experiências pós-revolucionárias do século XX (Cerroni, Teoria política e socialismo, 1976; Netto, Democracia e transição socialista, 1990).

Haveria muito mais a analisar, explorar e questionar no texto de 1848; nos limites deste ensaio biográfico, depois do que expusemos, basta-nos uma avaliação sumária: sem subestimar seus limites e seus eventuais anacronismos, o Manifesto é o documento teórico-político mais importante do pensamento social moderno; é a peça basilar para a compreensão do mundo em que vivemos hoje e, por isso, para todos os homens e todas as mulheres que pretendem transformar este mundo, com a paixão humanista de suprimir a “velha sociedade burguesa, com as suas classes e antagonismos de classes” e substituí-la por “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” – para todos esses homens e essas mulheres, o conhecimento do Manifesto é necessário e indispensável, mas não é suficiente. É preciso partir dele para ir além dele.”

[135] De fato, no Manifesto, essa determinação aparece alargada: “A história de toda a sociedade até hoje moveu-se entre antagonismos de classes, que em diferentes épocas tiveram formas diferentes”.

[136] Ademais, a programática do Manifesto não se apresenta como um receituário de aplicação indiferenciada: seus autores têm clara e plena consciência da desigualdade do desenvolvimento do modo de produção que embasa a sociedade burguesa nos diversos países e que as medidas que propõem, com vistas aos “países mais avançados”, “é claro [que] serão diferentes conforme os diferentes países”.

[137] Recordemos a passagem, já assinalada, dos Manuscritos econômico-filosóficos de Paris (1844), em que se afirma que “o comunismo […] é o momento real, necessário para o próximo desenvolvimento histórico, da emancipação e recuperação humanas” (Marx, 2015, p. 359); ou aquela anotação ao manuscrito de A ideologia alemã, em que se lê que “o comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento […] resultam dos pressupostos atualmente existentes” (Marx-Engels, 2007, p. 38n).

[138] Nesse passo do Manifesto, Marx e Engels recuperam os avanços que alcançaram na Ideologia – como se viu, ali a atenção que conferem à propriedade privada burguesa é determinante. No Manifesto, tal determinação expressa-se inclusive no plano da ação política: ao mencionar o apoio que, em toda parte, os comunistas devem dar a “todos os movimentos revolucionários contra as condições políticas e sociais existentes”, afirmam que devem colocar “em destaque, como a questão fundamental, a questão da propriedade, seja qual for a forma […] que ela possa ter assumido”.

[139] Concepção que assenta em determinações mais explicitadas nos precedentes “Princípios do comunismo”. Indicando que, pela existência do mercado mundial, o desenvolvimento social nos países mais avançados (designados ali como “países civilizados”) tornou a burguesia e o proletariado “as duas classes decisivas da sociedade” e converteu a sua luta “no principal combate dos nossos dias”, Engels escreveu que, “consequentemente, a revolução comunista não será uma revolução puramente nacional: produzir-se-á simultaneamente em todos os países civilizados”, “mais ou menos rapidamente” conforme suas particularidades; mas “exercerá um considerável impacto nos outros países do mundo, alterando radicalmente o curso do desenvolvimento que têm seguido até agora. Trata-se de uma revolução universal e, por isso, terá um âmbito também universal” (Engels, Política, 1981, p. 94).

[140] Ver as cartas de Engels a Friedrich Adolph Sorge (29 de novembro de 1886), a Joseph Bloch (21-22 de setembro de 1890), a Conrad Schmidt (27 de outubro de 1890) e a Walther Borgius (25 de janeiro de 1894), recolhidas respectivamente em MEW, 1967, v. 36 e 1968, v. 38 e 39.

[141] G. Haupt et al., orgs. Les Marxistes et la question nationale, 1974; Pinsky, org., Questão nacional e marxismo, 1980; Galissot, em Hobsbawm, org., História do marxismo, 1984, v. IV; Löwy, Nacionalismos e internacionalismos, 2000; Hobsbawm, Nações e nacionalismo desde 1780, 2008; Paula, A ideia de nação no século XIX e o marxismo, 2008; Arcary, Internacionalismo e nacionalismo, 2009.

[142] Todos esses processos têm sido verificados contemporaneamente por vários estudos, elaborados por pesquisadores dos mais diferenciados quadrantes teóricos. Apenas à guisa de sumaríssima indicação bibliográfica, ver Chesnais, A mundialização do capital, 1996; Dreifuss, A é poca das perplexidades, 1996; Chossudovsky, A globalização da pobreza, 1999; Amin, Más allá del capitalismo senil, 2003; Calabrese e Sparks, orgs., Toward a Political Economy of Culture, 2004; Costa, A globalização e o capitalismo contemporâneo, 2008; Brunhoff et al., A finança capitalista, 2010; Foster et al., The Global Reserve Army of Labor and the New Imperialism, 2011; Nunes, A crise atual do capitalismo, 2012; Piketty, O capital no século XXI, 2014; Montoro, Capitalismo y economía mundial, 2016. Há também úteis materiais publicitados em informes de organizações não governamentais; vide os da Oxfam (Oxford, Reino Unido) e os do Centre Tricontinental (Louvain-la-Neuve, Bélgica); recorra-se ainda aos dados oferecidos pelo WID.world (World Inequality Database).

 

 

A burguesia alemã tinha se desenvolvido com tanta indolência, covardia e lentidão que, no momento em que se ergueu ameaçadora em face do feudalismo e do absolutismo, percebeu diante dela o proletariado ameaçador, bem como todas as frações da burguesia cujas ideias e interesses são aparentados aos do proletariado. E tinha não apenas uma classe detrás de si, diante dela toda a Europa a olhava com hostilidade. A burguesia prussiana não era, como a burguesia francesa de 1789, a classe que, diante dos representantes da antiga sociedade, da monarquia e da nobreza, encarnava toda a sociedade moderna. Ela havia decaído ao nível de uma espécie de casta, tanto hostil à Coroa como ao povo, querelando contra ambos, mas indecisa contra cada adversário seu tomado singularmente, pois sempre via ambos diante ou detrás de si; estava disposta desde o início a trair o povo e ao compromisso com o representante coroado da velha sociedade, pois ela mesma já pertencia à velha sociedade; representando não os interesses de uma sociedade nova contra uma velha sociedade, mas interesses renovados no interior de uma sociedade envelhecida; ao leme da revolução não porque o povo estava atrás dela, mas porque o povo a empurrava à sua frente; na ponta não porque representava a iniciativa de uma nova época social, mas o rancor de uma época social velha; não era um estrato social do velho Estado que havia irrompido, mas tinha sido projetada por um terremoto à superfície do novo Estado; sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de ideias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia em nenhum sentido, plagiária em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – traficando com seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em si mesma, sem fé no povo, sem missão histórico-universal – um ancião maldito que se via condenado a dirigir e a desviar, em seu próprio interesse decrépito, as primeiras manifestações de juventude de um povo robusto – sem olhos! sem ouvidos! sem dentes! sem nada! [61]; assim se encontrou a burguesia prussiana, depois da revolução de março, ao leme do Estado prussiano. (Marx, Nova Gazeta Renana, 2010a, p. 324-5)”

[61] Exclamações extraídas do ato II, cena 7 da comédia shakespeariana Como gostais (Shakespeare, 1969 [1599], p. 527).

 

 

“Cada burguesia tem o Napoleão que faz por merecer, cada uma produz o bonapartismo que está à sua altura histórica.”

 

 

“Marx, é óbvio, não reduz a vida social à produção material, uma vez que tem a plena clareza de que a vida social é muito mais complexa que a produção material[97]: o que ele sustenta é que, sem a análise do modo como os homens se organizam para a (e na) produção das condições materiais da sua existência, a análise da sua vida social vê-se à partida comprometida em suas possibilidades explicativas e compreensivas[98]. E eis que se colocam as questões relativas ao método que essa crítica exige.

Tais questões são tratadas no item 3 da “Introdução”, provavelmente um dos textos mais conhecidos e citados de Marx, não só por ter sido o fragmento dos Grundrisse que primeiro veio a público, ainda nos anos iniciais do século XX, mas também pela sua reconhecida relevância. Nenhuma interpretação substitui, também aqui, a textualidade do próprio Marx – donde a extensa, mas indispensável, citação que se segue. É com ela que o autor abre o item “O método da economia política”.

Se consideramos um dado país de um ponto de vista político-econômico, começamos com sua população, sua divisão em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos de produção, a importação e a exportação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc.

Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado chegaria a conceitos abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações. A primeira via foi a que tomou historicamente a Economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos Estados etc.; mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da análise. Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto. […] a totalidade concreta como totalidade de pensamento, como um concreto de pensamento, é de fato um produto do pensar, do conceituar; mas de forma alguma é um produto do conceito que pensa fora e acima da intuição e da representação, e gera a si próprio, sendo antes produto da elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-mental. O sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação.”

[97] Lukács esclarece que “a produção, enquanto momento predominante, é aqui [na “Introdução de 1857”] entendida no sentido mais amplo possível – no sentido ontológico –, como produção e reprodução da vida humana, que até mesmo em seus estágios extremamente primitivos […] vai muito além da mera conservação biológica, não podendo portanto deixar de ter um acentuado caráter econômico-social. É essa forma geral da produção que determina a distribuição no sentido marxiano. […] Essa constatação remete à teoria geral de Marx, segundo a qual o desenvolvimento essencial do ser humano é determinado pela maneira como ele produz. Até mesmo o modo de produção mais bárbaro ou mais estranhado plasma os homens de determinado modo, um modo que desempenha papel decisivo, em última instância, nas inter-relações entre grupos humanos – por mais ‘extraeconômicas’ que estas possam parecer de imediato” (Lukács, 2012, Para uma ontologia do ser social, v. I, p. 336).

[98] Comprometimento que se registra, por exemplo, na obra de autores clássicos das ciências sociais, como, dentre os que foram citados há pouco, Durkheim e Weber. Nas suas obras encontram-se análises e proposições que oferecem indicações à explicação/compreensão da vida social; dadas, porém, as suas concepções teóricas e metodológicas, conducentes a pensar as relações sociais no marco de uma ciência particular e autônoma, a sociologia (dela excluída precisamente a problemática da produção material, tornada objeto de outra disciplina acadêmica, igualmente particular e autônoma, a economia), eles – mesmo Weber, que, sabe-se, interessava-se especialmente por economia – não foram capazes de elaborar uma teoria social apta a dar conta da articulação entre relações sociais e vida econômica. Para uma crítica de princípio à sociologia como ciência particular e autônoma, ver Lukács, El asalto a la razón, 1968, cap. VI; são úteis, ainda, as reflexões de Goldmann, El hombre y lo absoluto, 1986.

Essa profunda limitação da sociologia, já flagrante nas mãos competentes dos seus clássicos, acentuou-se nas de seus epígonos, de que é exemplo Parsons, 1959 – como o perceberam inclusive críticos não marxistas, como Mills, A imaginação sociológica (1969) e, mais circunstaciadamente, Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology (1970).

 

 

“A análise marxiana acerca do “exército industrial de reserva”, componente da “lei geral” e absolutamente ignorada/desprezada em especial pelos economistas vinculados de forma direta e/ou indireta à apologia da ordem burguesa, continua demonstrando vigorosamente a sua validez também para o capitalismo das duas décadas do século XXI: independentemente das históricas variações das taxas de desemprego e da mutabilidade das suas formas, não há qualquer dúvida de que ainda não foi inventado um capitalismo sem uma massa maior ou menor de população excedentária em face do capital.”

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