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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A Bíblia: uma biografia (I) – Karen Armstrong

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-045-4
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 276
Sinopse: Traduzido em mais de dois mil idiomas, a Bíblia é o livro mais conhecido do mundo. Calcula-se que já tenham sido vendidos mais de seis bilhões de exemplares e ninguém duvida que o conteúdo de suas páginas mudou e continua influenciando nossa história. A brilhante estudiosa do pensamento religioso Karen Armstrong mostra que a principal função da Bíblia não foi apoiar doutrinas e crenças particulares e, embora os autores bíblicos se contradigam, suas visões múltiplas convivem num mesmo livro. Para ela, este é um indício claro de que toda interpretação da Bíblia significa necessariamente abertura de espírito.

“A exegese foi sempre uma disciplina espiritual, não uma atividade acadêmica.”


Shalom, palavra usualmente traduzida por “paz”, mas que significa mais propriamente “totalidade”, “completude”.”


“A leitura de Esdras marca o início de um judaísmo clássico, uma religião interessada não meramente na recepção e salvaguarda da revelação, mas em sua constante reinterpretação¹. A lei que Esdras leu era claramente desconhecida pelo povo, que chorou de medo ao ouvi-la pela primeira vez. Quando expôs o texto, o exegeta não reproduzia a torah original dada a Moisés no passado distante, mas criava algo novo e inesperado. Os autores bíblicos haviam trabalhado da mesma maneira, revendo radicalmente os textos que tinham herdado. A revelação não ocorrera de uma vez por todas; era um processo em curso que poderia nunca terminar, porque havia sempre novos ensinamentos a descobrir.”
1: Fishbane, Garments of Torah, p.64.


“No ano da morte de Filon, houve pogroms contra a comunidade judaica em Alexandria. Em todo o Império Romano, havia um medo muito difundido de insurgência judaica, e em 66 d.C. um grupo de fanáticos judeus orquestrou uma rebelião na Palestina que, inacreditavelmente, conseguiu repelir os exércitos romanos durante quatro anos. Temendo que a rebelião se espalhasse entre as comunidades judaicas da diáspora, as autoridades estavam determinadas a esmagá-la sem piedade. Em 70, o imperador Vespasiano afinal conquistou Jerusalém. Quando penetraram nos pátios internos do templo, os soldados romanos encontraram ali seis mil fanáticos judeus dispostos a lutar até a morte. Quando eles viram o templo pegar fogo, um grito terrível se ergueu. Alguns se jogaram contra as espadas romanas; outros se lançaram nas chamas. Depois que o templo desaparecera, os judeus desistiram e não mostraram nenhum interesse em defender o resto da cidade, contemplando impotentes enquanto os funcionários de Tito demoliam com eficiência o que restara dela¹. Durante séculos o templo se situara no coração do mundo judaico e era central para a religião judaica. Fora destruído ainda uma vez, mas agora não seria reconstruído. Somente duas das seitas judaicas que proliferaram no final do período do Segundo Templo foram capazes de encontrar uma forma de prosperar. A primeira foi o movimento de Jesus, inspirado pelo desastre a escrever um conjunto inteiramente novo de Escrituras.”
1: Dio Cássio, History, 66:6; Josefo, Jewish War, 6:98.


“Os integrantes do movimento liderado por Jesus participavam, juntos, de cultos, todos os dias, no templo,¹ mas encontravam-se também para refeições comunais em que afirmavam sua fé na chegada iminente do reino.² Continuavam a viver como judeus ortodoxos e devotos. Como os essênios, não tinham propriedade privada, partilhavam seus bens de maneira igualitária e dedicavam suas vidas aos últimos dias.³ Parece que Jesus recomendara pobreza voluntária e zelo especial pelos pobres; que a lealdade ao grupo devia ser mais valorizada que laços de família; e que o mal devia ser enfrentado com não-violência e amor.4 Os cristãos deviam pagar seus impostos, respeitar as autoridades romanas e não deviam nem cogitar em luta armada.5 Os seguidores de Jesus continuavam a reverenciar a Torá,6 a guardar o Shabat,7 e a observância das leis dietéticas era uma questão de extrema importância para eles.8 Como o grande fariseu Hillel, contemporâneo mais velho de Jesus, eles ensinavam uma versão da Regra de Ouro, que acreditavam ser o alicerce da fé judaica: “Assim, trate sempre os outros como gostaria que eles o tratassem; esta é a mensagem da Lei e dos Profetas.”9
Sob outros aspectos, contudo, o cristianismo era extremamente excêntrico e controverso. Não havia uma expectativa geral de que o messias morresse e ressuscitasse. De fato, a maneira como Jesus morreu foi uma fonte de embaraço. Como podia um homem que morrera como um criminoso comum ser o Ungido de Deus? Muitos consideravam escandalosas as atribuições de uma condição messiânica a Jesus.10 Faltava também ao movimento o rigor moral de algumas das outras seitas: eles preconizavam que pecadores, prostitutas e aqueles que coletavam os impostos romanos entrariam no reino antes dos sacerdotes.¹¹”
1: (Lc 24:53; At 2:46). / 2: Mateus 26:29; Marcos 14:25. / 3: Atos 4:32-5. / 4: Mateus 5:3-12; Lucas 6:20-3; Mateus 5:38-48; Lucas 6:27-38; Romanos 12:9-13,14; 1 Coríntios 6:7; Akenson, Surpassing Wonder, p.102; Fredricksen, Jesus, p.243. / 5: Mateus 12:17; Romanos 13:6-7. / 6: Mateus 5:17-19; Lucas 16:17. / 7: Lucas 23:56. / 8: Gálatas 2:11-12. / 9: Mateus 7:12; Lucas 6:31; cf. Romanos 13:10; e Shabbat 31a8. . / 10: 1 Coríntios 1:22. / 11: Mateus 21:31.


“Os cristãos judeus investigavam as Escrituras em busca de uma resposta. Como a comunidade Qumran, eles desenvolveram sua própria exegese pesher, esquadrinhando a Torá e os Profetas em busca de referências oraculares a Jesus e aos gentios no Fim dos Tempos. Descobriram que alguns dos profetas haviam predito que goyim seriam forçados, contra sua vontade, a adorar o Deus de Israel, outros acreditavam que eles participariam do triunfo de Israel e jogariam seus ídolos fora voluntariamente1. Assim, concluíram alguns dos cristãos, a presença de gentios provava que aqueles eram de fato os últimos dias. O processo vaticinado pelos profetas começara; Jesus era verdadeiramente o messias e o reino estava próximo.
Um dos mais vigorosos defensores dessa nova escatologia foi Paulo, um judeu de Tarso, na Cilícia, que falava grego e ingressara no movimento cristão cerca de três anos após a morte de Jesus. Ele não conhecera Jesus pessoalmente, e fora de início hostil à seita, mas se convertera por uma revelação, que o convenceu de que christós o designara para ser o apóstolo junto aos gentios.2 Paulo viajou muito na diáspora e fundou comunidades na Síria, na Ásia Menor e na Grécia, determinado a disseminar o evangelho até os confins da Terra antes que Jesus retornasse. Ele escreveu cartas a seus conversos, respondendo às suas perguntas, exortando-os e explicando a fé. Paulo nem por um instante pensou que fazia uma “Escritura”; como estava convencido de que Jesus retornaria ainda durante a sua vida, nunca imaginou que as gerações futuras estudariam cuidadosamente suas epístolas. Era considerado um mestre consumado, mas tinha plena consciência de que seu temperamento explosivo significava que não era apreciado em toda parte. Contudo, suas cartas às igrejas de Roma, Corinto, Galácia, Filipos e Tessalônica3 foram preservadas, e, após sua morte, no início dos anos 60, escritores cristãos que o reverenciavam escreveram em seu nome e desenvolveram suas ideias em cartas às igrejas de Éfeso e Colossos, e redigiram cartas supostamente póstumas dirigidas a Timóteo e Tito, companheiros de Paulo.
Paulo insistia em que seus convertidos gentios deviam renunciar a todos os cultos pagãos e adorar somente o Deus de Israel.4 Mas não acreditava que devessem se converter ao judaísmo, porque Jesus já os tornara “filhos de Deus”, sem circuncisão e Torá. Deviam viver como se o reino já tivesse chegado: zelando pelos pobres e comportando-se com caridade, temperança, castidade e modéstia. O fato de cristãos gentios profetizarem, realizarem milagres e, quando tomados pelo êxtase, falarem línguas estrangeiras – proezas todas características da era messiânica5 – provava que o espírito de Deus estava vivo neles e que o reino chegaria num futuro muito próximo.6
Mas Paulo nunca sugeriu que os judeus devessem cessar de observar a Torá, porque isso os teria posto fora da aliança. Israel recebera a preciosa dádiva da revelação no Sinai, do culto no templo, e o privilégio de serem “filhos” de Deus, desfrutando uma intimidade especial com Ele – e Paulo prezava tudo isso.7 Quando ele invectivava amargamente contra os “judaizantes”, não estava condenando os judeus ou o judaísmo em si mesmos, mas aqueles cristãos judeus que queriam que os gentios fossem circuncidados e observassem integralmente a Torá. Como outros sectários no final do período do Segundo Templo, Paulo estava convencido de que somente ele possuía a verdade.8 Na era messiânica, suas comunidades mistas de judeus e gentios eram o verdadeiro Israel.
Paulo também investigava as Escrituras, cujo significado, ele acreditava, havia mudado desde a vinda do christós. Um salmo, que parecia se referir a Davi, havia falado realmente de Jesus9. “De fato, tudo que foi escrito há tanto tempo nas Escrituras teve o objetivo de nos ensinar alguma coisa.”10 A verdadeira significação da Lei e dos Profetas acabara de vir à luz. Assim, aqueles judeus que se recusavam a aceitar Jesus como o messias não os compreendiam mais. O Sinai deixara de ser crucial. Até então o povo de Israel não havia percebido que o pacto mosaico era apenas uma medida temporária, provisória, de modo que suas mentes haviam ficado “veladas” e eles não tinham podido ver do que tratavam as Escrituras. O véu ainda estava sobre suas mentes então, quando eles ouviam a Torá nas sinagogas. Os judeus precisavam ser “convertidos”, virados ao contrário para que enxergassem corretamente. Então também eles seriam transformados, suas “faces descobertas refletindo como espelhos a glória do Senhor”.11
Nada havia de herético nisso. Os judeus havia muito tempo encontravam novo significado em Escritos mais antigos, e a seita Qumran praticava o mesmo tipo de pesher, descobrindo nas Escrituras uma mensagem secreta que se referia à sua própria comunidade. Quando citava histórias bíblicas para instruir seus conversos, Paulo as interpretava de maneira inteiramente nova. Adão agora prefigurava Cristo, mas enquanto Adão introduzira o pecado no mundo, Jesus pusera a humanidade numa relação correta com Deus.12 Abraão havia se tornado agora não apenas o pai do povo judeu, mas o ancestral de todos os fiéis. Sua “fé” (grego: pistis, palavra que, é importante notar, deveria ser traduzida por “confiança”, e não por “crença”) havia feito dele um cristão modelar séculos antes da chegada do messias. Quando a Escritura louvava a fé de Abraão,13 estava se referindo “a nós também”14: “Pois prevendo a Escritura que pela fé Deus justificaria os pagãos, prenunciou a respeito de Abraão: Em ti serão abençoadas todas as nações.”15Quando Deus ordenou a Abraão que abandonasse sua concubina Hagar e seu filho Ismael no deserto, isso havia sido uma allegoria: Hagar representava o pacto do Sinai, que havia escravizado os judeus à Lei, ao passo que Sara, a esposa nascida livre de Abraão, correspondia ao novo pacto, que libertara os gentios das obrigações da Torá.16
O autor da Epístola aos Hebreus, que provavelmente escrevia na mesma época, foi ainda mais radical. Estava tentando consolar uma comunidade de cristãos judeus que começava a perder o ânimo, argumentando vigorosamente que Cristo suplantara a Torá, era mais sublime que Moisés17 e que o culto sacrifical havia simplesmente prenunciado o ato sacerdotal de Jesus ao dar sua vida pela humanidade.18 Numa passagem extraordinária, o autor interpretava que toda a história de Israel exemplificava a virtude da pistis, confiança em “realidades que no presente permanecem invisíveis”.19 Abel, Enoque, Noé, Abraão, Moisés, Gideão, Barac, Sansão, Jefté, David, Samuel e os profetas haviam todos exibido a “fé”: essa havia sido sua maior – na verdade, sua única – façanha.20 Mas o autor concluía: “Eles não receberam o que foi prometido, pois Deus providenciou para que nós tivéssemos algo melhor, e eles não alcançariam a perfeição exceto conosco.”21
Nessa proeza exegética, toda a história israelita fora redefinida, mas, no processo, velhas narrativas, que tratavam de temas bem mais amplos que pistis, perderam grande parte de sua rica complexidade. A Torá, o templo e o culto apenas apontavam para uma realidade futura, porque Deus sempre tivera algo melhor em mente. Paulo e o autor dos Hebreus mostraram a gerações futuras de cristãos como interpretar a Bíblia hebraica e apossar-se dela. Os outros escritores do Novo Testamento iriam desenvolver esse pesher e tornar muito difícil para os cristãos ver a Escritura judaica como algo mais que um prelúdio do cristianismo.
O movimento de Jesus se tornava controverso antes mesmo do desastre de 70.22 Os cristãos, como todos os outros grupos judaicos, sentiram-se absolutamente chocados quando viram o magnífico santuário de Herodes reduzido a uma pilha de escombros queimados, malcheirosos. É possível que tivessem sonhado em substituir o templo de Herodes, mas ninguém imaginara a vida sem templo algum. Mas os cristãos também viram sua destruição como uma pokalypsis, a “revelação” ou o “desvelamento” de uma realidade que estivera lá o tempo todo – mas não fora vista com clareza antes, a saber, que o judaísmo terminara. As ruínas do templo simbolizavam seu trágico falecimento e eram um sinal de que o fim se aproximava. Deus agora iria demolir o resto da ordem defunta do mundo e estabelecer o reino.
A destruição do primeiro templo em 586 a.C. havia inspirado uma assombrosa explosão de criatividade entre os exilados na Babilônia. A destruição do segundo templo estimulou um esforço literário similar entre os cristãos. Em meados do século II, quase todos os 27 livros do Novo Testamento estavam concluídos. Comunidades já citavam cartas de Paulo como se fossem Escritura,23 e leituras de uma das biografias de Jesus que estavam em circulação haviam se tornado costumeiras durante o culto de domingo. Os evangelhos atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João acabariam sendo escolhidos para o cânone, mas havia muitos outros. O evangelho de Tomás (c. 150) era uma coleção de ditos secretos de Jesus que dariam um “conhecimento” (gnosis) redentor a seus discípulos. Havia evangelhos, agora perdidos, dos ebionitas, nazarenos e hebreus, que alimentavam as comunidades cristãs judaicas. Havia também muitos evangelhos “gnósticos”, representando uma forma de cristianismo que enfatizava a gnosis e distinguia um Deus inteiramente espiritual (que mandara Jesus como seu enviado) e um demiourgos, que criara o mundo material corrupto.24 Outros Escritos não sobreviveram: um evangelho conhecido pelos estudiosos como Q, porque foi a fonte (alemão: quelle) para Mateus e Lucas; várias antologias de ensinamentos de Jesus; e um relato de seu julgamento, tortura e morte.”
1: Isaías 2:2-3; Zefanias 3:9; Tobit 14:6; Zacarias 8:23. / 2: Gálatas 1:1-16. / 3: A autoria da primeira epístola aos tessalonicenses é discutida; talvez ela não tenha sido escrita por Paulo. / 4: 1 Tessalonicenses 1:9; 1 Coríntios 5:1-13; 8:4-13; 10:4. / 5: Joel 3:1-5; Atos 2:14-21. / 6: Romanos 8:9; Gálatas 4:16, Fredricksen, Jesus, p. 133-35. / 7: Romanos 9:1-33. / 8: Julia Galambush, The Reluctant Paring. How the New Testament’s Jewish Writers Created a Christian Book (são Francisco, 2005), p.148. / 9: Salmo 69:9; Romanos 15:3. / 10: Romanos 15:4. Jaroslav Pelikan, Whose Bible Is It? A History of the Scriptures Through the Ages (Nova York, 2005), p. 72. Grifo da autora. / 11: 2 Coríntios 3:9-18. Galanbush, Reluctant Parting, 145-46. / 12: Romanos 5:12-20; cf. 1 Coríntios 15:45. / 13: Gênesis 15:6. / 14: Romanos 4:22-24. Grifo da autora / 15: Gálatas 3:8; Gênesis 12:3. / 16: Gálatas 4:22-31. / 17: Hebreus 3:1-6. / 18: Hebreus 4:12-9:28. / 19: Hebreus 11:1. / 20: Hebreus 11:32. / 21: Hebreus 11:40. / 22: Akenson, Surpassing Wonder, p. 213. / 23: Pedro 3:15; Inácio de Antioquia, Carta aos Efésios 2:12. / 24: Uma coleção desses evangelhos gnósticos foi descoberta em Nag Hammadi no Egito em 1945.


“As Escrituras cristãs foram redigidas em momentos diferentes, em regiões diversas e para audiências muito díspares, mas compartilhavam uma linguagem e um conjunto de símbolos, derivados da Lei e dos Profetas, bem como de textos do final do período do Segundo Templo. Elas reuniam ideias que originalmente não tinham conexão umas com as outras – Filho de Deus, Filho do Homem, Messias e reino – numa nova síntese.1 Os autores não demonstravam isso de maneira lógica, mas simplesmente justapunham essas imagens de forma tão repetida que elas se fundiam na mente do leitor.2 Não havia uma visão uniforme de Jesus. Paulo o chamara de “Filho de Deus”, mas usara o título em seu sentido judaico tradicional. Jesus era um ser humano que gozava de uma relação especial com Deus, como os antigos reis de Israel, e fora elevado por ele a uma condição singularmente alta.3 Paulo nunca afirmou que Jesus era Deus. Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos como os “sinóticos”, porque “veem as coisas juntas”, também usaram o título “Filho de Deus” dessa maneira, mas eles sugeriram igualmente que Jesus era o “Filho do Homem” de que falara Daniel, o que lhe dava uma dimensão escatológica.4 João, que representou uma tradição cristã diferente, viu Jesus como a encarnação da Palavra e Sabedoria de Deus, que existira antes da criação do mundo.5 Quando os editores finais do Novo Testamento reuniram esses textos, não ficaram incomodados com as discrepâncias. Jesus havia se tornado um fenômeno demasiado imenso nas mentes dos cristãos para ser preso a uma única definição.”
1: Akenson, Surpassing Wonder, p.229-43. / 2: Ver, por exemplo, Marcos 14:61-64. / 3: Filipenses 2:6-11. / 4: Daniel 7:13; Mateus 24:30; 26:65; Marcos 13:26; 14:62; Lucas 17:22; 21:25; 22:69. / 5: João 1:1-14; Hebreus 1:2-4.


“Não sabemos quem escreveu os evangelhos.1 Quando apareceram, eles circularam anonimamente, e só mais tarde foram atribuídos a figuras importantes da Igreja primitiva. Os autores eram cristãos judeus2, que escreviam em grego e viviam nas cidades helenísticas do Império Romano. Eram não somente escritores criativos – cada um com suas tendências particulares –, mas também redatores competentes, que editaram materiais anteriores. Marcos escreveu por volta de 70; Mateus e Lucas no final dos anos 80, e João no final dos anos 90. Os quatro evangelhos refletem o terror e a ansiedade desse período traumático. O povo judeu estava em tumulto. A guerra com Roma dividira famílias e comunidades, e todas as diferentes seitas tinham de repensar sua relação com a tradição do templo. Mas o apokalypsis do santuário arruinado pareceu tão convincente para os cristãos que eles se sentiram inspirados a proclamar a condição de messias de Jesus, cuja missão, segundo acreditavam, havia sido inseparavelmente associada ao templo.
Marcos, que escrevia logo após a guerra, estava particularmente preocupado com o tema. Sua comunidade encontrava-se em sérias dificuldades. Os cristãos haviam sido acusados de se alegrar com a destruição do templo, e Marcos mostra que os integrantes de sua ekklesia estavam sendo espancados nas sinagogas, arrastados perante os anciãos judeus e universalmente caluniados. Muitos haviam perdido a fé3. Os ensinamentos de Jesus pareciam cair sobre terreno pedregoso, e os líderes cristãos pareciam tão obtusos quanto os Doze, que, no evangelho de Marcos, davam a impressão de raramente compreender Jesus.4 Há um sentimento implacável de penosa ruptura com a corrente dominante do judaísmo. Não se pode remendar uma roupa velha com tecido novo, Jesus advertiu, “do contrário o remendo novo repuxa o tecido velho e o rasgão se torna maior. Ninguém põe vinho novo em odres velhos. Do contrário, o vinho romperá os odres, levando a perder tanto o líquido como os odres”.5 O discipulado significava sofrimento e uma luta interminável com forças demoníacas. Os cristãos deviam se manter alertas; deviam estar perpetuamente vigilantes!6
Paulo, que escreveu quando o templo ainda estava de pé, mal o mencionara; mas o templo foi central na visão que Marcos teve de Jesus.7 Sua destruição foi apenas o primeiro estágio no iminente apocalipse.8 Daniel previra esse “sacrilégio desolador” muito tempo antes, e o templo fora destruído.9 Jesus não era um renegado, como afirmavam seus inimigos, mas estava profundamente sintonizado com as grandes figuras do passado. Ele citou Jeremias e Isaías para mostrar que o templo fora destinado a todas as nações assim como aos judeus.10 A ekklesia de Marcos, que admitia gentios, havia cumprido essas antigas profecias, mas o templo não se conformara ao plano de Deus. Não espanta que tivesse sido destruído.
A morte de Jesus não era um escândalo, mas fora sido profetizada na Lei e nos Profetas:11 previra-se que ele seria traído por um de seus seguidores12 e abandonado por seus discípulos.13 Mas o evangelho terminava numa nota de terror. Quando as mulheres foram ungir o corpo, descobriram que o túmulo estava vazio. Embora o anjo lhes tenha dito que Jesus ressuscitara, “perplexas, elas saíram do sepulcro e fugiram apavoradas. E não disseram nada a ninguém, pois estavam com medo”.14 A história de Marcos terminava aqui, sintetizando o sentimento de suspensão receosa que os cristãos experimentavam na época. No entanto, a história concisa e brutal de Marcos era uma “boa nova”, porque o reino “já chegara”.15
Mas no momento em que Mateus escrevia, no fim dos anos 80, essas esperanças começavam a se desvanecer. Nada mudara: como poderia o reino ter chegado? Mateus respondeu que ele chegava de maneira discreta e trabalhava silenciosamente no mundo como o fermento numa massa de pão.16 Sua comunidade achava-se temerosa e irritada. Eram acusados por seus companheiros judeus de abandonar a Torá e os profetas;17 haviam sido açoitados nas sinagogas, arrastados perante tribunais de anciãos18 e acreditavam que seriam torturados e mortos antes do Fim.19 Mateus estava, portanto, especialmente ansioso por mostrar que o cristianismo não apenas estava em harmonia com a tradição judaica, mas era sua culminação. Quase cada evento na vida de Jesus acontecera “para cumprir as Escrituras”. Como os de Ismael, Sansão e Isaac, seu nascimento foi anunciado por um anjo.20 Os 40 dias de tentação no deserto equiparavam-se aos 40 anos dos israelitas no deserto; Isaías previra seus milagres.21 E – o que era o mais importante – Jesus foi um grande mestre da Torá. Ele proclamou a nova lei da era messiânica do alto de uma montanha22 – como Moisés – e insistiu que viera não para abolir, mas para completar a Lei e os Profetas.23 Os judeus deviam agora observar a Torá mais rigorosamente que nunca. Não bastava mais, para os judeus, abster-se de matar; não deviam sequer se encolerizar. Não somente o adultério era proibido; um homem não podia sequer olhar uma mulher com lascívia.24 A velha lei da retaliação – olho por olho, dente por dente – fora suplantada: agora os judeus deviam oferecer a outra face e amar seus inimigos.25 Como Oséias, Jesus afirmou que a compaixão era mais importante que o ritual e a observância.26 Como Hillel, pregou a Regra de Ouro.27 Jesus foi maior que Salomão, Jonas e o templo.28 Os fariseus da época de Mateus afirmavam que o estudo da Torá introduziria os judeus à presença divina (Shekhinah) que outrora eles haviam encontrado no templo: “Se dois sentarem-se juntos e as palavras da Torá estiverem entre eles, aShekhinah descansará entre eles.”29 Mas Jesus prometeu: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estarei com eles.”30 Os cristãos encontrariam a Shekhinah por intermédio de Jesus, que havia agora substituído o templo e a Torá.
Lucas foi autor de algumas partes dos Atos dos Apóstolos e do evangelho. Também ele estava ansioso por mostrar que Jesus e seus seguidores eram judeus devotos, mas enfatizou que o evangelho era para todos: judeus e gentios; mulheres e homens; os pobres, coletores de impostos; o Bom Samaritano e o Filho Pródigo. Lucas nos proporciona um precioso relance da experiência espiritual que sua exegese pesher deu aos cristãos primitivos. Ele contou uma história emblemática de dois discípulos de Jesus que caminhavam de Jerusalém para Emaús três dias após a crucificação.31 Como muitos cristãos no tempo do próprio Lucas, eles estavam perturbados e desesperados, mas na estrada encontraram por acaso um estranho que lhes perguntou por que estavam tão inquietos. Eles explicaram que eram discípulos de Jesus e tinham certeza de que ele era o Messias. Mas ele havia sido crucificado, e, para piorar as coisas, as mulheres de seu grupo espalhavam histórias fantásticas sobre um túmulo vazio e uma visão de anjos. O estranho repreendeu-os gentilmente: não haviam compreendido que o Messias devia sofrer antes de entrar em sua glória? A começar por Moisés, ele começou a expor “a mensagem completa” dos profetas. Ao chegarem a seu destino aquela noite, os discípulos rogaram ao estranho que se hospedasse com eles, e quando ele partiu o pão no jantar, perceberam subitamente que haviam estado o tempo todo na presença de Jesus, mas seus “olhos haviam sido impedidos” de reconhecê-lo. Quando ele desapareceu de sua vista, se lembraram de como seus corações haviam “ardido” dentro deles quando ele havia “aberto as Escrituras”.”
1: Fredricksen, Jesus, p.19. / 2: Há uma crença muito difundida de que Lucas era gentio, mas não há prova incontestável disso. / 3. Marcos 13:9-19, 13. / 4: Marcos 4:3-9; 8:17-18. / 5: Marcos 2:21-22. / 6: Marcos 13:33-37. / 7: Marcos 14:58-61; 15:29. / 8: Marcos 13:5-27. / 9: Marcos 13:14; Daniel 9:27. / 10: Marcos 11:15-19; Isaías 56:7; Jeremias 7:11. / 11: Marcos 14:21, 27. / 12: Salmo 41:8. / 13: Zacarias 13:7. / 14: Marcos 16:8. Nos manuscritos mais antigos, o evangelho de Marcos termina aqui. Os 12 versículos seguintes descrevendo as aparições de Jesus na sua ressurreição foram quase certamente acrescentados mais tarde. / 15: Marcos 1:15. Esta é uma tradução literal do grego e não segue a Bíblia de Jerusalém. / 16: Mateus 13:31-50. / 17: Mateus 5:17. / 18: Mateus 5:11; 10:17-23. / 19: Mateus 24: 9-12. / 20: Gênesis 16:11; Juízes 13:3-5; Gênesis 17:15-21. / 21: Mateus 8:17; Isaías 53:4. / 22: Mateus 5:1. / 23: Mateus 5:19. / 24: Mateus 5:21-39. / 25: Mateus 5:38-48. / 26: Mateus 9:13; Oséias 6:6 cf. Aboth de Rabba Nathan 1.4.11a. / 27: Mateus 7:12 cf. B. Shabbat 31a. / 28: Mateus 12:16, 41, 42. / 29: M. Pirke Avoth 3:3, in C.C. Montefiore e H. Lowe (orgs.), A Rebbinic Anthology, Nova York, 1974, p.23. / 30: Mateus 18:20; Galambush, Reluctant Parting, p. 67-68. / 31: Lucas 24:13-35; Galambush, Reluctant Parting p.91-2; Gabriel Josipovici, “The Epistle to the Hebrews and the Catholic Epistles” in Robert Alter e Frank Kermode (orgs.), The Literary Guide to the Bible, Londres, 1987, p.506-7.


“Várias igrejas na Ásia Menor estavam desenvolvendo uma compreensão diferente de Jesus, representada pelo evangelho e as três epístolas atribuídas a João e pelo livro escatológico do Apocalipse. Todos esses textos “joaninos” viam Jesus como o Logos encarnado que desceu à terra como revelação final de Deus.1Jesus era o Cordeiro de Deus, uma vítima propiciatória que tirou os pecados do mundo, como os cordeiros ritualmente sacrificados no templo na Páscoa.2 Os integrantes dessas igrejas acreditavam que seu mais importante dever era amar uns aos outros,3 mas não estendiam a mão ao estranho. Essa comunidade sentia-se sitiada e se unia em oposição ao “mundo”.4 Toda a existência parecia polarizada em opostos conflitantes: luz contra escuridão, mundo contra espírito, vida contra morte e bem contra mal. As igrejas haviam sofrido recentemente um cisma penoso: alguns de seus membros haviam considerado seus ensinamentos “intoleráveis” e “não caminhavam mais” com Jesus.5 Os fiéis viam esses apóstatas como “anticristos”, cheios de ódio assassino pelo Messias.6
Os integrantes dessa seita cristã estavam convencidos de que somente eles eram certos e que o mundo estava contra eles.7 O evangelho de João em particular dirigia-se a um “grupo exclusivo”, que tinha um simbolismo privado incompreensível para os estranhos. Constantemente Jesus teve de dizer “aos judeus” que eles o procurariam e não o encontrariam: “para onde vou, não podeis vir.”8 Sua audiência ficava muitas vezes desconcertada, mas como Jesus era a revelação final de Deus para o mundo, essa falta de aceitação era um julgamento: aqueles que o rejeitavam eram os filhos do diabo e permaneceriam nas trevas.
Para João, o judaísmo estava sem dúvida acabado. Ele descreveu sistematicamente Jesus substituindo cada uma das principais revelações de Deus para Israel. De agora em diante, “o Logos ressuscitado seria o lugar onde os judeus encontrariam a presença divina: Jesus, o Logos, assumiria a função do templo destruído e se tornaria o lugar onde os judeus encontrariam a presença divina”.9 Quando ele saiu do templo, a Shekhinah se retirou com ele.10 Quando celebrou a festa de Sucot, durante a qual a água era cerimonialmente derramada sobre o altar e as tochas gigantes do templo eram acesas, Jesus – como a Sabedoria – gritou que ele era a água e a luz viva do mundo.11 Na festa do Pão Ázimo, ele afirmou que era o “pão da vida”. Não somente era maior que Moisés12e Abraão, mas encarnava a presença divina: teve a temeridade de pronunciar o nome proibido de Deus: “antes que Abraão jamais fosse, Eu sou (Ani Waho)”.13 Ao contrário dos sinóticos, João nunca mostrou Jesus atraindo conversos não judeus. É provável que sua ekklesia fosse inteiramente judaica no início, e que os apóstatas fossem cristãos judeus, para os quais a cristologia controversa e em potencial blasfema da comunidade pareceu “intolerável”.14
O livro do Apocalipse revela a amargura do cristianismo joanino. Aqui o dualismo, motivo recorrente em João, tornava-se uma batalha cósmica entre as forças do bem e do mal. Satã e suas coortes atacavam Miguel e seu exército angélico no céu, enquanto os perversos atacavam os bons na terra. Parecia, àekklesia perturbada, que o mal deveria prevalecer, mas João de Patmos, o autor do Apocalipse, insistiu que Deus interviria no momento crítico e derrotaria seus inimigos. Ele havia recebido uma “revelação” (apokalypsis) especial, que “desvelaria” o verdadeiro estado de coisas, de modo que os fiéis saberiam como se conduzir durante os últimos dias. O Apocalipse é inteiramente baseado no medo: a Igreja estava aterrorizada pelo Império Romano, as comunidades judaicas locais e grupos cristãos rivais. Mas, assegurava-lhes o autor, finalmente Satã cederia sua autoridade a uma Besta, que surgiria das profundezas do mar e exigiria obediência universal. Depois o Cordeiro viria para salvação. Ainda que a Prostituta da Babilônia chegasse bêbada com o sangue dos mártires cristãos, anjos derramariam sete pragas hediondas sobre a terra, e a Palavra cavalgaria para a batalha num cavalo branco, para combater a Besta e arremessá-la num poço de fogo. Durante mil anos, Jesus governaria a terra com seus santos, mas depois Deus libertaria Satã da prisão. Haveria mais destruição, outras batalhas até que a paz fosse restaurada e a Nova Jerusalém descesse do céu como uma noiva para se encontrar com o Cordeiro.
Como todos os Escritos joaninos, o Apocalipse é deliberadamente obscuro, e seus símbolos seriam ininteligíveis para os estranhos. É um livro tóxico e, como veremos, atrairia pessoas que, como as igrejas joaninas, sentiam-se excluídas e ressentidas. Era também controverso, e alguns cristãos relutaram em incluí-lo no cânone. Mas quando os editores definitivos decidiram inseri-lo no fim do Novo Testamento, ele se tornou o término triunfante de sua exegese pesher das Escrituras hebraicas. Transformou o relato histórico da origem do cristianismo num apocalipse orientado para o futuro. A Nova Jerusalém substituiria a velha: “Não vi templo algum na cidade, pois seu templo era o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro.” O judaísmo e seus símbolos mais sagrados haviam sido substituídos por um vitorioso cristianismo militante.15
Um fio de ódio percorre o Novo Testamento. É inexato chamar as Escrituras cristãs de antissemíticas, pois os autores eram eles próprios judeus. Paulo não compartilhava da hostilidade em relação ao judaísmo, mas grande parte do Novo Testamento refletia a desconfiança generalizada, a ansiedade e a turbulência do período imediatamente posterior à destruição do templo, quando os judeus foram divididos de maneira dolorosa. Em sua ansiedade para estender a mão ao mundo gentio, os sinóticos ficaram ávidos demais por absolver os romanos de sua responsabilidade pela execução de Jesus e afirmaram, com crescente estridência, que os judeus deviam arcar com a culpa. Mesmo Lucas, que tinha a visão mais positiva do judaísmo, deixou claro que havia um bom Israel (representado pelos seguidores de Jesus) e um “mau Israel”, personificado pelo fariseu hipócrita.16 Nos evangelhos de Mateus e João, essa tendência havia se tornado mais entrincheirada. Mateus fez a multidão judia gritar pedindo a morte de Jesus: “Que o sangue dele caia sobre nós e sobre nossos filhos”,17 palavras que durante séculos inspiraram os pogroms que fizeram do antissemitismo uma doença incurável na Europa.
Mateus irritava-se em particular com os fariseus: eles eram hipócritas presunçosos, obcecados pela letra da lei de modo a desprezar por completo o seu espírito; eram “guias cegos”, uma “raça de víboras”, fanaticamente empenhados na destruição das igrejas cristãs.18 João também censurou os fariseus como maldosos, opressivos e cronicamente apegados ao mal; foram os fariseus que colheram informações contra Jesus e tramaram sua morte.19 Por que esse ódio acrimonioso aos fariseus? Depois da destruição do templo, os cristãos haviam sido os primeiros a se manifestarem com a pretensão de se tornarem a autêntica voz judaica, e de início parecem não ter tido rivais significativos. Nos anos 80 e 90, eles estavam se tornando desconfortavelmente cônscios de que algo de extraordinário acontecia. Os fariseus iniciavam um assombroso reflorescimento.”
1: João 1:1-5. / 2: João 1:30. / 3: 1 João 4:7-12; João 15:12-13. / 4: João 15:18-27; 1 João 3:12-13. / 5: João 6:60-66. / 6: 1 João 2:18-19. / 7: 1 João 4:5-6. / 8: João 7:34; 8:19-21. / 9: João 2:19-21. / 10: João 8:57. / 11: M. Sukkah 4:9; 5:2-4; John 7:37-39; 8:12. / 12: João 6:32-6. / 13: João 7:58. A expressão Ani Waho: (“Eu sou”), usada nos rituais da festa das Cabanas”, era provavelmente um termo para a Shekhinah; W. D. Davies, The Gospel and the Land: Early Christiannity and Jewish Territorial Doctrine, Berkeley, 1974, p.294-5. / 14: Galambush, Reluctant Parting, 291-2. / 15: Apocalipse 21:22-4. / 16: Lucas 18:9-4. / 17: Mateus 27:25. / 18: Mateus 23:1-33. / 19: João 11:47-53; 18:2-3. A única honrosa exceção é o fariseu Nicodemos, que procura Jesus secretamente pedindo instrução privada. (João 3:1-21).


“Para Orígenes, as Escrituras judaicas eram um midrash ao Novo Testamento, que havia sido ele próprio um comentário ao TaNaKh. Sem alegoria, a Bíblia não fazia absolutamente qualquer sentido. Como poderíamos explicar literalmente a ordem de Cristo: “Se o teu olho direito te fizer pecar, arranca-o e joga-o longe de ti”?1 Como podia um cristão aceitar a ordem cruel de que os meninos não circuncidados fossem mortos?2 Que relevância possível tinham para os cristãos as detalhadas ordens para a construção do tabernáculo?3 Queria o autor bíblico realmente dizer que Deus “caminhava” no Jardim do Éden?4 Ou insistir que os discípulos de Cristo nunca deveriam usar sandálias?5 Quando se interpretava a Bíblia do ponto de vista literal, era “uma tarefa muito difícil, se não impossível”, reverenciar a Bíblia como um livro sagrado.6 Ler a Escritura era muito difícil – fato que Orígenes enfatizou muitas vezes. Com demasiada frequência heréticos distorciam o texto para seus próprios fins ou davam uma interpretação fácil a uma passagem extremamente complexa. Era árduo encontrar inspiração e livrar ensinamento de algumas das histórias bíblicas não edificantes, mas, como o Logos falava na Escritura, “temos de acreditar que é possível, mesmo que não reconheçamos o benefício”.7 Assim, quando discutiu o comportamento dúbio de Abraão ao vender sua mulher para o faraó, alegando que ela era sua irmã,8Orígenes afirmou que Sara era um símbolo da virtude e que Abraão queria partilhar a virtude em vez de guardá-la para si. Um leitor moderno provavelmente sentirá que Orígenes era tão culpado de distorção das Escrituras quanto os heréticos que criticava. (...)
Mas Orígenes não desconsiderava o sentido literal da Bíblia. Seu cuidadoso trabalho com a Héxapla mostrou sua determinação de estabelecer um texto digno de confiança. Ele aprendeu hebraico, consultou rabinos e ficou também fascinado pela geografia, a flora e a fauna da Terra Santa. Mas o sentido superficial insatisfatório de tantos dos ensinamentos e narrativas da Bíblia o compeliam a olhar além dele. A Escritura tinha um corpo e uma alma. Nossos corpos moldam nosso espírito e pensamentos. Eles nos causavam dor e nos lembravam constantemente de nossa mortalidade. Nossas vidas físicas, portanto, nos forneciam uma ascese construída interiormente, a qual, caso respondida da forma adequada, nos levaria a cultivar nossa natureza espiritual, imortal.9 Da mesma maneira, as óbvias limitações no corpus – no sentido literal – da Escritura nos forçavam a procurar sua alma, e Deus havia semeado essas anomalias de propósito:
A divina sabedoria providenciara certos obstáculos e interrupções do sentido histórico… inserindo entre várias impossibilidades e incongruências, de modo que a narrativa pudesse, por assim dizer, apresentar uma barreira para o leitor e levá-lo à recusa de prosseguir pelo caminho do significado comum.10
Essas passagens difíceis “nos levam, por uma trilha estreita, a uma estrada mais elevada e grandiosa, precisamente ‘impedindo-nos e privando-nos’ de uma aceitação de seu sentido manifesto”.11 Por meio da “impossibilidade do sentido literal”, Deus nos conduzia “a um exame do sentido secreto”.12
A exegese espiritual era um trabalho árduo: tínhamos de transformar as Escrituras do mesmo modo como transformávamos nossos eus recalcitrantes. A interpretação bíblica exigia “a máxima pureza, sobriedade e… noites de vigília”; era impossível sem uma vida de prece e de virtude.13 Não era como resolver um problema matemático, porque envolvia um modo de pensamento mais intuitivo. Mas se o estudioso perseverasse, ponderando as Escrituras “com toda a atenção e a reverência que elas mereciam, é certo que, no próprio ato de lê-las e estudá-las de modo diligente, sua mente e seus sentimentos serão tocados por um sopro divino, e ele reconhecerá que as palavras que lê não são os pronunciamentos de um homem, mas a linguagem de Deus.”
1: Mateus 5:29. / 2: Orígenes, Sobre os primeiros princípios 4.3.1. Ele está comentando um versículo tal como traduzido na Septuaginta. / 3: Êxodo 25-31; 35-40. / 4: Gênesis 3:8. / 5: Mateus 10:9. / 6: Sobre os primeiros princípios, 4.3.1 in G.W. Butterworth (trad.), Origen; On First Principles, Gloucester, MA, 1973. / 7: Homilias sobre Ezequiel 1:2, citado in Jaroslav Pelikan, Whose Bible Is It? A History of the Scriptures Trought the Ages, Nova York, 2005, p.60. / 8: Gênesis 20. / 9. Orígenes, Sobre os primeiros princípios, trad. Butterworth. 2.3.1. / 10: Ibid., 4.2.9. / 11: Ibid. / 12: Ibid., 4.2.3. / 13: Ibid. 4.2.7.

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