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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A cidade do sol – Tommaso Campanella

Editora: Abril Cultural
Tradução e notas: Aristides Lobo
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 60
Sinopse: Uma das mais famosas utopias concebidas pelo pensamento ocidental. Descreve um lugar perfeito, uma república ideal, onde todos obtêm da comunidade o necessário e os magistrados velam para que ninguém receba mais do que merece.



“Acredito, pois, que, se os nossos monges e clérigos não estivessem viciados por excessiva benevolência para com os parentes e os amigos, e se mostrassem menos roídos pela ambição de honras cada vez mais elevadas, teriam, com menor afeição pela propriedade adquirida, louvores de mais bela santidade, e, semelhantes aos apóstolos e a muitos dos tempos presentes, apareceriam ao mundo como exemplos da caridade mais sublime.”


“Não posso exprimir-lhe quanto desprezo têm por nós, por chamarmos de ignóbeis os artífices e de nobres os que, não sabendo fazer coisa alguma, vivem no ócio e sacrificam tantos homens que, chamados servos, são instrumentos da preguiça e da luxúria. Dizem ainda que não é de admirar que dessas casas e escolas de torpeza saiam catervas de intrigantes e malfeitores, com infinito dano para o interesse público.”


“Estamos tão certos de que um sábio pode ter aptidões para o bom governo de uma república quanto vós, que preferis homens ignorantes, julgados hábeis somente porque descendem de príncipes ou são eleitos pela prepotência de um partido. Mas, o nosso supremo regedor da cidade, Hoh, mesmo admitindo que seja inexpertíssimo em qualquer forma de governo, nunca se tornará cruel, celerado ou tirano, pois possui uma imensa sabedoria. Essa objeção pode ter força entre vós, que chamais de sábio o homem que leu maior número de gramáticas ou de lógicas de Aristóteles ou outros autores, de forma que, ao se querer consultar um sábio dos vossos países, o único resultado que se obtém é uma obstinada fadiga e um servil trabalho de memória que habituam o homem à inércia, pois não encontra estímulo em penetrar no conhecimento das coisas e se contenta em possuir um acervo de palavras, aviltando a alma e fatigando-a sobre letras mortas. Tais sábios ignoram como todos os seres são governados pela causa primeira e quais as regras e hábitos da natureza e das nações.”


“É sabido que não conhece nenhuma ciência quem só foi instruído numa, tendo engenho tardo e desprezível todo aquele que, apto numa única ciência, a possui, ainda assim, tomada de empréstimo aos livros.”


“Nápoles tem uma população de setenta mil pessoas, mas só quinze mil trabalham e são logo aniquiladas pelo excesso de fadiga. As restantes estão arruinadas pelo ócio, pela preguiça, pela avareza, pela enfermidade, pela lascívia, pela usura, etc., e, para maior desventura, contaminam e corrompem um infinito número de homens, sujeitando-os a servir, a adular, a participar dos próprios vícios, com grave dano para as funções públicas. Os campos, a milícia, as artes, ou são desprezados ou, com ingentes sacrifícios, pessimamente cultivados por alguns. Na Cidade do Sol, ao contrário, havendo igual distribuição dos misteres, das artes, dos empregos, das fadigas, cada indivíduo não trabalha mais de quatro horas por dia, consagrando o restante ao estudo, à leitura, às discussões científicas, ao escrever, à conversação, aos passeios, em suma, a toda sorte de exercícios agradáveis e úteis ao corpo e à mente. Não se permitem jogos que obriguem a ficar sentado, como dados, xadrez, e outros, divertindo-se com o péla, o balão, o pião, a corrida, a luta, o arco, o arcabuz, etc. Afirmam, além disso, que a pobreza é a razão principal de se tornarem os homens vis, velhacos, fraudulentos, ladrões, intrigantes, vagabundos, mentirosos, falsas testemunhas, etc., produzindo a riqueza os insolentes, os soberbos, os ignorantes, os traidores, os presunçosos, os falsários, os vaidosos, os egoístas, etc. A comunidade, ao contrário, coloca os homens numa condição ao mesmo tempo rica e pobre: são ricos porque gozam de todo o necessário, e são pobres porque não possuem nada. Servem as coisas, mas as coisas lhes obedecem, imitando assim os religiosos da cristandade e especialmente os apóstolos.”


“Os solares adoram Deus na trindade, o que causa admiração, mas dizem eles que Deus é Suma Potência, da qual procede a Suma Sapiência, que é também Deus, e de ambas o Amor, que é Potência e Sapiência, embora o procedente não tenha a essência daquilo de que procede e não retroceda. Não possuem, todavia, como os cristãos, noções distintas das três pessoas citadas, pois não tiveram revelações, mas reconhecem em Deus procedimento e relação própria a si, dentro de si e por si. Todos os seres, portanto, derivam sua essência da Potência, da Sapiência e do Amor, enquanto têm existência, e da Impotência, da Ignorância e do Desamor, enquanto participam do não-ser.”


“Os solares confessam sinceramente que há muita iniquidade no universo. Os homens não são governados por superiores e verdadeiras razões, vivendo infelizes e sem escutar os bons. Triunfam os perversos, se bem que eles considerem miserável esse triunfo, não havendo nada de mais vão e de mais desprezível do que querer mostrar-se aquilo que na realidade não se é ou não se merece ser, como tantos que se chamam reis, sábios, guerreiros ou santos. Argumentam ainda que há, por causa ignorada, uma grande desordem nas coisas humanas. Opinam também que os pais transmitem aos filhos mais o mal da pena que o da culpa. Esta pode ser atribuída pelos filhos aos pais, quando estes tenham descurado a geração ou a tenham exercitado fora de tempo e lugar, ou então quando não se tenham tido em vista a escolha e a educação dos genitores, os quais, se produziram mal os filhos, ainda pior os instruirão. Toda a atenção é, pois, por eles dedicada à geração e à educação, e dizem que tanto a culpa dos pais como a pena dos filhos redundam em dano para a república, como o provam, na atualidade, todas as cidades que, cheias de misérias, se degradaram ao ponto de chamarem felicidade aos próprios males, sem nunca terem conhecido o verdadeiro bem, o que levaria a crer que o universo é governado pelo acaso. Mas quem estuda a construção do universo e a anatomia do homem (por eles frequentemente praticada nos cadáveres dos condenados), assim como os planetas, os animais e a função de cada uma de suas partes, deve confessar em voz alta a sabedoria e a providência de Deus. É, pois, um dever do homem consagrar-se inteiramente à religião e humilhar-se continuamente perante o próprio autor, o que só é possível e fácil para quem estuda e conhece as obras deste, obedecendo às suas leis e pondo em prática a sentença do filósofo: “Não faças aos outros o que não queres que te façam; e o que queres que te façam faze-o aos outros”. Dessa forma, nós, que pretendemos dos filhos e dos homens bens e honras em troca de poucas vantagens que lhes concedemos, devemos dar a Deus tudo, porque dele tudo temos recebido, e estamos nele e com ele. Glória, pois, a Deus por todos os séculos dos séculos.”


“G.-M. — O que lhe digo é que tudo, na terra, sucede na ocasião determinada por Deus.
ALM. — Também eles me responderam que Deus é a causa mediata de todas as coisas, mas só como causa universal e não particular, primitiva e não secundária. Porque Deus não come quando Pedro come; não rouba quando Pedro rouba, se bem que derivam dele a essência e a faculdade de poder comer e roubar, como causa mediata da qual depende toda outra mais particular que modifica a imensidade da ação divina.
G.-M. — Oh! Como raciocinam bem! Os nossos doutores escolásticos, sobretudo Santo Tomás, dizem o mesmo contra os filósofos maometanos, que professam opinião contrária.
ALM. — Dizem, portanto, que Deus atribuiu causas universais e particulares a todo efeito, sendo que as particulares não podem agir sem que ajam as universais. Do mesmo modo que uma planta não florescerá se o sol não aquecê-la de perto. Os tempos são, pois, efeitos das causas universais, isto é, das celestes. Por conseguinte, todos nós procedemos segundo procede o céu. As causas livres servem-se do tempo em favor próprio e, às vezes, também pelo bem das outras coisas. Porque o homem, com o fogo, força as árvores a florescer, e, com a lâmpada, na ausência do sol, ilumina a própria casa. As causas naturais agem, pois, no tempo. Da mesma maneira que algumas coisas se fazem de dia e outras de noite, algumas no inverno e outras no verão, na primavera ou no outono, e isso tanto por causas livres como naturais, assim também outras coisas se fazem neste ou num futuro século. E, como a causa livre não é obrigada a dormir quando é noite, nem se levantar quando chegar a manhã, mas age de acordo com as próprias conveniências, aproveitando-se das alternações dos tempos, também não é obrigada a descobrir o arcabuz ou a tipografia, quando se realizam grandes sínodos no Câncer, a acreditar nas monarquias quando em Áries, etc. Nem podem acreditar que o Sumo Pontífice tenha proibido a astrologia aos cultíssimos cristãos, mas somente aos que abusam dela para adivinhar os atos do livre arbítrio e os acontecimentos sobrenaturais, enquanto que as estrelas, em relação às coisas sobrenaturais, não passam de sinais e, em relação às coisas naturais, só agem como causas universais, não passando de ocasiões, convites, tendências. O sol, ao nascer, não nos obriga a sair da cama, mas apenas nos convida a fazê-lo, oferecendo-nos para isso todas as comodidades, ao passo que a noite impede, com mil incômodos, que nos levantemos, sendo comodíssima para dormir. Agindo, pois, indiretamente e ao acaso sobre o livre arbítrio, ao mesmo tempo que agem sobre o corpo e sobre a sensibilidade corpórea inerente aos órgãos corpóreos, é a mente excitada pelos sentidos ao amor, ao ódio, à ira e a todas as outras paixões, dependendo, então, do homem assentir ou opor-se à paixão despertada. Assim é que as heresias, as carestias, as guerras pré-indicadas pelas estrelas, muitas vezes se verificam na realidade, porque muitos homens se deixam governar, não pela razão, mas pelos apetites sensuais, dando lugar a essas coisas que acontecem contra a razão, embora também sucedam, frequentemente, por terem obedecido racionalmente a uma paixão, como quando se alimenta uma justa cólera para empreender uma guerra justa.”


“Na África, onde reina a influência de Câncer e de Escorpião, além das amazonas, veem-se, em Fez e em Marrocos, lupanares de homens e muitas outras coisas infames a que o clima convida, mas não obriga.”


“A verdade do Evangelho é conforme a natureza. Se, em algumas coisas, nos afastamos do Evangelho, ou parece que nos afastamos, isso não se deve atribuir à impiedade, mas à fraqueza humana, que, à falta de revelação, julga justas muitas coisas que à luz da mesma não o são. Foi por isso que imaginamos a nossa república no gentilismo que espera a revelação de uma vida melhor e que, vivendo segundo os ditames da razão, merece possuí-la. Além disso, são catecúmenos da vida cristã, e Cirilo¹ disse, contra Juliano², que a filosofia foi dada aos gentios como catecismo para a fé cristã. Por conseguinte, para ensinar os gentios a viver retamente, se não quiserem ser abandonados por Deus, e convencer os cristãos de que a vida de Cristo é conforme à natureza, tomamos o exemplo desta república, como São Clemente³ romano tomou o da república socrática e como fizeram São Crisóstomo e Santo Ambrósio4. É, portanto, claro que, com essa maneira de viver, não tendo os magistrados motivos para ambicionar os postos, desaparecem todos os vícios assim como todos os abusos decorrentes da sucessão, da eleição ou da sorte, pois estabelecemos uma espécie de república como a dos grous e das abelhas, celebrada por Santo Ambrósio. Desaparecem, igualmente, as sedições dos súditos, que decorrem da insolência dos magistrados, da sua licenciosidade, da soberba, da ociosidade, etc., da riqueza. E assim todos os males provenientes dos dois contrários, a riqueza e a pobreza, que Platão e Salomão consideram como a origem dos males da república: a avareza, a adulação, a fraude, o furto, a sordidez, da pobreza; e a rapina, a arrogância, a soberba, a ociosidade, etc., da riqueza. Assim se destroem os vícios provocados pelo abuso do amor como os adultérios, a fornicação, a sodomia, os abortos, o ciúme, as discórdias domésticas, etc. Assim os males que procedem do excesso de amor dos filhos ou dos consortes; a propriedade que elimina, como diz Santo Agostinho5, as forças da caridade; o amor-próprio que ocasiona todos os males, como diz Santa Catarina num diálogo; a avareza, a usura, a iliberalidade, o ódio do próximo, a inveja dos ricos e dos grandes. Nós, ao contrário, aumentamos o amor da comunidade e acabamos com os ódios despertados pela avareza, raiz de todos os males; e com os conflitos, as fraudes, os falsos testemunhos, etc. Assim todos os males do corpo e da alma, provenientes do trabalho excessivo para os pobres e do ócio para os ricos. Entre nós, as fadigas são igualmente divididas.”
1: Santo da igreja, tradutor da Bíblia.
2: Juliano, o Apóstata. Imperador romano que renegou a religião cristã. Morreu em combate, no ano 363.
3: Bispo e mártir da Igreja (séc. I).
4 Santo Ambrósio (340-397). Bispo de Milão, doutor da Igreja romana.
5: Grande padre da Igreja romana, autor de numerosas obras: As ConfissõesA Cidade de Deusetc.


“Já sob Pompílio era considerado nefando atacar os inimigos com meios contrários à virtude.”


“É, ao contrário, uma suprema felicidade viver virtuosamente, como diz São Crisóstomo, e se cometes uma falha, logo a corriges, antes de sofrer-lhe os efeitos. A licenciosidade é a causa dos males, sendo feliz a necessidade que nos força ao bem. A nós, habituados ao mal, é que nos parece duro esse gênero de vida, como aos jogadores e aos díscolos a vida dos bons cidadãos, e a estes a vida dos monges. Mas experimentai, e vereis que os religiosos nunca se revoltam pela severidade da disciplina, e, quando isso acontece, é pelo comércio dos laicos, pela ambição das honras e o amor da propriedade, ou pela libidinagem.”


“Não acharás nenhum lugar em que mais se tenha feito pela doutrina e a conservação das ciências do que nas ordens dos monges e dos frades. (...)
O monaquismo foi instituído para o aumento da santidade e da ciência, e não para agravar a submissão, como pretendem os hipócritas.”


 “As palavras do Papa São Clemente na epístola 4, citada por Graciano* no cânon 2, questão I: “Caríssimos, o uso de todas as coisas que estão neste mundo devia ser comum; por iniquidade, porém, um diz que isto é seu, outro aquilo, etc.” E acrescenta que os apóstolos ensinaram e viveram de modo que tudo fosse comum, inclusive as mulheres (exceto para o tálamo como o atesta Tertuliano, pois é patente que as mulheres serviam a todos). Assim ensinam, igualmente, todos os padres, ao comentarem o princípio do Gênesis, segundo o qual Deus não distribuiu nada e deixou tudo em comum aos homens, para crescerem, multiplicarem-se e povoarem a terra. E também assim ensina Isidoro¹, no capítulo do jus natural. Quanto a terem os apóstolos vivido dessa maneira, como todos os cristãos primitivos, vê-se por São Lucas, São Clemente, Tertuliano, Crisóstomo, Agostinho, Ambrósio, Filão, Orígenes e outros. Esse sistema de vida restringiu-se, depois, somente aos clérigos que viviam em comum, como o atestam eles próprios e São Jerônimo, Próspero², o Papa Urbano e outros. Mas, sob o Papa Simplício, mais ou menos no ano 470, foi feita pelo mesmo a divisão dos bens da Igreja, de forma que uma parte coubesse ao bispo, outra à fábrica, outra ao clero e outra aos pobres. É, pois, uma heresia condenar a vida em comum ou dizê-la contrária à natureza. Quer para a vida presente, quer para a futura, é melhor a comunidade dos bens. E São Crisóstomo informa que esse gênero de vida existiu entre os monges e ele o adota, insinuando-o e pregando-o a todos. Ensina ainda, na homília ao povo da Antioquia que ninguém é dono dos seus bens, mas apenas despenseiro, como o é o bispo dos da Igreja, sendo culpável todo laico que abusa dos seus bens sem comunicá-lo aos outros. Diz Santo Tomás que somos donos da propriedade, não do uso, pois que, em extrema necessidade, todas as coisas são comuns. Por isso, se refletires bem, tal propriedade é antes um tributo pela obrigação de reconhecer a má distribuição, o que é, aliás, confirmado por São Basílio no sermão aos ricos e por Santo Ambrósio no sermão 81. São Crisóstomo inculca-o em quase todas as suas homílias e, particularmente, no capítulo 6, sobre São Lucas, onde se acham estas palavras: Nemo dicat quid proprium: a Deo perci-pimus omnia; mendacü verba sunt meum et tuum.³ O mesmo afirma Sócrates na República de Platão ou no Timeu4, o mesmo Santo Agostinho no tratado 8° sobre João, e o mesmo o poeta Cristiano:
Si duo de nostris tollas pronomina rebus, Proelia cessarent, pax sine liteforet.5
Ovídio6, nas Metamorfoses, I, põe esse sistema de vida no século de ouro. Ambrósio, na carta L, sobre o salmo 118, diz: Dominus noster terras hanc possessionem omnium hominum voluit esse communem; sed avaritia possessionum jura distribuit.7 E em outro livro diz que a violência, o morticínio e a guerra distribuíram as coisas aos hebreus mas não aos levitas8, que representavam a religião e o clero. São Clemente, mais tarde, afirma que a propriedade se deve à iniquidade dos gentios. O mesmo Santo Ambrósio, no livro I dos Ofícios, capítulo 28, prova, com a Escritura e com a autoridade dos historiadores, que todas as coisas eram comuns, tendo sido divididas por usurpação; e ensina, com o exemplo da república das abelhas, a vida em comum, tanto dos bens como da geração e, com o exemplo dos grous, representa a vida comum numa república militar. Jesus Cristo prova o mesmo com o exemplo dos pássaros, que não possuem nada de próprio, nem semeiam, nem ceifam, nem dividem o pasto. Como diz o jurisperito, "O direito natural é aquele que a natureza ensina a todos os animais9. É, pois, certo que, por direito natural, todas as coisas são comuns.
Scot, nas Sentenças, 15, afirma que a comunidade é o direito natural do estado de natureza, tendo sido tal direito derrogado com o pecado de Adão. Falsa, porém, é essa afirmação, porque, como diz Santo Tomás, o pecado não destrói os bens da natureza, mas apenas os da graça. O pecado ofende a natureza e a razão, mas não introduz um novo direito; portanto, se a comunidade era de direito, só a injustiça poderia ter introduzido a divisão. Eis por que também a glosa sobre o texto de São Clemente diz que esta foi introduzida “Por iniquidade, sendo o direito das gentes contrário ao direito natural”10: Mas como pode haver um direito, se é contrário à natureza, que é arte divina? Nesse caso, o direito seria um pecado. Scot responde que isso se deve à iniquidade, isto é, ao pecado original, mas esse comentário é falso, porque como explicará ele as palavras de Santo Ambrósio, que diz ter sido a divisão introduzida pela avareza e pela violência? De resto, São Clemente diz que os apóstolos nos fizeram voltar ao estado de jus natural, de onde resulta que o que foi iniquidade o é também agora. Caetano ensina que se tratava de uma comunidade natural negativa, isto é, que a natureza não ensinou a divisão, e não afirmativa, como se tivesse dito que se vivia em comum e não de outro modo. E Scot, como de costume, adere a essa opinião, mas acrescenta: “Como é, então, que a divisão provém da iniquidade e da avareza, como ensinam os santos, se a comunidade no estado de natureza era apenas negativa?” Por isso, com mais razão ainda, ensina Santo Tomás que o uso comum é de direito natural, sendo a distribuição e a aquisição da propriedade de direito positivo. E essa divisão não pode ser contrária à natureza, porque essa propriedade é, no caso, de necessidade, e, em tudo o que sucede, o necessário se torna comunidade, como ensina ao falar das esmolas, e tudo o que excede as necessidades da pessoa e da natureza deve ser dado, pois de outra forma não seriam condenados no dia do juízo os que não aliviaram os necessitados. E embora essa doutrina de Santo Tomás pareça justificar, até certo ponto, a divisão, só lhe reconhece, contudo, o direito de distribuir e de aliviar, de onde se conclui, segundo a doutrina de São Crisóstomo, Basílio, Ambrósio e do Papa Leão (Ser. V, de Collectis), que os ricos são distribuidores e não donos das coisas; que, se são senhores, só o são de distribuir e dar, como os bispos da parte da Igreja; que, por conseguinte, a parte de que são senhores se limita à comida e ao vestuário. E essa parte a possuem também os monges, como lha atribui e prova o Papa João XXII na Extravagantes11. Uma vez que o monge e o apóstolo comem de direito e não injustamente, têm eles igualmente o uso de direito e não somente de fato, já que este último direito o tem o ladrão quando come as coisas de outrem. Scot acha que esse papa errou, talvez movido pelo ódio contra os franciscanos12, pois os pontífices Clemente V e Nicolau III concedem aos franciscanos somente o uso de fato, não de direito, como um convidado à ceia come somente de fato e não de direito. Mas Scot se engana e injustamente condena um papa, pois os pontífices por ele citados não destroem o direito de jus natural, mas apenas o direito positivo, e também Santo Tomás pensa que, nas coisas que se destroem com o uso, não se pode distinguir o uso do domínio, como se vê no tratado do usufruto das coisas que se consomem com o uso (livro 2). Eis por que esses pontífices não se contradizem entre si, como ensina João XXII, mas, ao contrário, é herege quem nega o uso de direitos aos apóstolos e a Cristo, porque, então, não teriam comido de direito, mas injustamente, como o ladrão. O ladrão tem o direito de fato, mas na necessidade tem também o direito natural. De tudo isso resulta a solidez da doutrina dos santos contra os tolos que põem a boca no mundo. O convidado come de direito e o seu título é a doação, não menor que o título de venda. Mas pergunto: são os ricos obrigados a restituir o supérfluo? A quem? Aos pobres ou à república? Respondo que à república e aos pobres, mas, para não haver lugar para disputa, para que não adquiram um direito positivo, digo que a Deus, a quem deverão prestar contas no dia final, como ensinam São Basílio13, Ambrósio e Leão.
Por conseguinte, com a nossa república são tranquilizadas as consciências, eliminada a avareza, raiz de todo mal, bem como as fraudes cometidas nos contratos, os furtos, as rapinas, a indolência e a opressão dos pobres, a ignorância que invade também os engenhos mais bem formados, porque fogem ã obrigação quando pretendem filosofar, e as preocupações inúteis, as fadigas, o dinheiro que mantém os negociantes, a iliberalidade, a soberba e os outros males produzidos pela divisão: o amor-próprio, as inimizades, as invejas, as insídias, como já se mostrou. Distribuindo-se as honras segundo as aptidões naturais, evitam-se os males causados pela sucessão, pela eleição e pela ambição, como ensina Santo Ambrósio falando da república das abelhas. E assim seguimos a natureza, que é ótima mestra, como no caso das abelhas. A eleição de que fazemos uso não é licenciosa, mas natural, sendo eleitos os que se distinguem pelas virtudes naturais e morais.”
*: Fundador do direito canônico. Procurou conciliar as leis do foro eclesiástico com as do secular. Decreti Gratiani, ou Concórdia Discordantium Canonum, foi publicado entre 1140 e 1150.
1: Bispo e escritor do século VI.
2: Santo e escritor cristão.
3: “Ninguém diga que possui, pois tudo recebemos de Deus: as palavras meu e teu são imposturas.”
4: Título de um Diálogo no qual Platão discute a transmigração das almas.
5: “Se tirares os dois pronomes das nossas coisas, cessarão as guerras e reinará a paz sem conflitos.”
6: Públio Ovídio Nasão (43 a. C.-17 d. C), nascido em Sulmona. Autor das Metamorfoses, da Arte de Amar, dos Fastos, etc.
7: “Nosso Senhor quis que esta terra fosse propriedade comum de todos os homens; mas a avareza dividiu os direitos de posse.”
8: Descendentes de Levi, aos quais foi confiado o serviço divino. Agruparam-se, ao tempo de Davi, como cantores, diáconos, porteiros, guardas do templo, escribas.
9: jus naturale est id quod natura omnia animalia docuit.
10: per iniquitatem, id est per jus gentium contrarium júri naturali.
11: Codificação de leis canônicas esparsas realizada no pontificado de João XXII (1316-1334). (N. do E.)
12: Frades da ordem de São Francisco de Assis, fundada em 1215 e confirmada em 1223.
13: Um dos padres da Igreja grega.


“Nada pode ser usurpado de alguém, nutrindo-se todos à mesa comum e recebendo a roupa do magistrado do vestuário, segundo a qualidade e as estações e conforme à saúde. E é também o que se verifica entre os monges e os apóstolos solares. Como não possuem nada de próprio para poderem violar o direito alheio com o fim de engrandecer os filhos, convém-lhes agir bem para serem honrados. Eis por que, considerando-se todos como irmãos, filhos e parentes, um igual amor se mantém por todos sem nenhuma distinção. Ninguém combate mediante pagamento, mas por si, pelos filhos e pelos irmãos. Possuindo cada qual com que viver bem, ninguém tem necessidade de estipêndio, mas da honra que obtém dos irmãos por suas ações valorosas. Os romanos, até a guerra de Terracina¹, combateram sem estipêndio e porfiavam em morrer pela pátria; vindo, porém, o amor da propriedade, principiou a faltar a virtude. Salústio e Santo Agostinho ensinam que eles alcançaram tanto império por amor à comunidade. Citado por Salústio², diz Catão que Roma construiu o império e manteve a liberdade dos cidadãos pela ausência de cupidez dos romanos.”
1: Cidade do Lácio.
2: Caio Crispo Salústio (86-35 a.C), nascido em Amiterno. Autor das monografias sobre a conspiração de Catilina e a guerra de Jugurta.


“Todos, até uma certa idade, determinada no texto, são pais de todos coletiva e separadamente: o primeiro é verdadeiro segundo o ato natural, o outro segundo a caridade natural. Nem por isso diminui a caridade, mas só a cobiça e a avareza, porque o homem, sob o regime da divisão, tende a amar os próprios filhos mais do que convém e a desprezar os alheios além da medida. Por conseguinte, o homem sábio ama mais os melhores, mesmo que sejam alheios, e se preocupa mais com os maus, para melhorá-los. É desagradável ver tantas deformidades no gênero humano: horrorizam-nos os coxos os cegos, os miseráveis, porque são do nosso gênero e representam a cada um a própria infelicidade. Pela comunidade dos filhos, dos irmãos, dos pais, das mães, providencia-se de modo que diminua o excessivo amor-próprio, que é a cobiça, e aumente o amor comum, isto é, a caridade. É por isso que diz Santo Agostinho: Abolir a propriedade é aumentar a caridade¹. E, na verdade, é melhor crer em Santo Agostinho do que em Aristóteles. Com o primeiro está, igualmente, São Paulo que diz: A caridade não cogita do que é seu, antepondo as coisas comuns às próprias e não as próprias às comuns. Na união dos monges observa-se o mesmo: não possuindo nada de próprio, o monge ama a comunidade como o pé a todo o corpo; e, se algo possui, é como um membro amputado ou um pé cortado, só se preocupando com o que é seu. O mesmo acontecia na república romana: quando os cidadãos eram pobres e a república rica, todos queriam morrer pela pátria; quando, porém, os cidadãos ficaram ricos, cada qual tornou-se capaz de matar a própria pátria em benefício próprio. Aduz o apóstolo o exemplo dos membros e do corpo, o mesmo ensinando Ambrósio e Crisóstomo. Por conseguinte, o amor, na comunidade, não seria como uma gota de mel em muita água, mas como um pequeno fogo em muita estopa. Porque o amor é uma das primalidades e, por natureza, difusivo como o fogo. Só se é feliz, na sociedade de muitos, pela fama, pela difusão do nome, pela memória e pelo maior número de auxílios que se recebe.
Separadamente, embora filho de um só, cada um pode ser amado por todos os que formam um só na caridade. E é assim que o tio, por se considerar de uma mesma família, ama os sobrinhos, embora estes não tenham sido gerados por ele. E quanto ao papa e aos cardeais, quem não vê quanto amam os sobrinhos e consanguíneos, que eles não geraram? Amamos os amigos e os filhos dos amigos, do mesmo modo que os velhos, nos mosteiros, amam os noviços, sobretudo os virtuosos, desprezando os inimigos da caridade. A fisionomia engana, pois nem sempre os filhos se parecem com o pai, mas muitas vezes com os estranhos. De pouco obstáculo seria, aliás, essa pequena propensão em nossa república, onde tudo é ordenado segundo a lei da natureza e do mérito. Jacó também amou mais a José assim como outros amaram mais a outros. Isso não prejudicaria a comunidade nem a caridade. Os filhos, na comunidade, não conjurarão entre si, pois vivem todos sob a mesma disciplina. As santas mulheres dos patriarcas, como Raquel e Lia, consideravam também seus os filhos das criadas. Aristóteles, porém, não conhece tal caridade.”
1: Amputatio proprietatis est augmentum caritatis.
2: Caritas non quaerit quae sua sunt.

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