Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-120-5
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 256
Sinopse: Este é o primeiro livro de Leandro Konder, publicado em 1965. Sua
importância histórica é dupla: de uma parte, enfrenta uma temática até então
negligenciada pelos estudiosos brasileiros – o conceito marxista de alienação;
de outra maneira, assinala uma inflexão na reflexão filosófica do marxismo no
Brasil, ao tratar da obra de Marx num registro decididamente antidogmático.
“Assim – e apesar da discrepância de perspectivas já referida –
parece-nos ouvir um eco do pensamento do jovem Marx dos Manuscritos
de 1844 naquilo que Lukács
escreveu em algumas passagens de História
e consciência de classe a respeito do fenômeno da reificação: “Neste fenômeno estrutural
fundamental, é preciso reter, antes de tudo, que ele faz com que ao homem se
oponha a sua própria atividade, o seu próprio trabalho, como algo objetivo, independente
dele, como algo que o domina através de leis próprias, estranhas ao homem”.
Nesta mesma linha de interpretação, Lukács procura constantemente caracterizar
a reificação como um processo mediante o qual uma determinada relação
concreta entre homens é dissimulada por uma “objetividade ilusória” e assume a feição
de “coisa”. (Coisa em latim é res: daí reificação).
No curso deste estudo, teremos ocasião de recorrer a observações do
jovem Lukács (o Lukács de 1922) que nos possibilitarão, talvez, uma visão mais clara
de como coincidem bastante a reificação lukacsiana e o conceito de alienação
usado pelo próprio Marx, para o qual aquilo que é criação do homem se
afasta (aliena) dele, torna-se-lhe estranho, volta-se contra
ele.
Na acepção marxista, por conseguinte, a alienação é um fenômeno que
deve ser entendido a partir da atividade criadora do homem, nas condições em
que ela se processa. Deve ser entendido, sobretudo, a partir daquela atividade
que distingue o homem de todos os outros animais, isto é, daquela atividade
através da qual o homem produz os seus meios de vida e se cria a si mesmo: o trabalho
humano.
Esta concepção do homem como autocriação, como ser que se produz a si
mesmo pelo trabalho humano, é um dos fundamentos essenciais da filosofia
marxista. O padre Chambre chega a admitir que, a partir dela, não há como
deixar de aceitar a teoria marxista da luta de classes: “se o homem fosse
apenas atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundo que o cerca, é certo
que toda apropriação privada seria fonte de violência e dominação do homem
sobre o homem” (De Marx a Mao
Tse-tung).17 Para
um cristão, como Chambre, a ideia de que o homem se faz a si mesmo e humaniza o
mundo pelo trabalho, eliminando toda transcendência e reduzindo o homem à
história, acaba por sacrificar-lhe a espiritualidade; rebaixando-o à condição
animal. De mais a mais, o cristão vê na autossuficiência do homem (tal como os
marxistas o concebem) uma manifestação do pecado do orgulho.
Mas, voltando à concepção marxista do trabalho humano, vejamos como o
próprio Marx coloca a questão: “certamente o animal também produz – escreve
Marx nos Manuscritos
de 1844. Ele constrói para seu uso um ninho, habitações do tipo das da abelha
etc. Mas só produz aquilo de que necessita imediatamente para ele mesmo ou para
a sua progênie. Produz de modo limitado, ao passo que o homem produz
universalmente. O animal só produz sob o imperativo da necessidade física
imediata, enquanto o homem produz mesmo quando se acha livre da necessidade
física; e não produz verdadeiramente como homem senão quando se acha livre
desta necessidade”.
Em O capital, esta observação acerca da especificidade humana
do trabalho do homem é retomada: “A abelha, com a estrutura das células
de cera, ultrapassa em habilidade muitos arquitetos. Mas o que distingue o
trabalho do arquiteto mais bisonho da atividade da mais hábil das abelhas é o
fato de que, antes de construir a célula na colmeia, o arquiteto a constrói na
sua cabeça. O resultado a que chega o trabalho preexiste idealmente na cabeça
do trabalhador”.
Sendo o trabalho humano a atividade através da qual o homem se produz a
si mesmo, sendo a atividade produtiva do homem uma atividade humanizadora
por natureza, Marx preocupou-se em saber por que e como se haviam criado
condições nas quais o trabalho, de condição natural para a realização do homem,
chegara a se tornar o seu algoz.
Como foi possível que o trabalho produtivo, do qual resultaram todas as
inestimáveis conquistas tecnológicas em que se baseia o funcionamento do mundo
contemporâneo, tenha chegado a se apresentar diante do trabalhador – precisamente
diante do trabalhador – como “uma atividade que é sofrimento, uma força que é
impotência, uma procriação que é castração?” (Manuscritos). Como
foi possível que a realização do trabalho surgisse, afinal, a economia
política, como desrealização do operário? (idem).
Num primeiro momento, Marx constata a alienação do trabalho em
relação ao trabalhador. Ele verifica que numa sociedade voltada para a produção
de mercadorias se manifesta uma cisão entre o produto e o produtor; e o mundo
do produto – da mercadoria – passa a impor as suas exigências e os seus
valores ao mundo dos produtores. “Quanto mais o trabalhador produz
mercadorias, mais se transforma
a si mesmo em mercadoria
envilecida. A desvalorização do homem aumenta na razão direta da valorização
dos objetos” (Manuscritos).
“O esbulho do operário em proveito do seu produto significa não só que o seu trabalho se tornou objeto, adquirindo existência exterior a
ele, mas que este trabalho se torna estranho a ele e se ergue diante dele como
potência autônoma” (Manuscritos).
Mais adiante, Marx se pergunta por que o produto do trabalho se aliena
do trabalhador e conclui que isso ocorre porque tal produto, antes mesmo da
realização do trabalho, pertence a outrem que não o trabalhador. E é levado a
considerar o sistema de propriedade que promove a desapropriação do trabalhador
em relação ao produto do trabalho.
Por fim, do exame das formas de organização social baseadas na
propriedade privada e no sistema de produção de mercadorias, Marx
conclui que “tudo que aparece no trabalhador como atividade de alienação aparece
no não trabalhador como condição de alienação” (Manuscritos), de modo que a alienação, dentro de
uma sociedade dividida em classes, acaba por atingir todos os indivíduos que a
compõem, tanto explorados quanto exploradores.
Para aprofundar o seu exame, Marx veio a empreender a exaustiva investigação
de O capital.
Marx estava seguro de ter encontrado na alienação econômica a
raiz do fenômeno global da alienação. Ele sabia que, antes de poder
fazer política, ciência, religião etc., os homens precisam comer,
beber, vestir e ter um teto para morar. Sabia que, antes do trabalho
intelectual típico, o homem tem de realizar o trabalho material de que depende
a sua subsistência.
Jamais lhe ocorreu, porém, reduzir o fenômeno da alienação, nas
suas múltiplas formas, aspectos e dimensões, à alienação econômica, tal
como jamais lhe ocorreu reduzir todo o trabalho humano ao trabalho diretamente
empenhado na produção econômica.
A pluridimensionalidade é fundamental na alienação, tal como o
fenômeno é visto pelos marxistas. É isto que o padre Calvez parece não ter
compreendido quando, na sua obra O pensamento de Karl Marx,18 estuda a teoria marxista da alienação com
base em um esquema reducionista, fundado na seguinte convicção: “As categorias
encadeiam-se logicamente e supõem-se umas às outras pela redução sucessiva das
diversas alienações, desde a alienação religiosa até a alienação econômica”.
Com tal esquema, a alienação econômica torna-se a causa exclusiva da
qual as alienações ideológicas não passariam de meros efeitos,
subprodutos, consequências inertes e sem vida própria.
Também por autores marxistas, salvo engano da nossa parte, este ponto –
que se refere à pluridimensionalidade da alienação – não tem sido
compreendido com clareza. Não que se negue à alienação uma feição
política, uma feição religiosa, uma feição filosófica etc. Mas o que ocorre, em
alguns casos, é que o mecanismo das alienações extraeconômicas aparece,
nas análises de certos marxistas, como um mecanismo epifenomênico: os
movimentos em que se consubstanciam as alienações ideológicas se
apresentam como destituídos daquela autonomia relativa a que se acha ligada a
especificidade dessas alienações.
Este equívoco traz, como consequência, uma subestimação do estudo das
formas particulares de que se revestem as alienações ideológicas.”
17 De Marx a Mao Tse-tung, Henri CHAMBRE, trad. Henrique Cândido
de Lima Vaz S, J., ed. Duas Cidades, São Paulo.
18 La Pensée de Karl Marx, Jean-Yves CALVEZ, éd. du Seuil,
Paris. Edição em português (2 volumes) pela Livraria Tavares Martins, Porto,
trad, Agostinho Veloso.
“A assimilação do
marxismo a uma perspectiva economicista se choca, desde logo, com a
expressão dada pelo próprio Marx às suas ideias.
Examinando o texto
dos Manuscritos
de 1844, Henri Lefebvre encontrou o fenômeno da alienação ali
descrito sob diversas rubricas: a) a alienação do trabalhador reduzido à
condição de objeto pela força estranha que se ergue diante dele no seu
trabalho; b) a alienação da atividade produtora, isto é, do trabalho,
que sofre uma cisão interna e se subdivide; c) a alienação do homem em
relação à espécie humana, a redução do humano à satisfação das necessidades animais,
com sacrifício das necessidades especificamente humanas; d) a alienação do
homem em relação à natureza (Critique de la vie quotidienne, Avant-Propos de
la 2eme Édition).20
O que evidencia,
segundo expressão de Lefebvre, o “caráter poliscópico” da alienação, tal
como Marx a analisou.
De acordo com a
concepção marxista, a alienação resulta da divisão do trabalho.
Refere-se, por conseguinte, a um fenômeno primordialmente econômico. Este
primado do econômico, entretanto, não deriva de nenhuma lei eterna ou de
qualquer imutável mandamento divino ou maldição demoníaca.
Como escreve Vieira
Pinto, “as relações entre os homens são mediatizadas pelas coisas, e daí provém
a possibilidade de que o domínio de um pequeno grupo sobre extensas massas se
exerça mediante a posse, por esse grupo, de objetos, por exemplo, as máquinas de
produção industrial, que afetam vitalmente a existência das massas” (Consciência
e realidade nacional,21 tomo II). Acontece, porém, que o que
aqui está dado é apenas a possibilidade abstrata de que o domínio se venha a
estabelecer. Uma possibilidade que só se concretiza dentro de determinadas
condições históricas.
Não foi por acaso
que um marxista como Gramsci chegou a defender a tese de que na expressão “materialismo
histórico” o acento deve recair sobre o segundo termo e não sobre o primeiro...
Adotada a sugestão gramsciana, ficaria enfatizado o caráter de “historicismo
absoluto” do marxismo.
O materialismo
histórico é constatativo e não normativo. Não prescreve o primado do
econômico para todo o sempre; limita-se a tornar inteligível o primado do
econômico tal como ele vem ocorrendo até os nossos dias e tal como ele se
manifesta na realidade presente.
Os homens não estão
inapelavelmente condenados a viver sob o primado do econômico. Do contrário,
não teria sentido o “salto do reino da necessidade para o reino da liberdade” a
que se referem Marx e Engels, quando querem caracterizar o fim da pré-história da
humanidade e o acesso a uma sociedade comunista.
O que tem feito que
a vida social, de um ou de outro modo, venha girando sempre, através da
história, em torno da economia – o que tem feito com que a economia venha sendo
sempre “a espinha dorsal da sociedade” – é aquilo a que Sartre, na sua recente Critique
de la raison dialectique,22 dá o nome de rareté: a pobreza
em que ainda se encontra o desenvolvimento da dominação do homem sobre o
seu mundo. O relativo atraso, ainda não superado pela humanidade como um todo.
A defasagem que ainda subsiste entre as riquezas controladas pelos homens e as exigências
colocadas para um desfrute seguro, verdadeiramente humano e geral.
“No curso de toda a
história passada – diz Lucien
Goldmann – seja por causa
da indigência das sociedades primitivas, seja por causa da divisão em classes
das sociedades ulteriores, os homens foram obrigados a consagrar a maior parte
das atividades deles a resolver os problemas concernentes à produção e à
distribuição das riquezas materiais, isto é, os problemas habitualmente
chamados de problemas econômicos” (Recherches dialectiques).23
Dentro do quadro de
pobreza em que se vem desenrolando a história da humanidade, a
prioridade biológica da satisfação das necessidades materiais em relação à
satisfação das necessidades ditas espirituais tem a sua réplica, na vida
social, em uma subordinação (não absoluta, mas real) das superestruturas
ideológicas à infraestrutura econômica.
O método dialético
aplicado à história da humanidade por Marx e Engels leva à constatação de que,
no movimento da história, tal como ele vem sendo realizado pelos homens, se
manifesta uma lógica interna, um encadeamento necessário na sucessão das grandes
transformações.
A necessidade
histórica, entretanto, não é e nunca foi uma força independente da
vontade dos homens. Os homens – os indivíduos agem, cada um perseguindo os seus
próprios fins. As ações individuais, todavia, na medida em que alcançam
repercussão na história coletiva, não são puramente casuais, arbitrárias,
porque partem de desafios concretos, objetivos, colocados pela situação material
em que vivem os homens de cada época, de cada povo, de cada classe social.
“Os homens – escreveu
Marx numa carta
a Paul Annenkov – não escolhem
livremente as suas forças produtivas, que constituem a base de toda a sua
história, pois toda força produtiva é uma força adquirida, é o produto de uma
atividade anterior. O simples fato de que toda geração nova encontre diante
dela forças produtivas adquiridas pela geração anterior, que lhe servem de matéria-prima
para a nova produção, cria um encadeamento na história dos homens”.
Cada geração
encontra, legada pela geração anterior, determinada estrutura social
organizada, determinado estatuto de propriedade, determinadas relações sociais
de produção. Encontra, igualmente, determinadas forças sociais produtivas, desenvolvidas
até um certo ponto que foi alcançado no tempo da geração precedente.
Cumpre-lhe, como tarefa de vital importância, prosseguir no desenvolvimento das
forças sociais produtivas, a fim de assegurar melhores condições materiais de
existência e levar avante o progresso tecnológico, a dominação da natureza pela
humanidade.
Ocorre, entretanto,
que o desenvolvimento das forças sociais produtivas não acarreta uma evolução
automática das formas de organização social e das relações sociais de produção
instituídas com base em um determinado estatuto de propriedade. Para melhor
defender os seus privilégios de proprietários, a partir de certo momento
(quando as relações de produção vigentes não comportam mais um eficaz
atendimento às exigências criadas pelo desenvolvimento das forças sociais
produtivas), os beneficiários deste determinado estatuto de propriedade começam
a agir de maneira antiprogressista. E entram em choque com as classes e camadas
sociais mais diretamente interessadas no progresso.
Ingressamos, assim,
numa fase de crise institucional, em que se manifesta um poderoso conflito de
interesses entre proprietários e não proprietários. Ou, para ser mais exato,
entre beneficiários de uma determinada forma de propriedade e não beneficiários,
espoliados.
A este fenômeno é
que se referia o ex-presidente dos Estados Unidos da América do Norte, James
Madison. quando escrevia: “Proprietários e não proprietários sempre formaram
interesses diversos dentro da sociedade” (The federalist, nº 10, 1787,
citado por Ossowski em Class structure in the social consciousness).24
É o fenômeno da
luta de classes. Não se trata de uma invenção de Marx e Engels: estes se
limitaram à formulação de princípios gerais da interpretação dos fatos em que o
fenômeno se apresentava, fatos que, de resto, já haviam sido registrados por
outros autores (como, por exemplo, Babeuf).
A interpretação
marxista da luta de classes, contudo, é a primeira a explicar o fenômeno em
suas reais dimensões; graças a ela, estamos em condições de compreender que,
dentro de uma sociedade dividida em classes, “a prática individual, façamos o
que fizermos, realiza em cada um o ser de classe” (Sartre, Critique de la
raison dialectique). Graças a ela, podemos afirmar que, “cada vez que
se trata de achar a infraestrutura de uma filosofia, de uma corrente literária
ou artística, chegamos, não a uma geração, a uma nação ou a uma igreja, mas a
uma classe social e às suas relações com a sociedade” (Lucien Goldmann, Sciences
humaines et Philosophie).25
A partir da
convicção de que o ser condiciona o pensar, Marx e Engels aferiram a
extraordinária importância da maneira de ser condicionada pelo tipo particular
de inserção do indivíduo dentro da estrutura social que é a sua pertinência a
uma determinada classe social. É evidente que Marx e Engels – como
pensadores dialéticos que eram – jamais conceberam as relações entre o ser e o
pensar como relações de causa e efeito puramente unívocas, e sim como
interações (a anterioridade do ser em relação ao pensar devendo ser encarada
como um momento, como um dado histórico concreto, e não como uma lei
metafísica). É evidente, também, que Marx e Engels não pretenderam reduzir a
riqueza da psicologia individual e a autonomia do movimento da consciência a um
protótipo abstrato de consciência de classe.
Coube-lhes, porém,
vibrar um autêntico golpe de morte nas análises que supunham ser possível
captar o fundamental de uma mentalidade, quer no caso de um indivíduo,
quer no caso de uma coletividade, sem partir do estudo do seu relacionamento
essencial com as condições concretas em que vivem o indivíduo ou a coletividade
dados.
Munidos da
aparelhagem conceitual elaborada pelo marxismo, ficamos sabendo que, quando
quisermos compreender as concepções filosóficas das sociedades antigas, cujo
sistema de produção era baseado na escravidão, não podemos nos deter no estudo
dos textos dos filósofos (embora tal estudo seja imprescindível), mas
precisaremos reconstituir o quadro geral da vida material que eles tinham e estabelecer
a ligação existente entre as ideias e o uso social que lhes era dado;
precisaremos pesquisar as relações que se manifestavam na prática entre as
teses filosóficas e as classes interessadas em obstar a transformação da
estrutura social existente, de um lado, ou as classes empenhadas nesta
transformação, de outro.
Exemplificando: no
caso da cultura grega do século 5 antes da nossa era, precisaremos investigar
as relações existentes entre as ideias de Platão e os interesses da nobreza
feudal conservadora; as relações existentes entre o materialismo de Demócrito e a burguesia comercial progressista. (Os
escravos, como é sabido, por força das condições a que estavam reduzidos, não
tiveram expressão ideológica própria).
Com isso, não
estaremos reduzindo a filosofia de Platão ao seu conteúdo mais estritamente político
(embora alguns autores marxistas incorram em tal equívoco), mas estaremos
lançando nova luz sobre o background em que foram empreendidas as
construções platônicas.
De qualquer modo,
tanto no caso de Platão, no século 5 antes da nossa era, como no caso de outros
grandes filósofos, de outros séculos, verificamos que já não podemos aprofundar
a nossa compreensão das ideias e concepções gerais se nos mantemos
exclusivamente no terreno filosófico: a elaboração das teorias, por mais abstratas
que sejam, é uma atividade que possui íntima conexão com outros aspectos da
atividade global humana, isto é, com a atividade econômica, política e mundana,
em geral.
E, assim, em toda
atividade humana, através da história, constatamos a presença e os efeitos
daquilo que Lucien Goldmann intitulou “perspectiva parcial inevitável” (Le
Dieu caché) 26 – a presença limitadora de uma consciência de
classe condenada a não poder ser autenticamente universal (porque precisamente
é uma consciência de classe). O ser de classe, como um modo de
ser particular, apresenta aspectos de oposição ao ser universal humano.
Chegamos, então, a
ter diante de nós a divisão da sociedade em classes como problema. Nosso
problema não é mais, pura e simplesmente, a derrubada de uma determinada classe
e do sistema social que ela sanciona; nosso problema é o da própria existência de
classes sociais, é o da própria divisão da sociedade em classes. Por que existe
tal divisão? Como chegou ela a produzir efeitos tão profundos como os que
notamos hoje?
De um lado,
oferece-nos Nietzsche a visão trágica e irracionalista de uma explicação que
eterniza a divisão e só nos pede coragem para aceitá-la como uma situação que
jamais poderá ser superada por nenhuma ação histórica. Escreve Nietzsche: “Uma cultura
superior só pode surgir onde existam duas castas distintas no seio da
sociedade: a dos trabalhadores e a dos ociosos, capacitados para o verdadeiro
desfrute do seu ócio. Ou, para dizê-lo com palavras mais fortes: a casta do
trabalho forçado e a casta do trabalho livre” (Vontade de potência).27
A visão
nietzscheana, porém, possui uma implicação política que salta aos olhos:
legitimando a divisão em classes na teoria, ela ajuda a mantê-la na prática,
lançando no descrédito, a priori, qualquer iniciativa no sentido de
dar-lhe fim. Com isso, presta valioso serviço às classes dominantes.
De outro lado,
abre-se a perspectiva historicista, que nos leva a ver a realidade como um
processo em que nada permanece estático – um permanente processo de
transformação de todas as coisas.
A adesão a esta
perspectiva nos protege contra a alienação que consistiria em darmos
cobertura aos interesses das classes conservadoras, empenhadas em manter
inalterada a situação de que são beneficiárias, sob a ilusão de estarmos
servindo unicamente à ciência.
É uma adesão que
nos obriga, entretanto, a um esforço no sentido de analisarmos concretamente as
condições em que se geraram os fenômenos postos diante de nós. Que nos obriga,
no caso de que estamos tratando, a uma consideração das origens históricas da
divisão da sociedade em classes sociais. Ou, mais exatamente, a uma
consideração da origem histórica da alienação.”
20 Critique de
la vie quotidienne, Henri LEFEBVRE, éd. L’Arche, Paris, 1 ° volume: 1958.
2° volume: 1961.
21 Consciência e
realidade nacional, Álvaro VIEIRA PINTO, ed. Iseb, Rio de Janeiro.
22 Crítique de
la raison dialectique, SARTRE, éd. Gallimard, Paris.
23 Recherches dialectíques, L.
GOLDMANN, éd. Gallimard, Paris.
24 Class structure in the social
consciousness, S. OSSOWSKI, Roudedge & Kegan Paul, London. Edição em português pela ed. Zahar, Rio de
Janeiro.
25 Sciences
humaines et Philosophie, L. Goldmann, éd. Presses Universitaires de France,
Paris.
26 Le Dieu caché, Lucien GOLDMANN, éd.
Gallimard, Paris.
27 Vontade de
potência, NIETZSCHE, ed. Livraria do Globo, Porto Alegre, trad. Mário
Ferreira dos Santos.
“Apesar
dos avanços realizados pelas pesquisas no campo da arqueologia e das mais
recentes conclusões a que chegou a antropologia, não temos elementos para
reconstituir o quadro das condições concretas em que viviam os homens do
paleolítico, senão de maneira muito vaga e fragmentária. Podemos afirmar com
segurança, todavia, que aqueles homens estavam bem mais próximos da
generalidade dos animais desenvolvidos do que dos homens de hoje.
A partir de que
ponto, na sua evolução, a consciência pode ser considerada especificamente
humana? Em que momento se teria efetivamente humanizado a consciência do homem?
Esta é uma questão difícil de ser respondida, no atual estágio alcançado pelo desenvolvimento
dos nossos conhecimentos.
O cientista inglês
Gordon Childe sugere que a conquista do domínio do fogo poderia ser tomada como
sendo o marco decisivo da humanização do animal-homem: “Alimentando e apagando
o fogo, transportando -o, servindo-se dele, o homem estava dando um passo
revolucionário que o afastava do comportamento dos outros animais. Estava afirmando
a humanidade e fazendo-se a si próprio” (Man makes himself).30
O domínio do fogo abriu para os homens possibilidades de desenvolvimento
vedadas a qualquer outra espécie animal.
Podemos
conjecturar, também, acerca da elaboração da linguagem articulada e da
significação de mais esta conquista. Engels observa que ela há de ter decorrido
do próprio desenvolvimento do trabalho. Multiplicando os casos de assistência
mútua e de cooperação necessária, o desenvolvimento do trabalho teria criado
condições nas quais os homens tinham necessidade de se dizer alguma coisa; e a
elaboração da linguagem articulada veio satisfazer esta exigência. (Cf. Dialética
da natureza).31
Uma coisa é certa:
uma vez elaborada, a linguagem articulada, por sua vez, possibilitou
desenvolvimento muito maior do intelecto humano. A utilização da linguagem
articulada já não permite dúvida: estamos diante de um ser – o homem que é
dotado do poder de reflexão. Um ser capaz de refletir a natureza e de
refletir sobre ela, isto é, um ser que já não pertence inteiramente à natureza,
que já não é inteiramente natural, porque precisamente já é humano.”
28 A origem da
família, da propriedade privada e do Estado, F. ENGELS, ed. Vitória, Rio de
Janeiro.
29 La sociedad
primitiva, MORGAN, ed. Lautaro, Buenos Aires.30 Man makes himself, Gordon
CHILDE, The Rationalist Press Association, London.
30 Man makes himself, Gordon CHILDE,
The Rationalist Press Association, London.
31 Dialectique
de la nature, ENGELS, trad. Emile Bottigelli, éd. Sodales, Paris.
Eu creio na persistência em aperfeiçoar os modelos propostos buscando alterar a realidade cruel e injusta, sem violência, com inteligência e tecnologia, tudo pra ontem!
ResponderExcluir