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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica (Parte III), de José Chasin

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-146-8

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 256

Sinopse: Ver Parte I

“Lukács, como tantos outros, a principiar por Engels e Lenin, em modos e graus peculiares a cada adepto ou intérprete, considera o ideário marxiano sob os influxos da atmosfera gnosioepistêmica que havia se constituído em horizonte da cientificidade por volta da rotação do século XIX ao XX e por este afora. Isto refere, designadamente, o postulado, então em vigência absoluta e consagrada, do primado da questão cognitiva sobre o exercício concreto da cognição. Dessa óptica, o discurso sobre o objeto é subsumido ao discurso sobre o próprio discurso. Aquele passa a valer menos pelo que contém do que pelo certificado de garantia previamente expedido pelo segundo, no mais das vezes uma simples auto-chancela protocolar. Todavia, foi uma guerra prolongada, e nesse pugilato cartorial dos saberes, os contendores dos cenáculos político-gnosiológicos, internos e externos ao âmbito marxista, pressionaram muito sobre o estatuto científico da obra marxiana. Basta lembrar a propósito do extenso debate transcorrido ao tempo da Segunda Internacional. Com efeito, muitos fatores contribuíram para que Marx fosse convertido em objeto de investigações epistêmicas, porém, antes de tudo, o espírito do tempo de uma dada época científico-filosófica, que predominou inclusive sobre os mais compenetrados discípulos do pensamento marxiano, por isso mesmo perversamente desentendido.

Lukács – no curso de uma obra das mais ricas e significativas, entre História e consciência de classe e a Estética, isto é, entre seu momento protomarxista e o tempo da mais ampla realização de seu marxismo proto-ontológico (digamos assim, e não apenas por homologia terminológica) – é a mais alta expressão filosófica dessa subsunção marxista de toda uma época ao diktat gnosioepistêmico, ou mais estritamente, à força de sua irradiação como princípio normativo da verdadeira cientificidade, atmosfera sob a qual o marxismo principiou a perder, desde muito cedo e sob dimensão fundamental, nessa precisa batalha não travada, a guerra teórica do século XX, na qual acabou destroçado.

Tanto a dialética entre universal, particular e singular, como súmula do denso vínculo lógico entre Marx e Hegel, quanto a teoria do em-si gnosiológico são exemplos muito importantes dessa rota enviesada que desfigura e até mesmo banaliza o pensamento marxiano. Apesar de não refletirem, nem de longe, o todo do pensamento lukacsiano no vasto período indicado, não são, de outra parte, reles momentos infelizes ou equívocos fortuitos de uma grande jornada intelectual. Tomadas aqui enquanto evidências da enorme dificuldade com que Lukács transitou para a ontologia marxiana, não constituem ocorrências dispersas, isoladas uma da outra, como se fossem tropeços ocasionais em caminhadas independentes. Ao contrário, combinam muito bem, conceitualmente, e por sua articulação podem ser vistas como o eixo em torno do qual girou boa parte da imagem lukacsiana da obra de Marx. Sob tal alinhavo, a dialética entre as categorias de universalidade, particularidade e singularidade, pela letra e pelo espírito de seu próprio enunciado, é a encarnação do vínculo lógico com Hegel, bem como, por conseguinte, do método científico, enquanto o em-si gnosiológico é o artefato fundante da cientificidade da doutrina.

Que essas fórmulas estejam em franca dissonância e até em contradição, sob distintas maneiras, com o que há de mais substancial na obra lukacsiana não é apenas um fato importante, que exija pura e tecnicamente um grifo forte, mas ocorrência tão decisiva que, em verdade, deve ser mesmo celebrada, pois a grandeza do pensamento marxista de Lukács se manifesta, precisamente, na enorme esfera reflexiva que desenvolveu para além e de costas para o complexo da exterioridade, ao qual, no entanto, estava subordinado. Que essa debilidade prejudicou seu pensamento é também um fato palpável, que sua imagem global do pensamento marxiano foi por isso mesmo significativamente afetada em pontos de extrema relevância, não resta dúvida, mas esse foi o seu caminho, assim é que transitou, por fim, ao ambiente da ontologia marxiana, antes e mais apropriadamente do que ninguém. E aqui é disso que se trata, precisamente dessa jornada, em especial de formulações errôneas das quais, à época, Lukács não se deu conta; de problemas cujo enfrentamento e retificação parciais só vieram a ocorrer na empreitada pela Ontologia, que, apesar de inconclusa, não apenas na forma, mas nas próprias concepções, renovou a perspectivação de conjunto, a qual, embora não tenha dirimido por completo as obliquidades e irresoluções de seu próprio trabalho, proporciona finca-pés e o direcionamento geral para uma nova abordagem crítica, aqui desenvolvida em torno de aspectos de sua própria obra. Sob esse prisma, trata-se, então, de uma crítica a Lukács a partir de Marx, gerada pela inspiração ou a própria mediação do último Lukács.

Vistas à luz dessa contraditoriedade englobante, talvez cause mais espécie ou aversão, como grave impropriedade, a formulação lukacsiana do em-si do que o próprio rebaixamento de nível pelo qual é sustentada a dialética do universal, particular e singular. De fato, como é possível admitir, num suposto e almejado quadro de referência marxista, que uma simples abstração levada ao extremo seja a resposta satisfatória para o estabelecimento da precisa distinção entre ser e consciência? Ainda mais do que rigorosamente débil e formalista, o em-si epistêmico, definido como princípio de objetividade, como garantia da existência material e autônoma do objeto e deste como ponto de partida da ciência, ressoa, sobretudo, enquanto ideação artificiosa. A conversão dessa noção vazia em alicerce, do qual passam a pender e depender a realidade e também a ciência, sugere uma ginástica conceitual de acomodação em torno de um suposto vácuo, de um não-sabido, e da tradição filosófica, lida ademais com ênfase excessiva recaindo sobre a continuidade histórica das ideias. E o conjunto desses e de outros tantos passos frouxos de tal arcabouço conceitual é radicalmente acentuado em sua gratuidade e incongruência tão logo seja comparado à genuína reflexão marxiana correspondente.

Já pelas teses “Ad Feuerbach” – e por vários dos demais aforismos, assim como por reflexões em toda a obra marxiana que multiplicam esta evidência – compreende-se que em Marx qualquer forma da coisa-em-si abstrata e especulada cede lugar ao complexo ontoprático, que compreende a globalidade das determinações da atividade sensível, tanto sob a figura do objeto quanto do sujeito, e em plena atualização objetiva de suas formas de existência. Ou seja, os objetos específicos são confirmados em suas existências específicas, independentes, isto é, na objetividade própria aos seres-em-si, o mesmo ocorrendo com os sujeitos, duplamente confirmados por sua vez, pois identificados ao mesmo tempo como agentes sensíveis e cognoscentes. Diante desse complexo repleno, opulentamente determinado, que falta pode fazer ou que papel restaria ao puro em-si abstrato, na pobreza de conteúdo que é toda a sua virtude? Nenhuma, é óbvio, só podendo servir como ilustração de um grave equívoco, cuja inferioridade teórica traduz, ao contrário do pretendido, o esvaziamento epistêmico da realidade, em contraste com a farta conquista ontológica da mesma levada a cabo por Marx.

Tão embaraçante e comprometedora é essa linha marxista de sustentação da doutrina marxiana, derivada da subsunção ao complexo da exterioridade, que ela tisnou inclusive certas figuras marcantes do elenco conceitual lukacsiano, admiradas no passado como reconsiderações temáticas exponenciais, e que até hoje, acrítica e desavisadamente, ainda chegam a mover dadas elaborações marxistas mais tópicas e nominalistas. Tome-se, por exemplo, a proeminente categoria da totalidade, que em certas versões lukacsianas, é antes de tudo uma figura do cenário epistêmico, e como tal homóloga à ênfase conferida ao método, isto é, à dialética entre universalidade, particularidade e singularidade, e também ao em-si abstrato. É esclarecedor, ainda a propósito da crítica a este último, acompanhar algumas das vicissitudes da noção de totalidade no pensamento lukacsiano, pois elas abarcam extensa parte da obra do pensador húngaro.

O ensaio dedicado a Rosa Luxemburgo em 1921, o segundo de História e consciência de classe, começa por uma afirmação metodológica taxativa:

O que diferencia decisivamente o marxismo da ciência burguesa não é a tese do predomínio dos motivos econômicos na explicação da história, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria de totalidade, o domínio onímodo e determinante do todo sobre as partes, é a essência do método que Marx tomou de Hegel e transformou de maneira original para fazer dele o fundamento de uma nova ciência.184

Quase meio século depois, no importantíssimo “Prefácio” de 1967 ao volume II de suas Obras, no qual, ao lado de outros textos menores, História e consciência de classe foi republicada pela primeira vez, Lukács, ao inventariar os erros e acertos da obra, faz ele mesmo a crítica daquela formulação:

Sem dúvida, é um grande mérito de História e consciência de classe ter retomado a categoria de totalidade, perdida no esquecimento pela “cientificidade” do oportunismo social-democrata, para lhe atribuir de novo a posição metodológica central que sempre teve na obra de Marx. Porém, [...] eu produzi uma exageração hegeliana, ao contrapor a posição metodologicamente central da totalidade ao econômico.

Transcreve, em seguida, o texto estampado acima e acrescenta: “Esse paradoxo metodológico ainda se agudiza pelo fato de que a totalidade era entendida como portadora categorial do princípio revolucionário na ciência: ‘O domínio da categoria da totalidade é portadora do princípio revolucionário na ciência’”185. Lukács não explicita o teor do paradoxo, mas se entende com facilidade que a denúncia e o descarte da contraposição têm por conteúdo, precisamente, o reconhecimento da concepção marxiana, segundo a qual a economia política é a própria anatomia da totalidade, jamais uma simples parte ao lado de outras, à qual a totalidade como instância última e superior deva ser, metodologicamente, contraposta. Portanto, sua autocrítica reporta uma correção substancial. Todavia, há um segundo equívoco na formulação primitiva, muito importante para a discussão em curso, sobre o qual não se encontra uma única palavra no “Prefácio” de 1967: a totalidade é definida, explicitamente, como ponto de vista. E não apenas na passagem transcrita, mas também no próprio “O que é marxismo ortodoxo?”, onde se pode ler que o “ponto de vista da totalidade, que aprendemos a reconhecer como problema central, como condição primordial do conhecimento da realidade, é um produto da história num duplo sentido”186. Que, no contexto dado, esse ponto de vista seja o do proletariado, enquanto sujeito e objeto idênticos “do conhecimento da realidade social”, apenas acentua que· a totalidade é concebida como uma configuração da consciência, simplesmente como um prisma ou ângulo visual, embora privilegiado, mas não altera em nada que se trata de uma identificação equivocada da mesma, pois, ainda que o proletariado seja o portador da visão da totalidade, ele não é a própria totalidade social, de modo que seu privilégio seria o de poder ver e não de ser a totalidade. É o que importa demarcar aqui, exclusivamente: a totalidade é reduzida aos contornos de uma simples potência mental ou possibilidade cognitiva.

Ocorre que, no capítulo 13 da Estética, algo semelhante – ou um resíduo dessa acepção – está presente, embora despojado dos ademanes do sujeito-objeto idênticos, e diretamente vinculado à tematização do em-si epistêmico e do para-nós. Vejamos alguns dos passos constitutivos dessa nova figura da totalidade. Para Lukács,

[...] como o para-nós representa o contrapolo subjetivamente coordenado com o em-si, o destino de sua determinação é inteiramente paralelo ao processo aqui descrito: a concepção do em-si contém um modelo do comportamento subjetivo para com ele, e determina portanto, ao mesmo tempo, o modelo do para-nós. [...] Por essas razões se pode dizer que a tipologia do para-nós, no que toca a seus traços mais essenciais, está contida na do em-si. Isso determina antes de tudo a forma do para-nós no reflexo científico, a forma adequada ao método desantropomorfizador.187

Quanto à repentina opulência dessa arquitetônica, para os efeitos aqui buscados, basta indagar como é possível que um conjunto tão grande e decisivo de determinações seja garantido, de alguma forma e em algum momento, pela pobreza virtuosa do em-si epistêmico? Independentemente dessa dificuldade irrevogável, o que importa é algo bem mais circunscrito. Consiste em deixar assinalado simplesmente que, numa exposição bastante entrecortada e que não prima pela clareza, a elaboração lukacsiana, no que seria a sua reconfiguração do caminho marxiano do abstrato ao concreto, bastante afetada pela presença do em-si abstrato, volta a compor a categoria da totalidade como algo próximo a um arquétipo da subjetividade, mesmo que funcionalizado como aspiração de objetividade, à semelhança do caso primitivo. De sorte que, no caso da ciência, “a transformação do em-si em um para-nós aspira oferecer acima de tudo uma reconfiguração adequada do em-si real”188. Deixando de lado que, a seguir, é afirmado que “isso tem por consequência que a questão epistemológica, tão decisiva no tratamento do em-si, passe aqui ao último lugar, pois, cada para-nós é o reflexo de um fato concreto real objetivo, de uma conexão de fatos, de suas relações etc.”189, o que no mínimo é intrigante, há que reter que, “enquanto no caso do em-si a colocação se refere a toda realidade, no caso do para-nós a totalidade se forma com um número infinito de reflexos concretos singulares, ou com a síntese teorética daqueles que se referem a um determinado complexo factual”190.

E intercalando mais uma vez, para deixar igualmente de lado, fique o registro de que “a propósito desses detalhes e dessas generalizações concretas, a questão epistemológica, tão decisiva no estudo do em-si, não constituirá mais do que um fundamento geral”191, o que denota obstáculo intransponível para a homogeneização de ordens excludentes de fundamentação. Retomando o fio da meada: na ciência, almejando a reconfiguração mais adequada do em-si real, através da totalidade dos reflexos concretos, tem-se que

A transformação do em-si em um número infinito de reflexos diversos na forma do para-nós coloca em cada caso um duplo problema: o fenômeno refigurado – singular, particular ou universal – tem que ser reproduzido do modo mais adequado possível, e a reprodução tem que se encontrar ao mesmo tempo em harmonia com os demais reflexos. [...] Também segue disto que – do ponto de vista rigorosamente epistemológico – a única que pode ser considerada contrapolo concreto do em-si é a totalidade do para-nós conduzido à síntese.

Porém,

Tomado com esse rigor, essa exigência de totalidade é [...] um mero postulado. [...] Mas, apesar disso, o postulado de totalidade da teoria do conhecimento tem grande importância prática e, por isso, filosófica [...]. Do ponto de vista filosófico todos os para-nós constituem um todo conexo, ainda que este não se realize nunca completamente na prática científica; e só nesta forma constituem um contrapolo real, formado na consciência cognitiva, do em-si epistemológico unitário; somente nessa totalidade transformam sua abstração na madura totalidade concreta do mundo conhecido.192

Não há como velar a confusa fisionomia desse discurso, mistura desafinada de planos e abordagens discrepantes, condicionada basicamente pela tentativa de fundir o aparato da exterioridade gnosioepistêmica com a analítica marxiana de caráter ontológico, ou, nos termos empregados pelo discurso lukacsiano, o abstrato fundamento do em-si gnosioepistêmico com a perspectiva do concreto em-si real, que brigam entre si transparentemente nessas formulações lukacsianas, desatendendo e prejudicando visceralmente a ambos. Mas desse cipoal interessam apenas, de imediato, os elementos relativos à noção de totalidade, centro da atenção neste segmento. Embora insista de início, sem maiores explicações e sob forma teórica igualmente estranha ao pensamento marxiano, que “a concepção do em-si contém um modelo do comportamento subjetivo, [...] razão pela qual a tipologia do para-nós, nos traços mais essenciais, está contida na do em-si”, e que isso “determina antes de tudo a forma do para-nós no reflexo científico”, Lukács termina, de acordo com os fragmentos do parágrafo anterior, por configurar a totalidade, literalmente, como um postulado da teoria do conhecimento. Chega, pois, no suposto de elaborar sob parâmetros marxianos, a uma bizarra configuração da ciência ou da atividade cognitiva, que mais não seria do que o movimento dos reflexos que transformam o em-si abstrato em um todo relativo do pensamento sob a inalcançável postulação da totalidade. É um involuntário, mas sensível depauperamento epistemológico das possibilidades de conhecimento da realidade, embora engendrado no propósito mesmo de firmar e reger a cognição por determinações da própria realidade. Traçado pelo qual, de partida, o em-si real, a totalidade efetiva, é pulverizada na diversidade dos reflexos, e assim, isolada de sua efetividade concreta, despojada de sua existência independente das formas de consciência, só resta ou é convertida em norma de procedimento, isto é, em uma espécie de inatingível dever-ser da cientificidade.

Em suma, o ponto de vista da formulação primitiva é transformado em postulado na equação mais recente. Pressuposto do conhecimento da realidade na primeira e princípio epistêmico na segunda, em ambas a totalidade é estreitada e expressa como forma da subjetividade que sobrepaira à realidade. E tanto mais graves se mostram as latências dessas agudas impropriedades, quando se considera que Lukács, já em pleno vértice do “Prefácio” de 1967, transcrevendo literalmente de “O que é marxismo ortodoxo?” o afamado trecho da canonização do método, reafirma-o enquanto identidade do pensamento marxiano:

[...] as observações introdutórias do primeiro artigo oferecem uma determinação da ortodoxia no marxismo que, segundo minhas convicções atuais, não apenas é objetivamente verdadeira, mas que também hoje, na véspera do renascimento do marxismo, poderia ter uma importância considerável.193

Ora, a categoria da totalidade, tanto como formação real quanto ideal, preenche espaços vitais no pensamento marxiano, mas não é jamais ponto de vista ou postulado. Dessas formações já se tratou em vários momentos ao longo deste trabalho, bastando agora uma breve rememoração. Na escala infinita das entificações reais da totalidade, desde a singularidade de um simples objeto ou relação à universalidade dos mesmos em suas respectivas completitudes, o complexo repleno da mesma, a totalidade propriamente dita, é integrado pelas figuras da atividade sensível – o multiverso das coisas e a pluralidade dos sujeitos, na diversidade das formas de interatividade orgânica em que o conjunto delas é produzido e reproduzido, peculiarmente, em cada patamar de existência historicamente efetivado. Como tal, forma ontoprática de existência, a totalidade é a formação real e concreta na multiplicidade de seus traços e movimentos efetivos, ou seja, o todo funcional e contraditório que engendra e vive sua lógica específica. É a realidade enquanto realidade, material e espiritual, antes, durante ou depois de pensada, ou seja, o locus e a substância de toda atividade sensível e de toda atividade ideal nela embutida; e nessa concretude o ponto de partida da ciência, isto é, como diz Marx, da “elaboração da intuição e da representação em conceitos”. Tomada, para efeito analítico, em sua plenitude ou por suas partes constitutivas, legitimamente destacadas ou iluminadas em suas reais configurações unitárias, ou seja, encarada como objeto da atividade cognitiva, na qual é reproduzida pelo pensamento, a totalidade assume a feição da concretude pensada. São as duas formas da totalidade reconhecidas nos textos marxianos: de um lado, o concreto real, de outro, o concreto ideal, tal como expostas classicamente na parte 3 da “Introdução de 1857”:

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo [...] é a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para o reproduzir como concreto pensado. [.... ] O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível.194

O processo cognitivo é, pois, a transposição de um concreto a outro, a reconfiguração do real no ideal, isto é, a recomposição do todo real em todo conceitual. Dito de outro modo, conhecer é precisamente capturar e expor a totalidade real da única maneira pela qual isso é possível, ou seja, na forma da totalidade pensada. Não há lugar, pois, para uma acepção da totalidade enquanto ponto de vista ou postulado, mesmo porque ambos são por natureza, meramente, uma espécie de autoimperativo da subjetividade, quando, marxianamente, o único imperativo a ser cumprido pela subjetividade cognitiva é posto pela esfinge do objeto.

Que a decifração ou reprodução ideal de um objeto possa se delongar por milênios, tome-se o exemplo histórico do valor, ou que o conhecimento se faça por aproximações, rupturas e reviravoltas são outros aspectos ou problemas, nos quais, por sinal, Lukács se embaraçou, tanto que, nas várias oportunidades em que traz à tona excertos da parte metodológica da “Introdução de 1857”, ele o faz preponderantemente em arrimo de considerações que ressaltam esses traços do andamento sócio-histórico da cognição, e não a propósito do modo pelo qual o “cérebro pensante se apropria do mundo”, produzindo uma “totalidade concreta como totalidade de pensamentos”, que é o conteúdo explícito das reflexões marxianas nessas que são a esse respeito as suas páginas mais elaboradas. Trata-se de um profundo lapso da análise lukacsiana, ou antes de uma pronunciada incorreção; constitui, em verdade, um dos sintomas mais claros e fortes de uma lacuna muito maior, algo que sinaliza para aquilo que, mais atrás, foi aludido como um não sabido, que condicionou, ao menos até a Estética, parte considerável da analítica lukacsiana, e que envolveu a admissão de um suposto vácuo no pensamento marxiano, cujo preenchimento tentou-se levar a cabo em subordinação à exterioridade do complexo gnosioepistêmico. Em termos bem gerais e sumários, tudo se passou nesse arcabouço falaz como se o pensamento marxiano demarcasse uma prática metodológica, mas não contivesse a sustentação teórica da mesma e, menos ainda, de sua fundamentação gnosiológica. Donde todo o vasto quiproquó posto em cena.”

184 Georg Lukács, História e consciência de classe, cit., p. 105.

185 Idem, “Prefácio” (1967), em História e consciência de classe, cit., p. 20- 1.

186 Idem, “O que é marxismo ortodoxo?”, cit., p. 100.

187 Idem, Estética, cit., p. 299.

188 Idem.

189 Idem.

190 Ibidem, p. 300.

191 Idem.

192 Ibidem, p. 301.

193 Georg Lukács, “Prefácio”, cit., p. 29.

194 Karl Marx, “Introdução de 1857”, em Karl Marx (São Paulo, Abril Cultural, 1974, Coleção Os Pensadores), p.122-3.

 

 

“Em síntese, de posse da resolução ontoprática da problemática do conhecimento e da teoria das abstrações, Lukács disporia de meios para sustentar marxianamente a independência do ser em face da consciência, a possibilidade do saber científico e a prioridade do objeto como ponto de partida da ciência, sem lançar mão do débil estratagema do em-si epistêmico; da mesma maneira, teria compreendido o modo pelo qual a cabeça se apropria da realidade por meio do concreto de pensamentos, sem forçar à existência uma herança hegeliana pela reiteração sem brilho da tese do vínculo lógico entre Marx e Hegel, que em outras mãos acaba mesmo por se converter em dependência lógica do primeiro em relação ao segundo, o que é ainda mais despropositado. Tratadas por essas vias extrínsecas à concepção marxiana, as relações entre esses dois grandes autores findam inteira e perversamente obscurecidas, contra as melhores intenções analíticas, inclusive as de seus mais sofisticados praticantes.”

 

 

“Recusar a tese do vínculo lógico e criticar a impropriedade da formulação da lógica do universal, particular e singular como método marxiano de extração hegeliana, não implica a inexistência de qualquer tipo de nexo entre Marx e Hegel, mas o deslocamento de quaisquer vínculos possíveis à devida esfera secundária das influências, ressonâncias e absorções difusas, que se deram por certo em mais de um plano. Assimilações de maior ou menor monta, porém, sempre integradas à ruptura de fundo, levada a cabo na própria instauração do pensamento marxiano e jamais reconsiderada.

Não se trata aqui de enveredar por esse território, nem mesmo simplesmente de inventariar as principais ocorrências desse tipo, mas de tecer apenas, sob o diapasão dessa ordem de influências, considerações finais sobre a propositura da dialética entre universal, particular e singular, para ressaltar, em primeiro lugar, que esta enquanto preenchimento do não sabido referente à teoria das abstrações antes tolda do que esclarece, mais afasta do que aproxima o procedimento marxiano da lógica de Hegel, pois sob tal feição opera sem notar uma substituição radical e indevida, tornando impossível investigar, por dissolução do objeto, que ressonâncias hegelianas mais ou menos distantes poderiam ecoar no genuíno procedimento de Marx, concebido e reiterado por ele próprio como oposto ao hegeliano. A diferença diametral – “meu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta” (“Posfácio” da segunda edição de O capital, 1873) – sabemos qual é: no mesmo lugar é declarado que o processo do pensamento é hegelianamente transformado num demiurgo do real, enquanto que na concepção marxiana o ideal não é nada mais do que o material transposto e traduzido na cabeça do homem. Ou seja, a diferença antitética é de caráter ontológico: o ser é prioritário em relação ao pensamento e este é um concreto pensado, não um produto autônomo. Isso não impede, todavia, que no mesmo “Posfácio”, Marx reconheça a propósito da dialética, como em diversas outras oportunidades e sempre praticamente do mesmo modo, que Hegel “tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente”, na qual reconhece também um “cerne racional”. De modo que nada impede que os movimentos de concreção da teoria das abstrações, a síntese de múltiplas determinações, contenha subsidiariamente a contribuição de momentos da determinação dessas formas gerais do movimento, sempre que imanentes ao objeto e nunca a ele atribuídos pelo pensamento. Nesse sentido, na medida em que todo processo de concreção analítica sempre se move, necessariamente, nos três níveis, reais e ideais, de generalização, uma dialética de universal, particular e singular sempre estará presente como o momento mais remoto e abstrato do processo determinativo. Sob essa condição, uma lógica ou dialética do universal, particular e singular será o feixe – “o elemento comum que é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determinações diferentes e divergentes” (“Introdução de 1857”) – mais abstrato das abstrações razoáveis, que enquanto tal não determina nenhum objeto concreto. Dada a generalidade máxima dessa mais abstrata das abstrações razoáveis ela é dizível de qualquer objeto, é a voz abstrata mais tênue, uma generalidade tão universal que não quebra a mudez do singular, apenas lembra ou assinala que isso é possível, e nesse sentido pode servir de guia distante para a formulação das abstrações razoáveis, e do mesmo modo para os passos da concreção. Donde o lugar e o sentido precisos de uma dialética do universal, particular e singular, no âmbito da reprodução ideal dos objetos, são dados precisamente pela teoria das abstrações, fora da qual e em particular como sua forma substitutiva é uma extração sub-hegeliana, convertida em contrafação marxista do procedimento marxiano.

Reconhecer, pois, influências e ressonâncias hegelianas no pensamento de Marx, não conduz nem obriga a fazer deste um herdeiro ou dependente daquela vertente, seja no campo da lógica ou em qualquer outro. Diante do porte e da significação histórica da obra hegeliana, incompreensível seria mesmo se dela não houvessem irradiado alguns nódulos ou certos estímulos e referenciais para a grande empreitada marxiana. Considere-se de novo a menção explícita de Marx às “formas gerais do movimento”, mas agora não a respeito dos processos analíticos de concreção, e sim remetidas aos movimentos do ser. Por certo, na esfera ontológica as irradiações hegelianas no pensamento de Marx devem ser mesmo mais expressivas do que no plano lógico, independentemente da fusão entre ambos no ideário de Hegel. Figurações conceituais relativas à historicidade, processualidade, ao ser matrizado pela contradição, ou seja, à universal contraditoriedade do mundo, e assim por diante, são aquisições de tal ordem que têm de ser retidas independentemente da forma e dos meios pelos quais foram originariamente concebidas. Repercutem por seu próprio peso, de maneira que o melhor será dizer que Marx terá se apropriado de alguns resultados, mas contra os rumos e os meios pelos quais certas conquistas hegelianas se efetivaram; apropriação, em especial, de lineamentos ontológicos isolados e desinseridos de seus contextos, à semelhança do que fizera em relação a Feuerbach, na instauração de seu próprio modo original de conceber e elaborar a reprodução intelectual do complexo de complexos da mundaneidade dos homens. Desde logo porque um dos traços mais característicos da posição ontológica instaurada por Marx é a ruptura com a especulação ou qualquer modo apriorista de elaboração teórica, pois, como diz Mészáros com muita acuidade,

[...] a metodologia do apriorismo não brota de uma árvore filosófica especial, advinda de um solo composto a partir do nada, mas das contradições insolúveis de um determinado ser social, que é forçado a reverter, em sua imaginação, as relações estruturais reais da sociedade de modo a produzir uma “prova a priori” da “ordem racional” da sociedade descrita de cima para baixo, da história concebida ao contrário. Isso é claramente evidente nas construções hegelianas.198

Ruptura que é uma passada crucial e essencial, não um simples ajuste ou retoque, nem mesmo uma purificação mais completa de uma herança grandiosa mas problemática, visto que, em

[...] sua nova síntese, estruturada em oposição consciente aos sistemas filosóficos de seus predecessores [...] a concepção marxiana da dialética foi além de Hegel, precisamente desde o momento inicial, em dois aspectos fundamentais, embora Marx continuasse a considerar a dialética de Hegel como a forma básica de toda dialética. Em primeiro lugar, a crítica da transformação hegeliana da dialética objetiva em construção conceitual especulativa [...] estabelecia a ação recíproca de forças objetivas como a verdadeira estrutura da dialética e como o terreno real da determinação dos mais mediatizados fatores subjetivos. E, em segundo lugar, a demonstração dos determinantes ideológicos da dialética conceituai-especulativa de Hegel – a “dissolução e restauração do mundo empírico” como construção anistórica, que contradiz as potencialidades profundamente históricas da própria concepção hegeliana – pôs em relevo, de uma maneira enfática, o dinamismo irreprimível dos desenvolvimentos históricos reais, juntamente com uma indicação precisa das alavancas necessárias com as quais o agente revolucionário está em condição de intervir, de acordo com seus objetivos conscientes, na manifestação positiva da dialética objetiva.199

De sorte que, conclusivamente, a inspiração e o uso de certas categorias hegelianas não se dão

[...] no sentido de alguma influência problemática que deixaria um elemento estranho no corpo do pensamento marxiano, mas categorias consideradas como ‘Daseinsformen’, na estrutura de uma teoria profundamente original, são transferidas de Hegel para o universo do discurso de Marx e aí reativadas com um sentido qualitativamente diferente.200

Donde a simples noção ou a mera hipótese de herança hegeliana ou vínculo lógico, bem como outras do gênero, transparecerem, em face da natureza do pensamento marxiano, como um engano radical, que induz a vastos descaminhos analíticos, promotores do desentendimento da obra de Marx em vários planos.

Uma avaliação mais ampla das impropriedades teóricas lukacsianas durante a longa duração de seu marxismo proto-ontológico não entra nem longinquamente, é óbvio, nas cogitações da crítica aqui pespontada. Contudo, a natureza comum dos conjuntos problemáticos abordados permite assinalar que a grande dificuldade encontrada por Lukács, na identificação do pensamento marxiano, é da mesma ordem daquela que transpassa toda a história da ontologia, cujo tratamento sempre esteve, de algum modo, embaraçado por questões lógicas e gnosiológicas em geral. Basta observar que Lukács, somente à época da preparação da Ontologia, e isso não terá ocorrido por mera casualidade, se deu conta ou tratou abertamente de aspectos dessa questão, mesmo que limitando o enfoque ao panorama dos dois últimos séculos, que demarcam a face mais aguda do problema, quando já está em curso a própria desqualificação e excludência da ontologia como prática teórica fundante. Foi apenas nessa oportunidade que explicitou o problema sob a forma da contraposição entre critério ontológico e critério gnosiológico. Ocorreram, então, mudanças fundamentais. A crítica a Hegel foi elevada acentuadamente, chegando ao ponto mais agudo nos Prolegômenos para a ontologia do ser social, segunda e última versão da empreitada. Em nenhum dos dois textos a rematização da dialética entre universalidade, particularidade e singularidade foi retomada, e a “mais importante descoberta metodológica de Hegel”201 passou a ser a das determinações reflexivas [Reflexionsbestimmungen] – capítulo sobre Hegel, 2. É claro, a lógica cedeu lugar à ontologia, posta agora no centro da rematização, que em Hegel foi vista, criticamente, segundo o diagnóstico de uma dupla ontologia, a verdadeira e a falsa, ambas expressas na forma de categorias lógicas: estas, no primeiro caso, são “componentes dinâmicos do movimento essencial da realidade, como graus ou etapas no caminho do espírito para realizar a si mesmo”202; enquanto que, no segundo, as conexões reais são constrangidas pelas conexões lógicas, de tal modo que “a ontologia sofre a violência conceitual da lógica”203, ou seja, se torna uma resultante deformada “pelo predomínio metodológico dos princípios lógicos”204. Já no que tange a Marx, agora este se distingue de maneira mais nítida, tanto de Hegel quanto de sua imagem lukacsiana do período proto-ontológico:

A ciência se desenvolve a partir da vida e, na vida, quer saibamos e queiramos ou não, somos obrigados a nos comportar espontaneamente de modo ontológico. [...] Acreditamos que, agindo assim, Marx criou uma nova forma tanto de cientificidade em geral quanto de ontologia; uma forma destinada a superar no futuro a constituição profundamente problemática, apesar de toda a riqueza dos fatos descobertos, da cientificidade moderna.205

Sem dúvida, a partir da identificação do caráter ontológico do pensamento marxiano, houve transformações substanciais na elaboração lukacsiana, mas o processo não chegou à integralidade, nem dispôs do tempo necessário de maturação para, talvez, vir a se completar. Assim, embora tenha havido uma grande inflexão, restaram ainda no sentido mais geral, apesar de tudo, uma espessa aura hegeliana e uma ênfase praticamente irretocada sobre a questão metodológica, mesmo sob o novo diagrama da subordinação dos problemas gnosiológicos ao plano ontológico, bem como se manteve um grande conjunto de dissonâncias em relação a Marx, que vão desde suposições exóticas como os “experimentos ideais da abstração”, entendidos enquanto meios de investigação científica, até a pétrea insensibilidade para a mais extraordinária das concepções marxianas sobre a esfera política – a sua determinação ontonegativa da politicidade. Porém, tudo isso e muito mais é, simultaneamente, um universo inaugural e o ponto de arribação de um itinerário longo e tortuoso, que demandam exame específico e detalhado, e que não pode ser confinado aos parágrafos finais de uma abordagem desenhada por outros objetivos.”

198 lstván Mészáros, Filosofia, ideologia e ciência social (São Paulo, Boitempo, 2008), p. 81.

199 Ibidem, p. 113-4.

200 Ibidem, p. 116-7.

201 Georg Lukács, “A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel”, em Ontologia do ser social, cit., p. 77.

202 Ibidem, p. 27.

203 Ibidem, p. 55.

204 Ibidem, p. 65.

205 Georg Lukács, Os princípios ontológicos fundamentais de Marx (São Paulo, Ciências Humanas, 1979), p. 27.

 

 

“Agora é só cuidar da conclusão, anotando que nem mesmo nos escritos da Ontologia a teoria das abstrações foi advertida por Lukács, o que dimensiona bem a incompletude da transição lukacsiana ao marxismo ontológico. Impercebido que é o responsável principal pelo feitio demasiado abstrato do tratamento lukacsiano das questões metodológicas, que tendem a ser resolvidas, apesar do lugar proeminente que sempre ocupam, ao nível rarefeito dos princípios ou dos grandes condicionamentos históricos, sem que os procedimentos analíticos que perfazem a captura ideal dos objetos sejam mais efetivamente tocados. Com efeito, outra não poderia ter sido nesse campo a tendência predominante de seu pensamento, em face da ausência, nele constatada, do urdume peculiar à investigação marxiana que reproduz as determinações reais, identificado e sintetizado pela teoria das abstrações, uma vez que esta, ou seja, o método marxiano, tomado por seus momentos estruturais, pode ser reconhecido e enunciado como o modo de produção de concretos de pensamentos a partir da destilação prévia de abstrações razoáveis. Procedimento no qual a decantação preliminar é, por assim dizer, errante, um trabalho de sapa em que a força de abstração confronta de saída e sem qualquer ponto de arrimo a imediatez do todo sensível do objeto, uma aproximação cognitiva, pois, que se defronta com a face lisa, desprovida da textura de mediações que faz do objeto ou de conexões únicas de objetos singularidades efetivas, mas que está oculta na totalidade muda com que os mesmos se apresentam na abstratividade própria e incontornável à relação imediata do sujeito com o concreto indecifrado. É o momento do trânsito entre a afirmação e a dissolução da certeza sensível imediata: “Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva”, mas que desemboca numa “representação caótica do todo”. Todavia, a partir disso, “através de uma determinação mais precisa, através da análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples”, ou seja, às abstrações razoáveis, com e por meio das quais tem início “a viagem ao inverso”1, isto é, o caminho cientificamente exato da concreção ou particularização; em suma, a rota seguida pela cabeça no desvendamento da lógica das coisas. Processo em dois tempos não apenas enunciado, mas confirmado e reiterado inúmeras vezes por Marx, tanto no exercício de seu trabalho reflexivo quanto através de esclarecimentos e depoimentos específicos, aos quais Lukács, à semelhança de tantos outros, dá as costas, nem mesmo os aludindo, como se inexistissem ou fossem ignoráveis, mas que contrariam frontalmente os vieses gnosioepistêmicos de uma infinidade de intérpretes, fazendo com que estes, por isso mesmo, restem sempre desafiados pela vigorosa presença daqueles, patentes na condição e qualidade de fatos teóricos indeléveis, enquanto tais decisivos, pois indissoluvelmente integrados à argamassa da arquitetônica marxiana, para cuja delucidação imanente são, no mínimo dos mínimos, pistas da mais alta relevância.”

1 Karl Marx, “Introdução de 1857”, em Karl Marx (São Paulo, Abril Cultural, 1974, Coleção Os Pensadores), p. 122.

 

 

Atos de recolha, simples latências sem rosto antes da apropriação, inertes em si e ativos pela subsunção à matéria recolhida, assim, por sua irresolução analítica se comprovam, agora negativamente, as figuras operativas listadas pela teoria das abstrações. Mas o que é a irresolução analítica das figuras da teoria das abstrações, senão a evidência probante da presença resolutiva da analítica da reta prospecção do objeto, diante da qual todos aqueles perfis são, ao mesmo tempo, presenças necessárias e impotentes, ou seja, descrições genéricas de atos cognitivos que só tomam forma efetiva na direta reprodução de conteúdos específicos, distribuídos estes por toda gama real entre a mais simples e a plena complexidade do concreto maturado? Complementares entre si, a irresolução analítica da teoria das abstrações e o caráter resolutivo da analítica da reta prospecção do objeto são os termos de uma unidade – cada um deles é a outra face de seu completivo – que traduz o estatuto ontológico do pensamento marxiano, ou seja, numa obra dessa natureza, qualquer dimensão metodológica, enquanto mobilização e orientação da subjetividade cognitiva, não pode, nem deve ser mais do que a indicação genérica dos passos da atividade mental na escavação das coisas, em subsunção da qual o pensamento se realiza, no empenho de capturar o ente enquanto ente, vale dizer, sem contaminar a coisa com exterioridades de qualquer origem ou natureza, incluídas as do próprio pensamento. Em franco contraste com as vertentes que advogam, diante da empreitada analítica, o prévio municiamento lógico ou a preliminar organização epistêmica da subjetividade – redundando sempre, ontologicamente, estranguladas e estrangulantes por seus fundamentos, comprometidos estes desde a origem pelo arrasto do critério de verdade do universo objetivo ao plano subjetivo ou das idealidades – é extremamente preciso e confortável no pensamento marxiano, a sustentação do clássico e autêntico ideal do conhecimento ontológico, pois, como já foi rematizado, para a analítica marxiana a questão da possibilidade do saber é, desde logo, resolvida nessa esfera, ou seja, ontopraticamente, de modo positivo e categórico, sendo reconhecida a solução, por sua patente radicalidade, como base de toda atividade filosófica e científica.”

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