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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Paideia: A formação do homem grego (Parte IV), de Werner Jaeger

Editora: WMF Martins Fontes

ISBN: 978-85-7326-410-4

Tradução: Artur M. Ferreira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 1456

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Sinopse: Ver Parte I



“Platão não leva muito a sério as dúvidas formuladas sobre a missão política do filósofo. O exame dessas dúvidas serve-lhe de pretexto para se desvencilhar de muitos daqueles que se arrogam o nome de filósofos. Mas a par disso defende com o máximo rigor a verdadeira filosofia e considera qualquer concessão feita aos críticos uma acusação contra o mundo. A imagem por ele traçada do destino do filósofo converte-se numa tragédia impressionante. Se nas obras de Platão há alguma página escrita com o sangue do seu coração, é esta. Já não é só o destino de Sócrates, feito símbolo, o que move a sua pena. Mistura-se a ele, aqui, a história da sua própria ambição suprema e o “fracasso” das suas forças ante a missão que outrora se julgara especificamente chamado a cumprir.

A rigor, a defesa começa logo antes da crítica. Até aqui, Platão definira o filósofo apenas pelo objeto do seu saber338; agora dá-nos uma definição da natureza filosófica339, indispensável para a compreensão da sua tese sobre os governantes-filósofos, principalmente para o leitor atual, que facilmente pode associar à palavra grega incorporada aos nossos idiomas a ideia de erudito. O seu “filósofo” não é exatamente um professor de Filosofia nem nenhum outro representante da “Faculdade” de Filosofia, que se arrogue um título desses, baseado nos conhecimentos que tem da sua especialidade (τεχνυ¿δριον)340. E ainda menos é um “pensador original”, pois não seria possível existirem simultaneamente tantos pensadores quanto os “filósofos” de que Platão precisa para governar o seu Estado. Apesar de a palavra Filósofo possuir na linguagem platônica, como em seguida veremos, um conteúdo tão grande de disciplina dialética da inteligência, apresenta em primeiro plano um sentimento mais amplo e fundamental, que é o de “amante da cultura”, designando-se desse modo a personalidade humana altamente cultivada. Platão concebe o filósofo como um homem de grande memória, de percepção rápida e sedento de saber. Tal homem despreza tudo o que é minúsculo, o seu olhar eleva-se sempre ao aspecto global das coisas e abarca, de uma vigia altíssima, a existência e o tempo. Não tem a vida em grande apreço nem sente grande apego aos bens exteriores. É estranho a ele tudo o que seja gabolice. É grande em tudo, mas sem por isso deixar de possuir um certo encanto. É amigo e parente da verdade, da justiça, da valentia, do autodomínio. Platão acredita na possibilidade de realizar esse tipo de homem, mediante uma seleção precoce e ininterrupta, por obra de uma educação ideal e da maturidade dos anos341. A sua imagem do filósofo não corresponde ao tipo do discípulo dos sofistas. O “intelectual” cuja característica é a tendência a criticar os outros continuamente é implacavelmente fustigado por Platão, que o expulsa do seu templo342. Platão insiste na harmonia do espírito e do caráter e é por isso que, resumindo tudo o anterior, apelida concisamente o seu filósofo de kaloskagatbos343.

A censura da incapacidade desses homens recai, na realidade, sobre aqueles que não sabem usar a sua capacidade. No entanto, homens como estes não podem abundar e além disso estão expostos a perigos inumeráveis no meio da massa e continuamente ameaçados de corrupção344. Em parte, é dentro deles próprios que o perigo espreita. Cada um dos dotes apontados (a bravura, a autodisciplina etc.), se é desenvolvido de forma unilateral e desligado dos outros, torna-se um obstáculo a uma formação verdadeiramente filosófica345. Outros obstáculos são a beleza, a energia física, os parentescos influentes e outros bens desse tipo346. O desenvolvimento são do Homem é condicionado por uma boa alimentação, pela estação do ano e pela região; essa norma geral, que vigora para todas as plantas e animais, afeta de maneira especial os temperamentos melhores e mais vigorosos347. As almas mais bem-dotadas degeneram mais profundamente que as comuns, quando uma má pedagogia as corrompe348. Um temperamento filosófico, que em terreno propício é chamado a florescer maravilhosamente, produz como fruto o contrário dos seus magníficos dotes, se é semeado ou plantado no solo de uma má educação, a não ser que o venha salvar uma “týkhe divina”349.

Platão defende repetidas vezes, e precisamente sempre sob esse ponto de vista, a ideia desse destino inapreensível para a inteligência humana e que as mentes religiosas não consideram fruto do mero acaso, mas antes obra de um poder miraculoso350. É a expressão de uma interpretação religiosa de experiências cujo caráter paradoxal e sentido elevado são por ele experimentados com força igual. Também nas cartas de Platão essa mesma týkhe divina deixou os seus vestígios. Por exemplo: é como týkhe divina que ele interpreta o fato de, durante a sua primeira estadia na Sicília, conseguir atrair o jovem Díon, fazer dele um partidário entusiasta da sua concepção sobre a missão educacional do Estado e de, uns decênios depois, aquele homem se pôr à cabeça da revolução que derrubou a ditadura de Dionísio. Na opinião dele, isso significa que, com a sua teoria, Platão foi inconscientemente a causa deste acontecimento histórico prenhe de consequências, o que levanta o problema de saber se isso se deveu simplesmente ao acaso ou se o filósofo agiu como instrumento nas mãos de um poder mais alto351. Posteriormente, depois do fracasso aparente de todas as suas tentativas orientadas diretamente para a realização dos seus desígnios, esse conjunto de circunstâncias adquiriu para ele a importância de um problema religioso. Pois bem, é igualmente um pouco desse caráter de experiência vivida que na República tem a narração da maneira como os temperamentos filosóficos se salvam milagrosamente de todos os obstáculos com que o ambiente corrupto ameaça desde o primeiro instante a trajetória da sua formação. Segundo Platão, o que infunde caráter trágico à existência do homem filosófico neste mundo é o fato de só pelo influxo de uma graça ou týkhe divina especial ele poder sobrepujar os obstáculos, e de a maioria dos homens dessa classe estar condenada a perecer antes de alcançar o seu pleno desenvolvimento.”

338. Assim se faz na parte final do livro V.

339. Rep., 485 E ss. Cf. a breve recapitulação das qualidades do “temperamento filosófico” em 487 A.

340. Rep., 475 E. Cf. 495 C 8-D.

341. Rep., 487 A 7. A experiência (ε¹μπειρι¿α) sublinha-se também fortemente em 484 D e aparece na mesma linha da cultura filosófica do espírito.

342. Cf. Rep., 500 B. As palavras de Sócrates dizem assim: Não acreditas como eu, que os culpados da repugnância que a maioria dos homens sentem pela Filosofia são aqueles que lhes irrompem pela casa adentro como um enxame de ruidosos desordeiros, insultando-se uns aos outros, cheios de ódio mútuo, e falando de pessoas, que é o menos adequado para a filosofia?

343. Rep., 489 E. Na Ética eudemeia de Aristóteles aparece caracterizado com o predicado da kalokagathía (VIII, 3, 1248 b 8), apesar de neste ponto, como em todos, encontrar-se muito próximo de Platão, o representante da areté perfeita, na qual se associam todas as “partes da areté”. Na Ética nicomaqueia, escrita mais tarde, Aristóteles prescinde também desse traço platônico. Sobretudo para quem estiver habituado a conceber em Platão a filosofia como paideía, é importante saber que o filósofo platônico não é senão a forma do kaloskagathos, quer dizer, a forma do ideal supremo de cultura do período grego clássico, renovada num sentido socrático.

344. Rep., 490 D ss.

345. Rep.,491 B. Cf. a enumeração das diferentes virtudes em 487 A e acima, pp. 806 ss.

346. Rep., 491 C.

347. Rep., 491 D.

348. Rep., 491 E.

349. Rep., 492 A, 492 E.

350. Cf. a dissertação de doutoramento, na Universidade de Chicago, de E. BERRY, The History of the Concept of θει¿α μοιªρα e θει¿α τυ¿χη down to Plato (Chicago, 1940), que foi sugerida por mim.

351. Carta VII, 326 E.

 

 

“Desse modo, Platão opõe simultaneamente o seu próprio humanismo ao tipo sofista, que não continha nenhum desses ideais humanos e cuja característica fundamental acabou de definir como a adaptação espiritual ao Estado real vigente em cada caso. Esse humanismo platônico não é apolítico por princípio; não é, porém, da realidade do mundo empírico que ele tira o seu ponto de vista político, mas sim da Ideia, a verdadeira realidade para ele. Persevera na sua disposição permanente e de certo modo escatológica de se entregar como força auxiliar ao mundo divinamente perfeito que pertence ao “porvir”. Não pode, contudo, renunciar ao seu direito de crítica perante nenhuma das formas da realidade do Estado, pois não é nenhum modelo temporal, mas sim o modelo eterno, que o seu olhar contempla391. No átrio da paideía dos governantes, Platão coloca simbolicamente a imagem do “humano” ou do “semelhante ao humano” como o conteúdo autêntico e o autêntico sentido do verdadeiro Estado. Sem uma imagem ideal do Homem, é impossível a cultura humana. A “formação pessoal”, a que de momento efetivamente se reduz a paideía filosófica, ganha o seu sentido social mais alto, ao ser referida ao Estado ideal, cujo caminho prepara. Não é à maneira de um “como se”, de uma simples ficção, que Platão concebe essa referência; afirma expressamente, aqui também, que o Estado ideal é um Estado possível, embora de difícil realização392. Desse modo, protege o conceito de “porvir”, para o qual o filósofo se forma, do perigo de escorregar para o imaginário; e, com a possibilidade de a todo momento ganhar corpo na prática, dá à “vida teórica” do filósofo uma tensão maravilhosa de que a ciência fundamentalmente “pura” carece. É essa posição intermediária – que ele ocupa entre a pura investigação, desligada de todo fim ético e prático, e a cultura meramente pragmática, política, dos sofistas – que faz o humanismo platônico ser realmente superior a ambas.”

391. A relação entre a Filosofia e o Estado constitui o paralelo grego da relação entre os profetas e os reis de Israel.

392. Rep., 499 C-D.

 

 

Hegel escreveu a frase famosa de que o caminho do espírito é o desvio. Aparentemente, o caminho natural é aquele que conduz diretamente à meta. Mas às vezes separa-o desta um profundo abismo, oculto talvez à vista de quem o contempla, ou colocam-se diante dela outros obstáculos que impedem de a atingir diretamente. A superação desses obstáculos por meio de um desvio consciente que torna a meta acessível, ainda que não raras vezes por grandes dificuldades, constitui a essência de toda a investigação metódica, e especialmente do pensamento filosófico.”

 

 

“Para o realismo platônico, a Ideia do Bem é boa por si mesma; mais ainda, na sua forma mais perfeita, o bom, tal como a ideia do Belo, é belo em si; e, ainda mais, é o mais belo de tudo o que existe. Pois bem, para Platão, o Bem e a felicidade são uma e a mesma coisa46a. E, para o pensamento religioso dos gregos a felicidade é o mais importante dos atributos da essência da divindade. Os deuses homéricos são “os bem-aventurados” por antonomásia.”

46a. Aristóteles reconhece nesta fórmula a essência do platonismo. Cf. a sua “elegia do altar” e a explicação da poesia na minha obra Aristóteles, pp. 127 ss.

 

 

“A tensão secreta constante, que desde o princípio nos diálogos de Platão enche os esforços de Sócrates e dos seus interlocutores dirigidos ao conhecimento da virtude e do Bem em si, cede ao chegar a esse ponto. É aqui que ela alcança o seu objetivo, embora de fato não possa chegar a um estado de posse constante e de inerte contentamento consigo própria. Encarada do ponto de vista do indivíduo, a Filosofia é, na sua essência mais íntima, um esforço continuamente ocupado, de olhos no paradigma contido no existente82. Contudo, na concepção ideal de um Estado que se concebe como inteiramente baseado nessa phrónesis e no qual esta aparece como princípio arquitetônico, a Filosofia tem necessariamente de se apresentar como algo definitivo e imperioso. O conhecimento da “causa última do universo”83, que é o fundamento de tudo o que há de bom no mundo, torna-se para esse tipo de Estado a base e a meta do Governo. À parte a maneira de se exprimir, não existe nenhuma diferença entre esse princípio e a tese fundamental das Leis, segundo a qual Deus é a medida de todas as coisas84. O Estado das Leis é um Estado teônomo, não em oposição ao Estado da República, mas pelo contrário à sua imagem e semelhança. Guarda esse princípio supremo, ainda que ele apareça nas Leis aplicado de maneira diferente e não deixe ao conhecimento filosófico senão a margem que corresponde ao grau inferior do Ser, sobre o qual assenta. Platão diz no Fédon que a descoberta do Bem e da causa final constitui a encruzilhada histórica dos caminhos da concepção da natureza, onde se separam o mundo pré-socrático e o mundo pós-socrático85. No primeiro livro da Metafísica, Aristóteles coloca essa ideia no centro da sua história da Filosofia86. Contudo, a tese vale tanto para a filosofia do Estado como para a natureza. Em relação à natureza, a feição socrática leva Platão a uma suprema filosofia, que é a teoria das ideias, a qual é, em última instância, teologia, dissociada da física. No campo da política, o conhecimento do Bem, encarado como meta de todos os atos, conduz ao reinado dos filósofos, isto é, dos representantes da nova religião do espírito, no Estado da ideia pura.

Não pode haver a menor dúvida de que os discípulos viram na proclamação platônica do Bem como causa última do mundo – e assim o prova a elegia do altar de Philía, em Aristóteles – a fundação de uma religião nova e, ao menos uma vez neste mundo, viram realizada na pessoa do seu mestre, à guisa de exemplo, a fé platônica na identidade do bem e da felicidade87. Seguindo a tradição da Academia e apoiando-se nos fins que Platão assinalava à Filosofia, Aristóteles chamou teologia à sua “filosofia primeira”88; e teologia é também, realmente, a essência da sabedoria que o discípulo de Platão, Filipe de Opunte, põe em apêndice à sua edição das Leis89. Que nessa teologia (que de acordo com a sua escola só pôde redigir e publicar com as Leis, como apêndice)90 ele não estabelece como princípio sobre o qual assenta o Estado constitucional a teoria da ideia do Bem, mas a teologia astronômica dos “deuses visíveis” do Timeu91 embora aquela tivesse de lhe saltar nitidamente aos olhos –, isso corresponde pura e simplesmente à fase mais empírica do Ser, representado pelas Leis, em relação à da phrónesis pura, representada pela República. Assim é, de fato; Platão é o criador do conceito de teologia, e a obra em que pela primeira vez na História universal aparece esse conceito revolucionário é a República, onde, com vistas a aplicar à educação o conhecimento de Deus (concebido como bem), são traçadas as linhas fundamentais da Teologia92. A Teologia, isto é, o estudo dos problemas supremos pela inteligência filosófica, é um produto especificamente grego. É um fruto da suprema audácia do espírito, e os discípulos de Platão bateram-se contra o preconceito pan-helênico, na realidade um preconceito popular, segundo o qual a inveja dos deuses negava ao Homem a possibilidade de compreender essas coisas tão elevadas. Não eram apoiados na autoridade de uma revelação divina, na posse da qual se julgassem encontrar, que lutavam contra ele, mas sim em nome do conhecimento da ideia do Bem, que Platão lhes ensinara e cuja essência é a total ausência de inveja93.

A Teologia aparece aqui como uma fase mais elevada e mais pura do espírito, em face de tudo o que seja uma religião, quer dizer, em face da adoração dos deuses pela massa, baseada em representações míticas da fé. Sobre ela, numa fase primitiva da cultura humana, erigira-se a ordem do Estado. Embora já minada pelas dúvidas da inteligência, a piedade era ainda considerada, no tempo de Platão, uma das virtudes cívicas cardeais da cidade-Estado. É nessa tradição político-religiosa que Platão a recolhe, juntamente com as outras três virtudes. Desde as primeiras obras ela é objeto do seu interesse filosófico. Pouco depois da morte de Sócrates, dedica-lhe um diálogo especial, o Eutífron. Neste, vemos já como o conceito tradicional da piedade é medido pela pauta socrática do Bem, a qual serve para medir todas as coisas, tanto as da Terra como as do céu94. Não é sem razão que o Eutífron é a obra platônica onde se exprime pela primeira vez o conceito da “ideia”95. Na República, a eusébeiá aparece na primeira fase da paideía, na educação dos “guardiões”, como uma das “chamadas virtudes”96. Essa virtude desaparece, ao chegar à fase superior do Ser, que é a cultura filosófica dos governantes. Juntamente com as outras três virtudes é aqui absorvida pela superior unidade da sabedoria, a qual é de per si uma parte divina da alma, que conhece o divino na sua forma pura como ideia do Bem97. Ao chegar a essa fase, a piedade popular cede o lugar à forma filosófica da religiosidade, tal qual a plasmaram os gregos: à Teologia, erigida agora em princípio do Estado. Podemos muito bem adotar o título de Espinosa e chamar à República – a obra fundamental de Platão, na qual se assentam as bases ideais da paideía – Tractatus Theologico-Politicus. O Helenismo, apesar de o seu Estado encontrar-se intimamente relacionado com a religião, nunca chegou a conhecer um Governo teocrático baseado em dogmas. Mas o Estado platônico representa na Grécia um digníssimo ideal paralelo à teocracia sacerdotal do Oriente: a audaciosa imagem de um reinado dos filósofos, baseado na capacidade do espírito investigador do Homem para conseguir conhecer o Bem divino. Embora Platão sentisse o seu Estado como pólis grega, já acima apontamos que a helenidade foi apenas o material excelente que lhe serviu para a construção da sua república98. À medida que a ideia divina do Bem se exprime através dessa matéria como princípio que serve para a modelar, expande-se no Estado grego o elemento racional ativo que se revela logo desde o aparecimento da ideia do Estado de direito, e que tende para o absoluto, para a suprema universalidade. O seu símbolo visível é a comparação do Bem com o Sol, que ilumina todo o universo.”

82. Teeteto, 176 E. Essa passagem fala de dois “paradigmas implícitos no existente” e contraditórios, um divino e outro não divino (o bom e o mau), o primeiro dos quais é o da suprema felicidade e o outro o do infortúnio supremo. Isso lembra a passagem de Rep., 472 C, onde Platão opõe como modelo (παραδει¿γματος εàνεκα) a ideia da justiça e do perfeito justo à ideia da injustiça e do perfeito injusto. Já mais acima (veja-se nota 49) fazíamos notar que o conceito da areté como “semelhança de Deus”, com que deparamos na passagem do Teeteto, já aparece também na República (613 B).

83. Rep., 511 B: τηìν τουª μαντοςì α¹ρχη¿ν.

84. Leis, 716 C.

85. Fédon, 96 A 55, 99 A 55.

86. ARISTÓTELES, Metaf., A 3, 984 B 855. e A 6, 987 b 1.

87. Cf. a minha obra Aristóteles, p. 130, e ainda o estudo “Aristotle’s Verses in Praise of Plato”, em Classical Quartely, t. XXI (1927), pp. 13 ss., onde mostro com todo detalhe que a posição que Aristóteles, nessa poesia, atribui ao seu mestre só pode ser comparada à do fundador de uma religião.

88. ARISTÓTELES, Metaf., E 1, 1026 a 19. Cf. sobre isso a minha obra Aristóteles, pp. 161 s.

89. A Epínomis trata, em primeiro lugar, dos chamados “deuses visíveis” do Timeu e das Leis – os deuses-astros. A característica do Deus que é tema da teologia das Leis é a de Deus como a causa da mudança e do movimento.

90. DIÓGENES LAÉRCIO, III, 37. Não citamos aqui a bibliografia sobre o problema da autenticidade da Epínomis. Cf., adiante, livro IV.

91. Cf. Timeu, 40 D.

92. Rep., 379 A.

93. Epínomis, 988 A; ARISTÓTELES, Metaf., A 2, 982 b 28-983 a 11. Et. Nic., X 7, 1177 b 30-33.

94. Eutífron, 11 E. Cf. também a alternativa flagrantemente formulada em 10 A: o objeto da piedade (οàσιον) é amado pelos deuses por causa do seu próprio valor, ou é objeto de piedade (simplesmente) por ser amado pelos deuses? O problema gira em torno da equiparação do divino com aquilo que é bom.

95. Eutífron, 6 D.

96. Cf., acima, pp. 783 ss.

97. Cf., acima, nota 30.

98. Cf., acima, pp. 832-4.

 

 

“Por mais sedutoras que sejam as cores com que Platão e Aristóteles pintam a vida do conhecimento puro, essa vida continua a ter relação com a prática, de acordo com a ideia, e é essa relação que a justifica. É precisamente no momento da sua tensão máxima que o sentido político originário de toda a paideía grega triunfa no conteúdo ético e espiritual que Platão lhe infunde de novo. Reservam-se para determinação mais detalhada o como e o quando desse dever, mas como princípio deixam-se logo afirmados de antemão: o filósofo deve descer outra vez à caverna103. Deve combinar-se a persuasão e a coação para movê-lo a ajudar os que com ele partilharam o cativeiro. É esse forte sentimento de responsabilidade social que distingue da filosofia dos pensadores pré-socráticos o ideal platônico da suprema cultura espiritual. O paradoxo histórico é que esses sábios, mais preocupados com o conhecimento da natureza do que com o Homem, tiveram uma ação política prática mais intensa do que Platão, apesar de todo o pensamento deste girar em torno dos problemas práticos104. No seu sentido pleno, o dever de atuar perante a coletividade, bem como a possibilidade da educação e atuação dos filósofos como estadistas, só existe para Platão dentro do Estado ideal. Não sente nenhum dever de gratidão ativa para com o Estado degenerado da realidade, porque, embora também nele possam nascer filósofos, não é pelo fato de a opinião pública ou os órgãos desse Estado os estimularem que eles nascem lá105. Em contrapartida, é isso que acontece no Estado perfeito. Aqui o filósofo deve à comunidade a sua paideía e com ela o seu ser espiritual, o que o obriga a reembolsá-la do que ela “inverteu para o educar”. Ainda que contra a vontade, não terá outro remédio senão aceitar, por motivos de gratidão, a missão que lhe é confiada e consagrar ao Estado o melhor das suas forças. Por conseguinte, sempre se reconhecerá o Estado ideal por nele não governarem os ambiciosos de poder, mas antes precisamente aqueles que menos desejo têm de exercê-lo106.”

102. Rep., 519 C 5. Cf. 540 B, onde, no entanto, “ir para as Ilhas dos Bem-Aventurados e morar lá” significa a verdadeira separação do filósofo deste mundo, e a sua vida depois da morte. É a vida do herói que, uma vez cumprida a sua obra, desfruta a bem-aventurança nesse lugar escolhido. Num sentido análogo, Górg., 526 C. Em Rep., 519 C 5, a imagem religiosa significa, em vez disso, o θεωρητικο¿ς βι¿ος, a atividade contemplativa do espírito filosófico “nesta vida”, sentido que Aristóteles recolheu. Cf. o meu Aristóteles, p. 120. A imagem palpita ainda, de modo sensível, na descrição da bem-aventurança da vida contemplativa que se faz na Ética a nicomaqueia, X, 7.

102a. Cf. o meu Aristóteles, pp. 91 s.

103. Rep., 519 D-520 A.

104. Cf. o meu estudo “Ueber Ursprung und Kreislauf des philosophischen Lebensideals”, em Berichte der Berliner Akademie, 1928, p. 414. Demonstra-se nesse estudo que uma parte dos antigos historiadores da Filosofia apresentava os pensadores mais antigos precisamente como modelos da devida associação da ação e da ideia, ao passo que os filósofos posteriores se foram consagrando cada vez mais à teoria pura.

105. Rep., 520 B. Como temos chamado a atenção já várias vezes, nos Estados gregos do século IV não se vela publicamente pela cultura superior. Cf. ARISTÓTELES, Et. Nic., X, 10, 1180 a 26, que diz que quanto à educação e à cultura reina, contudo, na maioria das cidades, o primitivo Estado ciclópico em que cada qual dirige por sua conta a sua mulher e filhos. No Críton, Sócrates expressava um sentimento de profunda dedicação para com o Estado ateniense pela educação que tinha recebido sob a proteção das suas leis. Se essa foi verdadeiramente a atitude do Sócrates histórico, a posição de Platão na República, que é completamente oposta, torna-se ainda mais significativa.

106. Rep., 519A-D, 521 B.

 

 

O caráter (τρο¿πος) da dialética só se pode determinar se for relacionado com os demais tipos do saber humano. Há várias maneiras de abordar metodicamente o problema, quando se quer chegar a compreender as coisas e a sua essência. As chamadas tékhnai, ou disciplinas empíricas, têm relação com as opiniões e os anseios dos homens e servem para produzir algum objeto ou para cuidar (θεραπει¿α) do que provém da natureza ou é criado pelo artifício do Homem164. De certo modo, as disciplinas matemáticas já se aproximam mais do verdadeiro Ser, mas só o alcançam como em sonhos; são incapazes de vê-lo acordadas. Como já se disse, partem de hipóteses que são incapazes de justificar. Por conseguinte, o seu “princípio” é algo que elas ignoram, e assim tudo o mais que faz parte das matemáticas está “entretecido” de um certo quê de ignorância. É indubitável que tal aproximação (ο¸μολογι¿α) não pode a rigor ser chamada saber (ε¹πιστη¿μη), apesar de a linguagem usual nos ter habituado a esta palavra165. A dialética é a ciência que “revoga” as premissas de todos os demais tipos do saber e dirige lentamente para o alto os olhos da alma, mergulhados nos pântanos da barbárie, para o que se serve das matemáticas como instrumento auxiliar166. Assim, é o seguinte o sentido da proporção entre as fases do Ser e do conhecer, com as quais Platão ilustrava anteriormente esse objetivo da sua paideía: o pensamento está para as opiniões como o Ser está para o devir; e o verdadeiro saber (ε¹πιστη¿μη) e a inteligência matemática têm para com a simples evidência transmitida pelos sentidos (πι¿στις) e para com as sombras dos objetos visíveis, respectivamente, a mesma relação que o pensamento tem para com as opiniões167. Em outras palavras, o saber conferido pela dialética é tão superior ao “saber” matemático, quanto ao conteúdo do Ser, como as coisas reais do mundo visível o são quanto as suas sombras ou imagens refletidas. Por conseguinte, o dialético é o homem que compreende a essência de cada coisa e sabe dar conta dela168. E, do mesmo modo, deve estar em condições de discernir (α¹ϕελειν) a Ideia do Bem dentre tudo o mais, isto é, de separar o “Bem-em-si” das diversas coisas, pessoas, atos, etc. que chamamos boas e de o delimitar por meio do lógos, rompendo caminho através de todas as refutações como numa batalha, e aguentando-se valentemente em pé, sem que o seu pensamento se extravie, até o combate findar169. A verdadeira força dessa paideía que ensina a perguntar e a responder cientificamente170 é o perfeito estado de vigilância que instala na consciência. É por isso que Platão a considera a cultura própria dos “guardiões” no sentido superior dessa palavra, quer dizer, como a cultura própria dos governantes. O nome de “guardiões” – em si estranho –, dado por Platão à classe dominante, foi escolhido, ao que parece, na previsão da virtude filosófica desse supremo estado de vigilância espiritual em que se trata de educá-los171. O nome de “guardiões”, que a princípio se dava à totalidade do escalão dos guerreiros, limita-se, no decurso da seleção, aos governantes172; e é esse punhado de homens que participa da educação superior. Quem não a possui não faz mais do que sonhar a sua vida, e antes de despertar nesta vida já entrou no sono eterno do Hades173. Dentro do sistema das ciências, a dialética é a fronteira (θριγκο¿ς) que delimita o saber humano por cima e exclui a possibilidade de acrescentar outro saber superior a ela174. O conhecimento do sentido é a meta final do conhecimento do Ser.”

164. Rep., 533 B 1-6.

165. Rep., 533 B 6-C 5. Cf., acima, pp. 887 ss.

166. Rep., 533 C-D.

167. Rep., 534. A.

168. Rep., 534 B.

169. Rep., 534 B 8-C.

170. Rep., 534 D 8-10.

171. Rep., 534 C 6.

172. Rep., 413 B. Cf. 412 C.

173. Rep., 534 C 7.

174. Rep., 534 E.

 

 

O contrário de um Estado normal é a variedade das formas anômalas do Estado. A sua investigação requer outro método, um método meio racional meio empírico, que mais tarde servirá a Aristóteles de ponto de apoio para prosseguir na elaboração dos elementos empíricos contidos no platonismo. O fato de ser precisamente essa parte da política platônica que Aristóteles desenvolve demonstra suficientemente até que ponto é fecunda essa mescla de ideia e realidade com que Platão opera. No entanto, o desenvolvimento aristotélico só em parte esclarece a intenção que move Platão, quando este traça a teoria das formas degeneradas do Estado. A teoria platônica das formas do Estado não é primordialmente uma teoria constitucional; tal como a sua teoria do Estado perfeito, é sobretudo uma teoria do Homem. Com base no paralelismo entre o Estado e o Homem, o qual transparece ao longo de toda a obra, e de acordo com as formas estatais da timocracia, da oligarquia, da democracia e da tirania, Platão distingue um tipo de homem timocrático, oligárquico, democrático e tirânico; e entre esses tipos de Homem, tal como entre as diversas formas de Estado, estabelece diferentes graus de valor, até chegar ao tirano, último grau da escala e reverso do homem justo236. Todavia, assim como no Estado perfeito não existe apenas uma relação de extremo paralelismo entre o Estado e o Homem, mas o Estado não é senão a superfície límpida na qual se projetará a imagem do homem justo, igual a ele, também nas demais formas do Estado este não é, em si, nada sem o Homem. Quando se fala do variado “espírito das constituições”, subentende-se que a fonte desse espírito é o éthos do tipo de homem criado a partir de dentro pela forma de Estado que lhe está adequada237. Isso não impede que, uma vez estruturada, a forma da comunidade humana imprima por sua vez o seu caráter nos indivíduos que vivem dentro dela. Mas o fato de ser possível, como a experiência histórica ensina, sair desse círculo estritamente delimitado e passar a outra forma de Estado, quer dizer que a causa disso não se deve procurar em nenhum tipo de circunstâncias exteriores, mas antes no interior do Homem, que muda a sua “estrutura anímica” (καασκευηì ψυχηªς)238. Encarada por esse prisma, a teoria platônica das formas de Estado representa uma patologia da personalidade humana. Quem vir na héxis normal do Homem um produto da cultura adequada239 tem logicamente que imputar à educação a culpa que lhe cabe em cada um dos desvios surgidos em relação à norma. Mesmo que todos os habitantes de um Estado se desviem da norma num sentido determinado, não é na natureza, que por si pende para o bem, mas na educação, que se deverá procurar a causa do mal. Por conseguinte, a teoria das formas do Estado deve ser considerada ao mesmo tempo uma patologia da educação240.”

236. Rep., 544 D-545 A.

237. Rep., 544 D.

238. Rep., 544 E 5.

239. Rep., 443 E 6, 444 E 1.

240. Este ponto de vista domina a interpretação que segue no texto. Diremos já aqui que, na maioria dos casos, os expositores não o têm na devida conta.

 

 

Platão justificara a sua minuciosa exposição das diversas formas de Estado e dos diversos tipos de homem correspondentes a elas alegando que a verdadeira finalidade do diálogo era saber se a justiça representava um bem em si mesma e a injustiça um mal382. O seu propósito é demonstrar que o homem perfeitamente justo, isto é, o homem que segundo a definição dada acima está na posse da areté perfeita383, possui também a verdadeira felicidade e que, em contrapartida, o homem injusto é desgraçado. Com efeito, segundo a interpretação platônica, é este o verdadeiro sentido da palavra eudaimonía: não quer dizer que o Homem goza de bem-estar exterior, mas que tem realmente, como a palavra indica, um bom daímon.

Esse conceito religioso era um conceito suscetível de mudanças e aprofundamento infinitos. Daímon é o deus na sua ação e significado voltados para o Homem. Para a massa, o homem que “tem um bom daímon” é o que foi abençoado com bens abundantes e é feliz nesse sentido. A acepção grega comum da palavra aparece magnificamente caracterizada, no momento em que no drama de Ésquilo o rei dos persas põe frivolamente em jogo o seu velho daímon para alcançar novo poder e maior riqueza384. Apresenta aqui ao mesmo tempo o conteúdo material e o autêntico sentido original de favor dos deuses. Embora na mentalidade do século IV vá adquirindo força cada vez maior, ou predomine até de modo exclusivo, o sentido material da eudaimonía385, essa palavra, que recorda a origem do daímon, é de per si suscetível a todo instante de voltar a ligar-se com a concepção religiosa que lhe serve de base. O conceito do daímon, como tal, desenvolvera-se havia muito tempo, até adquirir um significado mais interior, independentemente da acepção especial de eudaimonía, que àquela época lhe era muito frequentemente ligada. Daí ele apresentar para nós um sentido mais familiar na frase de Heráclito: o caráter (ηθος) é o daímon do Homem. O daímon não é aqui algo que viva fora do Homem, mas a relação que aparece estabelecida entre o divino e sua ação, e o Homem como agente do destino faz com que esse destino forme uma unidade com a essência interior daquele e com os seus condicionalismos especiais. Não há grande distância entre isso e a ideia platônica de que é a areté moral interior do Homem, a “personalidade”, como hoje dizemos, a fonte única da sua eudaimonía; ou, para exprimi-lo com a frase com que Aristóteles, na sua elegia do altar, resume a doutrina de Platão, é só a areté, isto é, o valor interior próprio, que torna o Homem feliz386.”

377. Rep., 578 B 6-C.

378. Górg., 466 B-468 E. Cf., acima, pp. 662 ss.

379. Rep., 567 B.

380. Rep., 579 D-E.

381. Rep., 578 E-579 D.

382. Rep., 544 A.

383. Rep., 443 C-444 A.

384. ÉSQUILO, Os persas, 852. Cf. p. 280.

385. Assim, por exemplo, na expressão πο¿λις μεγα¿λη καιì ευ¹δαι¿μωγ, frequente em Xenofonte e em outros autores.

386. Cf. o meu Aristóteles, p. 127.

 

 

“O ataque de Platão é dirigido principalmente contra a poesia imitativa. Mas o que é a imitação? Platão esclarece-o pelo processo habitual, partindo da hipótese das ideias17, que designam a unidade na pluralidade, operada no pensamento. As coisas que os sentidos nos transmitem são reflexos das ideias, isto é, as cadeiras ou as mesas são reflexos ou imitações da ideia de cadeira ou de mesa, que é sempre única. O carpinteiro cria os seus produtos, tendo presente a ideia, como modelo. O que ele produz é a mesa ou a cadeira, não a sua ideia18. Uma terceira fase da realidade, além das da ideia e da coisa transmitida pelos sentidos, é a que representa o produto da arte pictórica, quando um pintor pinta um objeto19. É precisamente com essa fase que Platão compara a relação que existe entre a poesia e a verdade e entre a poesia e o Ser. O pintor toma como modelo as mesas ou as cadeiras perceptíveis aos sentidos feitas pelo carpinteiro, e imita-as no seu quadro. Tal como alguém que pretendesse criar um segundo mundo, colocando a imagem deste no espelho, assim o pintor se limita a traçar a simples imagem refletida das coisas e da sua realidade aparente20. Portanto, encarado como criador de mesas e cadeiras, é inferior ao carpinteiro, que fabrica mesas e cadeiras de verdade. E o carpinteiro é, por seu turno, inferior a quem criou a ideia eterna da mesa ou da cadeira, a qual serve de modelo para fabricar todas as mesas e cadeiras do mundo. É Deus o criador último da ideia21. O artífice produz só o reflexo da ideia. O pintor é, assim, o criador imitativo de um produto que, à luz da verdade, ocupa o terceiro lugar. O poeta pertence à mesma categoria: cria um mundo de mera aparência22.”

14. Rep., 595 A 5.

15. Rep., 592 A 11-B.

16. Rep., 595 B 6.

17. Rep., 595 C ss.

18. Rep., 596 B.

19. Rep., 596 E-597 B.

20. Rep., 596 D.

21. Rep., 597 etg B-D.

22. Rep., 597 D-E. Cf. 599 A, 599 D 2.

 

 

“Para Platão, o Estado perfeito significa apenas o círculo de vida ideal onde a personalidade humana se pode desenvolver livremente, de acordo com a lei moral que lhe é inata, e desse modo realizar ao mesmo tempo dentro de si própria a finalidade do Estado48. Segundo Platão, isso não é possível em nenhum dos Estados existentes. Em todos eles surgem inevitavelmente certos conflitos entre o espírito do Estado e o éthos do homem que na sua alma alberga o “Estado perfeito” e se esforça por viver de acordo com ele, o éthos do homem perfeitamente justo49. Se encararmos o Estado platônico por esse prisma, veremos que ele não é tanto um projeto orientado para a reforma prática do Estado, como uma construção social, que submete todas as outras considerações da paideía à formação da personalidade moral e espiritual. Tudo nele tende para a felicidade do Homem; porém não assenta nos seus desejos ou critérios individualistas, mas sim na saúde interior da alma, que é a justiça. No final do livro IX, Platão reparte os prêmios entre os representantes dos diversos tipos de alma e forma de vida declarando o homem justo o único verdadeiramente feliz. Com isso respondia ao mesmo tempo à pergunta de Gláucon que servira de ponto de partida ao diálogo fundamental: a de se a justiça em si, independentemente do seu reconhecimento social, podia tornar os homens felizes50. Sem embargo, nem sequer isso constitui a última palavra acerca do seu valor e da paideía que conduz a essa meta. O troféu dessa luta é mais alto, e o valor aqui em jogo, superior a qualquer um dos fins suscetíveis de serem alcançados no breve período que a vida de um homem abarca51. Não é através do tempo, mas da eternidade, que devemos contemplar o ser da alma. Trata-se da sua salvação perpétua neste mundo e no outro. Se a vida terrena do justo é um único e incessante processo da educação para o verdadeiro Estado, que vive como as ideias no céu52, toda a educação é, por sua vez, uma preparação para um estado superior da alma, em que ela já não existe sob a forma complexa de um monstro de muitas cabeças, de um leão ou de um homem, mas sim na sua forma pura.”

47. Cf. Rep., 607 E-608 B. Temos de atentar nesta frase η¸ τοιαυ¿τη ποι¿ησις, que aparece duas vezes e que significa: toda a poesia desse gênero (mimética): fica assim aberta a porta a outros tipos de poesia. Cf. 607 A 4. Uma referência renovada ao “Estado em nós”, como meta e norma por que se deverá medir a admissibilidade da poesia, vem em 608 B 1, como já vinha antes em 605 B 7.

48. Cf., acima, pp. 981 ss.

49. Cf. Rep., 591 E-592 B.

50. Rep., 488 B ss.

51. Rep., 608 C.

52. Rep., 592 B: O verdadeiro Estado existe no céu, como paradigma.

 

 

“O único saber com valor é saber escolher, pois dá ao Homem a capacidade de adotar a verdadeira decisão. É esse o sentido do mito, que o próprio Platão explica. O grande risco por todos corrido é a escolha do destino da vida, que para o filósofo é sinônimo de forma de vida ou de ideal de vida. É por isso que ele deve se esforçar por adquirir o saber que o habilita a realizar essa escolha, sem se preocupar com nenhuma outra coisa73. Esse ponto de vista esclarece definitivamente o que é a paideía. A extraordinária seriedade com que Platão concebe esse problema e o converte no único assunto que verdadeiramente domina toda a existência do Homem exprime-se na exigência de o Homem se preparar com todas as suas forças nesta vida para poder realizar a escolha que terá de fazer na outra, quando, após uma peregrinação milenar, se dispuser a descer à Terra novamente, a fim de viver uma vida superior ou inferior74. Agora não é um ser livre no pleno sentido da palavra, principalmente se as suas antigas culpas lhe embaraçam a subida. Não obstante, porém, pode trabalhar na obra da sua libertação, sempre que lutar para seguir a via ascendente75. Se o Homem se esforçar por caminhar sempre para cima, a sua libertação consumar-se-á numa outra vida.”

72. Rep., 620 C.

73. Rep., 618 B.

74. Rep., 615 A, 621 D.

75. Rep., 621 C 5.

 

 

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Livro IV

 

“Em todo lado e em todas as épocas houve médicos, mas a Medicina grega só se tornou uma arte consciente e metódica sob a ação da filosofia jônica da natureza. E de modo nenhum deve obnubilar a consciência desse fato a atitude nitidamente antifilosófica da escola de Hipócrates, em cujas obras a Medicina grega nos vem ao encontro pela primeira vez6. A Medicina jamais teria conseguido chegar a ciência sem as investigações dos primeiros filósofos jônicos da natureza, que procuravam uma explicação natural para todos os fenômenos, sem a sua tendência a reduzir todo efeito a uma causa e a comprovar na relação de causa a efeito a existência de uma ordem geral e necessária, e sem a sua fé inquebrantável em chegarem a descobrir a chave de todos os mistérios do mundo, pela observação imparcial das coisas e a força do conhecimento racional. Há um certo tempo podemos consultar os apontamentos do colégio de médicos da corte dos faraós egípcios, que são do século III a.C.: é com assombro e admiração que neles vemos o alto grau de capacidade de observação que aqueles médicos já possuíam e que de vez em quando verificamos certas tentativas notáveis de generalizações teóricas e de raciocínios causais7. Não podemos deixar de interrogar-nos: por que uma Medicina tão desenvolvida como aquela não chegou a tornar-se uma ciência tal como nós a concebemos? Aos médicos egípcios não faltava por certo especialização, muito acentuada entre eles, nem empirismo. A solução do enigma não pode ser mais simples: reside pura e simplesmente no fato de aqueles homens não terem do conjunto da natureza o ponto de vista filosófico que os jônios tinham. Sabemos hoje que a Medicina egípcia já era bastante forte para superar a fase de magia e de bruxaria que a metrópole grega ainda conheceu no mundo arcaico que rodeava Píndaro. Mas foram os médicos gregos, disciplinados pelo conceito de lei dos filósofos seus precursores, os primeiros a serem capazes de criar um sistema teórico que pudesse servir de base de sustentação a um movimento científico.”

6. Cf. adiante, pp. 699 ss. Anteriormente, ao contrário, era de Tales que se fazia partir a história da Medicina grega, de acordo com a teoria de CELSO (I Proem., 6), segundo a qual a filosofia onicientífica abarcava primitivamente todas as ciências. Isso é uma construção histórica romântica da época helenística. Nos seus inícios, a Medicina era uma arte puramente prática, ainda que fortemente atraída pela nova concepção da natureza dos investigadores jônicos. A literatura médica dos gregos chegada até nós parte da reação gerada contra essa influência.

7. Cf. J. H. BREASTED, The Edwin Smith Surgical Papyrus publisched in Facsimile and Hieroglyphic Transliteration with Translation and Commentary (2 vols., Chicago, 1930). Cf. Abel REY, La Science Orientale avant les Grecs (Paris, 1930), pp. 314 ss. Sobre a literatura acerca do caráter científico dessa fase da Medicina, cf. MEYERHOF, “Ueber den Papyrus Edwin Smith, das älteste chirurgiebuch der Welt” in Deutsche Zeitschrift für Chirurgie, t. 231 (1931), pp. 645-90.

 

 

“A maioria dos médicos assemelha-se aos maus navegantes: quando o tempo é bom ou razoável não se veem os seus erros de navegação; mas quando os surpreende uma tempestade rija fica patente a todos a sua incapacidade.”

 

 

A vida é breve, a arte longa, a ocasião fugidia, a experimentação arriscada, e o juízo difícil.”

(Frase inicial do Livro dos Aforismos, de Hipócrates)

 

 

Quando Platão compara a ciência médica à Filosofia, é baseado sobretudo no caráter normativo daquela que ele o faz. Põe por isso o navegante ao lado do médico, como exemplo desse tipo de saber, e outro tanto faz Aristóteles. Ambos tiram essa comparação da obra Da medicina antiga, que é a primeira a usá-la em relação ao problema de que nos ocupamos57. Mas, enquanto Platão, ao recolher esta imagem, pensa antes no conhecimento da norma como tal, em Aristóteles é em outro sentido que o médico é tomado como modelo. Um dos maiores problemas da ética aristotélica é saber como é que a norma, tendo embora caráter universal, se pode aplicar à vida do indivíduo e ao caso concreto que momentaneamente parece furtar-se a qualquer regra universal. Isso tem importância decisiva principalmente no que se refere à educação. Por isso é que Aristóteles distingue essencialmente entre a educação individual e a coletiva, apoiando-se para isso no exemplo da Medicina58. Mas a Medicina também ajuda o filósofo a resolver o problema de saber como o indivíduo irá encontrar a verdadeira pauta da sua conduta, ensinando-o a descobrir o comportamento moral adequado ao justo meio entre o excesso e o defeito, por analogia com uma dieta física saudável.

Para melhor se compreenderem essas expressões, bastará lembrar que para Aristóteles a ética versa sobre a regulação dos impulsos humanos do prazer e da dor. Já Platão aplicara os conceitos médicos de plenitude e vazio à teoria das sensações de prazer e as incluíra no gênero em que há um mais e um menos, que precisa ser regulado59. Aristóteles define esse critério como o do justo meio; não o concebe, porém, como um ponto matemático fixo entre os extremos nem como o centro absoluto da escala, mas sim como o meio justo para o indivíduo de cuja conduta se trata. Por conseguinte, o comportamento moral é a tendência a concentrar-se no justo meio que para cada qual existe entre o excesso e o defeito60. Os termos aqui usados por Aristóteles, o conceito de excesso e de defeito, de ponto médio e de justa medida, o de visar οτοχα¿ζεσθαι e o do tato seguro (αÓισθησις), a recusa de uma regra absoluta e a exigência de uma norma adequada às características de cada caso concreto, são tudo termos e critérios tirados diretamente da Medicina, e certamente serviu-lhe até de modelo a obra Da medicina antiga61.

57. Por exemplo, PLATÃO, Rep., 299 C; ARISTÓTELES, Et. Nic., II, 2, 1104 a 9; III, 5, 1112 b 5 e De Vet. Med., 9, segunda metade.

58. Cf. ARISTÓTELES, Et. Nic., X, 10, 1180 b 7.

59. PLATÃO, Fil., 34 E-35 B ss.

60. ARISTÓTELES, Et. Nic., II, 5, 1106 a 26-32; b 27. Cf. De Vet. Med., 9, citado acima, nota 39 deste cap.

61. Ecos da passagem De Vet. Med., 9, encontramo-los também na literatura médica do século IV; cf. Díocles de Caristo, frag. 138 (ed. Wellmann) e a polêmica que figura na obra Da dieta, I, 2 (ed. Littré, t. VI, p. 470, segunda metade). O autor discute a possibilidade de adaptar com exatidão a regra geral à natureza individual do paciente. E vê aqui a inevitável falha de toda a arte da medicina.

 

 

De nada serviria ao nosso propósito examinar com igual minúcia o conteúdo e o caráter da Medicina dos gregos. Grande parte dela está constituída por simples pormenores de tipo profissional, que não têm interesse direto para o fim que temos em vista. Todavia, além do que anteriormente dissemos, a Medicina dos séculos V e IV traz para o grande processo espiritual da formação do homem helênico uma contribuição direta cuja importância a ciência médica moderna só de há pouco tempo a essa parte reconheceu e explorou: a doutrina referente à conservação da saúde do Homem. É essa a verdadeira criação do espírito hipocrático em matéria de educação. Para o compreendermos, temos de projetá-la sobre o fundo da imagem total da natureza, traçada pelas obras de ciência médica daquele tempo. Como vimos mais acima, o conceito de natureza é um conceito onipresente no pensamento dos médicos gregos. Qual era, porém, o seu conteúdo concreto? Como é que o espírito investigador da escola hipocrática concebia a ação do que se chamava phýsis? Ainda não se fez até hoje nenhuma tentativa sistemática para definir o conceito de natureza na antiga literatura médica dos gregos, apesar da importância que isso teria para toda a história do espírito no mundo de então e na posteridade. O verdadeiro médico surge sempre como o homem que nunca separa a parte do todo, mas sempre a encara nas suas relações de interdependência com o conjunto. E de novo podemos tomar como ponto de referência o juízo emitido no Fedro sobre Hipócrates63. Com as suas palavras, Platão tem em mente o que nós denominamos a concepção orgânica da natureza. Com a sua referência ao método da Medicina, propõe-se pôr em relevo a necessidade de em todos os campos se compreender, primeiro que tudo, com exatidão, a função da parte no todo, determinando assim o que é mais adequado ao tratamento da parte. E a Medicina é precisamente a ciência que serve de modelo a esse método de investigação. Platão censura no Fédon a antiga filosofia da natureza64, por não ter tido em conta o fator, imanente no cosmo, da adequação a um fim, fator relacionado da forma mais estreita com o método orgânico de investigação. O que nos filósofos da natureza faltava encontrava-o ele na ciência médica.”

63. PLATÃO, Fedro, 270 C-D. Cf., acima, pp. 1039-40.

64. PLATÃO, Fédon, 96 A ss.

 

 

Com efeito, a paideía é aqui concebida como uma disciplina e uma domesticação puramente exteriores, ao passo que na concepção hipocrática a paideía tem já o seu caminhar inconsciente e espontâneo na própria natureza e na sua ação teleológica. Esse ponto de vista espiritualiza o natural e naturaliza o espiritual. É dessa raiz que brota o uso genial de analogias espirituais para explicar o físico e de analogias materiais para interpretar o espiritual. É valendo-se de tais analogias que o autor do livro Das epidemias cunha expressões tão lapidares e impressionantes como esta: O esforço físico é alimento para os membros e para os músculos, o sono o é para as entranhas. Pensar é para o Homem o passeio da alma82.

À luz dessa imagem da natureza como força espontânea e inconscientemente teleológica, podemos compreender a tese do autor da obra Da dieta: A natureza basta a todos em todas as coisas83. Mas, assim como o médico facilita com a sua arte a obra da natureza, quando se altera o equilíbrio dela, também é essa mesma concepção que incute a esse autor o dever de prevenir o perigo que espreita e de velar pela conservação do estado normal. O médico antigo, como o moderno ainda até há poucas décadas, era mais médico de sãos do que de enfermos. Essa parte da Medicina resume-se sob o nome de higiene (ταì υ¸γυει¿α). Os cuidados da higiene incidem sobre a dieta. Os gregos entendem por dieta não só a regulamentação dos alimentos do enfermo, mas também todo o regime de vida do Homem e especialmente a ordenação dos alimentos e dos esforços impostos ao organismo. Nesse aspecto, o ponto de vista teleológico em relação ao organismo humano devia impor ao médico uma grande missão educativa. A sanidade antiga só em muito pequena parte era incumbência pública; fundamentalmente, dependia do nível cultural do indivíduo, do seu grau de consciência, das suas necessidades e dos seus meios. E, como é natural, estava desde o início relacionada com a ginástica. Esta tinha um lugar importante nas ocupações do homem grego médio. Baseava-se por seu turno numa longa experiência higiênica e exigia um constante domínio do corpo e dos seus atos. É pois explicável que o ginasta, como conselheiro experiente no cuidado do corpo, fosse o precursor do médico. E nem por sombra foi afastado, quando apareceu a teoria da dieta, mas conservou sempre a sua posição ao lado daquele. Embora a Medicina tentasse a princípio invadir o campo da ginástica, as obras dietéticas que se conservam atestam que não tardou a estabelecer-se uma divisão de jurisdições, em que o médico se submetia para certas coisas à autoridade do ginasta.”

82. Epid., VI, 5,5. DIEHGRAEBER, op. cit. (acima, nota 16 deste cap.), interpreta-o assim: o passeio da alma (pelo corpo aparece) ao homem (como o) pensamento. Mas ψυχηªς περι¿πατος ϕροντι¿ς α¹νθρω¿ποισι não pode significar isso. Também em De Victu, II, 61, o pensar (με¿ριμνα) se inclui entre os “exercícios”. A nota nova consiste em tornar os “exercícios” extensivos do corpo à alma.

83. De Alim., 15.

 

 

“Platão combina em unidade harmônica as três virtudes físicas, saúde, beleza e força, com as virtudes da alma, a piedade, a valentia, a moderação e a justiça. Todas elas proclamam por igual a simetria “do Universo”, a qual se reflete na vida física e intelectual do Homem. A cultura física, tal qual os médicos e os ginastas gregos a concebem, é também algo de espiritual. Incute ao Homem, como norma suprema, a rigorosa observância do nobre e são equilíbrio das forças físicas. E, como a igualdade e a harmonia constituem a essência da saúde e de toda a perfeição física em geral, o conceito de são é ampliado até formar um conceito normativo universal aplicável ao mundo e a quanto nele vive, visto serem as suas bases, a igualdade e a harmonia, as potências que, segundo a concepção de que se parte aqui, criam o que é bom e justo em todos os níveis da vida; e o que o destrói é a pleonexía. A Medicina grega é simultaneamente raiz e fruto dessa concepção do mundo, que constitui o seu alvo constante; e, apesar de toda a individualização espiritual dos homens e das estirpes, é ela a concepção comum ao Helenismo clássico. Se a Medicina pôde conquistar uma posição tão representativa no conjunto da cultura grega, foi por ter sabido proclamar no campo mais próximo ao da experiência imediata do Homem a vigência inviolável dessa ideia fundamental da alma grega. É nesse elevado sentido que podemos afirmar que o ideal helênico da cultura humana era o ideal do homem são.”

 

 

“Todos os traços característicos do platonismo que são evidentes para uma inteligência mediana são aqui habilmente resumidos em pouco espaço: o estranho método polêmico das perguntas e das respostas; a importância quase mística atribuída à phrónesis, isto é, ao conhecimento dos valores, qual órgão especial da razão; o vigoroso intelectualismo, que espera toda salvação do saber, e a quase religiosa transcendência da promessa de eudaimonía feita pelo filósofo. Isócrates refere-se, evidentemente, às características terminológicas do novo estilo filosófico, características que ele sabe captar com a fina intuição do conhecedor da língua para descobrir o que deverá chocar ou parecer ridículo à maioria das pessoas cultas; e além disso, ao pôr a virtude total (παªσα α¹ρετη¿), que devia ser a meta do conhecimento socrático do Bem-em-si41, em paralelo com os modestos honorários em troca dos quais os filósofos vendem a sua sabedoria, consegue que o senso comum ponha completamente em dúvida se o que a juventude pode aprender deles vale realmente muito mais do que o pouco que paga pelo seu ensino. E, com a desconfiança acerca da honradez dos seus discípulos da qual dão prova os regulamentos da sua escola, os próprios filósofos demonstram quão pouco acreditam nessa virtude perfeita que dizem aspirar a realizar nos seus discípulos. Com efeito, os regulamentos exigem que os honorários sejam de antemão depositados num banco ateniense42. Sem dúvida essa medida é muito boa no que toca à sua segurança pessoal; mas como conciliar essa exigência com a pretensão a educarem os homens na justiça e no domínio de si? É um argumento que parece de mau gosto mas que não deixa de ser engenhoso. Também Platão no Górgias argumentava maliciosamente e em termos parecidos contra os retóricos que se queixavam de que os seus discípulos abusavam da arte oratória, sem verem que com isso era na realidade a si próprios que acusavam, pois, se fosse certo que a retórica tornava os discípulos melhores, seria inconcebível que estes abusassem do que tinham aprendido43. De fato, o seu caráter amoral era a pior censura que se fazia à retórica. Em várias passagens das suas obras, Isócrates adere ao critério, defendido por Górgias em Platão, de que é para o discípulo fazer bom uso dela que o mestre lhe transmite a sua arte e que, portanto, não deve ser censurado, se o discípulo a utiliza para maus fins44. Não compartilha, por isso, a crítica de Platão, mas é com Górgias que se mostra totalmente de acordo. Dando um passo adiante, porém, ataca aqui os filósofos, procurando provar-lhes que pecam por desconfiança contra os seus próprios discípulos. É, pois, provável que ele já conhecesse o Górgias de Platão e se referisse a esse diálogo no seu escrito programático.”

39. Sof., 2.

40. Sof., 2-4.

41. A virtude total opõe-se em Platão às virtudes concretas, como a justiça, valentia, domínio de si, etc. Aquela é também designada com o nome de virtude em si (αυ¹τηì η¸ α¹ρετη¿). Era uma expressão um tanto nova e insólita para os tempos de Platão.

42. Sof., 5.

43. Cf. Górg., 456 E-457 C, 460 D-461 A.

44. Em Antíd., 215 ss., Isócrates procura livrar os mestres de retórica da censura de que os seus discípulos aprendem deles o mal. Cf. também Nic., 2 ss.

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