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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Paideia: A formação do homem grego (Parte III), de Werner Jaeger

Editora: WMF Martins Fontes

ISBN: 978-85-7326-410-4

Tradução: Artur M. Ferreira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 1456

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Sinopse: Ver Parte I


 

Livro III

 

“Esperamos que a interpretação dada por nós afaste suficientemente a possibilidade de alguém acreditar que essa “falta de garantia” no Estado platônico, de que se fala aqui, deve ser primordialmente encarada do ponto de vista do direito constitucional ou da experiência política, o que levaria a acusar Platão de ingenuidade, por pensar que nenhum Estado se pode governar sem o complicado aparato de uma constituição moderna. Para mim, é de uma clareza meridiana que Platão não se propõe de modo nenhum tratar seriamente esse problema, visto que ele não se interessa aqui pelo Estado como problema técnico ou psicológico, mas o aborda simplesmente como delimitação e como fundo de um sistema perfeito de educação. Pode-se criticá-lo quanto se quiser por causa disso e acusá-lo de imprimir um caráter absolutista à educação; o que não admite dúvida é que, para ele, o verdadeiro problema é o da paideía. É essa, na sua maneira de ver, a solução de todos os problemas insolúveis. A acumulação da maior plenitude possível e ilimitada de poder nas mãos de quem governa o Estado não é para Platão um fim em si mesmo. Será por ele denunciado como fonte da hýbris, na sua última obra, as Leis. (Cf., adiante, livro IV.) O seu governante é o produto máximo da educação, e a missão que lhe é designada é a de ser o educador supremo de toda a cidade.

Platão não decide de antemão o problema de saber se a educação dos “guardiões” – que tende antes de mais nada a conseguir o mais alto tipo médio possível de “guardião” – basta ou não para alcançar esse objetivo167. Mas, se bem que assim fique ainda por definir o conteúdo concreto dessa cultura do governante, na exposição que em seguida se faz da vida deste fica totalmente esclarecido o poder predominante da ideia da educação para novo Estado, afastando-se, em contrapartida, com surpreendente brevidade, tudo o que é meramente político. A vida exterior do governante deve caracterizar-se pela máxima sobriedade, severidade e pobreza. Não existe nela absolutamente nenhuma esfera privada, nem sequer uma casa própria ou refeições familiares, mas toda ela se processa em público. É da comunidade que o governante recebe o estritamente necessário para comer e vestir, sem poder possuir nenhum dinheiro nem adquirir nenhum tipo de propriedade168. A missão do verdadeiro Estado não é tornar o mais feliz possível a classe dominante da população, uma vez que tal Estado deve velar pela felicidade de todos, e isso depende de que cada indivíduo cumpra o melhor possível a sua função específica, e somente ela. Segundo Platão, com efeito, é na sua contribuição como membro do todo social, à semelhança de um organismo vivo, que a vida de cada indivíduo tem o seu conteúdo, o seu direito e os seus limites. O bem supremo que se deve buscar é a unidade do todo169. Mas isso não quer dizer, nem por sombra, que, uma vez restringidos assim os direitos do indivíduo, o todo passe a ocupar o seu lugar e o Estado deva, por sua vez, tornar-se o mais rico e poderoso possível. Os fins a que esse Estado aspira não são o poder, a prosperidade econômica ou o acúmulo ilimitado de riqueza; a sua ambição de riqueza e de poder termina onde esses bens materiais deixam de servir à exigência da unidade social interna170.

Platão não julga pedir nada de inacessível, ao exigir isso, mas considera que os seus planos são de fácil execução, sempre que os cidadãos mantenham de pé uma coisa: uma boa educação, condição na qual assenta o seu Estado171. Cumprida fielmente, essa exigência fará surgir naquele tipo de comunidade homens excelentes, os quais, por sua vez, abraçarão com entusiasmo a mesma educação, elevando-se acima dos seus antecessores172. De acordo com a sua ideia, não é numa preferência ou capricho individual que se baseia a imagem da ordem social traçada por Platão, mas ele a considera a norma absoluta imposta pela natureza do Homem como ser social e moral. É por isso que essa ordem deve estar a cargo do Estado e não conhece evolução; tudo o que seja afastar-se dela significa degeneração e decadência. A ideia de um Estado ideal tem implícita a ideia de que tudo o que dele difere é necessariamente pior do que ele próprio. O que é simplesmente perfeito não deixa margem a nenhum desejo de progresso, mas apenas à vontade de conservá-lo. E, para conservá-lo, não se dispõe de outros meios que não sejam os empregados para criá-lo. Depende tudo apenas de não se inovar nada na educação173. Nenhum perigo do exterior pode afetar esse Estado; em contrapartida, porém, se se modificasse, por exemplo, o espírito da música, modificar-se-ia também o caráter das suas leis174. Aqui está por que Platão recomenda que os “guardiões” edifiquem a cidadela da cidade no alto deste píncaro: a cultura musical175. Se esta degenerar, não será preciso nenhum esforço para a essência do oposto à lei contagiar, como se se jogasse aos costumes o modo de vida e as relações públicas. Mas é também a partir desse cume que, pelo contrário, podem e devem ser restaurados os bons costumes, o respeito pela velhice, o sentimento de dedicação aos pais, o penteado, o vestuário, o calçado e a atitude do corpo que forem corretos176. Platão troça de um tipo de legislação que desce ao detalhe, e na qual vê uma exageração simplista da importância da palavra falada e escrita. Só pela educação (isto é, pela formação do Homem) se pode atingir o fim visado pelo legislador; e, quando aquela é verdadeiramente eficaz, dispensa as leis. É certo que o próprio Platão não poucas vezes dá na República o nome de leis aos preceitos por ele estabelecidos para governo da sua comunidade, mas essas leis versam todas exclusivamente sobre a estrutura da educação. Esta liberta o Estado da necessidade de estar constantemente criando e modificando leis, como acontecia na Atenas do tempo de Platão, e torna inúteis as normas especiais sobre polícia, mercado e postos, sobre o comércio, as ofensas e as violências, assim como sobre o processo civil e o regime da justiça177. Os políticos travam uma luta estéril contra a hidra. Entretêm-se a curar os sintomas, em vez de atacar a raiz do mal, por meio do tratamento médico natural, que é a educação acertada.

Os antigos admiradores da eunomía espartana pintam-na em termos semelhantes, como um sistema público de educação que torna supérflua uma legislação especializada, graças ao rigoroso respeito pela lei escrita, que domina a vida inteira. Já dissemos atrás que esta imagem de Esparta se formou sob a influência de certas ideias reformadoras, como as da paideía platônica e outras correntes críticas do Estado, no decurso do século IV178. Isso não impede, porém, que ao traçar o projeto do seu Estado educacional Platão se apoie, por seu lado, ou julgue apoiar-se no modelo de Esparta, tanto para o geral como para os detalhes. O desprezo pela maquinaria administrativa e legislativa do Estado moderno, a substituição da legislação concreta pela força do costume e por um sistema público educacional que presidisse à vida inteira, a instituição de refeições coletivas para os “guardiões”, a supervisão governamental da música e a concepção dela como firme cidadela do Estado, são todos traços genuinamente espartanos. Mas só um filósofo da época da degenerescência da democracia ateniense e formado em oposição a ela podia oferecer essa interpretação de Esparta como o tipo do Estado em que se conseguira evitar com êxito o individualismo extremista. Era o orgulho máximo dessa democracia o Estado jurídico com o seu respeito pela lei, com o postulado da igualdade de direitos de todos os cidadãos grandes e pequenos, e o complicado mecanismo da sua autoadministração. A renúncia de Platão a essas conquistas constitui, naturalmente, um extremo só explicável pela desesperada situação espiritual da Atenas daquele tempo. Platão chegou à trágica convicção de que até as leis e as constituições não passam de meras formas, que só têm valor quando no povo existe uma substância moral que as alimenta e conserva. Espíritos conservadores julgavam notar precisamente na democracia que aquilo que mantinha coeso esse Estado era, no fundo, uma coisa diferente daquilo que a sua ideologia própria fazia passar por tal. Na realidade, não era tanto a liberdade recém-conquistada e ciosamente defendida, como a força do costume e da tradição, a qual precisamente nas democracias costuma ser mais imperativa que nos outros tipos de Estado; os próprios cidadãos não se dão conta dela, e os membros dos outros Estados também mal advertem a sua presença, na maioria dos casos. A perduração ininterrupta dessa lei não escrita é que tinha sido o forte da democracia ateniense na sua época heroica; foi a sua decadência que, apesar de todas as leis em vigor, converteu em arbitrariedade a liberdade dela. Segundo Platão, uma educação do tipo daquela de Licurgo era o único caminho para restaurar, não a aristocracia de nascimento pela qual suspiravam muitos dos seus companheiros de classe, mas sim os antigos costumes e, por meio destes, consolidar de novo o Estado. Exigir de Platão um quadro equilibrado e uniforme de todos os elementos que formam a vida do Estado seria ignorar o fundo sentimental e condicionado pela época, sobre o qual se destaca o seu sistema educacional. É com paixão moral que Platão situa no centro da sua investigação sobre o Estado a grande verdade que lhe revelam as dores do seu tempo e as do maior homem dele. Por menos ateniense que fosse, na sua forma externa, a educação platônica, é evidente que o seu espartanismo ético consciente só em Atenas podia surgir. Pela sua íntima essência, é o menos espartano que se pode conceber. Devemos ver nele o último esforço ascensional da vontade educacional da democracia ateniense que, ao atingir a fase final da sua evolução, reage contra a própria dissolução e se refaz.

Finalmente, se nos perguntarmos que relação a educação dos “guardiões”, tal como a descrevemos, tem com a essência da justiça – e foi à investigação disso que nos lançamos –, veremos comprovada a predição platônica de que o aprofundamento do problema da educação redundaria em proveito de um melhor conhecimento da justiça179. É certo que era justificada a nossa dúvida inicial sobre se aquela longa investigação a respeito da educação dos “guardiões” seria apenas um meio para descobrir a justiça ou constituiria para Platão antes um fim em si180; com efeito, chegamos à conclusão de que toda a estrutura do Estado baseia-se na verdadeira educação, ou antes, identifica-se com ela181. Se fosse certa essa conclusão, o resultado seria que, atingindo a meta da verdadeira educação, realizaríamos também a verdadeira justiça, e só nos restaria compreender isso com maior clareza.

Para isso, Platão volta a recorrer à sua argumentação anterior, fundamentada na utilidade de tratar o Estado à luz da investigação da justiça182. Embora houvesse posto em relevo desde o primeiro instante, sem deixar margem para dúvidas, que concebia a virtude da justiça como uma qualidade inerente por si própria à alma humana, entendia que por meio da analogia com o Estado lhe seria mais fácil ilustrar a sua essência e a sua ação dentro da alma. E agora vemos que foi precisamente a sua concepção orgânica do Estado que levou Platão a estabelecer esse paralelo. Para ele, a justiça dentro do Estado baseia-se no princípio em virtude do qual cada membro do organismo social deve cumprir, com a maior perfeição possível, a sua função própria183. Tanto os “guardiões” como os “governantes” e os “industriais” têm a sua missão estritamente delimitada, e, se cada um desses três grupos se esforçar por fazer da melhor maneira possível o que lhe compete, o Estado resultante da cooperação desses elementos será o melhor Estado concebível. Cada um desses grupos se caracteriza por uma virtude específica: os “governantes” devem ser sábios184, os “guerreiros”, valentes185. A terceira virtude, a do sereno domínio de si próprio (σεϕροσυ¿νη) não é uma virtude específica ao mesmo título que são as duas anteriores, pois não corresponde exclusivamente ao terceiro escalão, embora tenha para ele especial significado: a harmonia das classes, baseada na submissão voluntária dos piores por natureza aos melhores por natureza e por educação. Essa virtude deve estar presente nas três partes, mas é à camada social chamada a obedecer que ela faz as maiores exigências186. Visto que, à exceção da justiça, se atribuiu a cada uma das quatro virtudes cardeais da antiga política o respectivo lugar dentro do Estado, pela sua localização numa classe especial da população, já não resta à justiça nenhum lugar especial nem classe nenhuma da qual seja patrimônio; e então surge intuitivamente perante o nosso olhar a solução do problema: a justiça consiste na perfeição com que cada classe dentro do Estado abraça a sua virtude específica e cumpre a missão especial que lhe cabe187.

Lembremos todavia que, na realidade, esse estado de coisas não é a justiça no verdadeiro sentido da palavra, mas simplesmente a sua imagem refletida e ampliada na estrutura da comunidade; procuremos, pois, a essência e a raiz dela no próprio interior do Homem188. A alma é formada pelas mesmas partes que o Estado; à sabedoria dos “governantes”, o espírito animoso; e ao domínio de si próprio, a virtude mais característica da terceira classe, consagrada ao lucro e ao prazer, a parte instintiva da alma, quando submetida à consciência superior da razão189. Platão observa que essa fundamentação da teoria das partes da alma é um pouco esquemática, mas não quer abordar aqui o problema com um método mais sutil, pois isso o arrastaria para muito longe do tema190. As diferenças que se notam na estrutura da alma não se poderiam projetar sobre as diversas classes profissionais do Estado, se não existissem já na alma como elementos diversificadores191. Assim como o corpo pode mover uma das partes e ao mesmo tempo ter outra parada, na nossa alma também se pode alvoroçar o elemento instintivo, enquanto a razão pensante põe por si própria limites àquele alvoroço e a parte corajosa está em condições de intervir nesse pleito, refreando a agitação e apoiando, como aliada, os ditames da razão192. Há na alma forças refreadoras e forças impulsionadoras, e é do concerto delas que brota a unidade harmônica da personalidade. Essa unidade interior só se pode estabelecer com a condição de cada uma das partes da alma “fazer o que lhe compete”. A razão é chamada a mandar; a função da parte corajosa é obedecer e apoiá-la193. A sinfonia da alma é o resultado de uma combinação acertada de dois elementos: a música e a ginástica194. Essa cultura coloca o espírito em tensão e o alimenta de belos pensamentos e conhecimentos afrouxando as rédeas da parte corajosa por meio de exortações contínuas e educando-a pela harmonia e pelo ritmo. Uma vez educadas, e quando uma delas tiver aprendido bem o seu papel, ambas deverão guiar conjuntamente os impulsos do Homem. Estes formam a parte mais vasta da alma de cada homem e são por natureza insaciáveis. Nunca é pela satisfação dos seus desejos que se pode levá-los a “fazer o que lhes compete”. Isso os engrandeceria e fortaleceria, mas lhes permitiria apoderarem-se do comando e deitarem por terra a vida inteira195.

Não é, pois, na ordem orgânica do Estado, em virtude da qual o sapateiro deve trabalhar como sapateiro e o carpinteiro desempenhar o seu ofício próprio, que a justiça consiste196. Ela consiste na conformação interior da alma, de acordo com a qual cada uma das partes faz o que lhe compete e o Homem é capaz de se dominar e de congraçar numa unidade a multiplicidade contraditória das suas forças internas197. Se a essa teoria, por analogia com a concepção orgânica do Estado, dermos o nome de concepção orgânica do cosmos da alma, chegaremos enfim ao ponto em que se situa o verdadeiro centro do Estado e da educação platônica.”

165. Rep., 414 D-415 D.

166. Rep., 416 A-B. A palavra grega para “garantia” é aqui ευ¹λα¿βεια. Consiste apenas em ser τωª¸ οäντι καλωªς πεπαιδευμε¿νοι, 416 B 6, ou η¸ ο¹ρθηì παιδει¿α, 416 C 1.

167. Rep., 416 B.

168. Rep., 416 C ss. Dão-se essas regras para a vida do governante, como complemento da sua paideía.

169. Rep., 419 A-420 B e 421 B.

170. Rep., 423 B.

171. Rep., 423 E.

172. Rep., 424 A.

173. Rep., 424 B.

174. Rep., 424 C.

175. Rep., 424 D.

176. Em Rep., 424 D-E, Platão descreve em detalhe as consequências sociais negativas das mudanças na paideía, com as quais põe em contraste, em 425 A-B, as consequências benéficas da sua observação fiel e inabalável. Ambas as imagens caracterizam-se pelas antíteses παρανομι¿α ευ¹νομι¿α, que fazem lembrar a alegria de SÓLON, que faz de παρανομι¿α e ευ¹νομι¿α a causa final da felicidade ou da desgraça do Estado (cf., acima, pp. 180 ss.). Na República são apenas as consequências da mudança ou da resistência à mudança da paideía (cf. Rep., 425 C).

177. Rep., 425 C. Cf. também 427 A.

178. Cf., acima, pp. 108 ss.

179. Rep., 376 C-D.

180. Cf., acima, pp. 286 s.

181. Rep., 423 D-425 C.

182. Rep., 427 D. Cf. 368 E.

183. Rep., 433 A.

184. Rep., 428 B-E.

185. Rep., 429 A-C.

186. Rep., 430 D-432 A.

187. Rep., 433 A-D. Cf. 434 C.

188. Rep., 434 D.

189. Rep., 435 B-C.

190. Rep., 435 C-D. Este problema reaparece mais adiante, em 504 BC. O termo empregado por Platão para designar as espécies ou partes da alma é ειãδη ψυχηªς, 435 C. É um conceito de origem médica. Também o termo análogo θυμοειδε¿ς é da linguagem de Hipócrates. Cf. De aere, c. 16. Emprega-se aqui para caracterizar certas raças em que predominam a valentia e o temperamento sobre a inteligência.

191. Rep., 435 E.

192. Rep., 436 C ss. Sobre a necessidade de distinguir, além da inteligência e dos apetites, um terceiro fator, a valentia, cf. Rep., 439 E-441 A.

193. Rep., 441 C-E.

194. Rep., 441 E. Ver 441 E e a nota 158 deste capítulo.

195. Rep., 442 A-B.

196. Rep., 443 C. Essa ordem dentro do Estado não é mais que um ειãδωλον da verdadeira justiça.

197. Rep., 443 D-E. A areté é, por isso, a “harmonia” das potências da alma, como no Fédon.

 

 

Seleção racial e educação dos melhores

Platão define o Estado ideal como governo dos melhores. Com isso quer expressar uma exigência que está de acordo com a natureza e, portanto, absolutamente obrigatória. É sobretudo a relação entre essa “aristocracia” no verdadeiro sentido da palavra e as formas constitutivas da realidade que se deve investigar228a, pois o conceito de “os melhores” não se poderá definir no seu sentido pleno, enquanto não se explicitar o princípio da seleção, isto é, o tipo de educação que se dará ao reduzido grupo de “guardiões” chamados a governar. E, como no que se refere à educação da mulher chegamos ao ponto de esta se encontrar já apta a cumprir a sua missão de mãe da geração vindoura, depois de ter completado a sua cultura ginástica e musical, o filósofo julga oportuno expor aqui os seus preceitos relativos às relações entre os sexos e à procriação. Esses preceitos enquadram-se bem nesse lugar, não só por motivos de ordem cronológica, mas ainda porque o mais natural é que essa premissa, que condiciona a educação dos “guardiões” e é considerada indispensável por Platão, ligue-se ao estudo da educação da mulher. Referimo-nos já à seleção racial da classe chamada a governar229.

A “aristocracia” platônica não é uma nobreza de sangue, um regime que desde o berço confira aos indivíduos dessa camada social o direito de a seu tempo dirigirem o Estado. Os incapazes e os indignos devem ser degredados (cf. p. 808), selecionando-se em contrapartida, de tempos em tempos, os indivíduos mais aptos e mais dignos do terceiro escalão, para serem promovidos à classe dominante. Platão atribui ao nascimento, no entanto, uma importância essencial na formação do seu escol. A sua convicção de que a descendência da classe dominante corresponderá, regra geral, à excelência dos cônjuges. É na melhor educação que se deve basear o governo dos melhores; aquela, por sua vez, exige como terreno de cultura as melhores aptidões naturais. Essa ideia era corrente no tempo de Platão e provinha principalmente da teoria pedagógica dos sofistas230. Mas estes tomavam a phýsis onde e como a encontravam, sem fazerem nada para criá-la de modo consciente. Era sobretudo da herança ideológica da ética da antiga nobreza grega que esse postulado fazia parte. Quanto mais enraizada estava na nobreza a crença da ϕυα¿, do congênito, considerado o germe de toda virtude autêntica, tanto mais ela se devia, naturalmente, preocupar com salvaguardar a preciosa herança do sangue. Já Teógnis, nos seus poemas exortativos, profetizara à nobreza arruinada da sua cidade pátria, ansiosa por se restaurar financeiramente por meio de casamentos com filhas de plebeus ricos, as desastrosas consequências que essa mistura de raças traria à conservação da antiga areté dos nobres231. Platão aceita esse mesmo princípio, mas sob a forma espiritualizada de que os melhores só pelos melhores podem ser gerados232, e entende que para se assegurar a pureza da seleção estatuída requer-se um regime especial de procriação, colocado por ele sob o “controle” do Estado. O velho Teógnis não sonhara sequer chegar a tais consequências. Entre a moral racional de Teógnis e o sistema platônico de “controle” estatal, cabia como solução intermediária a paideía espartana, preocupada em velar pela procriação de uma descendência saudável, no caso da camada senhorial da sociedade. Precisamente na época da infância de Platão, era esse sistema de educação espartana objeto de grandes discussões teóricas entre os aristocratas atenienses. Xenofonte considera um traço especificamente espartano que o rigor da disciplina comece logo a partir da procriação e do nascimento233. E era do mesmo postulado que arrancava a obra em prosa de Crítias sobre o Estado de Esparta, apresentado ali como modelo. Exigia que antes da concepção e da gravidez ambos os progenitores se submetessem a exercícios e a uma dieta adequada para fortalecimento do organismo234. Essa obra já nos aproxima do ambiente que cercava Platão. O filósofo deve ter ouvido discutir essas ideias no círculo em que vivia o seu tio Crítias e por certo conheceria também a sua obra. É muito possível que essa obra contribuísse ainda em outros aspectos para a concepção do Estado platônico. É indubitável que aquela ideia, que na época da Reforma voltamos a encontrar, defendida por um humanista aristocrata como Ulrich von Hutten, e segundo a qual a nobreza de sangue devia comprovar o seu direito pela posse da verdadeira virtude, também não devia ser estranha à oposição nobre da democracia ateniense; senão, que títulos justificativos poderia ela aduzir em apoio das suas pretensões? Também Platão só reconhece a suprema excelência humana como direito de candidatura a um posto diretivo no Estado. Mas o que ele se propõe não é educar na areté uma nobreza de sangue já existente, e sim formar uma nova elite mediante a seleção dos representantes da suprema areté. Esse propósito leva Platão, coerente com o seu sistema de negar aos “guardiões” do seu Estado o direito de possuir qualquer coisa e ter vida privada, à decisão de também abolir para eles a instituição do matrimônio, encarado como permanente convivência do homem e da mulher, e de substituí-lo por uma união meramente transitória dos sexos, uma instituição impessoal de procriação da raça. Nenhuma das suas ideias exprime de modo mais brusco e mais chocante para os nossos sentimentos o sacrifício do indivíduo ao Estado, que se impõe ao governante. Quando em outra passagem Platão define o postulado de que os “guardiões” não devem ter nada próprio, dizendo que não possuirão literalmente nada, com exceção do próprio corpo, diz pouco ainda, se levamos em conta o que a seguir dispõe sobre as relações entre os sexos: a não ser que ao exprimir-se assim se queira exclusivamente referir à “posse” do corpo e não à liberdade para usá-lo. É certo que relata como a coeducação das crianças de ambos os sexos faz nascer entre eles relações amorosas235, o que pressupõe certos sentimentos pessoais. Mas é vedado deixarem-se arrastar por esses sentimentos e contrair uniões que a autoridade competente não aprove236. A deliberada obscuridade com que Platão se exprime não permite duvidar de que, ao dizer isso, não se quer referir exatamente a uma exigência de ordem puramente formal, mas sim a uma efetiva autorização de quem manda, baseada no conhecimento das pessoas e permitindo aplicar a seleção que julgue “mais salutar”. Tal é a definição platônica do que ele chama “o sagrado conúbio”237. Trata-se, evidentemente, de envolver a união dos sexos com um certo halo, por meio da consagração religiosa, suprindo desta forma a permanente comunidade de vida em matrimônio. É a mesma finalidade que visa igualmente a instituição de festas especiais para unir os pares, entre hinos e sacrifícios religiosos238. Mas nem o sentimento pessoal nem a vontade própria intervêm de qualquer forma na escolha da esposa. Platão deixa até que as autoridades usem a fraude e o engano a fim de unirem, para bem da comunidade, os melhores homens com as melhores mulheres e os piores com as piores239. O número de uniões depende do número de homens de que o Estado precisa240. Como para Platão o Estado perfeito prospera melhor em condições fáceis de avaliar do que com uma massa humana difusamente misturada, deve ser restrito o censo da população, e por isso essa norma não tende a fomentar, mas antes a limitar o número de nascimentos. Não é a aumentar a quantidade dos cidadãos, mas sim a melhorar a sua qualidade que a política racial de Platão aspira.

É pela mesma razão que se restringe a uma idade determinada a possibilidade de procriar. As mulheres não devem dar filhos ao Estado senão entre os 20 e 40 anos e os homens não podem gerá-los senão dos 30 aos 55241. É que são os anos da plenitude de vigor (ακμη¿); nem à mocidade nem à velhice se reconhece o direito de procriar241a. Essas medidas eugenésicas de Platão, baseadas nas suas intenções educacionais, seguem as normas da medicina grega, que sempre dedicou especial atenção ao problema da idade mais indicada para ter filhos. O Estado platônico favorece superiormente a união dos melhores homens e mulheres, e dentro do possível põe obstáculos aos menos aptos242. O cuidado dos recém-nascidos deve subtrair-se absolutamente à jurisdição das mães. Numa parte isolada da cidade, instalar-se-ão lugares para criar as crianças de peito saudáveis, a cargo de mulheres especialmente destinadas a isso. As mães só terão acesso às crianças para amamentá-las, mas nem sequer conhecerão os próprios filhos, pois deverão querer a todos por igual243. A força do instinto natural da família era muito acentuada entre os gregos. Platão sabia-o bem e não queria que ela se perdesse como meio de coesão da comunidade. A única coisa que ele queria era evitar a dissociação em que se traduzia a ampliação a todo o conjunto dos cidadãos do sentimento de solidariedade que une os membros de uma família. De certo modo, pretendia unir o Estado como se fosse uma grande família, em que todos os pais se sentissem pais e educadores de todos os filhos, e estes guardassem para com os adultos o mesmo respeito que se eles fossem seus pais e educadores244. O objetivo supremo de Platão era conseguir que as alegrias e as dores de cada um fossem as alegrias e dores de todos245. O seu axioma era que um Estado assim seria o melhor dos Estados, por ser o mais unido, aquele em que maior quantidade de pessoas entendiam por seu, não algo de individual e distinto, mas sim uma e a mesma coisa246. A metáfora do corpo, que sente como sendo do todo a dor de um dos seus membros, nem que seja apenas a picada de um dedo, ilustra plasticamente essa ideia de unidade e ao mesmo tempo revela graficamente a relação que existe entre a sua posição radical perante a família e o indivíduo, e a sua concepção orgânica do Estado247. É do todo que a vida e a ação de cada membro recebem o sentido e o valor. A comunidade (κοινωνι¿α) une; a particularidade (ιδι¿ωσις) separa248. Platão não tenciona tornar os corolários fundamentais derivados desse princípio extensivos ao matrimônio da classe do Estado dedicada ao lucro nem da que tem a seu cargo a alimentação. Limita a sua validade à classe dos encarregados de governar e defender o Estado. Portanto, se o Estado forma uma unidade, é principalmente através destes; e, em segundo lugar, forma-a, conforme Platão confia, pela submissão voluntária a que o desinteresse dos de cima moverá os de baixo. Nesse Estado, os governantes não serão considerados pelo povo senhores, mas auxiliares, e não o tratarão como vassalo, mas sim como a sua base de sustentação249.

Ora, de onde provêm os títulos de legitimidade e o valor do todo, quer dizer, do Estado? Para a mentalidade moderna, o mais lógico é pensar a nação como chamada pela natureza e pela história a ser o suporte desse todo, vendo no Estado a forma sob a qual existe e atua a nação. Nesse caso, a seleção física dos futuros governantes teria como razão de ser o fomento da nobreza racial de uma determinada nação, de acordo com a sua própria peculiaridade. Mas não é assim que Platão pensa. O Estado ideal que Platão imagina é a cidade-Estado. Nesse ponto, o critério coincide com a realidade da vida política, tal como ela se fora desenvolvendo ao longo da história da Grécia. Uma ou outra vez classifica de cidade grega o seu Estado250, mas este não representa a nação dos gregos, pois a seu lado coexistem outros Estados helênicos, com os quais aquele pode estar em paz ou em guerra251. Não é pois a etnia grega dos seus habitantes que serve de fundamento à sua existência como Estado. O Estado ideal de Platão poderia realizar-se igualmente entre os bárbaros, e até é possível que alguma vez tenha existido entre eles nos tempos passados, sem o nosso conhecimento252. Não é o material étnico de que está formado que infunde valor à comunidade estatal de Platão, mas sim a sua perfeição como um todo. Essa perfeição baseia-se na completa unidade do novo Estado e suas partes253. E é também disso que se tem de partir para compreender o seu caráter como cidade-Estado. Se Platão concebe a sua República não como um grande Estado nacional ou como um império universal, mas antes como uma cidade-Estado, não é de modo nenhum, como à primeira vista poderíamos pensar com a nossa pretensa mentalidade histórica, apenas porque o filósofo se aferra ao que o acaso da tradição histórica lhe oferece à experiência política, mas antes por razões vinculadas ao seu ideal absoluto. Um Estado assim, de pequena extensão, mas firme e coeso, tal como Platão o concebe, formará uma unidade mais perfeita do que qualquer outro Estado de superfície maior ou de maior densidade populacional254. A ideia que os gregos tinham da vida política só dentro da pólis podia florescer em toda a sua intensidade incomparável, e morria com a morte daquela. Aos olhos de Platão, o seu Estado tinha mais de Estado que qualquer outro. Estava convencido de que o Homem alcançaria nele a forma suprema da virtude e da felicidade humanas255. E é inteiramente a serviço desse ideal que se encontram tanto a seleção racial por ele preconizada, como a educação a que ela deve servir de base.”

228a. Rep., 455 D.

229. Rep., 457 C.

230. Cf. acima, pp. 362 ss.

231. Cf. acima, pp. 248 s.

232. Também Teógnis tinha pensado, de modo natural, na seleção dos α¹γαθοι¿; porém α¹γατο¿ς e κακο¿ς são termos que neste poeta da nobreza têm sempre o significado daquilo que é nobre e daquilo que é ignóbil (num sentido social). Cf, acima, pp. 243 ss.

233. XENOFONTE, Const. dos laced., l.

234. CRÍTIAS, frag. 32 Diels.

235. Rep., 458 D.

236. Rep., 458 D-E.

237. Rep., 458 E.

238. Rep., 459 E.

239. Rep., 459 C-D.

240. Rep., 460 A.

241. Rep., 460 D-E.

241a. Rep., 461 A. Em vez disso, em Rep., 461 C, Platão declara também livres as relações amorosas e sexuais para os que pertencem à classe dominante, sempre que já tenham passado da idade máxima prescrita pelo Estado para poder procriar filhos (ou seja, os 40 anos para as mulheres e os 55 para os homens).

242. Rep., 459 D.

243. Rep., 460 C.

244. Rep., 461 D.

245. Rep., 462 B.

246. Rep., 462 C.

247. Rep., 462 C-D.

248. Rep., 462 B.

249. Rep., 463 A-B.

250. O caráter grego da sua pólis aparece em Platão de modo especialmente consciente nas suas normas para as guerras de helenos contra helenos, Rep., 469 B-C, 470 C, 471 A (cf., adiante, pp. 838 ss.). Em 470 E diz-se expressamente que a cidade fundada por Sócrates deve ser uma cidade grega.

251. Cf. as passagens citadas na nota anterior.

252. Rep., 499 C, considera possível a realização do Estado perfeito em outros povos. Essa passagem confirma o grande respeito que Platão sentia pelos bárbaros e pela antiguidade dos seus costumes e sabedoria.

253. Isto aparece constantemente expresso. Cf. especialmente Rep., 462 A-B. Essa passagem faz lembrar ÉSQUILO, Eumênides, 985, onde se exalta como bem supremo a unidade dos cidadãos no amor e no ódio.

254. Nessa opinião, ARISTÓTELES (Pol., VII, 5, 1327 a 1) também segue Platão.

255. Sobre a felicidade de toda a pólis, que Platão considera a meta suprema, cf. Rep., 420 B. Sobre a felicidade dos “guardiões”, Rep., 419 A ss.; e, retomando o problema e resolvendo-o, Rep., 466 A. Na hierarquia da felicidade, os “guardiões” aparecem também ocupando o primeiro lugar, apesar de exercerem a mais abnegada das funções.

 

 

“Se a nossa interpretação ética da contemplação (θεωρεινª) é correta, compreende-se que Platão enlace com ela toda uma ética da arte da guerra, na qual se dão leis para a conduta dos guerreiros uns em relação aos outros e em face do inimigo. A maior das infâmias é abandonar as fileiras, jogar fora as armas e incorrer por covardia em qualquer outra falta desse tipo. O guerreiro que a comete, castiga-o Platão degradando-o para o escalão dos indivíduos dedicados ao lucro e converte-o em artífice ou camponês. Esse tipo de castigo, em lugar da atimia, ou perda de todos os direitos cívicos, que se costumava aplicar na Grécia, corresponde à posição ocupada pelos guerreiros no “Estado ideal”271. Os indivíduos pertencentes ao escalão dedicado às atividades lucrativas são também qualificados de cidadãos, mas, como precisamente indica esse castigo, são cidadãos de segunda ordem272. O que cai vivo nas mãos do inimigo não se resgata, mas abandona-se como despojo273. Pelas regras do antigo direito de guerra, isso significa de duas uma: ou a venda como escravo ou a morte. Os que se distinguem na luta são coroados e felicitados. Concedem-se também a eles privilégios especiais de caráter erótico, como em todas as guerras costuma suceder. Embora Platão não admita os “matrimônios de guerra”, a forma que as relações sexuais revestem em tempo de guerra corresponde também às suas regras sobre a seleção dos melhores. Mas é precisamente devido a isso que os mais valentes gozam de preferência, e às suas inclinações pessoais se fazem concessões que, fora desse caso, nunca se admitem no Estado platônico274. Com certo humorismo deixa que também nesse caso excepcional vigore a ética de Homero, que, depois de uma luta gloriosa, honra Ájax com o dom glorificador e fortificante de um lombo inteiro de boi275. Nos sacrifícios e nas festas dedicam-se ao herói hinos e recompensas deste tipo: lugares de honra e bebidas e comidas de honra. Os que tombam na gloriosa batalha são incluídos na genealogia de ouro, isto é, são elevados a heróis e lhes é dada como túmulo uma gruta de que o povo se deve aproximar com religiosa veneração276. Mas também os que sobrevivem e morrem de velhos, após uma vida carregada de méritos, recebem por sua morte as mesmas honras277. Essa ética da guerra lembra, pela estrutura e conteúdo, o poema em que Tirteu celebra a valentia do guerreiro perante o inimigo, como a suprema virtude, e que revela todo o sistema de recompensas para os caídos e sobreviventes, no qual assenta o edifício do Estado espartano. Esse poema foi por nós apreciado no lugar oportuno, como monumento da educação dada aos seus cidadãos pelo Estado de Esparta278. Não é só a faceta da contemplação das batalhas que Platão tira dele para pilar do seu Estado, mas sim todo o sistema de ética militar que lhe serve de base. Um problema diferente é saber se ele assina também a valorização da valentia como virtude suprema; isso é de antemão incompatível com a posição predominante que ele dá à justiça, uma vez que é sobre ela que edifica o seu Estado. Veremos ao tratar das Leis como Platão enfrenta expressamente esse postulado senhorial da ética espartana279.

Tudo o que a ética de Platão tem de arcaica no que se refere às relações mútuas dos guerreiros do próprio Estado e à sua honra e desonra, ela tem de moderna quanto às regras da conduta perante o inimigo280. A única fonte de onde essas normas dimanam é o vivo sentimento do direito que animava os gregos de cultura elevada daquele tempo. Segundo Platão, é aqui que se deve provar o sentimento nacional, não como força constitutiva do Estado, mas sim como freio moral na luta dos Estados gregos uns contra os outros. Foi precisamente a desenfreada política bélica das cidades, durante a guerra do Peloponeso e anos seguintes, de progressiva decomposição do mundo helênico, que fomentou nos melhores a ânsia de paz e de concórdia entre os gregos. E, ainda que essa ânsia parecesse bem longe de se ver realizada na realidade política de um mundo que tinha por suprema lei do pensamento a autonomia do Estado e dos interesses particulares de diversas cidades soberanas, pelo menos estimulava a consciência contra a fúria brutal de destruição com que os gregos combatiam entre si. A consciência da comunidade de língua, de costumes e de raça punha em relevo a brutalidade tanto de objetivos como de processos, nesse tipo de luta. Os gregos destruíam-se absolutamente a si próprios, lutando uns contra os outros, enquanto o seu país e a sua civilização ficavam de todos os lados expostos a uma pressão cada vez maior por parte de nações estranhas e inimigas. Esse perigo aumentava à medida que os Estados gregos se tornavam cada vez mais fracos. Os anos em que Platão escreveu o seu direito de guerra pan-helênica eram os tempos da reintegração do poder de Atenas e da segunda liga marítima que só ao cabo de uma guerra longa e difícil contra Esparta e seus aliados se logrou impor. Os postulados de Platão eram, pois, um apelo extraordinariamente atual feito aos grupos de Estados beligerantes da nação grega.

As regras de Platão destinavam-se tanto à guerra contra os gregos como à guerra contra os bárbaros. Mas não se baseiam numa ideia universal de Humanidade, pois estabelecem uma distinção de princípio entre o tratamento a dar aos inimigos gregos e aos que não o são. É apenas, ou pelo menos fundamentalmente, para os gregos que vigora o sentimento humano que elas postulam. Os gregos são por natureza parentes e amigos, ao passo que os bárbaros são povos estranhos e inimigos281. É a mesma concepção em que se baseia o pan-helenismo de Isócrates e no qual se inspirava Aristóteles, quando aconselhava Alexandre a governar os gregos com hegemonia, mas os bárbaros com despotismo282. Não é do princípio geral que Platão parte, mas sim de uma norma especial, que encerra uma força direta de convicção: a de que é uma injustiça os gregos escravizarem cidades gregas283. Mas essa mesma exigência de tratar os gregos com consideração fundamenta-se, também invocando o perigo de os gregos serem dominados pelos bárbaros. Aqui está por que Platão proíbe a posse de escravos gregos no seu Estado e pede para este exercer sobre outros Estados a sua influência no mesmo sentido284. Confia que o resultado disso será voltarem-se os gregos mais contra os bárbaros do que contra os seus próprios conaturais285. À diferença de Isócrates, com quem apresenta aqui certos pontos de contato286, não fala da guerra dos persas como um meio para unir todos os gregos, mas é de um modo geral que formula a sua tese. Mais tarde, no entanto, Platão aplicaria nas suas Cartas a mesma política à situação dos gregos sicilianos diante do perigo cartaginês, fundamentando no ponto de vista da sua defesa contra os bárbaros a necessidade de se unirem287. Conserva, portanto, uma concepção unitária das relações entre gregos e bárbaros, considerando uma coisa natural os reencontros militares entre uns e outros; ao contrário, preferiria não falar de “guerra” entre gregos, já que a guerra só devia existir entre estranhos e inimigos, nunca entre parentes. Recorrendo a um meio muito usado também pelos oradores políticos da época, distingue entre guerra (πο¿λεμος) e discórdia interna (στα¿σις), recomendando que se use sempre e só a última expressão para designar as lutas dos helenos uns contra os outros288. Situa-se desta forma no mesmo plano das lutas realizadas dentro de um Estado e lhes aplica a mesma forma de pensamento jurídico. É por essa razão que ele proíbe a devastação dos campos e o incêndio das casas, fatos que também não são habituais nas guerras civis de um Estado civilizado do século IV, mas atraem sobre a cabeça dos culpados a maldição dos deuses; e condena-os como inimigos da pátria289. Por isso, numa luta entre gregos não se devem considerar inimigos todos os habitantes do Estado adversário, mas sim limitarem-se os vencedores a ajustar contas com os culpados290. O dano máximo que nessas lutas Platão permite infligir ao adversário é a destruição das suas colheitas291. Em todos os atos hostis praticados numa guerra contra Estados da mesma nacionalidade, nunca se deve perder de vista que o objetivo natural é a reconciliação, e não a destruição do inimigo292.

Mas ao lado dessa guerra entre os gregos encontramos também normas de caráter geral que devem vigorar para todas as guerras, sem distinção. Despojar por mera sede de lucro os caídos no campo de batalha é punido como indigno de um homem livre, bem como impedir que se levantem do campo os mortos. As armas são a única coisa que um guerreiro pode arrebatar ao inimigo caído293. Deve-se, no entanto, evitar o costume de dependurar como troféus nos templos dos deuses as armas arrebatadas ao inimigo, sobretudo se forem armas de gregos, com temor de por esse ato os homens macularem os lugares santos em vez de os honrarem294. Esses preceitos são em parte inspirados no respeito de si próprio, e em parte numa acendrada fé religiosa. Essas regras completam as que versam sobre o tratamento a dar aos adversários da mesma nacionalidade, já que tanto umas como outras tendem a suavizar os métodos da guerra. O próprio Platão confessa que os gregos estão muito longe de se comportarem como ele julga que devem fazê-lo. As suas regras não são, por conseguinte, uma simples compilação das práticas de guerra em vigor, mas sim um ousado ataque à realidade existente. E, ao pedir que o tipo de guerra praticado no seu tempo fosse exclusivamente reservado às lutas contra os bárbaros, qualifica indiretamente de bárbaros aqueles costumes295. Não devemos esquecer que, no tempo de Platão, o direito de guerra sancionava a escravização dos prisioneiros, pois só assim podemos apreciar todo o progresso de sensibilidade moral contido nessas regras sobre a guerra, por ele preconizadas. Ainda na obra De iure belli ac pacis, escrita no século XVI pelo grande humanista e pai do moderno direito internacional, Hugo Grócio, reconhecia-se como não contrário à natureza o direito de escravizar os inimigos, em caso de guerra. No final do capítulo “De iure in captivos”, Grócio cita o historiador bizantino Grégoras, como testemunho de que os romenos e tessálios, os ilírios, os povos tribais e os búlgaros, em virtude de longa tradição e graças à sua comunhão de fé cristã, observavam a regra de só tomar como despojo, nas guerras entre uns e outros, as coisas, sem fazerem das pessoas escravos nem matarem ninguém fora da luta. Isso quer dizer que na opinião de Grócio só sob o Cristianismo se conseguiu o que o Sócrates platônico em vão pregara aos gregos como um preceito do instinto nacional de autoconservação296. Mas o próprio Grócio observa que também os maometanos seguiam essa mesma regra de direito internacional, nas lutas contra povos da sua religião. Devemos, portanto, generalizar a sua tese no sentido de que não foi o Estado antigo nem a ideia nacional do século IV, mas sim a comunidade de fé das religiões universais, a qual se estendia a povos diversos, que assentou os fundamentos que possibilitaram a realização parcial dos postulados de Platão. Essa base religiosa era mais ampla que a da própria nação para a qual se estatuíam as regras platônicas. No entanto, tinha certa afinidade com o esquema platônico, pois nem sequer ela abrangia toda a Humanidade, mas se identificava com a comunidade concreta de fé cristã ou maometana, que até na guerra continuava a irmanar os povos da mesma fé.”

271. Rep., 468 A.

272. Em termos semelhantes, ARISTÓTELES, Pol., III, 5, 1278 a 17, diz que são excluídos da cidadania nos Estados aristocráticos e naqueles em que a areté é o critério dos direitos políticos. No seu Estado ideal, Aristóteles distingue βα¿να σοι e ο¹πλιται, VII, 4, 1326 a 23.

273. Rep., 468 A.

274. Rep., 468 B-C.

275. Rep., 468 D.

276. Rep., 468 E.

277. Rep., 469 B.

278. Cf., acima, pp. 119 ss.

279. Cf., adiante, livro IV, o cap. As Leis.

280. Cf. Rep., 469 B ss.

281. Rep., 470 C.

282. Cf. sobre o pan-helenismo de ISÓCRATES, adiante, livro IV. O parecer de ARISTÓTELES, frag. 658 (Rose), em PLUTARCO, De fort. Alexandri, 1, 6, foi transmitido pela tradição. A fórmula é manifestamente uma reminiscência de ISÓCRATES, De Pace, 134. A atitude prática de Aristóteles, tanto em relação à democracia ateniense como em relação à política pan-helênica, segue na direção de Isócrates, como espero ter demonstrado em outro lugar. Só na construção do seu Estado ideal é que mostra um moderado platonismo.

283. Rep., 469 B.

284. Rep., 469 C.

285. Rep., 469 C.

286. Cf. ISÓCRATES, Paneg., 3 e 133 ss.

287. Carta VII, 331 D; 336 A; Carta VIII, 353 A ss.

288. Rep., 470 B, 471, Cf. o trabalho do meu discípulo W. WOESSNER, Die synonymische Unterscheidung bei Thukydides und den politischen Redner der Griechen (Wurzburgo, 1937).

289. Rep., 470 D, ου¸δε¿τεροι αυ¹τωªν ϕιλοπο¿λιδες; ver 471 A.

290. Rep., 471 A-B.

291. Rep., 470 B, 470 D-E.

292. Rep., 470 E, 471 A.

293. Rep., 469 C-E.

294. Rep., 469 E-470 A.

295. Rep., 471 B.

296. De iure belli ac pacis, 557 (ed. Molhuysen, Leiden 1919). Para Hugo Grócio, o capítulo da República de Platão sobre o direito da guerra constituía, naturalmente, um documento da maior autoridade.

 

 

“O paralelo entre a construção ideal socrática e a imagem do ser humano mais belo indica qual é a verdadeira finalidade visada por Platão na República. O tema desta não é, em primeiro lugar, o Estado, mas sim o Homem e a sua capacidade para criá-lo. E, mesmo que Platão nos fale ainda de um paradigma do Estado, é evidente que este não se pode comparar à imagem do mais belo ser humano300. O que corresponde a essa imagem é antes o tipo ideal do homem verdadeiramente justo, que o próprio Platão afirma constituir o objetivo do seu quadro301. O Estado ideal é apenas o espaço adequado que ele necessita para a edificação da sua forma. Essa caracterização do punho do próprio filósofo coincide com os resultados da nossa análise. A República platônica é, antes de tudo, uma obra de formação humana. Não é uma obra política no sentido habitual do político, mas sim no seu sentido socrático302. Mas a grande verdade educacional que a República ilustra plasticamente é a estrita correlação entre a forma e o espaço. Não é só de um princípio artístico que se trata, mas sim de uma lei do mundo moral. O homem perfeito só num Estado perfeito se pode formar, e vice-versa: a formação desse tipo de Estado é um problema de formação de homens. É nisso que se baseia o fundamento da correlação absoluta que existe entre a estrutura interna do Homem e a do Estado, entre os tipos de Homem e os tipos de Estado. E isso explica igualmente a contínua tendência de Platão a sublinhar a atmosfera pública e a sua importância para a formação do Homem.

Mas Platão dá-nos ainda sugestões a respeito da atitude que diante da “pintura” filosófica de Sócrates deve adotar quem deseja estudá-la. Todo paradigma é algo de absolutamente perfeito que admiramos, quer possa ou não tornar-se realidade303. O próprio conceito de paradigma tem já implícita a impossibilidade da sua plena realização, a não ser, quando muito, de forma aproximativa304. Reconhecer isso não significa tachar o ideal, como tal, de imperfeição. Tal como a imagem do ser humano mais belo conserva sempre, como obra filosófica, o seu valor de beleza, que é independente de toda consideração de ordem prática. No entanto, a caracterização da imagem socrática como modelo implica também uma certa relação com o insaciável impulso humano de imitação. É sobre estes dois conceitos procedentes da Grécia primitiva, o de paradigma e o de mímesis, modelo e imitação, que toda a paideía grega assenta. A República de Platão representa uma nova etapa dentro dela. A retórica do seu tempo falava de paradigmas míticos e históricos e usava-os na arte da parenese, como padrão e modelo de comportamento. Como vimos acima, esta maneira de pensar dos gregos em forma de paradigmas remonta à poesia dos tempos mais primitivos, que representava nesse sentido os acontecimentos e as figuras do mito305. Era precisamente nessa maneira de encarar o mito que se baseava o éthos educador da poesia. Por conseguinte, quando Platão afirma que a sua ficção do Estado ou do Homem ideal é um poema mítico306, não pretende tanto exprimir a sua falta de realidade, como o seu caráter paradigmático. As artes plásticas também têm o seu conceito sinônimo de cânon, para designar uma figura humana que se deve ter como modelo estético em todas as suas formas e proporções307. Mas o conceito ético de paradigma encerra ainda outro fator: o modelo ético. Nesse ponto, Platão apoia-se diretamente na antiga poesia e rivaliza com ela. Tem consciência do incentivo de imitação que irradia das figuras ideais da poesia e sente que o pensamento filosófico, projetado sobre o geral, carece dessa força. Mas, ao seu olhar poético, o conceito universal de cada virtude converte-se imediatamente no tipo humano que a encarna: a justiça, por exemplo, reveste a forma do homem perfeitamente justo308. E não é só nesse caso que o fenômeno se dá. O seu espírito, aguçado pela necessidade de criar novos paradigmas, faz brotar os tipos humanos ideais correspondentes a todas as atitudes e formas morais de vida, e essa personificação à base de tipos torna-se para Platão um hábito mental fixo. É sobre esse fundo que se têm de projetar o “Estado ideal” e o “homem verdadeiramente justo” da República para serem compreendidos. São modelos de inspiração que esperam ser convertidos em realidade por meio da imitação.

Mas qual é o verdadeiro ponto de partida para a sua imitação? Se o ideal do homem justo só num Estado perfeito se pode concretizar, a educação chamada a criar aquele tipo é, em última instância, uma questão de poder. É certo que os Estados atuais, como o Górgias punha em relevo309, fazem da aspiração ao poder um fim em si, e por isso não estão habilitados a cumprir a missão educacional na qual Platão vê a essência do Estado. Enquanto o poder político e o espírito filosófico não coincidirem, Platão julga impossível uma solução construtiva do problema grego da formação do Homem, em sentido socrático, e portanto da superação dos males da sociedade presente. Surge assim a famosa tese platônica segundo a qual não acabará a miséria política do mundo enquanto os filósofos não se tornarem reis ou os reis não começarem a investigar de forma verdadeiramente filosófica310. É esse postulado que ocupa o lugar central da República. Não se trata de uma engenhosa frase incidental, mas da fórmula que oferece a solução ideal para aquele trágico divórcio entre o Estado e a educação filosófica que vimos em obras anteriores de Platão311. Esse divórcio encontrara a sua expressão simbólica no problema da morte do justo, em torno de cujo significado girava o seu pensamento anterior. Apresentava-se ali, em primeiro lugar, como ruptura brutal entre o espírito e o Estado312, mas logo na República ergue-se sobre o tumulto dessa gigantomaquia a visão de um novo cosmos, que assimila as obras positivas da ordem anterior e se serve das suas formas. Para Platão, a tese do reinado dos filósofos nasce da consciência de que é a Filosofia a força construtiva desse novo mundo em gestação, isto é, precisamente aquele espírito que o Estado pretende destruir na pessoa de Sócrates. Só ela, a força que criou o Estado perfeito no mundo do pensamento, será capaz de colocá-lo em prática, se lhe derem o poder necessário para o fazer.

E assim, na República, a Filosofia aparece pela primeira vez no primeiro plano da atenção. Até aqui escondia-se por trás da sua obra a nova imagem do Estado em construção; agora reivindica abertamente o seu direito à consecução do poder. Contudo, essa pretensão não brota de uma ânsia de poder, à maneira habitual, e só aparentemente contradiz a anterior atitude crítica que Platão adotava perante o Estado e o seu poder313. Já no Górgias, no próprio repúdio da pleonexía do Estado-força, transparecia claramente a pretensão da filosofia a governar. Platão não condena o poder como uma coisa “má em si”; submete apenas o seu conceito a um esclarecimento dialético radical, que o limpa da mancha do egoísmo314. Liberta-o da arbitrariedade e volta a reduzi-lo à vontade pura, cuja meta inamovível é, por natureza, o Bem. Nenhum ser humano pode voluntariamente enganar-se naquilo que considera bom e salutar. O verdadeiro poder só pode consistir na capacidade de realizar a aspiração natural que lança o Homem para aquela meta. A sua premissa é, portanto, o conhecimento real do Bem. E é assim que a filosofia torna-se paradoxalmente o caminho para o verdadeiro poder. Na República, é também diretamente do seu conceito de filosofia que Platão deduz o direito que ela tem de governar. É certo que esse conceito exige uma definição mais exata, tanto mais que se esgueira para aqui, sem preparação prévia. Platão começa por surpreender o leitor com a sua sugestiva tese sobre o reinado dos filósofos e fundamenta-a em seguida com uma análise da essência do filósofo, procurando dar as razões por que este se encontra naturalmente destinado a governar315. No instante em que Platão proclama essa tese pela primeira vez, desperta em nosso espírito a recordação de todos os penosos esforços dos escritos anteriores de Platão em torno do problema da conduta reta, da autêntica virtude e do verdadeiro saber, e vemos de chofre, claramente, que todos eles convergiam para uma meta: a que descobrimos agora. É impossível para Platão dar em poucas palavras, nesta passagem da República, uma ideia da filosofia que se possa comparar à dos seus escritos anteriores pela força da expressão. Como sempre acontece nas suas obras, pressupõe-na em vez de a definir. No entanto, a economia artística da República solicita a ilusão de, por assim dizer, ser aqui a primeira vez que o leitor se vê obrigado a meditar sobre a filosofia; e é essa a verdade, de certo modo, uma vez que a sua pretensão a governar o Estado se apresenta sob um cariz surpreendentemente novo e até os seus mais sinceros admiradores têm de sentir-se solicitados a adotar uma nova posição perante ela, a partir desse ponto de vista.

Não há nada mais cativante e impressionante do que a inabalável confiança na força da Filosofia, que leva Platão a situá-la no centro da sua vida e a enfrentá-la com os mais ingentes problemas práticos. No seu isolamento atual, ela própria tem dificuldade em compreender que foi só batalhando com aqueles problemas que conseguiu forjar o grandioso caráter que na sua primeira fase criadora a distinguiu. A resignada frase de Hegel, dizendo que a coruja de Atena só se levanta ao entardecer, contém sem dúvida uma certa verdade e a consciência dela estende a sua sombra trágica sobre o esforço heroico que o espírito humano se dispõe a realizar à última hora, com a tentativa platônica de salvação do Estado. No entanto, também aquela cultura decadente possuía ainda a sua juventude e era a filosofia de Platão que se sentia como a força juvenil do seu tempo. Mistura-se por isso ao entusiasmo da geração jovem que Platão gosta de pintar, nos seus diálogos, rodeando Sócrates, para opor uma nova fé ao Estado caduco e cético e à cultura superficial do seu tempo. A Filosofia sentia-se destinada a isso, não por ser uma força de grande tradição em cuja trajetória figuravam nomes veneráveis e pensadores de todas as classes, investigadores da phýsis, decifradores do enigma do mundo e perscrutadores do cosmos, mas sim pela consciência da nova força que irradiava de Sócrates e que permitia infundir à comunidade humana o conhecimento renovado das verdadeiras normas da vida.

É esse o aspecto sob o qual Platão expõe o que é a “filosofia” dentro do Estado. Em alguns poucos traços elabora um catecismo da Filosofia, no qual determina a sua essência por meio do objeto do seu saber. O filósofo é o homem que não se entrega à multiplicidade das impressões sensoriais, nem se deixa arrastar durante a vida inteira pelo vaivém das simples opiniões, mas orienta o seu espírito para a unidade do que existe316. Só ele possui um conhecimento e um saber no verdadeiro sentido dessas palavras; por meio da variedade e individualidade dos fenômenos vê a imagem fundamental, universal e imutável das coisas: a “ideia”. Só ele pode dizer o que é justo e belo por si; as opiniões da massa a respeito dessas e das demais coisas oscilam na penumbra entre o não ser e o verdadeiro Ser317. E nisso não diferem da massa os estadistas. Encaram as diversas constituições e leis vigentes como modelos, mas, segundo o que Platão diz no Político, nem sequer estas passam de meras imitações da verdade318. Por conseguinte, quem não souber outra coisa senão imitá-las será um simples imitador de imitações. O filósofo é o homem que traz na alma um paradigma diáfano319. No meio da insegurança geral, é nessa forma que o seu olhar está cravado. A capacidade para a reconhecer é a capacidade de visão de que necessita principalmente todo verdadeiro guardião do Estado. E, quando no filósofo se unem a isso a experiência e as outras aptidões necessárias para a direção prática do Estado, então ele se eleva bem acima dos estadistas de tipo habitual320.

Essa caracterização do filósofo contribui para esclarecer o contexto espiritual e o ponto de partida da teoria platônica do Estado. Segundo Platão, o mal de que o mundo político e moral padece é a ausência de uma suprema instância normativa e legislativa. A criação desta fora o problema do qual nascera outrora a democracia, que o resolveu pela elevação da vontade da maioria a força legislativa. Era um sistema baseado no elevado conceito que se tinha do homem individual, e foi por muito tempo considerada a forma mais progressista do Estado. Mas, como todas, tinha as suas imperfeições humanas. A evolução que sofreu nas grandes cidades da Grécia a foi convertendo cada vez mais em instrumento de agitadores sem escrúpulos. Nesse tipo de Estado, a educação está nas mãos daquele tipo de homens denominados sofistas. Platão pinta-os como uma espécie de domadores que dedicam toda a vida a estudar os caprichos da “grande besta”, a massa, e sabem tocar magnificamente as suas várias cordas, pois entendem maravilhosamente tanto a linguagem da sua cólera como a da sua satisfação. A sua arte consiste em saber tratá-la e em dominá-la, adulando-a e acomodando-se habilmente ao seu humor variável321. Desse modo, os caprichos da massa tornam-se a pauta suprema da conduta política e o espírito dessa adaptação vai pouco a pouco se infiltrando em todas as manifestações da vida. Esse sistema de adaptação exclui a possibilidade de uma autêntica educação do Homem, orientada de acordo com a pauta dos valores imutáveis322. A crítica socrática à falta de perícia na condução dos negócios públicos por parte dos oradores políticos desempenha desde o primeiro instante um importante papel nas obras de Platão. Já no Górgias ele compara essa política retórica à mentalidade dos filósofos, que submetem todos os seus atos ao conhecimento do Bem como meta suprema323. Na República, em coincidência com isso, faz do conhecimento da norma suprema, que o filósofo traz na alma como paradigma, a pedra de toque do verdadeiro governante do Estado324.

É a partir daqui que se tem de compreender toda a construção da República. Platão vê na filosofia a tábua de salvação, pois apresenta a solução para os mais candentes problemas da sociedade humana. Se partimos da premissa desse conhecimento da norma suprema, tal como ele o concebe325, é natural que abordemos a partir desse ponto de vista a reconstrução do Estado vacilante. É o conhecimento da verdade que deve ocupar o trono do Estado reconstruído. Pela sua própria natureza, tal conhecimento não compete a muitos, mas apenas a alguns poucos. Platão não parte psicologicamente do problema da condução da massa. Parte das exigências que o mais elevado tipo moral e espiritual do Homem deve fazer ao Estado para poder entregar-se a ele com toda a alma326. E é em nome do que há de mais elevado no Homem que ele exige o reinado do filósofo. As características do seu Estado que mais saltam aos olhos, a estruturação orgânica em escalões e o caráter pedagógico autoritário do seu Governo, dependem unicamente daquela exigência fundamental de ser o conhecimento da verdade absoluta a imperar no Estado. Nenhuma pedra se pode tirar nem substituir por outra, nesse edifício tão simples e de lógica tão perfeita. Se ao governante retiramos a qualidade de filósofo que está de posse do conhecimento absoluto, retiramos-lhe também, pensa Platão, a base da sua autoridade, pois não é num carisma pessoal que ela se baseia, mas sim na força de convencimento da verdade, à qual todos nesse Estado se submetem livre e voluntariamente, visto que todos estão educados nesse espírito. O conhecimento da norma suprema, que o filósofo abriga na sua alma, é o fecho da cúpula do sistema do Estado educacional platônico.”

298. Rep., 472 C-D.

299. Rep., 472 C, 472 D.

300. Rep., 472 D 9.

301. Rep., 472 D 5. Cf. 472 C 5.

302. Cf., acima, pp. 559 s.; 658 s. A política socrática é “cuidado da alma” (ψυχηªς ε¹πιμελεια). Quem vela pela alma vela também, ao mesmo tempo, “pela própria pólis”.

303. Rep., 472 D. Cf. 472 E.

304. Cf. sobre as relações entre o ideal e a realidade e a “aproximação” do ideal, Rep., 472 C, 473 A-B.

305. Cf. acima, pp. 65 s.

306. Rep., 501 E.

307. Cf. POLICLETO, A 3 (Diels, Vorsokratiker).

308. Cf. Rep., 472 B-C, onde a justiça e o homem justo aparecem um ao lado do outro. É a ética aristotélica que desenvolve principalmente esse método de tipificação dos conceitos éticos gerais, colocando o megalopsykhos ao lado da megalopsykhía, o homem liberal ao lado da liberalidade etc.

309. Cf., acima, pp. 663 ss.

310. Rep., 473 C-D.

311. Cf., acima, pp. 574-6, 607 s.

312. Cf., acima, pp. 698 s.

313. Cf., acima, pp. 663 ss.

314. Cf., acima, pp. 664 s.

315. A exposição do conceito da filosofia ocupa o resto do livro V, desde 474 B.

316. Rep., 476 A ss.

317. Rep., 479 D.

318. Político, 300 C.

319. Rep., 484 C. Cf. 540 A, onde o paradigma se define mais de perto como a ideia do Bem.

320. Rep., 484 D.

321. Rep., 493 A-C.

322. Rep., 493 A 7 e 493 C 8.

323. Cf. pp. 657 s., 688 ss.

324. Cf. nota 319.

325. Para o historiador e expositor da doutrina platônica da paideía, não é uma petitio principii o fato de aceitar a verdade do seu ponto de partida como algo dado e mostrar como Platão tinha de ver a solução do problema, partindo desta premissa. Examinar se tal premissa é verdadeira ou falsa é uma tarefa que compete já à filosofia sistemática.

326. Rep., 497 B.

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