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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Sintomas Mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira (Parte II), de Sabrina Fernandes

Editora: Autonomia Literária

ISBN: 978-85-6953-649-9

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: Ver Parte I



 

Se alguém tentasse fornecer uma explicação puramente estruturalista para a fragmentação da esquerda brasileira, e os muitos desafios para mobilizar a classe trabalhadora sob um projeto revolucionário, elementos importantes que serão destacados ao longo desses capítulos seriam perdidos: politização e despolitização, a constituição de multidões e movimentos sociais, os desafios da construção de bases, a variedade de interesses partidários em contextos institucionais ou não, melancolia política, dificuldade de síntese, pós-política e ultrapolítica, a mobilização de afetos negativos e o desafio da vontade coletiva.

Afinal, tudo isso equivale à verdadeira práxis da esquerda e ao que deveria ser uma práxis revolucionária do povo.

A conquista da libertação depende de uma revolução, porque ela não consiste simplesmente na negação do sistema atual, mas na negação da negação – uma abolição no sentido hegeliano de suprassunção (aufheben), o que requer a restauração do trabalho humano, das relações humanas e interação humana com a natureza para a sua essência livre que fora pretendida ontologicamente.

Isso é, evidentemente, contrário às reivindicações populistas de esquerda de mudar o mundo sem tomar o poder ou, também, transições democráticas não revolucionárias.45 Embora os aspectos que levam a uma revolução possam surgir espontaneamente na luta diária contra a alienação, o processo revolucionário requer organização e percepção teórica da segunda negação.

Para Kolakowski, isso é um conhecimento utópico.46 Já para Marcuse, é a orientação da consciência prática pela consciência teórica porque a primeira está frequentemente em contradição com o objetivo de uma existência humana livre.47 E para Gramsci, trata-se da unificação da dupla consciência e do aproveitamento da vontade coletiva.

Assim, se o processo revolucionário requer o trabalho de um partido político, intelectuais orgânicos ou o acompanhamento de impulsos proletários pelos oprimidos, não há desacordo sobre a natureza dialética da relação entre teoria e prática no desenvolvimento de uma prática revolucionária. A negação da negação que gera a libertação do trabalho mercantilizado, da alienação e da reificação48 é inerentemente dialética e pressupõe uma atividade “prática-crítica”.49

 

Práxis: o conceito

A práxis, entendida aqui não simplesmente como prática dentro da dialética, mas como a unidade dialética da teoria e prática no movimento da negação, é uma pré-condição para o livre exercício das potencialidades humanas.

É dentro da dialética que encontramos a negação da negação, que são dois estágios diferentes do mesmo processo histórico encabeçado pela humanidade em direção à liberdade e à restauração daquilo pautado como essência humana por Marx: emancipada e criativa.50

45 John Holloway, Change the World Without Taking Power, vol. 0 (London: Pluto Press, 2002); Ernesto Laclau & Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics, 2nd ed. (New York: Verso, 2001).

46 Kolakowski, Toward a Marxist Humanism, 70–71; 80.

47 Marcuse, One-Dimensional Man, 48; 100.

48 Reificar significa tornar algo abstrato em algo mais concreto. Também é frequentemente usado no sentido de coisificar. No debate empregado aqui, dentro do contexto marxista, a reificação consiste na retirada dos elementos abstratos e subjetivos dos agentes políticos e da política; ou seja, a reificação desempodera o agente e o coisifica de acordo com o propósito da ordem hegemônica.

49 Herbert Marcuse, Reason and Revolution: Hegel and the Rise of Social Theory (New York: Oxford University Press, 1941), 401; Marx, “Theses on Feuerbach,” 99.

50 Marcuse, Reason and Revolution: Hegel and the Rise of Social Theory; Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of 1844.

 

 

O poder do capitalismo vem de sua capacidade de impedir o acesso a uma visão histórica da existência e, por consequência, da agência da criação e da subjetividade que diferenciam os humanos.

A cognição da própria humanidade e as potencialidades históricas que se seguem são um passo para se tornar consciente de como alguém é oprimido.

Enquanto a utopia surge de nosso desejo de nos reafirmarmos como seres humanos, seu desenvolvimento ocorre na luta contra a opressão, pois quanto mais as pessoas sofrem, mais se tornam ansiosas por escapar, mesmo que a compreensão de como fazê-lo possa ser afetada pela unidimensionalidade e pela despolitização.

Essa compreensão não ocorrerá se a utopia retiver a qualidade estática de um sonho esperançoso e enquanto seu conhecimento estiver separado de nossa atividade prática e realidade.

Para a utopia evoluir da maneira como argumenta Kolakowski, realizando o trabalho de progresso social entre momentos de ilusão e desilusão,60 ela deve ser a força motivadora por trás de uma práxis, cujo movimento dialético contínuo entre o que é imaginado e experimentado, trazendo à utopia o status de uma objetividade.

Isso é diferente do tipo de pensamento utópico que Kolakowski criticou anos depois, cuja visão da sociedade socialista, em termos de fraternidade e igualdade, negava os processos de diferenciação e discordância que transparecem nas relações humanas em favor de um conformismo agradável.61

Antes, a utopia deve ser concebida como um desejo consciente de liberdade que inclui dar passos em direção à sua realização,62 mesmo que o resultado final seja continuamente desafiado por mudanças na interação humana.

Isso quer dizer que, com o comunismo, a sociedade não passa a ser perfeita: enquanto alguns problemas são resolvidos por meio de sínteses, outros surgem. O movimento dialético é contínuo e característico da realidade social.

É importante salientar que a ação para a realização é também uma questão de consciência por causa da lógica dialética da libertação, onde “os escravos devem estar livres para sua libertação antes que possam se tornar livres, e que o fim deve ser operativo nos meios para alcançá-lo”.63

Tal luta não pode ser feita por meio da imputação de um tipo específico de conhecimento pseudorrevolucionário nas massas, em tentativas de simplesmente dirigi-las, ou por consistentemente reafirmar que a revolução acontecerá por ser a progressão natural da história.

Para Freire, o confronto da opressão deve ocorrer em um contexto pedagógico. Ele afirma que: “Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora, em que a liderança revolucionária, em vez de se sobrepor aos oprimidos e continuar a mantê-los como quase ‘coisas’, com eles estabelece uma relação dialógica permanente.”64

Essa consciência é o princípio móvel de uma pedagogia política voltada para a superação da despolitização e para a reprodução do status quo que ocorre pelo senso comum, porque existe como algo que não é, e que está fora dele.65

No entanto, a consciência por si só significaria não mais do que uma transcendência idealista momentânea que não pode, por sua própria natureza, ser revolucionária e transformar a concretude da opressão.

Marx explica essa necessidade afirmando que, no caso das ideias comunistas, elas podem ajudar a superar a ideia da propriedade privada, mas a atualidade exige atividade comunista para substituir a propriedade privada real – mesmo que a última enfrente desafios históricos, pois “o desenvolvimento que já reconhecemos no pensamento como autotranscedente envolverá, na realidade, um processo severo e prolongado”.66 Enquanto o pensamento/consciência fornece os impulsos críticos na pedagogia política/crítica como conscientização, a transformação da realidade se alimenta da consciência crítica na práxis.”

60 Kolakowski, Toward a Marxist Humanism, 151.

61 Barbara Epstein, “The Rise, Decline and Possible Revival of Socialist Humanism,” in 10th Annual Historical Materialism Conference (London, 2013), 36.

62 Georg Lukács, History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics (Cambridge, Mass: mit Press, 1971), 315.

63 Marcuse, One-Dimensional Man, 41. Marcuse primeiro usa o termo “pensamento” em 1941 (Razão e Revolução) e depois “consciência” em 1964 (O Homem Unidimensional) ao combiná-los com “prática” e “ação” em contextos similares. Embora pudessem ser considerados conceitos diferentes de acordo com o paradigma empregado, acredito que Marcuse os empregou quase como sinônimos em suas contribuições.

64 Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 49th print (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005), 63.

65 Freire, 63.

66 Marx em Fromm, Marx. Concept Man, 149, ênfase no original.

 

 

Isso tem muito a ver com a estratégia política da esquerda. Lukács afirma que a organização para a revolução já é uma forma de mediação na relação dialética entre teoria e prática.73 A educação do trabalhador deveria ter um propósito, o objetivo de se tornar uma autoeducação em um marco libertador. O papel dos intelectuais é aproveitar sua liberdade de pensamento para promover o desenvolvimento da consciência, pois é sua responsabilidade levar a consciência teórica da classe trabalhadora a uma postura crítica.74

Também é importante que os intelectuais sigam os impulsos dos trabalhadores, pois sua experiência com a exploração os torna os mais adequados para informar a direção da mudança social.75 Isso sugere uma relação solidária em que a liderança revolucionária pensa com a classe, e não em torno da classe ou sobre a classe.76

Essa solidariedade não apenas torna a relação entre a esquerda organizada – a liderança e a base – mas também embaça essas categorias de modo que não se percebe que se está em um quadro separado do outro.

No geral, uma perspectiva pedagógica da organização política se opõe à relação doutrinária por “detentores do conhecimento”, e estabelece o diálogo entre atividade intelectual e atividade prática, mesmo que seja importante ter indivíduos cuja função primária na sociedade seja intelectual ou organizacional. Ela encarna a prática precisamente porque renuncia à separação entre teoria e prática que sempre manteria a classe trabalhadora em posição de subserviência, seja para o capitalista, seja para o líder partidário.

 

Práxis radical, práxis revolucionária

Minha tarefa de promover o conceito de uma crise de práxis me leva a extrair algumas diferenças entre três outras noções que são comumente mencionadas à esquerda, embora de modo geral confuso. Isso se refere ao que é radical, ao que é contra-hegemônico e ao que é revolucionário.

As três noções pertencem à esquerda e à atividade da esquerda e, portanto, tendem a ser usadas como sinônimos ou muito semelhantes entre si. Eu prefiro tratá-las como um continuum determinado (e interrompido) de acordo com a natureza organizativa e sua direção política comum (como embutida em um horizonte ou utopia).

A revolução é a marca de um tipo específico de utopia, então o que é revolucionário requer também um tipo particular de esforço que é guiado pela necessidade revolucionária.

O que é contra-hegemônico77 é importante porque pode causar danos efetivos contra o status quo; no entanto, somente a contra-hegemonia não torna uma política radical. Vista como enfrentamentos pontuais, o contra-hegemônico é facilmente desmontado na renovação hegemônica da ordem, é colocado fora da necessidade revolucionária, ou seja, foram do continuum.

O risco de reversão enfrentado devido à renovação hegemônica é mais forte (e contrarrevolucionário).”

73 Lukács, History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics, 299.

74 Kolakowski, Toward a Marxist Humanism, 171.

75 Dunayevskaya, Marxism and Freedom: From 1776 until Today, 287.

76 Freire, Pedagogia Do Oprimido, 145; 151.

77 O contra-hegemônico conecta o radical e o revolucionário. Apesar de Gramsci ter sido o principal responsável pela elaboração do conceito de hegemonia, ele não propôs a existência de uma contra-hegemonia em seus próprios escritos. Acredito que isso se deva aos limites temporais da contra-hegemonia, quando a hegemonia já está em constante renovação. A resposta à hegemonia, portanto, deve ser uma nova hegemonia. A contra-hegemonia, então, desempenha um papel temporário ao enfatizar a importância da primeira negação e está bem estabelecida em contextos de resistência.

 

 

O sujeito da esquerda é a classe trabalhadora. O quanto uma organização de esquerda incorpora e assume esse sujeito na centralidade de sua práxis vai determinar sua posição como esquerda moderada ou radical.

E por classe trabalhadora é importante qualificar que parto da premissa de que as relações capitalistas de exploração, na apropriação da função humana básica do trabalho em estados de alienação e reificação, informam também várias outras formas de opressão – as quais estão embutidas nas relações de gênero, raciais e coloniais, dentre outras, e que elas ainda tomam formas distintas e até mesmo independentes em seu desenvolvimento.

É isso que permite que uma mulher burguesa seja vítima de machismo, mas estabelece que o combate ao patriarcado, tal como opera hoje, só é realmente efetivo a partir do desmantelamento da estrutura capitalista que ajuda na sustentação das estruturas patriarcais.82

Trata-se de superar teorias que concebem sistemas separados, e fazê-lo principalmente por compreender a análise de Marx, desde, principalmente, os Manuscritos Econômico-Filosóficos de Paris, do capitalismo como desumanização e do comunismo como a superação dessa lógica.”

82 O que não quer dizer que basta combater o capitalismo que o patriarcado, que a supremacia branca racial, e tantas outras estruturas que estratificam a sociedade em formas diferentes de dominação, todavia juntas, serão eliminadas. Significa que a luta contra o patriarcado passa necessariamente contra o capitalismo e que a luta contra o capitalismo só contemplará realmente a totalidade das relações sustentadas pelo capital se também combater as estruturais patriarcais que se articulam de forma entrelaçada à exploração capitalista.

 

 

Falar em multidões é admitir que Junho de 2013 foi competitivo e tanto a esquerda quanto a direita, em suas várias expressões, estavam em disputa para capturá-lo e (des)politizá-lo para seus próprios projetos.

Essa diversidade nos momentos de multidão, especialmente os aspectos despolitizados, indica como Junho trouxe mais do que uma simples crise de representação à nossa atenção.

A visão inicial de Junho como uma espécie de “primavera brasileira” energizou a esquerda radical, mas apenas momentaneamente. O marco inicial da crise de representação exposta ali foi uma rejeição a partidos e posições ideológicas, mesmo que as demandas por serviços públicos de qualidade fossem mais naturalmente associadas com a esquerda.

Alguns se referem ao fenômeno como antipolítica, mas eu não enxergo como uma rejeição da política em si, até porque os debates políticos aqueceram desde então.

A pós-política, modo de despolitização que descola a realidade material dos projetos e conflitos políticos da sociedade sob a ideia de que é tudo uma questão de gestão e de ética predominou por um tempo.

Como a política, em seu sentido maior e gramsciano e orientado à emancipação, deveria ser o domínio da esquerda, não é surpresa que a direita tenha se beneficiado do desenvolvimento pós-político de Junho.

O enfoque moralista sobre a corrupção é um exemplo desse fenômeno, já que foi instrumentalizado de maneira ufanista e antiesquerda.”

 

 

Uma esquerda fragmentada é mais vulnerável aos efeitos da renovação hegemônica, o que no Brasil se expressou parcialmente, em Junho e no período pós-Junho, através da violência estatal, da despolitização por meio de apelos à ordem e à moralidade patriótica e pela criminalização ativa dos interesses políticos.”

 

 

Proponho que Junho seja visto como uma ruptura da inércia da política promovida pela democracia representativa liberal, e também aceita por ela, e petrificada até então, mas que não apresentou a resposta à crise e nem se libertou do processo de despolitização que ainda está em curso.

Ao contrário, Junho escancarou a crise de práxis com o acirramento de múltiplas crises. O período que vivemos no Brasil pode ser caracterizado como um interregno da crise de autoridade hegemônica. Neste interregno, encontramos sintomas mórbidos de todos os tipos, sendo a crise de práxis a soma dos sintomas da esquerda.

 

 

Uma crise de práxis está inevitavelmente ligada à crise de representação destacada em Junho de 2013. A esquerda foi incapaz de conceber, com sucesso, uma “vontade coletiva” orientada para um horizonte comum devido à fragmentação das multidões e à sua própria fragmentação.

O cenário de despolitização, pós-político e ultrapolítico, deu o tom da complicada relação das multidões com as contradições da realidade material brasileira.

Havia ali um governo de centro-esquerda, liderado por um partido da esquerda moderada, criticado pela esquerda radical e atacado pelas diversas facetas da direita.

Esse governo se sustentou não através da promoção de poder popular, mas fazendo o jogo da democracia liberal e negociando com a elite brasileira com políticas conciliatórias e redenção aos limites da visão da governabilidade.

Havia desmobilização e havia despolitização. Por mais que seja fácil responsabilizar apenas um autor ou outro, a análise de uma crise de práxis nos força a olhar para o todo.

A crise de práxis mostra o conflito criado pelo fracasso da esquerda em unificar a consciência teórica e prática não só da classe trabalhadora em si, mas também dos militantes e líderes cujas funções organizadoras consistem em construir consciência política.”

 

 

A fragmentação da esquerda brasileira, sob disputas envoltas na desmobilização e na despolitização de seu sujeito histórico, contribui para a crise de autoridade (ou crise hegemônica) em que nos encontramos.

Todavia, neste interregno, a fragmentação também aparece como manifestação de uma crise de práxis da esquerda que engloba vários dos sintomas mórbidos que nos esmorecem.

Os sintomas mórbidos pertencem à análise do interregno feita por Antonio Gramsci. A frase de Gramsci que abre este livro* está mais famosa a cada dia devido à sua aplicabilidade para analisar crises de autoridade sob o capitalismo em todo o mundo.

A frase não nasce em isolamento, mas parte da análise de Gramsci sobre os períodos de crise hegemônica e os sintomas mórbidos que sucedem. Daí vem o conceito de interregno.

O interregno significa, literalmente, o intervalo entre a morte de um rei e a ascensão do novo monarca.

Ele se estabelecia de acordo com a ordem e costumes de cada tempo e lugar: na maior parte da Idade Média, na vigência da sucessão hereditária, o interregno marcava o período no qual um rei falecia e seu primogênito ainda não possuía a idade mínima para reinar; já na origem do termo, em Roma, onde os monarcas eram nomeados, isso representava o intervalo entre a morte do rei e a eleição do seu sucessor.

Para a análise de Gramsci, a característica central diante das diferentes circunstâncias de um interregno seria a instalação de uma crise de autoridade durante o regime interino.

Não somente o novo ainda não estava pronto para “nascer” como a instabilidade gerada abria campo para tentativas de golpes internos e externos, guerras, insurreições e rebeliões. O período do interregno é marcado principalmente pela perda de consentimento.

Aqui se faz necessário retomar Gramsci em sua contribuição mais básica, vista anteriormente: é possível governar com a coerção, sendo isso uma dominação, mas a hegemonia depende do consentimento, que é mais duradouro, estável e se reproduz com facilidade no senso comum.

Quando há perda de consentimento, há crise de hegemonia. Isso torna a analogia do interregno palpável e bastante aplicável no cenário brasileiro.”

*: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece.”

 

 

É a esse difícil cenário que a esquerda fragmentada brasileira necessita responder. A crise de práxis é um impedimento devido ao seu peso de crise que evidencia os sintomas mórbidos da esquerda: responsabilidade na despolitização e na desmobilização, dificuldade em realizar autocrítica (como práxis), fragmentação em números e projetos na lógica da cisão, o sectarismo na esquerda radical, mas também a cooptação e a hegemonização acrítica da esquerda moderada, o desafio de mobilizar uma democracia liberal em chamas para uma democracia ampliada, melancolia, dentre outros.”

 

 

Golpe

Não nego a existência de um golpe em 2016, mas sou contrária às teses de que a conjuntura sob a qual vivemos seria o golpe.

Argumento que a conjuntura é de interregno, e que o golpe é apenas mais um sintoma mórbido dessa conjuntura.

O problema da tese de que estamos sob golpe é que confunde um atentado ao regime político vigente com o estado do regime no momento em que se segue.

Em 2016, quando o golpe parlamentar retira Dilma Rousseff da presidência, a conjuntura não muda. Alguns aspectos continuam os mesmos, outros se aprofundam.

As mudanças sociais negativas promovidas pela agenda de Temer têm impacto socioeconômico e material, mas também alteraram a perspectiva política.

Temer não possuía legitimidade representativa para executar medidas de austeridade e, mesmo assim, o fez. Isso demonstrou sinais de que a burguesia brasileira estava disposta a tomar a institucionalidade de qualquer forma, para garantir seus próprios ganhos.

Ameaças democráticas não seriam problema, já que a principal preocupação da burguesia é sua autorreprodução no curto prazo. Esse cenário se explica por meio de Florestan Fernandes, o qual afirmava que nossa burguesia era vítima de sua própria situação de classe justamente por não ter projeto nacional, apenas uma visão imediatista de sua classe.141

Essa característica se revela, portanto, na escolha do golpe parlamentar como na opção por Jair Bolsonaro como candidato. Apesar de sua imprevisibilidade e autoritarismo, Bolsonaro trazia duas vantagens para uma elite dependente como a brasileira: trocava apoio pela submissão aos liberais em sua campanha, e traria maior garantia de vitória por fazer parte de uma tendência global de viradas à extrema-direita (em geral associada a métodos de despolitização e desinformação, elaborados tais quais os vistos na campanha presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos).

Ao contrário do que alguns membros da esquerda argumentaram após o impeachment, não passamos a viver sob a “ditadura Temer”. A retirada de uma presidenta eleita por meio de uma alegação técnica orquestrada pela direita no Brasil, com o intuito de garantir ganhos para a burguesia através de um plano econômico de austeridade e retirada de direitos, é grave e se enquadra, sim, como um atentado a garantias da democracia liberal.

Mas nem todo golpe resulta em uma ditadura. O que vimos, em termos de direitos sociais sendo retirados, causou enorme dano, com destaque para a reforma trabalhista e o congelamento de investimentos públicos por vinte anos.

Todavia, os direitos políticos atenuados na Era Temer por força do Legislativo e do Executivo já estavam em andamento sob o governo Dilma: seja através do Congresso conservador eleito em 2014, seja com a criminalização de movimentos sociais pela Lei Antiterrorismo sancionada pela própria presidenta antes de ser removida do cargo.

Não se trata de uma ditadura, mas da inauguração de um acelerado desmonte da configuração democrática, como uma “desdemocratização” em curso.

Politicamente, o golpe significou mais uma fratura na estrutura da democracia liberal brasileira. A forma como pôde ser articulado foi possibilitada não somente pela crise de representação democrática revelada em Junho, mas também pela fragilidade inicial da democracia liberal (restrita, também na análise de Florestan) estabelecida no Brasil a partir da década de 1980.

O que se enxerga como uma deterioração das garantias e instituições democráticas no Brasil não pode ser considerado um projeto iniciado no golpe, tampouco em Junho de 2013, e sim um sintoma mórbido facilitado pela própria fraqueza da ideia e da materialidade da democracia no Brasil.”

141 Florestan Fernandes, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (São Paulo: Global Editora, 2008).

 

 

Na Linguística, fala-se de significante, significado e signo – este último formado pelos dois primeiros. O significante seria a forma, ou o recipiente, que, ao carregar o significado, o conceito ou conteúdo, formaria um signo.

Pela normalização do status quo e da democracia liberal como horizonte (em vez de transitória rumo a uma democracia ampliada), os significantes necessários para carregar a ideia de uma democracia favorável ao poder popular e à transformação da realidade se esvaziaram.

Com isso, a própria noção de democracia deixou de atuar como um signo na sociedade, algo de valor a ser preservado e promovido. Hoje temos significados despolitizados de democracia (reduzida a uma mera alternância de poder ou ao atropelamento de uma maioria social por uma maioria eleitoral) e de ditadura (vista por alguns como desejável e necessária para retornar a “ordem” ao Brasil).

Os significantes vazios fizeram do signo democrático algo descartável aos olhos das pessoas. Isso ficou exposto com a crise de representação.

Todavia, um processo de despolitização também se movimenta através de significados despolitizados (como nos exemplos em parênteses acima) que podem ser empregados de forma conveniente por diversos atores políticos.

A onda conservadora que se estabelece com mais força de 2014 em diante é responsável por identificar o esvaziamento desses significantes, preenchê-los com significados contrários à realidade, e, a partir daí, promover e instrumentalizar esses signos. Trata-se de um processo de organização da direita (onda conservadora) que estabelece um ensaio (o golpe) rumo a um projeto alvo de execução (o fascismo).

O ciclo se estabelece quando a sociedade, e a esquerda, se acostumam com a democracia liberal, mesmo quando não existem ameaças concretas do fascismo (ou mesmo um autoritarismo de direita que dificulta o exercício da livre organização da esquerda).

Daí, surgem esvaziamentos de significantes que, por sua vez, favorecem uma despolitização pela via da onda conservadora (que intencionalmente ofusca o debate de classe e das opressões com ondas de pânico baseadas em questões morais).

Se essa onda consegue se estabelecer a ponto de tirar vantagem da despolitização para desmerecer as garantias democráticas, temos o surgimento de forças protofascistas que podem abrir alas para o fascismo em si (que, nos moldes brasileiros e no século XXI, poderá ser classificado como neofascismo).”

 

 

É preciso ousar para fugir do ciclo, rumo a uma democracia ampliada e mesmo a uma democracia socialista. Trata-se, então, de levar a sério a crítica que Florestan Fernandes fez às experiências socialistas passadas que flertaram com o autoritarismo ou se submeteram a ele, tendo-o como marca de gestão (não sendo necessário discutir agora as circunstâncias de cada uma delas).

Ele também criticou como a democracia burguesa engole a esquerda que não constrói para além de seus moldes:

é urgente que se faça isso com método, organização e firmeza, para que a democracia a ser criada não devore o socialismo, convertendo-se em um sucedâneo bem-comportado do aburguesamento da socialdemocracia e da social-democratização do comunismo. carecemos com premência da democracia. mas de uma democracia que não seja o túmulo do socialismo proletário e dos sonhos de igualdade com liberdade e felicidade dos trabalhadores e oprimidos.142

É por isso mesmo que, ciente dessa radicalidade, o fascismo tem como um de seus pilares não apenas ser antidemocrático, mas também anticomunista.

A falha está em os socialistas e comunistas não compreenderem a democracia liberal como modelo limitado de democracia a ser superado (aufheben), e sim se acostumarem com ele, de modo a facilitar o ressurgimento fascista.”

142 Florestan Fernandes, “Democracia e Socialismo,” Crítica Marxista 1, no. 3 (1996): 1–6.

 

 

“Essa dinâmica já aponta para a ingenuidade ou fraqueza do discurso de conciliação de classes, pois, historicamente, é sabido que as elites permitem uma negociação de seus interesses somente em períodos de estabilidade política e econômica (especialmente sob crescimento econômico).

Qualquer perspectiva contrária, como o discurso de mera negociação entre interesses da classe trabalhadora e os dos grandes patrões, demonstra ser falha em períodos de crise, como pode ser notado na tentativa de desmonte do Estado de bem-estar social em países conhecidos por encampar valores da socialdemocracia em pleno século XXI.

O erro da conciliação está em supor que os trabalhadores e as elites têm interesses apenas distintos, e, por serem simplesmente diferentes, seriam passíveis de aceitar negociações em que todos pudessem ceder um pouco.

Na verdade, os interesses dessas classes não são apenas distintos, mas fundamentalmente antagônicos.

Mesmo que, de imediato, pareça que o trabalhador tem interesse em manter seu emprego e o patrão tem interesse em empregar para produzir, os termos ideais dessa relação, da perspectiva de cada classe, se opõem e revelam que o antagonismo de classe não é fruto de um discurso da esquerda que “pregaria a luta de classes”, mas fruto da própria materialidade.”

 

 

O rótulo de esquerda é, atualmente, negociado pelo PT, ora o partido o usa a seu favor, ora se afasta dele, dependendo da agenda do dia. Quando interessa, no diálogo com os trabalhadores, o PT é esquerda.

Quando o diálogo é com os bancos, o PT também é esquerda, mas uma esquerda que eles não devem temer. É essa a ambiguidade, e as contradições, que confunde os de fora e incomoda os de dentro da esquerda.”

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