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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Sintomas Mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira (Parte I), de Sabrina Fernandes

Editora: Autonomia Literária

ISBN: 978-85-6953-649-9

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: O título do livro Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira, escrito pela socióloga, feminista e uma das youtubers mais radicais à esquerda nas redes, Sabrina Fernandes, remete ao interregno pensado pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci na famosa passagem dos seus Cadernos do Cárcere: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Isso se encaixa como uma luva no Brasil contemporâneo depois do verdadeiro terremoto político causado pelas manifestações de junho de 2013 e seus ecos. O equilíbrio desequilibrado que sustentava a frágil democracia liberal brasileira, aparentemente, se desfez. Como consequência, temos um perturbador entretempo: de fragmentação das esquerdas e ascensão da extrema-direita — sobre o qual Sabrina Fernandes disserta, por uma perspectiva marxista, apresentando a noção crise de práxis como uma chave para o entendimento do que se passa, ao passo que possibilita (e mira!) na superação da pós-política e da ultrapolítica e na construção de uma utopia concreta e realizável, fator crucial na revolução necessária do nosso porvir.


 

Foi essa a visão dominante na esquerda radical no momento imediato a Junho de 2013, com grandes expectativas para as mobilizações contra a Copa e durante as eleições de 2014. Não se trata de uma leitura errada, apenas incompleta, uma vez que olhou para Junho somente de dentro de Junho.

Essa visão foi motivada por um sentimento de euforia que abraçava a esquerda que aplaudia a aparente redescoberta popular das ruas, após tantos anos de desmobilização vertical. E, com tanta euforia, muitos de nós, enquanto pensadores, esquerda, intelectuais orgânicos e tantos outros nos propusemos a pensar Junho de 2013.

No entanto, nos equivocamos nas predições de que isso traria uma grande oportunidade para a esquerda, dada a crise de representação. Deixamos passar elementos que apontavam que essa crise poderia, por seu turno, também ser sintomática de uma desconexão maior, e duradoura, entre pessoas e atores da esquerda, tanto a moderada quanto a radical.

Por conta disso, a esquerda não petista se polarizou no entendimento dos gritos de “Não me representa”. Enquanto parte ouvia um clamor progressista por justiça e democracia radical, outra, minoritária, debatia Junho como um momento ideologicamente pequeno-burguês por sua rejeição a partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais, que deveriam ter sido reconhecidos, de imediato, como participantes legítimos de qualquer ato de ocupação das ruas.”

 

 

A crise de práxis trata não somente da fragmentação da esquerda, mas também como esta reflete em uma estrutura de politização que permeia toda a sociedade – e, na situação atual, mostra que todo o campo de esquerda (e não apenas o PT!) tem responsabilidade sobre o grau de consciência de classe e despolitização que afeta a sociedade brasileira.

A esquerda tinha sido incapaz de conciliar a consciência teórica e prática das massas, dos oprimidos, e agora essa consciência fragmentada coletiva deu lugar à despolitização de dois tipos: pós-político e ultrapolítico.

Despolitização esta que não deve ser confundida com a classificação geralmente derrogatória de uma simples alienação, manipulação e uso do povo como massa de manobra. Trata-se, ao contrário, de uma análise gramsciana pela perspectiva da práxis e da unificação das consciências em contradição na sociedade sob hegemonia capitalista.

Aqui, vemos que a pós-política e a ultrapolítica favoreceram a renovação hegemônica por meio da percepção da perda de relevância de atores de esquerda além dos envolvidos em nichos tradicionais de politização (por exemplo: sindicatos, movimentos estudantis, etc.).

Assim, a própria práxis foi se fragmentando. Essa fragmentação se estendeu à consciência, ao bom senso, à capacidade de politizar, à construção de bases e ao estado das próprias organizações, ainda presas em cisões, diálogos rasos, dificuldades para estabelecer uma síntese comum e combater as contradições, tentando descobrir o que fazer com os fragmentos do PT em seu apego à hegemonia de esquerda, do poder e da consciência política.

Eu trabalho com o conceito de “crise de práxis” para escapar da visão dicotômica da crise de representação exposta em Junho de 2013 como uma crise boa (com oportunidades para a esquerda capturar os frustrados) ou como ruim (como abertura para a direita se apropriar de pautas e, posteriormente, mobilizar multidões contra um governo de esquerda sob o pretexto da luta anticorrupção).

Em vez disso, minha intenção é analisar as raízes dessa crise de representação e como ela se relaciona com os desafios de organização da esquerda e o potencial revolucionário. A noção de práxis é essencial aqui. Práxis implica ação e pensamento em dialética, e, como tal, formulações políticas, táticas e estratégias que ressoam e alcançam a classe trabalhadora para se organizar e se mobilizar efetivamente em direção a objetivos revolucionários.

Embora uma crise de representação trate de capacidades formais e institucionais de representar as classes, a crise de práxis ocorre em muitas camadas, sendo que apenas uma é representação. Este estudo explica a crise de práxis a partir de dois eixos: a despolitização e a fragmentação da esquerda.

Esses dois elementos trabalham juntos e se reproduzem nesta crise de práxis. Sob eles, a esquerda, cuja práxis deve estar em coerência com seus objetivos, acaba presa em um ciclo de prática e pensamento incompatíveis – exatamente como o processo que ocorre na consciência contraditória da classe trabalhadora.

Essa consciência contraditória afeta as perspectivas da classe se tornar um sujeito político efetivo. Do ponto de vista da politização e da despolitização propostas aqui, enraizada na visão gramsciana de que a politização implica na unificação da consciência teórica e prática,3 a forma de politização da direita é, de fato, uma despolitização de questões e é preocupante quando a esquerda faz o mesmo ou se acostuma com tal prática.

O referido processo transforma a grande política em uma pequena política e reveste o pensamento político de significantes confusos, vazios ou deturpados do senso comum. A despolitização desencaminha as pessoas de se tornarem sujeitos e criarem a realidade política coletivamente e por suas próprias mãos.

Apesar de precederem a conjuntura atual, as características particulares do processo de fragmentação e despolitização que marcam a atual conjuntura despontaram com os primeiros sinais de declínio do PT como agregador e representante das aspirações antissistêmicas na esquerda, sendo que muito disso se deve à governabilidade e à conciliação de classe como alicerces da política lulista.

A fragmentação da esquerda em uma ala moderada e outra radical aumentou na medida em que o PT, que anteriormente representava as esperanças de uma esquerda mais unificada, começou a se dedicar à despolitização: dessa forma, também, se impedia a subjetivação, como forma de dissuasão da mobilização que poderia interromper o partido e o seu projeto político do governo.

O PT, também desmobilizado por meio da cooptação, cedeu à burocratização, abafou esforços de produzir críticas de dentro de suas próprias fileiras e campos aliados, trocando valores importantes para a consciência de classe por ideais neoliberais de empoderamento e inclusão através do mercado.

Tudo isso foi mascarado e legitimado por políticas sociais (cujos benefícios não podem ser negados por qualquer historiador ou sociólogo, apesar de todas as falhas resultantes do contexto ambíguo em que tais políticas eram inseridas).

Tal processo contribuiu para o estado presente da fragmentação da esquerda, através de cisões, divisões, novas formulações, esforços para combater o setor da direita e o governismo petista, bem como uma consciência fragmentada geral. À medida que a consciência de classe se tornava mais fragmentada, a despolitização crescia, e isso permitiu um novo enraizamento da disputa entre o até então governismo e a direita no contexto brasileiro.”

3 Antonio Gramsci, The Antonio Gramsci Reader: Selected Writings, 1916-1935, ed. David Forgacs, New York University Press (New York: New York University Press, 2000), 333.

 

 

Afinal, a conciliação é uma ilusão que a elite concede aos progressistas sob tempos de abundância, de modo a contra-atacar para cobrir perdas e extrair os maiores ganhos possíveis assim que a esquerda da conciliação não consegue mais oferecer o mesmo de antes.

Há também a desmobilização, tanto pela influência direta nas lideranças dos movimentos quanto através do apaziguamento de ânimos e da política do medo que internaliza que nada pode ser feito e que tudo pode ser perdido no enfrentamento.”

 

 

Basta analisar a sociedade para além do alcance militante e disciplinado da esquerda, em um país de mais de 200 milhões de pessoas, para ver como a maioria, mesmo perturbada com a política, não se sente compelida a tomar as ruas, e as praças, e os prédios, e o Congresso, e o poder assim tão bem quanto a esquerda organizada deseja. Daí o entendimento que a esquerda precisa compreender o verbo “mobilizar” para além da ação de convocar.

Lideranças convocam, mas o poder de convocatória vem da base, o que depende do que ensinamos à base sobre como mobilizar, pelo que mobilizar e contra o que mobilizar, não importa os ocupantes do poder institucional.”

 

 

A pós-política é sintoma e causa da despolitização precisamente porque suprime o político. Enquanto isso, a ultrapolítica se despolitiza por falácias e polarizações essencialistas que favorecem a ordem conservadora – se valendo de maniqueísmos e valendo-se de maniqueísmos e cristalização de inimigos na consciência popular que marcaram as relações de real antagonismo e exploração na sociedade.

Ambas criam novos mitos, distorcem ou negam a história e tentam separar a consciência de sua leitura prática da realidade. Apesar de cada possuir um modus operandi diferente, as duas oferecem soluções falsas aos problemas causados pela despolitização e, em vez disso, acabam por servir à restauração dos elementos básicos do status quo.

A despolitização pós-política dá permissão passiva para a ultrapolítica, que, por sua vez, militariza conflitos ao ponto de promover caricaturas da luta de classes que afastam a base potencial da esquerda.

Em vez de apatia, paralisia ou anestesia, a pós-política promove a ação política como ineficaz em sua “ideologização da realidade”, enquanto a ultrapolítica promove um circuito de confrontos que dão a importância de guerra para batalhas facilmente mediadas pelo status quo.

Isso permite um estado de desmobilização mesmo quando a esquerda e seus militantes se engajam sem parar, principalmente quando se repete que “fazer política é tomar as ruas” sem o devido cuidado de reforçar a razão pela qual se toma as ruas e com quem. Ademais, a despolitização também colabora para a renovação imperativa do senso comum. O senso comum é percebido por Gramsci como:

[…] não algo rígido e sem mobilidade, mas que está continuamente se transformando, se enriquecendo com ideias científicas e opiniões filosóficas que entraram na vida ordinária. o “senso comum” é o folclore da filosofia, e está sempre entre ser folclore no sentido padrão e ser a filosofia, ciência e economia dos especialistas. o senso comum cria o folclore do futuro, ou seja, como uma fase relativamente rígida do conhecimento popular em certo momento e espaço.4

Um terreno de despolitização, seja pós ou ultrapolítico, é fértil para a direita, por apresentar uma miríade de desafios para a esquerda. Esse é o caso do Brasil, apesar de novas faíscas de politização e interesse político (que não são a mesma coisa) surgidos de Junho de 2013 em diante. Afinal, essas mesmas faíscas podem ser capturadas pela direita em um processo de manipulação do consentimento para o senso comum.”

4 Antonio Gramsci, “Selections From the Prison Notebooks of Antonio Gramsci”, Elec Book 73, no. 3 (1999): 630, https://doi.org/10.2307/479844.

 

 

Some-se isso a um contexto no qual os artefatos democráticos foram manipulados para retirar direitos e, ainda, promover perseguição política no âmbito da consolidada seletividade penal brasileira. Portanto, se vê que a esquerda é vulnerável à despolitização também e que, ao adentrar na disputa viciosa com a direita, ela acaba por incorrer na substituição do seu projeto por pulsões eleitorais – situando-se, por conseguinte, em uma encruzilhada, ou mesmo em uma crise.”

 

 

A sensação reportada com frequência pelos militantes com quem conversei é de que a esquerda como um todo é um “quadradinho” que passa mais tempo disputando espaço no quadradinho do que investindo em táticas para seu crescimento e sustentabilidade.

No fundo, a maior parte da esquerda radical esperava que Junho de 2013 fosse um marco para um novo período de ascensão das massas, enquanto isso, a esquerda moderada temia Junho. (...)

O frustrante é que a direita também teve expectativas quanto a Junho e, mais efetivamente soube interpelar e capturar discursos. Esses discursos foram canalizados pela força material do campo da direita e investidos pelo impeachment, assim como no período pós-impeachment, com as contrarreformas de Michel Temer, e também durante os ataques antipetistas sofridos por Lula em relação à Lava Jato.

A tentativa de reconstrução de Lula em um mito (não-humano, uma ideia) visaria não somente salvar Lula, mas recuperar a imagem do PT dentro da esquerda, e fora dela, como uma organização que lotava ruas e arrastava multidões Brasil afora – mesmo não sendo isso o ocorrido na ocasião infortunada da prisão. O interessante é que, naquele momento, até a esquerda radical, já tradicionalmente melancólica, parecia esperar o mesmo.”

 

 

Marx considera o trabalhador, por meio da classe trabalhadora, o protagonista da história. Seu argumento é baseado na relação da humanidade com a natureza e a capacidade produtiva, bem como a conclusão histórica do papel central das lutas de classes.

Esse argumento também é feito a partir da perspectiva da abolição positiva da propriedade privada, e sua apropriação da existência humana, como a abolição de toda alienação. Assim, há uma conexão entre as análises de alienação de exploração por Marx, dos Manuscritos ao Capital, e assim por diante.10

Para Marx, é a possibilidade de uma unidade de pensamento e ação na humanidade que diferencia os humanos de outros seres na natureza. Marx fala da consciência da espécie humana que é, por sua vez, confirmada pela vida social.

Isso torna os seres humanos indivíduos únicos e comunais, em uma conexão inseparável entre a existência livre e a atividade social. O resultado é “a existência subjetiva da sociedade como pensada e experienciada”.11

O problema da alienação e a questão da revolução devem ser considerados por meio do pensamento e da prática, cuja unidade (empreendida por mim mesma como práxis) é fundamental para superar o idealismo de Hegel:

a resolução das contradições teóricas só é possível através de meios práticos, através da energia prática do homem. sua resolução não é, portanto, de modo algum, apenas um problema de conhecimento, mas é um problema real da vida que a filosofia foi incapaz de resolver precisamente porque viu aí um problema puramente teórico.12

Baseado nisso, Marx complementa sua crítica ainda latente à dialética hegeliana, estabelecendo não apenas seu conceito de humanidade – que “se autentica tanto no ser como no pensamento”.13

Marx retomou a questão da práxis revolucionária e do núcleo materialista de seu método logo depois em suas Teses sobre Feuerbach (1845), fazendo eco à fundação da revolução como uma atividade prático-crítica e exortando a humanidade a não simplesmente interpretar o mundo, mas a fazê-lo a fim de mudá-lo.14

10 Recomendo a discussão de Löwy e Sayre acerca da base dos Manuscritos para o pensamento marxista humanista, e também marxiano, no capítulo 3 de Michael Löwy e Robert Sayre, Revolta e Melancolia: O Romantismo na Contracorrente da Modernidade (São Paulo: Boitempo Editorial, 2015).

11 Marx em Erich Fromm, Marx’s Concept of Man (Mansfield Centre: Martino Publishing, 2011), 131 (minha ênfase).

12 Marx em Fromm, 135 (ênfase no original)

13 Karl Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, ed. Erich Fromm, trans. T. B. Bottomore, Marx’s Concept of Man (Mansfield Centre: Martino Publishing, 2007).

14 Karl Marx, “Theses on Feuerbach”, in Selected Writings (Hackett Publishing Company, 1994).

 

 

A visão de Gramsci sobre a hegemonia, a pedagogia e a formação dialética do bom senso (versus senso comum) é elementar para ver a práxis como uma força política, especialmente quando esses mesmos temas são repetidos e expandidos por Paulo Freire no pensamento pedagógico crítico, coisa que muitos estudiosos identificam como um quadro gramsciano-freiriano.22

A emancipação, de acordo com uma visão gramsciana, não é apenas de caráter econômico, mas também contém a emancipação da existência total do homem.

Mesmo tendo Gramsci claramente seu foco na classe trabalhadora, que pode dar origem a uma interpretação economicista, não nega que o poder totalizador do capitalismo esteja ligado à opressão num sentido mais amplo.

Essa tensão é negociada pela sugestão de Gramsci de que, ao se emancipar, a classe trabalhadora, por meio de seu papel histórico revolucionário, também colaborará na emancipação de todos os outros grupos dominados.23

Paulo Freire argumenta de maneira semelhante ao dizer que “a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos é libertar a si mesmos e a seus opressores”.24 Nas palavras de Gramsci no L’Ordine Nuovo: “O proletariado, tendo conquistado o poder social, terá que assumir o trabalho de reconquista, para restaurar plenamente para si e para toda a humanidade o reino devastado do espírito.”25

22 Jacob P. K. Gross, “Education and Hegemony: The Influence of Antonio Gramsci,” in Beyond Critique: Exploring Critical Social Theories and Education, ed. Bradley Levinson (Boulder: Paradigm Publishers, 2011); Magaret Ledwith, “Community Work as Critical Pedagogy: Re-Envisioning Freire and Gramsci,” Community Development Journal 36, no. 3 (2001): 171–82, https://doi.org/10.1093/cdj/36.3.171; Peter Mayo, “Transformative Adult Education in an Age of Globalization: A Gramscian-Freirean Synthesis and Beyond,” The Alberta Journal of Educational Research 42 (1996): 148–60; Peter Mayo, “Antonio Gramsci and His Relevance to the Education of Adults,” in Gramsci and Educational Thought, ed. Peter Mayo (West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010), 21–37; Giovanni Semeraro, “Da Libertação à Hegemonia: Freire e Gramsci No Processo de Democratização Do Brasil,” Revista de Sociologia e Política, no. 29 (2007): 95–104, https://doi.org/10.1590/S0104-44782007000200008.

23 Gramsci, The Antonio Gramsci Reader: Selected Writings, 1916-1935.

24 Paulo Freire, Pedagogy of the Oppressed (New York: The Seabury Press, 1970), 28.

25 Antonio Gramsci, The Modern Prince & Other Writings (New York: International Publishers, 2007), 20.

 

 

O consentimento capitalista via consumo, concessões de direitos e valorização de sua forma de desenvolvimento econômico esconde o antagonismo de classe entre explorados e exploradores – e pode até mesmo encorajar uma sensação de dívida/gratidão dos explorados para com os exploradores quando estes promovem melhorias de vida pontuais.

Assim, em vez de usar o antagonismo de classe para revitalizar a luta, a classe trabalhadora se encontra em uma posição fatalista cultural e materialista devido à ilusão de progresso no crescimento da capacidade produtiva (e potencial de consumo). Esse ponto é extremamente importante quando se considera como o potencial de mudança social está inevitavelmente ligado ao nível e tipo de politização das pessoas.

As verdades que ganham tal natureza ao serem reproduzidas no senso comum determinam quais portas políticas se abrem. Se o senso comum é a média do projeto ideológico da classe dominante, essa classe consegue manter sua hegemonia na base do consentimento.

Para eles não é interessante que os explorados assim se enxerguem e, muito menos, que aprendam a identificar os seus exploradores. Por isso, o projeto de hegemonia dos capitalistas envolve a despolitização da luta de classes, o antagonismo e a realidade das lutas sociais.

Trata-se de despolitização porque se utiliza de distorções tidas como verdadeiras no senso comum para evitar o surgimento de um movimento formador de sujeitos políticos em si e para si. O projeto requer que lhes seja inviável tomar consciência de sua situação material – a isso, Marx chamava de consciência de classe.

Esse modelo de dominação que se sustenta para além da coerção, afirmando-se como hegemonia por conta do fator de consentimento, passa por tentativas de renovação durante crises próprias do sistema capitalista (de recursos, competição, conflitos (re)distributivos, bolhas financeiras, etc.) e crises políticas (mediante politização da classe trabalhadora ou mesmo crises de representação nutridas pela despolitização).

Isso aponta para a necessidade de fazer mais do que uma disputa contra-hegemônica com o capital, mas sim a construção de uma nova hegemonia. O senso comum entra em disputa. Num projeto politizador a questão passa por transformá-lo em bom senso, em que haja atividade crítica-prática, ou seja, um projeto de hegemonia é um projeto de práxis.

Mesmo os momentos de revoltas em massa podem, eventualmente, se diluir em reivindicações fracas e em várias expressões de autoindulgência, se a perspectiva dominante de mudança estiver entrelaçada com uma visão afirmativa do capitalismo.

A preocupação de Marcuse com o fato da classe trabalhadora ter se tornado fatalista e acomodada, em sua falta de liberdade, realmente torna a liberdade inseparável da consciência – e da prática – em um processo dialético.30

Faz-se então necessário falar de Karel Kosik, um dos autores que mais explicitamente lidam com a perspectiva da práxis, ao lado de Paulo Freire, cujas influências teóricas acabam por conectar sua práxis a Gramsci. Kosik vê a cognição como uma grande capacidade humana de superação da consciência ingênua31 quando confronta materialmente a realidade histórica.32

Isso significa que tanto o trabalho quanto a capacidade do homem de decodificar a realidade e engajar-se criticamente com ela são atividades que indicam a potencialidade humana. A cognição, como elemento dialético no nexo teórico-prático/sujeito-objeto, auxilia na formação da realidade objetiva e na autoformação da humanidade como sujeito histórico– o que Kosik chama de processo de “humanizar o homem”.33

Uma práxis revolucionária baseia-se numa cognição autêntica da realidade, a qual permite ao sujeito se engajar criticamente com uma totalidade tanto no campo teórico quanto no prático. Kosik estabelece que a totalidade concreta é uma teoria da realidade estruturada dialeticamente, segundo a qual o homem é sujeito e objeto.

Esse quadro é diferente daquele apresentado pela economia clássica na forma do “homem econômico”, pois a humanidade só é retratada como objeto nesse contexto e, portanto, está localizada fora da práxis.

A cognição se torna um dos elementos importantes que conectam essa relação, especialmente a cognição da utopia. Para Leszek Kolakowski, a utopia é um elemento necessário no processo de criar um movimento revolucionário e pensar nas ferramentas para uma revolução.

Utopia não significa aquilo que é impossível – como propagado tendenciosa e ingenuamente por aqueles que acusam o comunismo de ser apenas teoria, mas não prática –, mas sim não-lugar.

Utopia é aquilo que ainda não tem lugar na nossa sociedade. Portanto, a utopia nos move para a construção do lugar. Ela traz o conteúdo e orienta a construção hegemônica de mudanças estruturais e revolucionárias necessárias para a execução desse conteúdo.

Utopia influencia a teoria e o imaginário consciente do movimento a fim de estabelecer uma direção de ação proposital.

Em O Espírito da Utopia (publicado pela primeira vez em 1918), Ernst Bloch explora como a cognição do processo revolucionário, o qual busca uma consciência desperta, só é possível por meio de uma utopia que forma a associação entre o primeiro sonho (uma percepção interna de nossa vontade) e a restauração dessa vontade na realidade.34

Assim, a utopia não é um sonho que recorda o passado. Pelo contrário, é “apenas aquele anseio que traz consigo o que não foi realizado, o que não poderia ter absolutamente nenhuma realização terrena, o desejo desperto do que por si só é correto para nós”.35

Para Bloch, mesmo um estado de alienação profunda não pode impedir o pressentimento de uma potencialidade humana oculta, que é precisamente o que alimenta a capacidade de utopia.36

Portanto, a utopia não é o mesmo que um sonho ou uma esperança desengajada, e sim o fruto de uma posição dialética entre a esperança e a escuridão.37 É a esperança que surge das trevas e, como tal, da opressão e da alienação, pois há pouca razão para continuar a esperar quando a potencialidade otimista que a carrega já foi realizada.

Se o negativo está contido no positivo, o mesmo ocorre no contrário, como uma centelha que contraria a percepção inevitável de uma totalidade opressora.

A cognição histórica se prepara para a revolução na medida em que determina a primeira negação total do sistema que se opõe à utopia. A segunda negação (aufheben38) ocorre quando a utopia é abolida em seu ato de fruição. Aquilo que se torna real não é mais uma utopia, mas deve gerar novas utopias no movimento contínuo da visão humanista.

Desse modo, a utopia é, sim, uma característica central do comunismo, mas também deve ser de toda esquerda que se propõe como alternativa ao status quo. Utopias não devem ser abandonadas ou rifadas, pois sua ausência cria um vácuo que é facilmente preenchido pela ordem capitalista, com distopias de um mundo fraturado, por exemplo, em que alguns dominam uma maioria cada vez mais explorada.

Essa discussão colocada por Bloch é importante também porque resgata o termo utopia do significado negativo que lhe foi atribuído até então (e que prevalece em muitos círculos até hoje). Trata-se de um resgate porque retoma a utopia como “ideal social legitimamente oposto ao estado de coisas vigentes”.39

O que faz da utopia importante no marxismo será o materialismo histórico, pois, como filosofia da práxis, o marxismo oferece o caminho material para que se faça a ponte entre a utopia e o lugar concreto.

Utopias alimentam teorias que, por sua vez, alimentam práticas que devem resultar na realização (e assim suprassunção) da utopia. A teoria contribui para o processo de cognição, mas, se for fetichizada e promovida instrumentalmente, seu potencial revolucionário será anulado.

Se percebida como parte de um movimento dialético comprometido com uma perspectiva materialista histórica, em vez dos interesses individuais das organizações, a teoria pode reenergizar intelectualmente o partido político e também construir uma ponte entre o pensamento e a realidade das decisões tomadas.40

A esquerda deve evitar a tendência à autopreservação, em sua forma de organização política, substituindo-a pela responsabilidade moral de reconhecer (e agir) contra a alienação e a opressão.

Isso requer a visão da utopia como objetividade, mesmo quando a possibilidade parece ser mínima; isto é, “o excesso de esperanças e demandas sobre as possibilidades é necessário para forçar a realidade a produzir todos os potenciais que ela contém e explorar todos os recursos ocultos nela”.41

Também é importante ver a classe trabalhadora, ou o proletariado, de um modo inclusivo e não-economicista. Como a classe consiste em relações humanas, bem como em localizações de classe mediadas,42 pode-se falar da “classe trabalhadora” sem negar as experiências heterogêneas de pessoas que trabalham em diferentes setores.

Isso é, especialmente, importante quando consideramos o impacto material das estruturas de dominação sobre diferentes corpos e como nunca foi possível separar na prática as demandas anticapitalistas daquelas de emancipação humana – faz-se necessário que se mantenham unidas teoricamente também.

As contingências criadas na relação de um trabalhador com outro bem como suas experiências de exploração são, ambas, reveladas em unidade pela consciência de classe, uma vez que ela expressa “uma identidade de interesses entre todos esses grupos diferentes de trabalhadores e contra os interesses” de outras classes.43

A consciência de classe assegura que as pessoas mantenham sua agência em sua própria elaboração da história, em vez de seguir uma receita determinista dada por condições estruturais anteriores. É essa consciência que determina quanto os seres humanos podem fazer história modificando condições que foram dadas historicamente.

Na medida em que a consciência de classe surge da experiência unificada de intensa exploração, também arma a classe trabalhadora contra o processo de instrumentalização que ocorre enquanto a exploração capitalista se desenvolve e se adapta.

A exploração também é uma relação que varia em intensidade de acordo com o contexto, mas à medida que o capitalismo se desenvolve tende a progredir em uma direção onde os humanos são totalmente reduzidos “ao status de um ‘instrumento’” (Thompson, 1991, p. 222).

Ela transforma a classe trabalhadora em uma “coisa” desprovida de potencialidade humana e nada mais que a mercadoria preciosa que vendem à classe capitalista com o único propósito de sustentar a acumulação.

Aqui, devo apontar sobre o uso de classe trabalhadora como uma categoria central não economicista, ou seja, que reconhece a proletarização como fenômeno central capitalista que gera sua própria contradição ao explorar a maioria da sociedade – a mesma maioria que pode derrubar o capital.

É importante mencionar que, quando falamos de povo e da massa, os significados podem ser bem diferentes, mas eles se aplicam, quando referentes a um sujeito antissistêmico como fundamentalmente semelhantes, sob a opressão.44

É frequente a insistência em colocar um tipo particular de opressão como mais relevante do que outro, o que nos distrai da importância de reconhecer a opressão como o conceito central na desumanização, perda e sofrimento que une todos os sistemas de desapropriação.

Voltando aos Manuscritos Econômico-Filosóficos, vemos que a exploração capitalista é uma forma de opressão particular do capitalismo e que opera como eixo central do sistema.

Todavia, não é suficiente pensar em revolução e contrarrevolução simplesmente do ponto de vista de uma mudança na propriedade dos meios de produção (propriedade privada), uma vez que uma ampla gama de processos, que Marx conecta a uma estrutura, chega à materialidade por meio da atuação da superestrutura, do domínio da consciência, da subjetividade e do conhecimento.”

30 Marcuse, One-Dimensional Man, 222.

31 Paulo Freire também usa esse termo, consciência ingênua,para indicar uma forma de senso comum (de modo gramsciano) que estabelece a causalidade como fato e reproduz “verdades” não verificadas (Freire, 2010, p. 113).

32 Karel Kosik, Dialectics of the Concrete: A Study on Problems of Man and World (Boston: D. Reidel Publishing Company, 1976), 26.

33 Kosik, 30.

34 Ernst Bloch, The Spirit of Utopia (Stanford: Stanford University Press, 2000), 145.

35 Bloch, 156.

36 Bloch, 168.

37 Bloch, 201.

38 Aufheben é uma palavra do alemão de difícil tradução, porém central para a compreensão da visão revolucionária marxista. Quando traduzida, tende a corresponder às palavras sublação (assimilação de algo menor em algo maior) ou suprassunção (elevação ao grau de essência máxima). Na discussão dialética, aufheben está frequentemente associada à segunda negação.

39 Löwy and Sayre, Revolta e Melancolia: O Romantismo Na Contracorrente Da Modernidade, 239.

40 Leszlek Kolakowski, Toward a Marxist Humanism (New York: Grove Press, 1968), 163, 166, 171.

41 Kolakowski, 151.

42 Erik Olin Wright, Understanding Class (London: Verso, 2015), 155.

43 Edward Palmer Thompson, The Making of the English Working Class (London: Penguin Books, 1991), 212.

44 Alguns termos explorados posteriormente, como base, multidões e massa, são usados em contextos específicos para se referir a frações da classe trabalhadora e/ou sujeitos-em-formação maiores/menores que a classe trabalhadora.

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