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quarta-feira, 30 de junho de 2021

Para entender O Capital: Livros II e III (Parte II), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-403-2

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: Ver Parte I



(Refere-se ao livro II)

 

Há uma ideia básica que é fundamental para o entendimento do argumento de Marx nesses capítulos. Ela deriva de sua longa insistência no fato de que o valor e o mais-valor não podem ser produzidos por meio de atos de troca. O valor é criado na produção, e ponto. Segue-se disso que o tempo e o trabalho despendidos na circulação no mercado não produzem valor. Uma grande quantidade de tempo e de esforço de trabalho é absorvida pela produção no mercado. Marx considera que, em relação à produção de valor, esse tempo e esse esforço de trabalho são desperdiçados. Há, portanto, muitos incentivos para que se encontrem maneiras de reduzir esse desperdício. Uma consequência disso é a fascinação histórica e contínua do capital pela aceleração. O gasto de trabalho na transformação de uma mercadoria em dinheiro ou vice-versa é trabalho improdutivo (improdutivo não no sentido de que o trabalho é inútil ou desnecessário, ou realizado por trabalhadores ociosos, preguiçosos e improdutivos, mas improdutivo porque não produz valor). Grande parte do trabalho é empregada, obviamente, na circulação de mercadorias, e os capitalistas, assim como os comerciantes, os atacadistas e os varejistas, organizam esse trabalho e extraem lucro dele, em parte explorando os trabalhadores que eles empregam do mesmo modo como fazem os capitalistas da produção. Para Marx, porém, isso ainda deve ser categorizado como trabalho improdutivo. Essa é uma questão controversa, que foi objeto de um debate substancial e interminável, parcialmente descrito na introdução de Ernest Mandel ao Livro II (embora um grande número de estudiosos questione a interpretação de Mandel[1]).

Não pretendo entrar aqui nos detalhes dessa controvérsia. Mas há alguns pontos gerais que precisam ser mencionados, mesmo que não possamos resolvê-los. Por exemplo, há uma dificuldade potencial que surge em relação à formulação de Marx no Livro I. No capítulo 16, ele muda o foco do trabalhador individual para o “trabalhador coletivo”. O que ele tem em mente, em linhas gerais, é uma fábrica em que os produtores diretos da linha de produção se misturam com os trabalhadores que efetuam a limpeza, a manutenção e outros serviços auxiliares, e faz bem em incluí-los todos como parte do processo coletivo de produção, ainda que alguns não apliquem individualmente sua força de trabalho na mercadoria que está sendo produzida. Como observei no Livro I de Para entender o capital, há um problema em definir exatamente onde começa e onde termina o trabalho coletivo. Este inclui designers, gerentes, engenheiros, trabalhadores de manutenção e limpeza e vendedores que trabalham de dentro da fábrica? Se o que importa realmente é a produtividade do coletivo, e não o trabalhador individual, precisamos saber com base em que grupo de trabalhadores a produtividade deve ser calculada e quem são os “trabalhadores associados” que produzem o valor. O que acontece quando várias funções que antes eram parte do trabalho coletivo no interior da fábrica (como a limpeza e o design gráfico de publicidade) são terceirizadas? Elas deixam de ser parte do trabalho produtivo coletivo e passam à categoria de trabalho improdutivo? Nos últimos quarenta anos, houve uma forte tendência sistêmica das empresas capitalistas de lançar mão da terceirização, presumivelmente para chegar a uma definição muito mais “eficiente” do trabalho coletivo empregado por elas, incrementando com isso sua taxa individual de lucro (embora os efeitos agregados sobre a produção de mais-valor sejam, no máximo, sombrios). Limpeza, manutenção, design, marketing etc. tornam-se cada vez mais “servições empresariais [business services]”, e é muito difícil distinguir (o próprio Marx confessa, como veremos) quando essas atividades devem ser classificadas como produtivas de valor e quando devem ser consideradas improdutivas, porém necessárias. Esses problemas existem no interior de formas supostamente socialistas (uma das críticas à cooperativa Mondragon é que ela depende cada vez mais de terceirizações e, portanto, sobrevive à custa da exploração em outra parte).

Não posso tratar dessa questão aqui, exceto para sinalizar que, neste ponto, estamos diante de um pesadelo contábil (que, a meu ver, é insolúvel) e de uma consequente massa de controvérsias (nas quais os marxistas se notabilizaram durante muito tempo). Deixo a você a decisão de estudar esses problemas na medida de seu interesse. Se você empreender esse estudo, verá que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo é muito importante nos escritos de Adam Smith, e Marx devota grande parte do primeiro volume das Teorias do mais-valor ao exame e à crítica das teses de Adam Smith para definir melhor sua própria teoria. Mas, pessoalmente, não estou persuadido de que Marx tenha encontrado uma resposta razoável para o problema. Penso também que nenhum outro autor a encontrou, e essa é a razão de um legado tão grande de controvérsia.

Na ausência de uma clara solução contábil para a divisão entre trabalho produtivo e improdutivo, ficamos com o problema de como preservar os insights intuitivos de Marx e, ao mesmo tempo, reconhecer a dificuldade (impossibilidade?) de operacionalizar as distinções. O insight intuitivo deriva da análise dos três ciclos do capital. O momento da produção (o processo de trabalho) funda o ciclo produtivo. Mas esse ciclo não pode ser completado sem que se negociem as condições de circulação definidas pelo dinheiro e pelas mercadorias. O trabalho está certamente envolvido em todos os três ciclos, e a continuidade do ciclo do capital industrial (o processo inteiro) depende das condições de continuidade definidas em todos os três ciclos. A ideia principal é a da necessidade da continuidade e velocidade (aceleração) do fluxo, e o que tem de ser feito para assegurar esse movimento contínuo.

Se essa fosse a única consideração, poderíamos defender a inclusão de todo trabalho envolvido na produção, circulação e realização como parte do trabalho coletivo de manutenção e reprodução do capital (isso poderia ser estendido para incluir o trabalho doméstico, voltado para a reprodução da força de trabalho). Em outras palavras, poderíamos dizer que todos os trabalhadores envolvidos no ciclo do capital industrial deveriam ser considerados trabalhadores produtivos. Na visão de Marx, porém, isso encobriria e mascararia algo muito importante. Se o valor e o mais-valor são produzidos apenas no ponto de produção no ciclo produtivo, os gastos realizados e o trabalho despendido no âmbito da circulação do capital industrial têm de ser pagos pelas deduções realizadas sobre o valor e o mais-valor produzidos na produção. Seguramente, a extensão dessas deduções é uma questão de profunda importância, tanto individual como socialmente, para a reprodução do capital. Se todo o valor e o mais-valor produzido fosse absorvido nos custos de circulação, quem se incomodaria em produzir? Por isso, estratégias para reduzir essas deduções, assim como para minimizar o tempo perdido na circulação, desempenharam um papel importante na história do capital, e podemos experienciar os resultados dessas estratégias em nossas vidas cotidianas.

Deriva daí o impulso para revolucionar constantemente as configurações espaçotemporais do capitalismo por meio da aceleração (até do nosso consumo, por exemplo) e da “anulação do espaço pelo tempo” (como Marx diz nos Grundrisse). Em contrapartida, o poder excessivo para impor essas deduções (ou a incapacidade de facilitar o rápido movimento do capital através dos ciclos) pode ser o gerador de crises. Se todo poder está nas mãos dos capitalistas monetários (os financistas) e os capitalistas de mercadorias (os comerciantes), qual é o impacto disso na produção de valor da qual essas frações do capital dependem em última instância? Podemos dizer, por exemplo, que as perturbações na economia global ocorridas em 2007 foram causadas pelos lucros excessivos (e, como veremos, largamente fictícios) que foram tirados do dinheiro improdutivo e dos ciclos da mercadoria (por exemplo, pelo Goldman Sachs e pelo Walmart) e sugaram a energia das atividades produtivas, ou então degradaram tanto as condições no ciclo produtivo que acabaram provocando uma fuga de capitais para os ciclos improdutivos do dinheiro e da mercadoria, nos quais a acumulação poderia ocorrer mais pela despossessão do que pela produção. Como poderíamos estabelecer a verdade de cada uma dessas proposições é uma questão intrigante. Mas o problema se apresenta prontamente: se o valor pode ser produzido na circulação, para que se incomodar em produzir? Marx não coloca a questão dessa forma, mas ela está implícita na análise. Eu preferiria mil vezes me ocupar com essa questão a me perder num pântano contábil. E essa é a questão que parece corresponder mais propriamente à compreensão intuitiva de Marx. Ela também tem grande relevância em nossa época. Tendo tudo isso em mente, vejamos como Marx trata dos detalhes.”

[1] Para uma crítica dos argumentos de Mandel na introdução ao Livro II, ver Patrick Murray, “Beyond the ‘Commerce and Industry’ Picture of Capital,” em Christopher John Arthur e Geert A. Reuten (orgs.), The Circulation of Capital: Essays on Volume Two of Marx’s Capital (Londres, Macmillan, 1998), p. 57-61.

 

 

É evidente que quanto maior for a coincidência entre o tempo de produção e o tempo de trabalho, maiores serão a produtividade e a valorização de um determinado capital produtivo num dado intervalo de tempo. Daí a tendência da produção capitalista de encurtar o máximo possível o excedente do tempo de produção sobre o tempo de trabalho. No entanto, ainda que o tempo de produção do capital possa diferir de seu tempo de trabalho, este está sempre contido naquele, e o próprio excedente é condição do processo de produção. (203-4)

O tempo de curso é o tempo necessário para vender a mercadoria e, então, reconverter o capital monetário em meios de produção e força de trabalho. “Tempo de curso e tempo de produção excluem-se mutuamente. Durante seu tempo de curso, o capital não atua como capital produtivo e, por isso, não produz mercadoria nem mais-valor” (204). Isso significa que:

a expansão e contração do tempo de curso age como limite negativo à contração e expansão do tempo de produção [...]. Quanto mais as metamorfoses da circulação do capital são apenas ideais, isto é, quanto mais o tempo de curso = 0 ou se aproxima de zero, tanto mais atua o capital, tanto maior se torna sua produtividade e autovalorização. Se, por exemplo, um capitalista trabalha por encomenda, recebendo o pagamento na entrega do produto, e o pagamento se efetua com seus próprios meios de produção, então seu tempo de circulação se aproxima de zero. (204-5)

A economia política clássica, observa Marx, ignorou a importância da análise dos tempos de produção e circulação. Como consequência, surgiu, entre muitos de seus representantes, assim como entre os próprios capitalistas, a ilusão fetichista de que o mais-valor poderia derivar “da esfera da circulação”, porque “a maior duração do tempo de curso age como uma razão da alta do preço”. Isso produz a ilusão de que “o capital contém em si uma fonte mística de autovalorização, que flui na esfera da circulação, independentemente de seu processo de produção e, portanto, da exploração do trabalho” (205). Fascinado pela crença fetichista (que ainda persiste) de que o valor pode ter origem na circulação, é impossível entender por que o capital se movimenta no sentido da aceleração e da eficiência crescentes em seu curso. Afinal, se o valor pode ser produzido mediante a circulação, o que explica a luta para reduzir os tempos de curso? Tempos mais lentos produziriam um valor maior.”

 

 

Ainda que Engels tivesse razão em se queixar de que o Livro II “não contém muito material para a agitação”, essa passagem indica um desenvolvimento significativo na visão política de Marx sobre o comunismo, que será cada vez mais eloquente (embora, em grande parte, não declarado) na seção III do Livro II. Ela levanta questões sobre como a “sociedade” poderia coordenar e “calcular” racionalmente divisões agregadas do trabalho e gerenciar projetos de longo prazo na ausência de sinais de mercado, de maneira que, ao invés de diminuir, aumentasse a liberdade dos trabalhadores associados para perseguir seus interesses coletivos. O que essa análise mostra pela primeira vez em O capital, mas não pela última, é a existência de uma contradição fundamental no cerne do projeto comunista. Pois assim como a liberdade individual burguesa só se tornou possível no contexto de um aparato disciplinar draconiano baseado na propriedade privada – que sustenta o modo de produção capitalista –, o comunismo precisa encontrar uma maneira de redefinir e proteger a liberdade do trabalho associado dentro de uma estrutura geral de cálculo, coordenação e planejamento que circunscreva e discipline a produção das infraestruturas sociais e físicas necessárias, ao mesmo tempo que aumenta as perspectivas de emancipação humana.

Na sociedade capitalista, ao contrário, na qual o entendimento social se afirma apenas e invariavelmente post festum, grandes perturbações podem e têm de ocorrer constantemente. Por um lado, uma pressão sobre o mercado monetário, ao mesmo tempo que, inversamente, a facilidade proporcionada por este último provoca o surgimento de um grande número de tais empresas, ou seja, precisamente as circunstâncias que, mais tarde, pressionarão o mercado monetário. Tal mercado é pressionado porque aqui se faz necessário o adiantamento constante de capital monetário em grande escala e durante longos períodos. Desconsideramos aqui inteiramente o fato de que industriais e comerciantes aplicam em especulações ferroviárias etc. o capital monetário requerido para o funcionamento de seus negócios e o repõem mediante empréstimos no mercado monetário. (410-1)

Esse processo fornece uma base técnica para todas as “formas insanas” e comportamentos “loucos” identificados nas investigações sobre o capital financeiro e o sistema de crédito no Livro III:

Como elementos do capital produtivo são constantemente retirados do mercado e apenas um equivalente em dinheiro é lançado no mercado em seu lugar, aumenta a demanda solvente, sem fornecer, por si mesma, qualquer elemento de oferta. Por conseguinte, aumentam os preços, tanto dos meios de vida quanto dos materiais de produção. A isso se agrega o fato de que, durante esse tempo, especula-se regularmente e opera-se uma grande transferência de capital. Um bando de especuladores, empreiteiros, engenheiros, advogados etc. enriquece, provocando uma forte demanda de consumo no mercado. Além disso, os salários aumentam. Quanto aos meios alimentares, isso fornece um estímulo à agricultura, mas como esses meios alimentares não podem ser aumentados subitamente, no curso do ano, cresce sua importação, assim como, em geral, a importação de meios alimentares exóticos (café, açúcar, vinho etc.) e de objetos de luxo. Isso provoca a importação excessiva e a especulação nesse ramo de negócio. Por outro lado, nos ramos da indústria em que a produção pode ser rapidamente incrementada (mais propriamente, a manufatura, a mineração etc.), o aumento dos preços provoca uma expansão repentina, logo seguida do colapso. (411)

Isso significa um distanciamento radical da linguagem habitual do Livro II e uma ligação direta, e mesmo maravilhosa, com os capítulos sobre finanças e crédito do Livro III, confirmando a unidade subjacente entre os dois livros. Marx ainda vai além, quando examina o efeito sobre o trabalho:

O mesmo efeito se produz sobre o mercado de trabalho, a fim de atrair para os novos ramos de negócio grandes massas da superpopulação relativa latente, e inclusive dos trabalhadores ocupados. Em geral, tais empresas em grande escala, como ferrovias, retiram do mercado de trabalho uma determinada quantidade de força de trabalho, que só pode proceder de certos ramos, como a agricultura etc., nos quais se empregam apenas indivíduos de grande vigor. Isso continua a ocorrer mesmo depois que novas empresas se tenham convertido em ramos permanentes da indústria e, assim, já esteja formada a classe trabalhadora nômade por elas requerida, como, por exemplo, nos casos em que a construção de ferrovias é realizada temporariamente numa escala acima da média. Uma parte do exército operário de reserva, que pressionava os preços para baixo, é absorvida. Os salários sobem em geral, mesmo nas partes do mercado de trabalho que até então apresentavam um bom nível de ocupação. Isso dura até que o inevitável colapso volta a liberar o exército operário de reserva e os salários são novamente pressionados para baixo, até atingir seu patamar mínimo. (411-2)

Está clara, aqui, a relação entre essas teses e aquelas expressas no capítulo 25 do Livro I. Contudo, Marx acrescenta, numa nota de rodapé, uma observação teórica ainda mais pertinente e potencialmente explosiva:

Contradição no modo de produção capitalista: os trabalhadores, como compradores de mercadorias, são importantes para o mercado. Mas como vendedores de sua mercadoria – a força de trabalho –, a sociedade capitalista tem a tendência de reduzi-los ao mínimo do preço.

Contradição adicional: as épocas em que a produção capitalista desenvolve todas as suas potencialidades mostram-se regularmente como épocas de superprodução, porquanto as potências produtivas jamais podem ser empregadas a ponto de, com isso, um valor maior poder não só ser produzido como realizado; mas a venda das mercadorias, a realização do capital-mercadoria e, assim, também a do mais-valor, está limitada não pelas necessidades de consumo da sociedade em geral, mas pelas necessidades de consumo de uma sociedade cuja grande maioria é sempre pobre e tem de permanecer pobre. (nota 1, 412)

Que o arrocho salarial no interesse da extração de mais-valor para o capital coloque uma tal dificuldade de demanda efetiva sustentada é há muito tempo uma das principais contradições das leis de movimento do capital. Aqui ela é explicitamente reconhecida como tal. A importância dos trabalhadores como consumidores e, por conseguinte, como agentes para a realização do valor do capital-mercadoria no mercado é, de fato, um tema importante em todo o Livro II. No Livro I, essa questão foi ignorada simplesmente com base no pressuposto de que todas as mercadorias são negociadas por seus valores. Esse é um daqueles momentos de O capital em que as mercadorias – um aspecto da distribuição excluído de antemão como uma particularidade – são reintroduzidas no núcleo do processo de circulação do capital industrial em geral, com enormes impactos sobre as contradições no interior das leis de movimento do capital.

Como conclusão do capítulo, Marx estende seu pensamento para além do pressuposto normal de um sistema fechado de comércio. A distância do mercado tem de ser vista “como uma base material específica” para uma circulação mais longa e, portanto, para os tempos de rotação. O exemplo que Marx dá é o do tecido e do fio de algodão vendidos à Índia. O produtor vende ao comerciante, que recorre ao mercado monetário para obter meios de pagamento. Mais tarde, o exportador vende no mercado indiano. Só então o valor equivalente pode voltar para a Inglaterra (em dinheiro ou em forma-mercadoria) para fornecer meios de pagamento equivalentes àqueles necessários a uma nova produção (o dinheiro, é claro, volta para o mercado monetário). As lacunas entre a oferta e a demanda efetiva são similares àquelas esboçadas no caso da rotação anual do capital B. Para cobrir a lacuna entre oferta e demanda é preciso recorrer ao mercado monetário ou ao crédito. Mas muita coisa pode dar errado:

Ora, é possível que mesmo na Índia o fio seja novamente vendido a crédito. Com esse crédito, compram-se produtos nesse país que são enviados à Inglaterra, como retorno pelo fio vendido, ou se reemite uma letra de câmbio pela importação. Se essa situação se prolonga, o resultado é uma pressão sobre o mercado monetário indiano, cujo efeito reverso sobre a Inglaterra pode ocasionar aqui uma crise. Por sua vez, a crise, mesmo que vinculada à exportação de metais preciosos para a Índia, provoca neste último país uma nova crise em consequência da falência de firmas inglesas e suas filiais indianas, às quais os bancos indianos concederam créditos. Assim instala-se uma crise simultânea tanto no mercado cuja balança comercial é desfavorável como naquele cuja balança é favorável. Este fenômeno pode ser ainda mais complicado. Por exemplo, a Inglaterra enviou lingotes de prata à Índia, mas como os credores ingleses da Índia cobram agora a quitação dos empréstimos, em breve a Índia terá de reenviar seus lingotes de prata à Inglaterra. (413)

A questão, é claro, é que “o que aparece como crise no mercado monetário expressa, na realidade, anomalias nos próprios processos de produção e de reprodução” (414). Esse é o verdadeiro insight que resulta do estudo dos tempos distintos de rotação, em particular aqueles envolvidos no comércio de longa distância.

Não há nada de novo nas crises monetárias que se repetem de um lugar e de um momento para outro no processo de circulação. É, por assim dizer, da própria natureza do capital agir dessa maneira.”

 

 

O principal objetivo de Marx nesse capítulo introdutório é analisar a economia como uma totalidade social, constituída de uma miríade de atividades individuais, e de que forma essa totalidade é estruturada. Ele inicia o capítulo lembrando a importância da continuidade no fluxo do capital – como o ciclo monetário parece mediar o ciclo produtivo do capital (e vice-versa) num processo de “repetição constante”. O resultado é a “perpétua ressurgência” do capital “como capital produtivo”, condicionada por “suas transformações no processo de circulação”. É muito importante ter em mente a ideia das constantes metamorfoses da forma (de dinheiro em produção, de produção em mercadoria e desta novamente em dinheiro). Tal concepção do capital como processo e fluxo é, no fim das contas, o que torna tão especial o conceito marxiano de economia e capital. Diz ele:

Cada capital singular, no entanto, forma apenas uma fração autonomizada do capital social total – uma fração dotada, por assim dizer, de vida individual –, assim como cada capitalista singular não é mais que um elemento individual da classe capitalista. O movimento do capital social consiste da totalidade dos movimentos de suas frações autonomizadas [...]. (449)

É muito importante ter em mente a independência e a autonomia do capital individual como um traço fundamental do modo de produção capitalista. Não podemos jamais esquecer que a individualidade e a autonomia não são direitos concedidos pela natureza, mas um produto histórico do advento de uma sociedade de mercado, do direito burguês, da monetarização e da mercadorização, todos eles precondições necessárias para o surgimento do modo de produção capitalista. Acho estranho que se diga tão frequentemente que Marx nega a individualidade e a possibilidade de autonomia, quando na verdade ele se refere continuamente à importância delas, e conta como elas se desenvolveram.

Além disso, o consumo produtivo implica a “conversão de capital variável em força de trabalho”. O trabalhador entra em cena como portador da mercadoria força de trabalho (mais uma precondição para o surgimento do modo de produção capitalista). Mas os trabalhadores também compram mercadorias para o seu consumo individual. “Aqui a classe trabalhadora se apresenta como compradora, e os capitalistas como vendedores de mercadorias aos trabalhadores” (450). Os indivíduos dessas duas grandes classes estabelecem relações mútuas como compradores e vendedores, relação muito diferente daquela entre produtores e expropriadores de mais-valor. O consumo da classe trabalhadora (seu consumismo) torna-se um momento importante na realização de valores no mercado. E o trabalhador, como qualquer outro, tem autonomia e poder de escolha como comprador.

O ciclo dos capitais individuais, considerados em seu conjunto como capital social, ou seja, em sua totalidade, compreende não apenas a circulação do capital, mas também a circulação geral das mercadorias. Primordialmente, esta última só pode consistir de dois componentes: 1) o próprio ciclo do capital e 2) o ciclo das mercadorias que entram no consumo individual, ou seja, das mercadorias nas quais o trabalhador gasta seu salário e o capitalista seu mais-valor (ou parte dele). (450)”

 

 

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(A partir daqui refere-se ao Livro III)

 

Se, como o leitor teve o desprazer de descobrir, a análise das conexões internas efetivas do processo capitalista de produção é uma coisa muita intricada e um trabalho muito minucioso; se é uma tarefa da ciência reduzir o movimento visível e meramente aparente ao movimento interno efetivo, é inteiramente evidente que nas mentes dos agentes da produção e da circulação capitalistas surgirão ideias acerca das leis da produção em completa divergência com estas últimas, e que serão apenas a expressão consciente do movimento aparente. As ideias de um comerciante, de um especulador da bolsa, de um banqueiro são necessária e absolutamente falsas. As dos fabricantes são falseadas pelos atos da circulação aos quais o capital é submetido e pela nivelação da taxa geral de lucro. Nessas mentes, a concorrência também assume necessariamente um papel inteiramente falso. (C3, 428)

Perceba o que isso implica. A autoconsciência, a autopercepção e as ideias dos agentes financeiros (assim como as dos capitalistas em geral) são enganosas, não no sentido de que eles sejam loucos (embora, como veremos, esse seja o caso muitas vezes), mas necessariamente iludidos no sentido descrito por Marx em sua teoria do fetichismo. Nessa teoria, a aparência superficial dos signos do mercado (como os preços e os lucros), aos quais temos inevitavelmente de reagir, esconde o conteúdo real de nossas relações sociais. Agimos necessariamente com base nesses signos, não importando se reconhecemos ou não o fato de que eles mascaram outra coisa. Não é surpresa, portanto, encontrar ideias e teorias burguesas que reproduzam os signos enganadores no mundo da consciência e do pensamento. A intenção geral de Marx em O capital é revelar o que se esconde por trás e além dos fetichismos da troca de mercadorias e ver o mundo “de pé”. (...)

A visão de Marx sobre tudo isso tem uma imensa importância em nossa época. Hoje, não só temos de lidar com inúmeras explicações que acreditamos serem confiáveis sobre o que acontece em Wall Street (inclusive as investigações do Congresso), como também somos esmagados por uma retórica que diz que o sistema bancário é tão complicado que apenas os banqueiros especialistas compreendem o que fazem. Por isso, dizem que devemos confiar na expertise deles para lidar com os problemas que eles criaram. Mas, se Marx está certo, não devemos acreditar nas explicações dos banqueiros (ainda que sejam “confiáveis”, no sentido fetichista do termo), e certamente não delegar a eles a tarefa de conceber arranjos institucionais para controlar as contradições inerentes (a maioria das quais é desconhecida) às leis de movimento do capital. Banqueiros e financistas são de certo modo as últimas pessoas em quem se pode confiar, não porque sejam todos fraudadores e mentirosos (embora notoriamente um certo número deles o seja), mas porque muito provavelmente são prisioneiros de suas próprias mistificações e ideias fetichistas. Não é difícil imaginar o que Marx teria dito de Lloyd Blankfein, que, pressionado por uma comissão do Congresso, declarou que seu banco, o Goldman Sachs, estava apenas realizando a obra de Deus.

Os sistemas bancário e financeiro são, segundo Marx, um mundo muito complicado. A insistência de Marx para que se preste atenção apenas àqueles aspectos vinculados às leis gerais de movimento do capital é proveitosa e ao mesmo tempo frustrante. A ciência de Marx procura o movimento interno efetivo em meio ao caos aparente e a inúmeras complicações. Nosso esforço deveria ser procurar não menos do que isso.”

 

 

Numa sociedade camponesa com alto nível de autossuficiência, só serão comercializados os produtos que excederem a satisfação das necessidades básicas, e os comerciantes se verão restringidos a negociar apenas esses excedentes. Seu papel se expande e atinge “um ponto máximo com o desenvolvimento pleno da produção capitalista, em que o produto é produzido simplesmente como uma mercadoria, e não como um meio direto de subsistência”. O capital comercial “apenas medeia o intercâmbio de mercadorias”, mas “compra e vende para muitas pessoas. Vendas e compras são concentradas em suas mãos e, desse modo, a compra e a venda deixam de estar ligadas às necessidades diretas do comprador (como comerciante)”. Embora Marx não diga, o comerciante obviamente procura obter ganho com economias de escala em sua operação.

A riqueza do comerciante “existe sempre como riqueza monetária, e seu dinheiro funciona sempre como capital”, apesar de sua forma ser sempre D-M-D’. Isso significa que a finalidade e o objeto das operações do comerciante tem de ser a busca de ΔM (C3, 443). A questão é: de onde vem esse ΔM, e quais são as implicações de sua apropriação pelo comerciante?

Como afirma Marx:

[não há] absolutamente nenhum problema em compreender por que o capital comercial aparece como a forma histórica do capital muito tempo antes de o capital ter submetido ao seu jugo a própria produção. Sua existência e seu desenvolvimento a um certo nível são uma precondição histórica para o desenvolvimento do modo de produção capitalista (1) como precondição para a concentração da riqueza monetária, e (2) porque o modo de produção capitalista pressupõe a produção para o comércio [...]. Por outro lado, cada desenvolvimento do capital comercial confere à produção um caráter progressivamente orientado para o valor de troca, transformando cada vez mais os produtos em mercadorias.

A existência do capital comercial pode ser uma condição necessária para a transição para o modo de produção capitalista, mas, “tomada em si mesmo, é insuficiente para explicar a transição” (C3, 444).

No contexto da produção capitalista, “o capital comercial é rebaixado de sua existência separada anterior para se tornar um momento particular do investimento do capital em geral, e a equalização dos lucros reduz sua taxa de lucro à média geral. Agora ele funciona simplesmente como o agente do capital produtivo”.”

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