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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Tudo que é sólido desmancha no ar (Parte I), de Marshall Berman

Editora: Companhia de Bolso

ISBN: 978-85-3591-030

Tradução: Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioratti

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 466

Sinopse: Ensaio histórico e literário, este livro de Marshall Berman é uma aventura intelectual clara, concisa e brilhante. Visão dos tempos modernos, investigação do espírito da sociedade e da cultura dos séculos XIX e XX. Berman não hesita diante do desafio de lidar com as mais diversas áreas do saber: crítica literária, ciência econômica e política, arquitetura, urbanismo e estética. Tudo que é sólido desmancha no ar constitui uma instigante sucessão de leituras originais e reveladoras de autores e suas épocas, a começar pelo Fausto de Goethe, passando pelo Manifesto de Marx e Engels, pelos poemas em prosa de Baudelaire, pela ficção de Dostoiévski, até as vanguardas artísticas contemporâneas. Livre de dogmatismo, seu trabalho é o de um humanista apaixonado, um verdadeiro Edmund Wilson do nosso tempo. A edição de bolso inclui prefácio inédito no Brasil.

 

“Existe um tipo de experiência vital — experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida — que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como “modernidade”. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor — mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

As pessoas que se encontram em meio a esse turbilhão estão aptas a sentir-se como as primeiras, e talvez as últimas, a passar por isso; tal sentimento engendrou inúmeros mitos nostálgicos de um pré-moderno Paraíso Perdido. Na verdade, contudo, um grande e sempre crescente número de pessoas vem caminhando através desse turbilhão há cerca de quinhentos anos. Embora muitas delas tenham provavelmente experimentado a modernidade como uma ameaça radical a toda sua história e tradições, a modernidade, no curso de cinco séculos, desenvolveu uma rica história e uma variedade de tradições próprias. (...)

O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização”.”

 

 

Notável e peculiar na voz que Marx e Nietzsche compartilham não é só o seu ritmo afogueado, sua vibrante energia, sua riqueza imaginativa, mas também sua rápida e brusca mudança de tom e inflexão, sua prontidão em voltar-se contra si mesma, questionar e negar tudo o que foi dito, transformar a si mesma em um largo espectro de vozes harmônicas ou dissonantes e distender-se para além de sua capacidade na direção de um espectro sempre cada vez mais amplo, na tentativa de expressar e agarrar um mundo onde tudo está impregnado de seu contrário, um mundo onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Essa voz ressoa ao mesmo tempo como autodescoberta e autotripúdio, como auto-satisfação e auto-incerteza. É uma voz que conhece a dor e o terror, mas acredita na sua capacidade de ser bem-sucedida. Graves perigos estão em toda parte e podem eclodir a qualquer momento, porém nem o ferimento mais profundo pode deter o fluxo e refluxo de sua energia. Irônica e contraditória, polifônica e dialética, essa voz denuncia a vida moderna em nome dos valores que a própria modernidade criou, na esperança — não raro desesperançada — de que as modernidades do amanhã e do dia depois de amanhã possam curar os ferimentos que afligem o homem e a mulher modernos de hoje. Todos os grandes modernistas do século XIX — espíritos heterogêneos como Marx e Kierkegaard, Whitman e Ibsen, Baudelaire, Melvil e, Carlyle, Stirner, Rimbaud, Strindberg, Dostoievski e muitos mais — falam nesse ritmo e nesse diapasão.”

 

 

Ao longo dos anos 1970, à medida que se intensificou o debate em torno da conveniência e dos limites do crescimento econômico e das melhores formas de produzir e conservar energia, ecologistas e defensores do anticrescimento pintaram Fausto como o típico “Homem-Progresso”, que faria o mundo em pedaços, em nome da expansão insaciável, sem perguntar ou sem se preocupar com o que o crescimento ilimitado faria à natureza ou ao homem. Desnecessário dizer que isso é uma absurda distorção da história de Fausto, reduzindo a tragédia a melodrama. (No entanto, assemelha-se ao teatrinho de marionetes fáusticos, visto por Goethe na infância.) O que me parece mais importante é o vácuo intelectual que emerge quando Fausto é deslocado do seu cenário original. Os vários defensores da energia extraída do sol, do vento ou da água, das pequenas fontes de energia, descentralizadas, das “tecnologias intermediárias”, da “equilibrada economia estatal”, são todos virtualmente inimigos do planejamento em larga escala, da pesquisa científica, da inovação tecnológica, da organização complexa.26 Contudo, para que muitos de seus planos e visões sejam de fato adotados por um número significativo de pessoas, seria preciso ocorrer a mais radical redistribuição de poder econômico e político. E, ainda, isso — que obrigaria à dissolução da General Motors, da Exxon, da Con Edison e seus filiados e à redistribuição de todos os seus recursos pelas pessoas — representaria apenas o prelúdio de uma ampla e desconcertantemente complexa reorganização de toda a rede que compõe a vida diária hodierna. O fato é que não há nada de bizarro nos argumentos em torno do anticrescimento e das fontes alternativas de energia, em si, que, na verdade, estão repletos de ideias engenhosas e imaginativas. O bizarro é que, dada a magnitude das tarefas históricas antecedentes, eles deviam exortar-nos, nas palavras de E. F. Schumacher, a “pensar pequeno”. A paradoxal realidade que escapa à maioria desses escritores é que na sociedade moderna só o mais extravagante e sistemático “pensar grande” é capaz de abrir caminho ao “pensar pequeno”.27 Portanto, os defensores da contenção energética, do crescimento limitado e da descentralização deveriam, em vez de abominá-lo, adotar Fausto como sua palavra de ordem.”

27 Esta consciência pode ser encontrada de forma mais clara nos trabalhos de Barry Commoner, The closing circle, 1971, The poverty of power, 1976, e mais recentemente The politics of energy, 1979 (publ. pela Knopf).

 

 

No entanto, quanto mais perto chegamos do que Marx de fato disse, menos sentido faz esse dualismo. Tomemos uma imagem como esta: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. A ambição cósmica e a grandeza visionária da imagem, sua força altamente concentrada e dramática, seus subtons vagamente apocalípticos, a ambiguidade de seu ponto de vista — o calor que destrói é também energia superabundante, um transbordamento de vida —, todas essas qualidades são em princípio traços característicos da imaginação modernista. Representam com exatidão a espécie de coisas que estamos preparados para encontrar em Rimbaud ou Nietzsche, Rilke ou Yeats — “As coisas se desintegram, o centro nada retém”. De fato, essa imagem vem de Marx; não de qualquer esotérico manuscrito juvenil, por muito tempo inédito, mas direto do Manifesto Comunista. Essa imagem coroa a descrição que Marx faz da “moderna sociedade burguesa”. As afinidades entre Marx e os modernistas tornam-se ainda mais claras quando observamos a passagem inteira de onde a imagem foi extraída: “Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens”. A segunda cláusula, de acordo com a qual se destrói tudo o que é sagrado, é mais complexa e interessante do que a convencional assertiva materialista do século XIX segundo a qual Deus não existe. Marx se move na dimensão do tempo, tentando evocar o próprio curso de um drama e um trauma históricos. Ele diz que a aura de santidade subitamente se ausenta e que não podemos compreender a nós mesmos no presente sem nos confrontarmos com essa ausência. A cláusula final — “e os homens são finalmente forçados a enfrentar […]” — não apenas descreve a confrontação com uma realidade perturbadora, mas vivifica-a, forçando-a sobre o leitor — e, de fato, sobre o escritor também, já que “homens”, die Menschen, como diz Marx, estão todos aí juntos, ao mesmo tempo agentes e pacientes do processo diluidor que desmancha no ar tudo que é sólido.”

 

 

A primeira seção do Manifesto, “Burgueses e Proletários”, apresenta uma visão geral do que hoje é chamado o processo de modernização e descreve o cenário daquilo que Marx acredita que venha a ser o seu clímax revolucionário. Aqui Marx toca no sólido âmago institucional da modernidade. Antes de tudo, temos aí a emergência de um mercado mundial. À medida que se expande, absorve e destrói todos os mercados locais e regionais que toca. Produção e consumo — e necessidades humanas — tornam-se cada vez mais internacionais e cosmopolitas. O âmbito dos desejos e reivindicações humanas se amplia muito além da capacidade das indústrias locais, que então entram em colapso. A escala de comunicações se torna mundial, o que faz emergir uma mass media tecnologicamente sofisticada. O capital se concentra cada vez mais nas mãos de poucos. Camponeses e artesãos independentes não podem competir com a produção de massa capitalista e são forçados a abandonar suas terras e fechar seus estabelecimentos. A produção se centraliza de maneira progressiva e se racionaliza em fábricas altamente automatizadas. (No campo acontece o mesmo: fazendas se transformam em “fábricas agrícolas” e os camponeses que não abandonam o campo se transformam em proletários campesinos.) Um vasto número de migrantes pobres são despejados nas cidades, que crescem como num passe de mágica — catastroficamente — do dia para a noite. Para que essas grandes mudanças ocorram com relativa uniformidade, alguma centralização legal, fiscal e administrativa precisa acontecer; e acontece onde quer que chegue o capitalismo. Estados nacionais despontam e acumulam grande poder, embora esse poder seja solapado de forma contínua pelos interesses internacionais do capital. Enquanto isso, trabalhadores da indústria despertam aos poucos para uma espécie de consciência de classe e começam a agir contra a aguda miséria e a opressão crônica em que vivem. Enquanto lemos isso, sentimo-nos pisando terreno familiar; tais processos continuam a ocorrer à nossa volta, e um século de marxismo ajudou-nos a fixar uma linguagem segundo a qual isso faz sentido.

Continuando a ler, porém, se o fizermos com plena atenção, algo estranho começará a acontecer. A prosa de Marx subitamente se torna luminosa, incandescente; imagens brilhantes se sucedem e se desdobram em outras; somos arrastados num ímpeto fogoso, numa intensidade ofegante. Marx não está apenas descrevendo, mas evocando e dramatizando o andamento desesperado e o ritmo frenético que o capitalismo impõe a todas as facetas da vida moderna. Com isso, nos leva a sentir que participamos da ação, lançados na corrente, arrastados, fora de controle, ao mesmo tempo confundidos e ameaçados pela impetuosa precipitação. Após algumas páginas disso, sentimo-nos excitados mas perplexos; sentimos que as sólidas formações sociais à nossa volta se diluíram. No momento em que os proletários fazem enfim sua aparição, o cenário mundial em que eles supostamente desempenhariam seus papéis se desintegrou e se metamorfoseou em algo irreconhecível, surreal, uma construção móvel que se agita e muda de forma sob os pés dos atores. É como se o inato dinamismo da visão diluidora corresse com ele e o carregasse — assim como aos trabalhadores e a nós próprios — para muito além dos limites a princípio pretendidos, a ponto de seu script revolucionário precisar ser inteiramente refeito.

Os paradoxos no interior do Manifesto se mostram praticamente desde o início: especificamente, a partir do momento em que Marx começa a descrever a burguesia. “A burguesia”, afirma ele, “desempenhou um papel altamente revolucionário na história.” O que é surpreendente nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar a burguesia, mas em exaltá--la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase lírica celebração dos trabalhos, ideias e realizações da burguesia. Com efeito, nessas páginas ele exalta a burguesia com um vigor e uma profundidade que os próprios burgueses não seriam capazes de expressar.

O que fizeram os burgueses para merecer a exaltação de Marx? Antes de tudo, eles foram “os primeiros a mostrar do que a atividade humana é capaz”. Marx não quer dizer que eles tenham sido os primeiros a celebrar a ideia da vita activa, uma postura ativista diante do mundo. Isso tem sido um tema central na cultura do Ocidente desde a Renascença; adquiriu novas profundidades e ressonâncias no próprio século de Marx, na era do Romantismo e da Revolução, de Napoleão, Byron e o Fausto de Goethe. O próprio Marx desenvolverá o tema em novas direções,4 e este continuará evoluindo até o tempo presente. No Manifesto, a ideia de Marx é que a burguesia efetivamente realizou aquilo que poetas, artistas e intelectuais modernos apenas sonharam, em termos de modernidade. Por isso, a burguesia “realizou maravilhas que ultrapassam em muito as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas”; “organizou expedições que fazem esquecer todas as migrações e as cruzadas anteriores”. Sua vocação para a atividade se expressa em primeiro lugar nos grandes projetos de construção física — moinhos e fábricas, pontes e canais, ferrovias, todos os trabalhos públicos que constituem a realização final de Fausto — que são as pirâmides e as catedrais da Idade Moderna. Em seguida, há os enormes movimentos de pessoas — para cidades, para fronteiras, para novas terras —, que a burguesia algumas vezes inspirou, algumas vezes forçou com brutalidade, algumas vezes subsidiou e sempre explorou em seu proveito. Marx, num parágrafo comovente e evocativo, transmite o ritmo e o drama do ativismo burguês:

A burguesia, em seu reinado de apenas um século, gerou um poder de produção mais massivo e colossal do que todas as gerações anteriores reunidas. Submissão das forças da natureza ao homem, maquinário, aplicação da química à agricultura e à indústria, navegação a vapor, ferrovias, telegrafia elétrica, esvaziamento de continentes inteiros para o cultivo, canalização de rios, populações inteiras expulsas de seu habitat — que século, antes, pôde sequer sonhar que esse poder produtivo dormia no seio do trabalho social? (pp. 473-5)

Marx não é o primeiro, nem o último, a celebrar os triunfos da moderna tecnologia burguesa e sua organização social. Mas sua louvação é peculiar, tanto no que enfatiza como no que omite. Embora se apresente como um materialista, Marx não está primordialmente interessado nas coisas criadas pela burguesia. O que lhe interessa são os processos, os poderes, as expressões de vida humana e energia: homens no trabalho, movendo-se, cultivando, comunicando-se, organizando e reorganizando a natureza e a si mesmos — os novos e interminavelmente renovados meios de atividade que a burguesia traz à luz. Marx não se detém demasiado em invenções e inovações particulares, por si mesmas (na tradição que vai de Saint-Simon a McLuhan); o que o atrai são os processos ativos e generativos através dos quais uma coisa conduz a outra, sonhos se metamorfoseiam em projetos, fantasias em balanço, as ideias mais exóticas e extravagantes se transformam continuamente em realidades (“populações inteiras expulsas de seu habitat”), ativando e nutrindo novas formas de vida e ação.

A ironia do ativismo burguês, como o vê Marx, está em que a burguesia é obrigada a se fechar para as suas mais ricas possibilidades, que só chegam a ser vislumbradas por aqueles que rompem com o seu poder. Apesar de todos os maravilhosos meios de atividade desencadeados pela burguesia, a única atividade que de fato conta, para seus membros, é fazer dinheiro, acumular capital, armazenar excedentes; todos os seus empreendimentos são apenas meios para atingir esse fim, não têm em si senão um interesse transitório e intermediário. Os poderes e processos ativos, que tanto significam para Marx, não passam de meros incidentes e subprodutos para os seus agentes. Não obstante, os burgueses se estabeleceram como a primeira classe dominante cuja autoridade se baseia não no que seus ancestrais foram, mas no que eles próprios efetivamente fazem. Eles produziram novas imagens e paradigmas, vívidos, da vida boa como a vida de ação. Provaram que é possível, através da ação organizada e concertada, realmente mudar o mundo.

Ora, para constrangimento dos burgueses, eles não podem olhar de frente as estradas que abriram: as grandes e amplas perspectivas podem converter-se em abismos. Eles só podem continuar a desempenhar seu papel revolucionário se seguirem negando suas implicações últimas e sua profundidade. Mas pensadores radicais, e trabalhadores, estão livres para vislumbrar aonde conduzem as estradas e seguir por elas. Se a vida boa é a vida de ação, por que o escopo das atividades humanas deve ser limitado àquelas que dão lucro? E por que deveria o homem moderno, que viu do que é capaz a atividade humana, aceitar passivamente a estrutura da sociedade, tal como se lhe oferece? Já que a ação organizada e concertada pode mudar o mundo de tantas maneiras, por que não organizar, trabalhar e lutar juntos para mudá-lo ainda mais? A “atividade revolucionária, atividade prático-crítica” que destrona o domínio burguês será a expressão de energias ativas e ativistas que a própria burguesia deixou em liberdade. Marx começa por exaltar a burguesia, não por enterrá-la; mas aquilo mesmo que, nela, é motivo de exaltação a levará, no fim, a ser enterrada.

A segunda grande realização burguesa foi liberar a capacidade e o esforço humanos para o desenvolvimento: para a mudança permanente, para a perpétua sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal e social. Esse esforço, Marx o mostra, está embutido no trabalho e nas necessidades diárias da economia burguesa. Quem quer que esteja ao alcance dessa economia se vê sob a pressão de uma incansável competição, seja do outro lado da rua, seja em qualquer parte do mundo. Sob pressão, todos os burgueses, do mais humilde ao mais poderoso, são forçados a inovar, simplesmente para manter seu negócio e a si mesmos à tona; quem quer que deixe de mudar, de maneira ativa, tornar-se-á vítima passiva das mudanças draconianamente impostas por aqueles que dominam o mercado. Isso significa que a burguesia, tomada como um todo, “não pode subsistir sem constantemente revolucionar os meios de produção”. Mas as forças que moldam e conduzem a moderna economia não podem ser compartimentalizadas e separadas da totalidade da vida. A intensa e incansável pressão no sentido de revolucionar a produção tende a extrapolar, impondo transformações também naquilo que Marx chama de “condições de produção” (ou “relações produtivas”), “e, com elas, em todas as condições e relações sociais”.5

Nesse ponto, impelido pelo desesperado dinamismo que está tentando apreender, Marx dá um grande salto imaginativo:

O constante revolucionar da produção, a ininterrupta perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza e agitação distinguem a época burguesa de todas as épocas anteriores. Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de ideias e opiniões veneráveis, são descartadas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens.

Em relação a isso tudo, como ficamos nós, os membros da “moderna sociedade burguesa”? Ficamos numa situação estranha e paradoxal. Nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter essa sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio de que dispomos para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.

Que espécie de pessoas produz essa revolução permanente? Para que as pessoas sobrevivam na sociedade moderna, qualquer que seja a sua classe, suas personalidades necessitam assumir a fluidez e a forma aberta dessa sociedade. Homens e mulheres modernos precisam aprender a aspirar à mudança: não apenas estar aptos a mudanças em sua vida pessoal e social, mas ir efetivamente em busca das mudanças, procurá-las de maneira ativa, levando-as adiante. Precisam aprender a não lamentar com muita nostalgia as “relações fixas, imobilizadas” de um passado real ou de fantasia, mas a se deliciar na mobilidade, a se empenhar na renovação, a olhar sempre na direção de futuros desenvolvimentos em suas condições de vida e em suas relações com outros seres humanos.

Marx absorve esse ideal desenvolvimentista da cultura humanística alemã de sua juventude, do pensamento de Goethe e Schiller e seus sucessores românticos. Esse tema, e seus desdobramentos, ainda muito ativo em nossos dias — Erik Erikson é seu mais famoso expoente vivo —, talvez seja a mais profunda e duradoura contribuição germânica à cultura mundial. Marx é perfeitamente cônscio de seus vínculos com esses escritores, a quem ele cita e faz alusões, com frequência, bem como à sua tradição intelectual. Porém, ele compreendeu aquilo que escapou à maioria de seus predecessores — a grande exceção é o velho Goethe, autor da segunda parte do Fausto: que o ideal humanístico do autodesenvolvimento se dá a partir da emergente realidade do desenvolvimento econômico burguês. Por isso, por causa de todas as suas invectivas contra a economia burguesa, Marx adota com entusiasmo a estrutura de personalidade produzida por essa economia. O problema do capitalismo é que, aqui como em qualquer parte, ele destrói as possibilidades humanas por ele criadas. Estimula, ou melhor, força o autodesenvolvimento de todos, mas as pessoas só podem desenvolver-se de maneira restrita e distorcida. As disponibilidades, impulsos e talentos que o mercado pode aproveitar são pressionados (quase sempre prematuramente) na direção do desenvolvimento e sugados até a exaustão: tudo o mais, em nós, tudo o mais que não é atraente para o mercado é reprimido de maneira drástica, ou se deteriora por falta de uso, ou nunca tem uma chance real de se manifestar.6

A solução irônica e feliz dessa contradição ocorrerá, diz Marx, quando “o desenvolvimento da moderna indústria se separar do próprio solo, logo abaixo dos seus pés, em que a burguesia produz e se apropria de produtos”. A vida e a energia interiores do desenvolvimento burguês acabarão por alijar do processo a classe que pioneiramente os trouxe à vida. Podemos ver esse movimento dialético tanto na esfera do desenvolvimento pessoal como na do econômico: em um sistema no qual todas as relações são voláteis, como podem as formas capitalistas de vida — propriedade privada, trabalho assalariado, valor de troca, a insaciável busca de lucro — subsistir isoladas? Quando os desejos e a sensibilidade das pessoas, de todas as classes, se tornam abertos a tudo e insaciáveis, sintonizados com a permanente sublevação em todas as esferas da vida, haverá alguma coisa que consiga mantê-los fixos e imobilizados em seus papéis burgueses? Quanto mais furiosamente a sociedade burguesa exortar seus membros a crescer ou perecer, mais esses vão ser impelidos a fazê-la crescer de modo desmesurado, mais furiosamente se voltarão contra ela como uma draga impetuosa, mais implacavelmente lutarão contra ela, em nome de uma nova vida que ela própria os forçou a buscar. Aí então o capitalismo entrará em combustão pelo calor das suas próprias incandescentes energias. Após a Revolução, “no curso do desenvolvimento”, depois que o bem--estar for redistribuído, depois que os privilégios de classe forem eliminados, depois que a educação for livre e universal, e os trabalhadores puderem controlar os meios pelos quais o trabalho será organizado, então — assim profetiza Marx no clímax do Manifesto —, finalmente,

em lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seu antagonismo de classes, teremos uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição para o livre desenvolvimento de todos. (p. 353)

Então a experiência do autodesenvolvimento, livre das pressões e distorções do mercado, poderá prosseguir livre e espontaneamente; em vez do pesadelo em que foi transformado pela sociedade burguesa, poderá tornar-se fonte de alegria e beleza para todos.

Gostaria de recuar para um pouco antes do Manifesto Comunista, por um breve momento, a fim de mostrar como é crucial para Marx o ideal desenvolvimentista, dos primeiros ao último dos seus escritos. Seu ensaio de juventude sobre o “Trabalho alienado”, escrito em 1844, exalta — como a verdadeira alternativa humana ao trabalho alienado — outro tipo de trabalho que habilitará o homem a “desenvolver livremente suas energias físicas e mentais”.7 Em A ideologia alemã (1845-6), o objetivo do comunismo é “o desenvolvimento de toda a capacidade dos indivíduos enquanto tais”. Porque “somente em comunidade com os demais cada indivíduo consegue os meios para cultivar seus próprios dons em todas as direções; só em comunidade, portanto, é possível a liberdade pessoal”.8 No primeiro volume de O capital, no capítulo sobre “Maquinário e indústria moderna”, é essencial para o comunismo transcender a divisão de trabalho capitalista:

[…] o indivíduo parcialmente desenvolvido, meramente portador de uma função social especializada, deve ser substituído pelo indivíduo plenamente desenvolvido, adaptável a várias atividades, pronto para aceitar qualquer mudança de produção, o indivíduo para quem as diferentes funções sociais que desempenha são apenas formas variadas de livre manifestação dos seus próprios poderes, naturais e adquiridos.9

Essa visão do comunismo é inquestionavelmente moderna, antes de mais nada em seu individualismo, porém mais ainda em seu ideal de desenvolvimento como forma de vida boa. Aqui Marx está mais próximo de alguns de seus inimigos burgueses e liberais que dos expoentes tradicionais do comunismo, que, desde Platão e os Padres da Igreja, valorizaram o autossacrifício, desencorajaram ou condenaram a individualidade e sonharam com um projeto tal em que só a luta e o esforço comuns atingiriam o almejado fim. Uma vez mais, encontramos em Marx mais receptividade para o estado atual da sociedade burguesa do que nos próprios membros e defensores da burguesia. Ele vê na dinâmica do desenvolvimento capitalista — quer no desenvolvimento de cada indivíduo, quer no da sociedade como um todo — uma nova imagem da vida boa: não uma vida de perfeição definitiva, não a incorporação das proscritas essências estáticas, mas um processo de crescimento contínuo, incansável, aberto, ilimitado. Ele espera, portanto, cicatrizar as feridas da modernidade através de uma modernidade ainda mais plena e profunda.10

4 V. a imagem de Marx (1845) da “atividade prático-crítica, atividade revolucionária” (Teses sobre Feuerbach, nos 1-3; republ. em Marx-Engels reader, pp. 143-5). Essa imagem foi a base de toda uma literatura, surgida no século XX, que é ao mesmo tempo tática, ética e mesmo metafísica, orientada para a procura da síntese ideal entre teoria e prática no modelo marxista da “boa vida”. Os representantes mais característicos dessa corrente são Georg Lukács (especialmente em História e consciência de classe, 1919-23) e Antonio Gramsci.

5 A palavra alemã aqui é Verhältnisse, que pode ser traduzida por “condições”, “vínculos”, “relações”, “circunstâncias”, “envolvimentos” etc. Em passagens distintas deste ensaio será traduzida de diferentes modos, conforme se adapte melhor ao contexto.

6 O tema do desenvolvimento universal inevitável, mas deformado pelos imperativos da competitividade, foi primeiramente formulado por Rousseau em Discurso sobre a origem da desigualdade. V. o livro de minha autoria, Politics of authenticity, especialmente pp. 145-59.

7 Retirado de “Economic and philosophical manuscripts of 1844”, trad. Martin Milligan; republ. em MER, p. 74. A palavra alemã que pode ser traduzida por “mental” ou por “espiritual” é geistige.

8 The German ideology, parte I trad. Roy Pascal; MER, pp. 191-7.

9 O Capital, v. I cap. 15, par. 9, trad. Charles Moore e Edward Aveling; MER, pp. 413-4.

10 Modernity and self-development in Marx’s later writings. Em Grundrisse, os livros de anotações de 1857-8 que constituíram a base de O capital, Marx faz uma distinção entre “a época moderna”, ou “o mundo moderno”, e “seu limitado modelo burguês”. Na sociedade comunista, o limitado modelo burguês será desnudado, de forma que toda a potencialidade moderna possa se realizar. Ele inicia essa discussão estabelecendo um contraste entre a visão clássica (especificamente a aristotélica) e a visão moderna de economia e sociedade. “A visão antiga, na qual o ser humano aparece como a finalidade da produção, parece ser bastante nobre quando contrastada com a do mundo moderno, onde a produção aparece como o objetivo final da humanidade, e a riqueza como o objetivo da produção.”

Diz Marx: “De fato, quando o limitado modelo burguês é desnudado, o que vem a ser a riqueza senão a universalidade das necessidades individuais, capacidades, prazeres, forças produtivas etc., criadas através do intercâmbio universal? O completo desenvolvimento do domínio humano sobre as forças da natureza, tanto as da natureza externa quanto as da própria natureza humana? A realização plena de suas potencialidades criativas, sem nenhum outro pressuposto a não ser o prévio desenvolvimento histórico, o que faz com que isso seja a totalidade do desenvolvimento, isto é, o desenvolvimento de toda a potencialidade humana como um fim em si mesmo, e não como algo a ser medido em função de algum modelo predeterminado? Em que parte ele deixa de se reproduzir a si mesmo, enquanto especificidade, para produzir uma totalidade? Esforça-se não por manter seu status, mas por se projetar no vir-a-ser?”.

Em outras palavras, Marx quer uma busca realmente ilimitada de riqueza para todos: não riqueza em dinheiro — “o limitado modelo burguês” —, mas a riqueza de desejos, experiências, capacidade, sensibilidade, transformação e desenvolvimento. O fato de Marx questionar essas formulações pode sugerir certa hesitação a respeito desse ponto de vista. Marx fecha a discussão retornando à distinção entre antigos e modernos modos e objetivos de vida. “O infantil mundo da Antiguidade […] é realmente mais nobre (que o mundo moderno) no que diz respeito a formas fechadas e limites preestabelecidos. Aí temos a satisfação, mas a partir de um ponto de vista limitado, enquanto no mundo moderno não há satisfação alguma, ou onde ele aparece satisfeito consigo mesmo é vulgar e desprezível” Grundrisse: introduction to the critique of political economy, trad. Martin Nicolaus (Penguin, 1973), pp. 487-8. Na última frase, Marx estabelece a sua variante para a barganha do Fausto de Goethe: em troca da possibilidade do ilimitado desenvolvimento pessoal, o homem moderno (comunista) abrirá mão da esperança de satisfação, que requer modelos pessoais e sociais fechados, fixos e limitados. A burguesia moderna “é vulgar e desprezível” porque “parece satisfeita consigo mesma”, porque não apreende as possibilidades humanas que suas próprias atividades criaram.

Em O capital, cap. 15, a passagem citada no texto (nota 9) que termina com “o indivíduo plenamente desenvolvido” começa com uma distinção entre “a indústria moderna” e “seu modelo capitalista”, modelo no qual ela aparece pela primeira vez. “A indústria moderna nunca vê o modelo vigente de processo produtivo como definitivo. Sua base técnica é revolucionária, enquanto todos os modos de produção anteriores eram essencialmente conservadores. Através de maquinaria, processos químicos e outros métodos, está continuamente causando mudanças, não somente nas bases técnicas de produção, mas também nas funções do trabalhador e nas relações sociais decorrentes do processo de trabalho. Ao mesmo tempo isso também revoluciona a divisão de trabalho” (MER, p. 413). Nesse ponto Marx cita, em nota de rodapé, a passagem do Manifesto que começa com “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os meios de produção”, e termina com “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Aqui, como no Manifesto e em todos os outros lugares, o processo capitalista de produção e troca representa a força que modernizou o mundo; agora, no entanto, o capitalismo tornou-se um empecilho, um retardador da modernidade, e deve continuar nessa direção para que a permanente troca da indústria moderna continue ocorrendo e o “indivíduo plenamente realizado” floresça.

Veblen detectara essa dualidade em The theory of business enterprise, 1904, onde distingue entre um comércio mesquinho e, ligado a ele, uma indústria aberta e revolucionária. Mas falta a Veblen o interesse que tem Marx pela relação entre o desenvolvimento da indústria e o desenvolvimento do indivíduo.

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