Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-100-0
Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: Ver Parte
I
“O que torna esse problema pior para todos
aqueles que procuram uma mudança significativa nas margens do sistema político
estabelecido é que este último pode reivindicar para si a legitimidade
constitucional genuína em seu modo presente de funcionamento, com base na
inversão historicamente constituída do estado de coisas efetivo da reprodução
material. Pois, visto que o capitalista não é somente a “personificação do
capital”, mas funciona simultaneamente como a personificação do caráter social
do trabalho, da produção total como tal”53, o sistema pode
alegar representar a força produtiva vitalmente necessária perante os
indivíduos como a base de sua existência contínua, incorporando o interesse de
todos. Desse modo, o capital se afirma não apenas como o poder de facto,
mas também como poder de jure da sociedade, em sua qualidade de condição
necessária objetivamente dada da reprodução societária e, portanto, de
fundamento constitucional de sua própria ordem política. O fato de que a
legitimidade constitucional do capital é historicamente fundada na expropriação
implacável das condições de reprodução sociometabólica – os meios e materiais
do trabalho – das mãos dos produtores e, por conseguinte, a pretensa “constitucionalidade”
do capital (assim como a origem de todas as constituições) é inconstitucional,
essa verdade intragável desvanece na névoa de um passado remoto. As “forças
produtivas sociais do trabalho ou as forças produtivas do trabalho
social se desenvolvem pela primeira vez historicamente com o modo
especificamente capitalista de produção, e por essa razão aparecem como algo imanente
à relação de capital e inseparável dela”54.
É assim que o modo de reprodução
sociometabólica do capital se torna eternizado e legitimado como um
sistema licitamente imutável. A contestação legítima é admissível apenas em
relação a alguns aspectos menores da estrutura geral inalterável. O
estado de coisas real no plano da reprodução socioeconômica – isto é, a força
produtiva do trabalho efetivamente posta em exercício e sua absoluta
necessidade para assegurar a reprodução do próprio capital – desaparece da
vista. Em parte pela ignorância com relação à origem histórica, que está muito
longe de poder legitimar-se, da “acumulação primitiva” do capital e a
concomitante expropriação, frequentemente violenta, da propriedade como
precondição do modo presente de funcionamento do sistema; e em parte pela
natureza mistificadora das relações produtivas e distributivas estabelecidas.
Pois as condições objetivas de trabalho não aparecem subsumidas ao
trabalhador; antes, este aparece subsumido a elas. Capital emprega trabalho.
Mesmo essa relação em sua simplicidade é uma personificação das coisas e uma
reificação das pessoas55.
Nada disso pode ser desafiado e corrigido no
interior da estrutura de reforma política parlamentar. Seria bastante absurdo
esperar a abolição da personificação das coisas e reificação das pessoas
por decreto político e igualmente absurdo esperar a proclamação de tal reforma
pretendida no interior da estrutura das instituições políticas do capital. Pois
o sistema do capital não pode funcionar sem a perversa subversão da relação
entre pessoas e coisas: as forças alienadas e reificadas do capital que dominam
as massas do povo. De maneira semelhante, seria um milagre se os trabalhadores
que confrontam o capital no processo de trabalho como “trabalhadores isolados”
pudessem readquirir o domínio sobre as forças produtivas sociais de seu
trabalho por algum decreto político ou mesmo por uma série completa de reformas
parlamentares aprovadas sob a ordem de controle sociometabólico do capital. Pois,
nessas questões, não pode haver meio conflito irreconciliável de ou um
ou outro relativo aos interesses materiais.
Tampouco pode o capital abdicar de suas
forças sociais produtivas – usurpadas – em favor do trabalho, ou compartilhá-las
com o trabalho, em virtude de um “compromisso político” desejoso, mas fundamentalmente
fictício. Pois elas constituem o poder controlador geral da reprodução
societária na forma do domínio da riqueza sobre a sociedade. Assim, é
impossível escapar, no âmbito do metabolismo social fundamental, à severa
lógica de um ou outro. Pois, ou a riqueza, na forma do capital, continua
a controlar a sociedade humana, levando-a à iminência da autodestruição, ou a
sociedade de “produtores associados” aprende a controlar a riqueza alienada e
reificada, com forças produtivas emergentes do trabalho social autodeterminado
de seus membros individuais – porém não mais isolados.
O capital é a força extraparlamentar por
excelência cujo poder de controle sociometabólico não pode de maneira
alguma ser restringido pelo parlamento. É por essa razão que o único modo de
representação política compatível com o modo de funcionamento do capital é
aquele que efetivamente nega a possibilidade de contestar seu poder
material. E, precisamente porque o capital é a força extraparlamentar por
excelência, não tem nada a temer das reformas que podem ser aprovadas no
interior de sua estrutura política parlamentar.
Uma vez que a questão vital sobre a qual tudo
o mais se articula é que “as condições objetivas do trabalho não aparecem
subsumidas ao trabalhador”, mas, ao contrário, “este aparece subsumido a elas”,
nenhuma mudança significativa é plausível sem enfrentar essa questão tanto em
uma forma de política capaz de equiparar-se aos poderes e modos de ação extraparlamentares
do capital, quanto no âmbito da reprodução material. Assim, o único
desafio que poderia afetar de maneira sustentável o poder do capital seria
aquele que tivesse simultaneamente o objetivo de assumir as funções produtivas
chave do sistema e adquirir o controle sobre os processos políticos de decisão
correspondentes em todas as esferas, em lugar de restringir-se de modo
incorrigível pela limitação circular da ação política institucionalmente
legitimada de legislação parlamentar.56
Há muitas críticas – bem justificadas – de
personagens políticas anteriormente de esquerda e de seus partidos ora
plenamente acomodados nos debates políticos das últimas décadas. Entretanto, o
que é problemático nesses debates é que, pela ênfase exagerada no papel da
ambição e do fracasso pessoal, com frequência continuam a divisar a retificação
da situação no interior da mesma estrutura política institucional que, na
verdade, favorece imensamente as criticadas “traições pessoais” e os dolorosos “desencaminhamentos
partidários”. Infelizmente, porém, as mudanças de governo e pessoal defendidas
e esperadas tendem a reproduzir os mesmos resultados deploráveis.
Nada disso deveria causar surpresa. As razões
pelas quais as instituições políticas ora estabelecidas resistem com êxito a
mudanças significativas para melhor é que elas mesmas são parte do problema
e não da solução. Pois, em sua natureza imanente, elas são a
incorporação das determinações e contradições estruturais subjacentes pela qual
o Estado capitalista moderno – com sua ubíqua rede de componentes burocráticos
– se articulou e estabilizou no curso dos últimos quatro séculos. Naturalmente,
o Estado foi formado não como um resultado mecânico unilateral, mas por
meio de sua inter-relação recíproca necessária com o fundamento material
do surgimento histórico do capital, não conforme modelado apenas por este
último, mas também como algo que o modela ativamente tanto quanto
historicamente possível nas circunstâncias vigentes – bem como mutáveis, precisamente
em virtude dessa inter-relação.”
53 Karl Marx, “Economic Manuscripts of 1861-63”, em Karl Marx e
Friedrich Engels, Collected Works, cit., v. 34, p. 457. [Todas as passagens citadas dessa obra se encontram traduzidas de
maneira similar em Teorias da mais-valia (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1980), v. 1, capítulo “Produtividade do capital. Trabalho produtivo
e improdutivo” (p. 384-406), de que extraímos a citação abaixo. Entretanto, à
exceção do trecho abaixo, as passagens estão ordenadas de modo diverso e contêm
expressões diferentes das adotadas na tradução citada por Mészáros. Por essa
razão, optamos por traduzi-las e manter a referência da obra utilizada por
Mészáros. Contudo, para uma apreensão do texto completo a que Mészáros se
refere é possível recorrer a essa versão em português – N.T.] Outra importante
qualificação que se deve acrescentar aqui é que “O trabalho produtivo – como
trabalho que produz valor – confronta, por isso, o capital sempre na forma de
força de trabalho individual, do trabalhador isolado, sejam quais forem
as combinações sociais de que participem esses trabalhadores no processo de
produção. Assim, enquanto o capital representa perante o trabalhador a força
produtiva social do trabalho, o trabalho produtivo representa sempre perante o
capital nada mais que o trabalho do trabalhador isolado” (Karl Marx, Teorias
da mais-valia, cit., v. 1, p. 389. grifos de Marx). [Mészáros dá como
referência aqui a supracitada edição dos “Economic Manuscripts of 1861-63. v.
34. p. 460 – N. T.]
54 Karl Marx, “Economic Manuscripts of 1861-63”, cit., p. 456.
55 Ibidem. p. 457.
56 Extraído de “A necessidade de se contrapor
à força extraparlamentar do capital”, seção 18.4 de Para além do capital,
cit., p. 821-60.
“Obviamente, uma transformação dessa
magnitude não pode realizar-se sem a dedicação consciente de um
movimento revolucionário à mais desafiadora tarefa histórica, capaz de
sustentar-se contra toda adversidade, já que seu engajamento tende a despertar
hostilidade feroz de todas as maiores forças do sistema do capital. Por essa
razão, o movimento em questão não pode ser simplesmente um partido político
orientado a fim de assegurar concessões parlamentares, que via de regra acabam
por anular-se mais cedo ou mais tarde pelos interesses extraparlamentares
autovantajosos da ordem estabelecida vigente também no parlamento. O movimento
socialista não pode obter êxito diante da hostilidade dessas forças a menos que
seja rearticulado como um movimento revolucionário de massa,
conscientemente ativo em todas as formas de luta social e política:
local, nacional e global/internacional, utilizando plenamente as oportunidades
parlamentares quando disponíveis, por mais limitadas que possam ser, sobretudo
sem se esquivar de asseverar as demandas necessárias da desafiadora ação
extraparlamentar.
O desenvolvimento desse movimento é muito
importante para o futuro da humanidade na presente conjuntura histórica. Pois,
sem um desafio extraparlamentar estrategicamente orientado e sustentado, os
partidos que se alternam no governo podem continuar a funcionar como álibis
recíprocos convenientes para o fracasso estrutural necessário do sistema com
relação ao trabalho, restringindo assim efetivamente o papel da oposição de
classe à sua atual posição de pensamento posterior inconveniente, mas marginalizável,
do sistema parlamentar do capital. Assim, em relação a ambos os domínios de
reprodução material e político, a constituição de um movimento socialista
extraparlamentar de massa estrategicamente viável – em conjunção com as
formas tradicionais de organizações políticas do trabalho, ora
irremediavelmente desencaminhadas, que precisam com urgência da pressão e do
apoio radicalizantes de tais forças extraparlamentares – é uma precondição
vital para a contraposição ao poder extraparlamentar maciço do capital.
O papel de um movimento revolucionário
extraparlamentar é duplo. Por um lado, tem de formular e defender do ponto de
vista organizacional os interesses estratégicos do trabalho como uma
alternativa sociometabólica abrangente. O sucesso desse papel só é plausível se
as forças organizadas do trabalho confrontarem de modo consciente e negarem
forçosamente, em termos práticos, as determinações estruturais da ordem reprodutiva
material estabelecida, manifesta na relação de capital e na concomitante
subordinação do trabalho no processo socioeconômico, em vez de ajudarem de
maneira mais ou menos complacente a reestabilizar o capital em crise,
como invariavelmente aconteceu em importantes conjunturas do passado
reformista. Ao mesmo tempo, por outro lado, o poder político aberto ou oculto
do capital, atualmente predominante no parlamento, precisa ser, e pode ser,
desafiado – ainda que apenas em um grau limitado – por meio da pressão que as
formas extraparlamentares de ação podem exercer sobre o legislativo e o executivo.
A ação extraparlamentar só pode ser efetiva
se enfrentar conscientemente os aspectos centrais e determinações sistêmicas do
capital, atravessando o labirinto das aparências fetichistas pelas quais eles
dominam a sociedade. Pois a ordem estabelecida afirma materialmente seu poder
primordialmente na, e por meio da, relação de capital, perpetuada com
base na inversão mistificadora da relação produtiva real das classes hegemônicas
alternativas na sociedade capitalista. Como já mencionado, essa inversão possibilita
ao capital usurpar o papel de produtor que, nas palavras de Marx, “emprega
trabalho”, graças à enganadora “personificação das coisas e a reificação das
pessoas”, e assim legitimar-se como a precondição inalterável para a realização
do “interesse de todos”. Uma vez que o conceito de interesse de todos realmente
importa, ainda que seja hoje usado de maneira fraudulenta para camuflar a
negação total de sua substância à maioria esmagadora das pessoas pelas
pretensões formais/legais de justiça e igualdade”, não pode haver alternativa
significativa e historicamente sustentável à ordem social estabelecida sem a
superação radical da própria relação de capital oniabrangente. Essa é uma
demanda sistêmica inadiável. As demandas parciais podem e devem ser defendidas
pelos socialistas se forem vinculadas à demanda absolutamente fundamental de
superar a relação de capital, que atinge o cerne do problema.
Essa demanda está em nítido contraste com o
que os ideólogos fiéis e as personagens políticas do capital permitem hoje às
forças de oposição. Seu principal critério para excluir a possibilidade das
demandas parciais importantes do trabalho é precisamente seu potencial de
afetar de modo negativo a estabilidade do sistema. Assim, por exemplo, mesmo a “ação
industrial” local “politicamente motivada” é categoricamente rejeitada (mesmo
como ilegal) “em uma sociedade democrática”, porque sua execução pode ter implicações
negativas para o funcionamento normal do sistema. O papel dos partidos
reformistas, ao contrário, é bem-vindo, porque suas demandas ou bem ajudam a
reestabilizar o sistema em tempos difíceis – por meio da intervenção industrial
de encolhimento de salário (com o lema da “necessidade de apertar o cinto”) e
de acordos políticos/legislativos de refreamento dos sindicatos – e assim
contribuem para a dinâmica da expansão renovada do capital, ou são ao menos “neutras”,
no sentido de que em algum ponto do futuro, ainda que não no momento de sua
primeira formulação, podem integrar-se na estrutura estipulada da “normalidade”.
A negação revolucionária do sistema do
capital é concebível apenas por meio de uma intervenção organizacional
estrategicamente sustentada e consciente. Embora a recusa tendenciosamente
unilateral da “espontaneidade” pela presunção vanguardista sectária deva ser
tratada com a crítica que merece, não é menos prejudicial menosprezar a
importância da consciência revolucionária e das exigências organizacionais de
seu êxito. O fracasso histórico de grandes partidos da Terceira Internacional,
que uma vez professou objetivos leninistas e revolucionários, como os partidos
comunistas italiano e francês, não deve desviar nossa atenção da importância de
recriar, sobre um fundamento muito mais seguro, as organizações políticas pelas
quais a transformação socialista vital de nossas sociedades pode realizar-se no
futuro. Evidentemente, uma avaliação crítica impetuosa do que deu errado é uma
parte importante desse processo de renovação. O que já é plenamente claro é que
a descida desintegradora desses partidos na ladeira escorregadia da armadilha
parlamentar proporciona uma importante lição para o futuro.
Hoje, apenas dois modos abrangentes de
controle sociometabólico são plausíveis: a ordem reprodutiva de exploração de
classe do capital – imposta a todo custo pelas “personificações do capital” – que
falhou miseravelmente com a humanidade em nosso tempo, levando-a à beira da
autodestruição. E a outra ordem, diametralmente oposta à estabelecida: a alternativa
hegemônica sociometabólica do trabalho não como classe particular, mas como
a condição de existência universal de cada indivíduo na sociedade. Uma
sociedade administrada por eles com base na igualdade substantiva que
lhes permita desenvolver suas potencialidades produtivas humanas e universais à
plenitude, em harmonia com as exigências metabólicas da ordem natural, em lugar
de se curvarem à destruição da natureza e com ela também à sua própria, como o
modo de controle sociometabólico incontrolável do capital está agora engajado
em fazer. É por isso que sob as condições presentes da crise estrutural do
capital nada que não seja a alternativa hegemônica abrangente ao domínio
do capital – decifrada como a complementaridade dialética das demandas
imediatas particulares, mas não marginalizáveis, e dos objetivos
abrangentes da transformação sistêmica pode constituir o programa válido do
movimento organizado revolucionário consciente, por todo o mundo.
Por certo, o movimento revolucionário
organizado consciente não pode encerrar-se na estrutura política restritiva do
parlamento dominado pelo poder extraparlamentar do capital. Tampouco pode ter
êxito como uma organização vanguardista orientada para si mesma. Ele pode
definir-se com êxito por meio de dois princípios orientadores vitais. Primeiro,
mencionado há pouco, a elaboração de seu próprio programa extraparlamentar
orientado aos objetivos da alternativa hegemônica abrangente para assegurar uma
transformação sistêmica fundamental. E, segundo, igualmente importante em
termos organizacionais estratégicos, seu envolvimento ativo na constituição do
necessário movimento de massa extraparlamentar, como o portador da
alternativa revolucionária capaz de mudar também o processo legislativo de um
modo qualitativo, passo primor dial na direção do fenecimento do Estado.
Somente por meio desses desenvolvimentos organizacionais que envolvem
diretamente também as grandes massas do povo, pode-se divisar a realização da
tarefa histórica de instituir a alternativa hegemônica do trabalho, no
interesse da emancipação socialista oniabrangente.”
“Quanto mais “avançada” a sociedade
capitalista, mais unilateralmente centrada na produção de riqueza reificada
como um fim em si mesma e na exploração das instituições educacionais em todos
os níveis, desde as escolas preparatórias até as universidades – também na forma
da “privatização” promovida com suposto zelo ideológico pelo Estado – para a
perpetuação da sociedade de mercadorias.
Não é surpreendente, pois, que o
desenvolvimento tenha caminhado de mãos dadas com a doutrinação da esmagadora
maioria das pessoas com os valores da ordem social do capital como a ordem
natural inalterável, racionalizada e justificada pelos ideólogos mais
sofisticados do sistema em nome da “objetividade científica” e da “neutralidade
de valor”. As condições reais da vida cotidiana foram plenamente dominadas pelo
ethos capitalista, sujeitando os indivíduos – como uma questão de
determinação estruturalmente assegurada – ao imperativo de ajustar suas
aspirações de maneira conforme, ainda que não pudessem fugir à áspera situação
da escravidão assalariada. Assim, o “capitalismo avançado” pôde seguramente
ordenar seus negócios de modo a limitar o período de educação
institucionalizada em uns poucos anos economicamente convenientes da vida dos
indivíduos e fazê-lo de maneira discriminadora/elitista. As determinações
estruturais objetivas da “normalidade” da vida cotidiana capitalista realizaram
com êxito o restante, a “educação” contínua das pessoas no espírito de
tomar como dado o ethos social dominante, internalizando “consensualmente”,
com isso, a proclamada inalterabilidade da ordem natural estabelecida.”
“Assim, a adoção do ponto de vista do capital
como a premissa social insuperável de seu horizonte crítico limitou até
mesmo as maiores personagens da burguesia em ascensão a projetar a luta dos
indivíduos particulares, e antes isolados, contra os efeitos e consequências
negativos das forças sociais que os representantes do Iluminismo queriam
reformar por meio da educação pessoal idealmente adequada dos indivíduos. Uma
luta que jamais poderia ser levada a bom termo, tanto porque não se pode vencer
uma força social poderosa pela ação fragmentada de indivíduos isolados,
como porque as determinações estruturais causais da ordem criticada
devem ser rivalizadas e impugnadas no domínio causal, em seus próprios
termos de referência: isto é, pela força historicamente sustentável de uma alternativa
estrutural coerente. Mas isso exigiria, é claro, a adoção de uma
perspectiva social radicalmente diferente pelos pensadores em questão. Um ponto
de vista capaz de avaliar de forma realista as limitações inescapáveis da
potencialidade reformadora do capital contra suas próprias determinações
causais estruturais. Não é surpreendente, pois, que a aceitação do ponto de
vista do capital como o horizonte geral de sua própria visão tenha restringido
as medidas retificadoras plausíveis dos grandes pensadores do Iluminismo à
defesa de contramedidas incorrigivelmente utópicas, mesmo na fase ascendente
ainda relativamente flexível da progressão histórica do sistema do capital.
Isto é, antes da época em que as determinações de classe antagônicas da
sociedade de mercadorias plenamente desenvolvida se tornassem petrificadas na
forma de uma estrutura social irreformável, cada vez mais reificada e alienada.”
“Naturalmente, o poder da falsa consciência
não pode ser superado pela ilustração educacional (por mais bem-intencionada)
somente dos indivíduos. Os indivíduos particulares como indivíduos isolados
estão à mercê da falsa consciência reificadora, porque as relações reprodutivas
reais historicamente dadas em que estão inseridos só podem funcionar com base
na “personificação das coisas e reificação das pessoas”. Consequentemente, para
alterar a inversão mistificadora e em última instância destrutiva da relação reprodutiva
sustentável dos seres humanos, contrapondo-se ao mesmo tempo à dominação da
falsa consciência reificadora sobre os indivíduos particulares, é preciso uma
mudança societária oniabrangente. Nada menos abrangente do que isso pode
prevalecer de maneira duradoura.
Contentar-se com a “reforma gradual” e as
mudanças parciais correspondentes é autoderrotista. A questão não é se as
mudanças são introduzidas repentinamente ou ao longo de um período maior, mas a
conformação estratégica geral da transformação estrutural fundamental
consistentemente perseguida, independentemente do tempo que a sua realização
bem-sucedida possa levar. Os riscos de ou um ou outro entre as formas de
controle sociometabólico mutuamente excludentes – a ora estabelecida e a futura
– são globais tanto no espaço quanto no tempo. É por isso que o projeto socialista
só pode obter êxito se for articulado e afirmado de maneira consistente como a alternativa
hegemônica ao metabolismo social estruturalmente resguardado e alienante do
capital. Isto é, se a ordem socialista alternativa abarcar no curso de seu
desenvolvimento produtivo cada sociedade e o fizer no espírito de
assegurar a irreversibilidade histórica da alternativa hegemônica do trabalho
ao controle sociometabólico estabelecido do capital.
No projeto socialista, em virtude da crítica
radical inevitável e abertamente professada da falsa consciência
estruturalmente dominante do sistema do capital, as medidas adotadas de
transformação material são inseparáveis dos objetivos educacionais defendidos.
Isso porque os princípios orientadores da transformação socialista da sociedade
são irrealizáveis sem o pleno envolvimento da educação como o desenvolvimento
contínuo da consciência socialista. Todos os princípios orientadores
anteriormente discutidos – desde a participação genuína em todos os níveis de
decisão até o planejamento abrangente (concebido no sentido do planejamento que
inclui a autônoma obtenção de sentido da própria vida” pelos indivíduos) e
desde a realização progressiva da igualdade substantiva na sociedade como um
todo até as condições globalmente sustentáveis da única economia historicamente
viável em uma ordem internacional em progressão positiva – só podem traduzir-se
em realidade se o poder da educação for plenamente ativado para esse propósito.”
“É um traço historicamente único da defesa
socialista da mudança estrutural qualitativa que a consciência – e a
autoconsciência – dos indivíduos deva enfocar a natureza parte inclusiva/oniabrangente
da requerida transformação social e de sua própria parte nela, como integrante
aos objetivos gerais em questão, em lugar de ser passível de
compartimentação no âmbito privado de alguma individualidade isolada mais ou
menos fictícia. Desse modo, também o horizonte temporal dos indivíduos sociais
particulares é inseparável do tempo histórico abrangente – não importa em quão
longo prazo – de toda a sua sociedade dinamicamente em desenvolvimento. Assim,
pela primeira vez no curso da história humana espera-se que os indivíduos se
tornem realmente conscientes de sua parte no desenvolvimento humano com
relação tanto a seus objetivos transformadores abrangentes positivamente
plausíveis quanto à escala temporal de seu próprio envolvimento real e
contribuição específica ao processo de mudança de suas sociedades.”
“A tentativa de confinar o tempo histórico ao
domínio do “gradual” e do “parcelado”, de modo a adequá-lo à apologética
prescrição capitalista do “pouco a pouco”, e esperar que isso resulte em
progresso social duradouro sempre foi um absurdo teórico e uma impossibilidade
prática. Pois a instituição “gradual” e “parcelada” do “pouco a pouco”,
desprovida de um quadro de referência abrangente apropriado, não faz
sentido algum. Isso porque, sem vislumbrar, à luz dos atuais desenvolvimentos,
uma estrutura estratégica convenientemente modificável, tal instituição
se faz totalmente cega. Essa estrutura deve, desde sua origem, orientar-se com
firmeza em direção a uma transformação socialista radical.
Todos sabemos, pela experiência amarga do
movimento trabalhista, que os acréscimos graduais ao resultado de algumas
medidas parciais iniciais trouxeram facilmente consigo tanto desastre e
autoderrota como o modesto aprimoramento até mesmo tático – e certamente
nunca estratégico. A propaganda da “reforma a passos lentos” promovida
ubiquitariamente pelo reformismo do século XX alcançou, na verdade, nada mais
que a preservação e até mesmo o fortalecimento da ordem estabelecida.
A intenção real por trás de tais estratégias “evolutivas”
– desde os princípios bernsteinianos até suas mais recentes transmutações – sempre
foi a hostilidade fanática contra o “holismo”. Ou seja: contra qualquer
tentativa voltada a instituir e consolidar de forma radical na sociedade
algumas transformações abrangentes extremamente necessárias.
Caracteristicamente, o verdadeiro cômputo de toda a política que uma vez
prometeu a realização gradual do socialismo foi a derrota clamorosa e a
revogação dos direitos do movimento da classe trabalhadora, por meio da franca
capitulação de sua representação política parlamentar diante de seu adversário
de classe.
Dado o fato de que o controle metabólico da
ordem social não pode ser fragmentado nem dividido entre forças que impelem
para direções diametralmente opostas, é impensável que o capital – estruturalmente
vinculado e confrontado pelo trabalho, como o sujeito da transformação
emancipatória e com isso o único modo alternativo de controle societário
oniabrangente historicamente factível – pudesse entregar “pouco a pouco” a seu
antagonista estrutural o seu poder hegemônico de reprodução autoexpansiva.
Especialmente na medida em que as ameaças históricas vitais – em vista da rede
de interesses profundamente arraigados e cada vez mais destrutivos do sistema
do capital – são maiores em nosso tempo do que jamais foram. É por essa razão
que as determinações conflitantes do tempo histórico se colocam de tal modo que
o antagonismo entre as alternativas hegemônicas mutuamente excludentes
do capital e do trabalho deve ser resolvido na forma de ou uma ou outra.
E temos agora uma visão bastante clara das fatídicas implicações de sua
possível “resolução” em favor da ordem sociometabólica insustentável do
capital. Nenhuma fantasia reformista ou engano deliberado pode alterar ou
anular essas importantes determinações estruturais e históricas.”
“Comprometer-se com o caráter radicalmente
ilimitado da história não significa, evidentemente, que o projeto
socialista de intervenção consciente no processo histórico em curso
possa ser posto “em banho-maria” até que “surjam condições mais favoráveis” e
resolvam nossos problemas. Dada a destrutividade progressivamente agravada de
nosso tempo, tais condições ambicionadas que favoreçam a alternativa socialista
nunca poderiam simplesmente “surgir”. Devem ser combativamente conquistadas
pelo trabalho e defendidas contra as forças retrógradas, como o antagonista
hegemônico do capital, sob as condições existentes indubitavelmente difíceis,
por mais que pareçam desfavoráveis para o momento.
Absolutamente certo é que o capital, como
controlador inflexível do processo de reprodução societário em sua totalidade,
não pode consentir de boa vontade nem mesmo em compromissos táticos com que, de
acordo com as evidências históricas, romperá sempre no primeiro momento
oportuno, se por conjuntura tiver sido compelido a estabelecê-los.
Naturalmente, o capital seria ainda menos propenso ao cumprimento de sua
própria parte de qualquer compromisso histórico admitido: uma intenção
muito irreal. Representantes da esquerda que pensam e agem de outro modo podem
portanto comprometer-se apenas consigo mesmos. Pois referimo-nos aqui a um princípio
de exclusão mútua de importância vital, e não a alguma conveniência
mútua marginal com base em que alguns compromissos tornam-se factíveis e
legítimos. Como Marx energicamente sublinhou já à época de sua “Crítica do
Programa de Gotha”: “Não pode haver barganha sobre princípios”.”
* Karl Marx, “Crítica do Programa de Gotha”,
em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (São Paulo, Alfa-Ômega,
s. d.). Grifos de Mészáros. (N. E.)
“É compreensível que o distinto escritor e
crítico norte-americano Gore Vidal tenha descrito a política dos Estados
Unidos, com amarga ironia, como um sistema de partido único com duas
direitas.
Infelizmente, os Estados Unidos não são o
único país que deve ser caracterizado nesses termos. Há muitos outros em que as
funções de decisão política também são monopolizadas por disposições
institucionais consensuais autolegitimadoras similares, com uma diferença
desprezível entre si (se é que há alguma), não obstante a mudança ocasional do
pessoal que ocupa os altos escalões.”
“Dada a crise estrutural do capital em nosso
tempo, seria um milagre absoluto se ela não se manifestasse – e, com efeito, em
um sentido profundo e de longo alcance – no domínio da política. Pois a
política, ao lado da estrutura jurídica correspondente, ocupa uma posição de
importância vital no sistema do capital. Isso se deve ao fato de que o Estado
moderno é a estrutura política de comando totalizante do capital, necessária
(enquanto a ordem reprodutiva ora estabelecida viver) para introduzir algum
tipo de coesão (ou uma unidade que funcione de forma efetiva) – ainda que seja
uma coesão extremamente problemática e periodicamente rompida -- na
multiplicidade dos componentes centrífugos (os “microcosmos” produtivos e
distributivos) do sistema do capital.
Esse tipo de coesão só pode ser instável,
porque depende da relação de forças sempre existente, mas mutável por sua
própria natureza. Uma vez rompida essa coesão, em razão de uma mudança
significativa na relação de forças, ela tem de ser reconstituída de algum modo,
a fim de compatibilizar-se com a nova relação de forças. Isto é, até que seja
mais uma vez rompida. E assim indefinidamente, como um fato natural consumado.
Esse tipo de dinâmica problematicamente autorrenovadora se aplica tanto
internamente, entre as forças dominantes dos países particulares, como internacionalmente,
exigindo reajustes periódicos de acordo com as relações de poder mutáveis da
multiplicidade de Estados da ordem global do capital. Eis como o capital dos
Estados Unidos pôde alcançar sua dominação global no século XX, em parte pela
dinâmica interna de seu próprio desenvolvimento e, em parte, pela afirmação
progressiva de sua superioridade imperialista sobre as potências imperialistas
anteriores em grande medida enfraquecidas – sobretudo a Inglaterra e a França –
ao longo e depois da Segunda Guerra Mundial.”
“O Estado capitalista é o facilitador
essencial dos desenvolvimentos monopolistas, mesmo quando simula legislar
contra eles, o que só pode fazer de um modo estritamente marginal. Nesse
sentido, o Estado é o facilitador não somente das formas relativamente inócuas
da expansão do capital, mas também de suas formas mais problemáticas e
prejudiciais – inclusive o complexo industrial-militar, evidentemente mesmo
quando a predominância do contravalor nas aventuras facilitadas ou
ativamente patrocinadas pelo Estado é obviamente inegável. Qualquer outra
possibilidade seria espantosa. Pois o Estado moderno é a estrutura política
oniabrangente de comando do sistema do capital e, assim, não pode exercer suas
funções políticas substantivas (não marginais) em contraposição às
determinações materiais vitais do capital voltadas à sua expansão
autorrealizadora, independentemente da visão assaz estreita (na verdade,
cegamente prejudicial) da perspectiva de acumulação lucrativa a curto prazo.
Eis porque as considerações ecológicas historicamente sustentáveis têm de ser
rigidamente excluídas – com a ajuda de todo tipo de falsas intenções – das
políticas adotadas pelos governos capitalistas retoricamente pró-ecologia. Essa
relação incestuosa entre a rede de interesses materiais do capital e sua
estrutura política de comando autolegitimadora sublinha com veemência a necessidade
inescapável de uma mudança sistêmica genuína, para que seja bem-sucedida
a nossa determinação de impugnar os perigos ecológicos hoje reconhecidos até
mesmo no âmbito oficial.”