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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI (Parte IV), de István Mészáros

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-100-0

Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 400

Sinopse: Ver Parte I

 


“O que torna esse problema pior para todos aqueles que procuram uma mudança significativa nas margens do sistema político estabelecido é que este último pode reivindicar para si a legitimidade constitucional genuína em seu modo presente de funcionamento, com base na inversão historicamente constituída do estado de coisas efetivo da reprodução material. Pois, visto que o capitalista não é somente a “personificação do capital”, mas funciona simultaneamente como a personificação do caráter social do trabalho, da produção total como tal”53, o sistema pode alegar representar a força produtiva vitalmente necessária perante os indivíduos como a base de sua existência contínua, incorporando o interesse de todos. Desse modo, o capital se afirma não apenas como o poder de facto, mas também como poder de jure da sociedade, em sua qualidade de condição necessária objetivamente dada da reprodução societária e, portanto, de fundamento constitucional de sua própria ordem política. O fato de que a legitimidade constitucional do capital é historicamente fundada na expropriação implacável das condições de reprodução sociometabólica – os meios e materiais do trabalho – das mãos dos produtores e, por conseguinte, a pretensa “constitucionalidade” do capital (assim como a origem de todas as constituições) é inconstitucional, essa verdade intragável desvanece na névoa de um passado remoto. As “forças produtivas sociais do trabalho ou as forças produtivas do trabalho social se desenvolvem pela primeira vez historicamente com o modo especificamente capitalista de produção, e por essa razão aparecem como algo imanente à relação de capital e inseparável dela”54.

É assim que o modo de reprodução sociometabólica do capital se torna eternizado e legitimado como um sistema licitamente imutável. A contestação legítima é admissível apenas em relação a alguns aspectos menores da estrutura geral inalterável. O estado de coisas real no plano da reprodução socioeconômica – isto é, a força produtiva do trabalho efetivamente posta em exercício e sua absoluta necessidade para assegurar a reprodução do próprio capital – desaparece da vista. Em parte pela ignorância com relação à origem histórica, que está muito longe de poder legitimar-se, da “acumulação primitiva” do capital e a concomitante expropriação, frequentemente violenta, da propriedade como precondição do modo presente de funcionamento do sistema; e em parte pela natureza mistificadora das relações produtivas e distributivas estabelecidas. Pois as condições objetivas de trabalho não aparecem subsumidas ao trabalhador; antes, este aparece subsumido a elas. Capital emprega trabalho. Mesmo essa relação em sua simplicidade é uma personificação das coisas e uma reificação das pessoas55.

Nada disso pode ser desafiado e corrigido no interior da estrutura de reforma política parlamentar. Seria bastante absurdo esperar a abolição da personificação das coisas e reificação das pessoas por decreto político e igualmente absurdo esperar a proclamação de tal reforma pretendida no interior da estrutura das instituições políticas do capital. Pois o sistema do capital não pode funcionar sem a perversa subversão da relação entre pessoas e coisas: as forças alienadas e reificadas do capital que dominam as massas do povo. De maneira semelhante, seria um milagre se os trabalhadores que confrontam o capital no processo de trabalho como “trabalhadores isolados” pudessem readquirir o domínio sobre as forças produtivas sociais de seu trabalho por algum decreto político ou mesmo por uma série completa de reformas parlamentares aprovadas sob a ordem de controle sociometabólico do capital. Pois, nessas questões, não pode haver meio conflito irreconciliável de ou um ou outro relativo aos interesses materiais.

Tampouco pode o capital abdicar de suas forças sociais produtivas – usurpadas – em favor do trabalho, ou compartilhá-las com o trabalho, em virtude de um “compromisso político” desejoso, mas fundamentalmente fictício. Pois elas constituem o poder controlador geral da reprodução societária na forma do domínio da riqueza sobre a sociedade. Assim, é impossível escapar, no âmbito do metabolismo social fundamental, à severa lógica de um ou outro. Pois, ou a riqueza, na forma do capital, continua a controlar a sociedade humana, levando-a à iminência da autodestruição, ou a sociedade de “produtores associados” aprende a controlar a riqueza alienada e reificada, com forças produtivas emergentes do trabalho social autodeterminado de seus membros individuais – porém não mais isolados.

O capital é a força extraparlamentar por excelência cujo poder de controle sociometabólico não pode de maneira alguma ser restringido pelo parlamento. É por essa razão que o único modo de representação política compatível com o modo de funcionamento do capital é aquele que efetivamente nega a possibilidade de contestar seu poder material. E, precisamente porque o capital é a força extraparlamentar por excelência, não tem nada a temer das reformas que podem ser aprovadas no interior de sua estrutura política parlamentar.

Uma vez que a questão vital sobre a qual tudo o mais se articula é que “as condições objetivas do trabalho não aparecem subsumidas ao trabalhador”, mas, ao contrário, “este aparece subsumido a elas”, nenhuma mudança significativa é plausível sem enfrentar essa questão tanto em uma forma de política capaz de equiparar-se aos poderes e modos de ação extraparlamentares do capital, quanto no âmbito da reprodução material. Assim, o único desafio que poderia afetar de maneira sustentável o poder do capital seria aquele que tivesse simultaneamente o objetivo de assumir as funções produtivas chave do sistema e adquirir o controle sobre os processos políticos de decisão correspondentes em todas as esferas, em lugar de restringir-se de modo incorrigível pela limitação circular da ação política institucionalmente legitimada de legislação parlamentar.56

Há muitas críticas – bem justificadas – de personagens políticas anteriormente de esquerda e de seus partidos ora plenamente acomodados nos debates políticos das últimas décadas. Entretanto, o que é problemático nesses debates é que, pela ênfase exagerada no papel da ambição e do fracasso pessoal, com frequência continuam a divisar a retificação da situação no interior da mesma estrutura política institucional que, na verdade, favorece imensamente as criticadas “traições pessoais” e os dolorosos “desencaminhamentos partidários”. Infelizmente, porém, as mudanças de governo e pessoal defendidas e esperadas tendem a reproduzir os mesmos resultados deploráveis.

Nada disso deveria causar surpresa. As razões pelas quais as instituições políticas ora estabelecidas resistem com êxito a mudanças significativas para melhor é que elas mesmas são parte do problema e não da solução. Pois, em sua natureza imanente, elas são a incorporação das determinações e contradições estruturais subjacentes pela qual o Estado capitalista moderno – com sua ubíqua rede de componentes burocráticos – se articulou e estabilizou no curso dos últimos quatro séculos. Naturalmente, o Estado foi formado não como um resultado mecânico unilateral, mas por meio de sua inter-relação recíproca necessária com o fundamento material do surgimento histórico do capital, não conforme modelado apenas por este último, mas também como algo que o modela ativamente tanto quanto historicamente possível nas circunstâncias vigentes – bem como mutáveis, precisamente em virtude dessa inter-relação.”

53 Karl Marx, “Economic Manuscripts of 1861-63”, em Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, cit., v. 34, p. 457. [Todas as passagens citadas dessa obra se encontram traduzidas de maneira similar em Teorias da mais-valia (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980), v. 1, capítulo “Produtividade do capital. Trabalho produtivo e improdutivo” (p. 384-406), de que extraímos a citação abaixo. Entretanto, à exceção do trecho abaixo, as passagens estão ordenadas de modo diverso e contêm expressões diferentes das adotadas na tradução citada por Mészáros. Por essa razão, optamos por traduzi-las e manter a referência da obra utilizada por Mészáros. Contudo, para uma apreensão do texto completo a que Mészáros se refere é possível recorrer a essa versão em português – N.T.] Outra importante qualificação que se deve acrescentar aqui é que “O trabalho produtivo – como trabalho que produz valor – confronta, por isso, o capital sempre na forma de força de trabalho individual, do trabalhador isolado, sejam quais forem as combinações sociais de que participem esses trabalhadores no processo de produção. Assim, enquanto o capital representa perante o trabalhador a força produtiva social do trabalho, o trabalho produtivo representa sempre perante o capital nada mais que o trabalho do trabalhador isolado” (Karl Marx, Teorias da mais-valia, cit., v. 1, p. 389. grifos de Marx). [Mészáros dá como referência aqui a supracitada edição dos “Economic Manuscripts of 1861-63. v. 34. p. 460 – N. T.]

54 Karl Marx, “Economic Manuscripts of 1861-63”, cit., p. 456.

55 Ibidem. p. 457.

56 Extraído de “A necessidade de se contrapor à força extraparlamentar do capital”, seção 18.4 de Para além do capital, cit., p. 821-60.

 

 

“Obviamente, uma transformação dessa magnitude não pode realizar-se sem a dedicação consciente de um movimento revolucionário à mais desafiadora tarefa histórica, capaz de sustentar-se contra toda adversidade, já que seu engajamento tende a despertar hostilidade feroz de todas as maiores forças do sistema do capital. Por essa razão, o movimento em questão não pode ser simplesmente um partido político orientado a fim de assegurar concessões parlamentares, que via de regra acabam por anular-se mais cedo ou mais tarde pelos interesses extraparlamentares autovantajosos da ordem estabelecida vigente também no parlamento. O movimento socialista não pode obter êxito diante da hostilidade dessas forças a menos que seja rearticulado como um movimento revolucionário de massa, conscientemente ativo em todas as formas de luta social e política: local, nacional e global/internacional, utilizando plenamente as oportunidades parlamentares quando disponíveis, por mais limitadas que possam ser, sobretudo sem se esquivar de asseverar as demandas necessárias da desafiadora ação extraparlamentar.

O desenvolvimento desse movimento é muito importante para o futuro da humanidade na presente conjuntura histórica. Pois, sem um desafio extraparlamentar estrategicamente orientado e sustentado, os partidos que se alternam no governo podem continuar a funcionar como álibis recíprocos convenientes para o fracasso estrutural necessário do sistema com relação ao trabalho, restringindo assim efetivamente o papel da oposição de classe à sua atual posição de pensamento posterior inconveniente, mas marginalizável, do sistema parlamentar do capital. Assim, em relação a ambos os domínios de reprodução material e político, a constituição de um movimento socialista extraparlamentar de massa estrategicamente viável – em conjunção com as formas tradicionais de organizações políticas do trabalho, ora irremediavelmente desencaminhadas, que precisam com urgência da pressão e do apoio radicalizantes de tais forças extraparlamentares – é uma precondição vital para a contraposição ao poder extraparlamentar maciço do capital.

O papel de um movimento revolucionário extraparlamentar é duplo. Por um lado, tem de formular e defender do ponto de vista organizacional os interesses estratégicos do trabalho como uma alternativa sociometabólica abrangente. O sucesso desse papel só é plausível se as forças organizadas do trabalho confrontarem de modo consciente e negarem forçosamente, em termos práticos, as determinações estruturais da ordem reprodutiva material estabelecida, manifesta na relação de capital e na concomitante subordinação do trabalho no processo socioeconômico, em vez de ajudarem de maneira mais ou menos complacente a reestabilizar o capital em crise, como invariavelmente aconteceu em importantes conjunturas do passado reformista. Ao mesmo tempo, por outro lado, o poder político aberto ou oculto do capital, atualmente predominante no parlamento, precisa ser, e pode ser, desafiado – ainda que apenas em um grau limitado – por meio da pressão que as formas extraparlamentares de ação podem exercer sobre o legislativo e o executivo.

A ação extraparlamentar só pode ser efetiva se enfrentar conscientemente os aspectos centrais e determinações sistêmicas do capital, atravessando o labirinto das aparências fetichistas pelas quais eles dominam a sociedade. Pois a ordem estabelecida afirma materialmente seu poder primordialmente na, e por meio da, relação de capital, perpetuada com base na inversão mistificadora da relação produtiva real das classes hegemônicas alternativas na sociedade capitalista. Como já mencionado, essa inversão possibilita ao capital usurpar o papel de produtor que, nas palavras de Marx, “emprega trabalho”, graças à enganadora “personificação das coisas e a reificação das pessoas”, e assim legitimar-se como a precondição inalterável para a realização do “interesse de todos”. Uma vez que o conceito de interesse de todos realmente importa, ainda que seja hoje usado de maneira fraudulenta para camuflar a negação total de sua substância à maioria esmagadora das pessoas pelas pretensões formais/legais de justiça e igualdade”, não pode haver alternativa significativa e historicamente sustentável à ordem social estabelecida sem a superação radical da própria relação de capital oniabrangente. Essa é uma demanda sistêmica inadiável. As demandas parciais podem e devem ser defendidas pelos socialistas se forem vinculadas à demanda absolutamente fundamental de superar a relação de capital, que atinge o cerne do problema.

Essa demanda está em nítido contraste com o que os ideólogos fiéis e as personagens políticas do capital permitem hoje às forças de oposição. Seu principal critério para excluir a possibilidade das demandas parciais importantes do trabalho é precisamente seu potencial de afetar de modo negativo a estabilidade do sistema. Assim, por exemplo, mesmo a “ação industrial” local “politicamente motivada” é categoricamente rejeitada (mesmo como ilegal) “em uma sociedade democrática”, porque sua execução pode ter implicações negativas para o funcionamento normal do sistema. O papel dos partidos reformistas, ao contrário, é bem-vindo, porque suas demandas ou bem ajudam a reestabilizar o sistema em tempos difíceis – por meio da intervenção industrial de encolhimento de salário (com o lema da “necessidade de apertar o cinto”) e de acordos políticos/legislativos de refreamento dos sindicatos – e assim contribuem para a dinâmica da expansão renovada do capital, ou são ao menos “neutras”, no sentido de que em algum ponto do futuro, ainda que não no momento de sua primeira formulação, podem integrar-se na estrutura estipulada da “normalidade”.

A negação revolucionária do sistema do capital é concebível apenas por meio de uma intervenção organizacional estrategicamente sustentada e consciente. Embora a recusa tendenciosamente unilateral da “espontaneidade” pela presunção vanguardista sectária deva ser tratada com a crítica que merece, não é menos prejudicial menosprezar a importância da consciência revolucionária e das exigências organizacionais de seu êxito. O fracasso histórico de grandes partidos da Terceira Internacional, que uma vez professou objetivos leninistas e revolucionários, como os partidos comunistas italiano e francês, não deve desviar nossa atenção da importância de recriar, sobre um fundamento muito mais seguro, as organizações políticas pelas quais a transformação socialista vital de nossas sociedades pode realizar-se no futuro. Evidentemente, uma avaliação crítica impetuosa do que deu errado é uma parte importante desse processo de renovação. O que já é plenamente claro é que a descida desintegradora desses partidos na ladeira escorregadia da armadilha parlamentar proporciona uma importante lição para o futuro.

Hoje, apenas dois modos abrangentes de controle sociometabólico são plausíveis: a ordem reprodutiva de exploração de classe do capital – imposta a todo custo pelas “personificações do capital” – que falhou miseravelmente com a humanidade em nosso tempo, levando-a à beira da autodestruição. E a outra ordem, diametralmente oposta à estabelecida: a alternativa hegemônica sociometabólica do trabalho não como classe particular, mas como a condição de existência universal de cada indivíduo na sociedade. Uma sociedade administrada por eles com base na igualdade substantiva que lhes permita desenvolver suas potencialidades produtivas humanas e universais à plenitude, em harmonia com as exigências metabólicas da ordem natural, em lugar de se curvarem à destruição da natureza e com ela também à sua própria, como o modo de controle sociometabólico incontrolável do capital está agora engajado em fazer. É por isso que sob as condições presentes da crise estrutural do capital nada que não seja a alternativa hegemônica abrangente ao domínio do capital – decifrada como a complementaridade dialética das demandas imediatas particulares, mas não marginalizáveis, e dos objetivos abrangentes da transformação sistêmica pode constituir o programa válido do movimento organizado revolucionário consciente, por todo o mundo.

Por certo, o movimento revolucionário organizado consciente não pode encerrar-se na estrutura política restritiva do parlamento dominado pelo poder extraparlamentar do capital. Tampouco pode ter êxito como uma organização vanguardista orientada para si mesma. Ele pode definir-se com êxito por meio de dois princípios orientadores vitais. Primeiro, mencionado há pouco, a elaboração de seu próprio programa extraparlamentar orientado aos objetivos da alternativa hegemônica abrangente para assegurar uma transformação sistêmica fundamental. E, segundo, igualmente importante em termos organizacionais estratégicos, seu envolvimento ativo na constituição do necessário movimento de massa extraparlamentar, como o portador da alternativa revolucionária capaz de mudar também o processo legislativo de um modo qualitativo, passo primor dial na direção do fenecimento do Estado. Somente por meio desses desenvolvimentos organizacionais que envolvem diretamente também as grandes massas do povo, pode-se divisar a realização da tarefa histórica de instituir a alternativa hegemônica do trabalho, no interesse da emancipação socialista oniabrangente.”

 

 

“Quanto mais “avançada” a sociedade capitalista, mais unilateralmente centrada na produção de riqueza reificada como um fim em si mesma e na exploração das instituições educacionais em todos os níveis, desde as escolas preparatórias até as universidades – também na forma da “privatização” promovida com suposto zelo ideológico pelo Estado – para a perpetuação da sociedade de mercadorias.

Não é surpreendente, pois, que o desenvolvimento tenha caminhado de mãos dadas com a doutrinação da esmagadora maioria das pessoas com os valores da ordem social do capital como a ordem natural inalterável, racionalizada e justificada pelos ideólogos mais sofisticados do sistema em nome da “objetividade científica” e da “neutralidade de valor”. As condições reais da vida cotidiana foram plenamente dominadas pelo ethos capitalista, sujeitando os indivíduos – como uma questão de determinação estruturalmente assegurada – ao imperativo de ajustar suas aspirações de maneira conforme, ainda que não pudessem fugir à áspera situação da escravidão assalariada. Assim, o “capitalismo avançado” pôde seguramente ordenar seus negócios de modo a limitar o período de educação institucionalizada em uns poucos anos economicamente convenientes da vida dos indivíduos e fazê-lo de maneira discriminadora/elitista. As determinações estruturais objetivas da “normalidade” da vida cotidiana capitalista realizaram com êxito o restante, a “educação” contínua das pessoas no espírito de tomar como dado o ethos social dominante, internalizando “consensualmente”, com isso, a proclamada inalterabilidade da ordem natural estabelecida.”

 

 

“Assim, a adoção do ponto de vista do capital como a premissa social insuperável de seu horizonte crítico limitou até mesmo as maiores personagens da burguesia em ascensão a projetar a luta dos indivíduos particulares, e antes isolados, contra os efeitos e consequências negativos das forças sociais que os representantes do Iluminismo queriam reformar por meio da educação pessoal idealmente adequada dos indivíduos. Uma luta que jamais poderia ser levada a bom termo, tanto porque não se pode vencer uma força social poderosa pela ação fragmentada de indivíduos isolados, como porque as determinações estruturais causais da ordem criticada devem ser rivalizadas e impugnadas no domínio causal, em seus próprios termos de referência: isto é, pela força historicamente sustentável de uma alternativa estrutural coerente. Mas isso exigiria, é claro, a adoção de uma perspectiva social radicalmente diferente pelos pensadores em questão. Um ponto de vista capaz de avaliar de forma realista as limitações inescapáveis da potencialidade reformadora do capital contra suas próprias determinações causais estruturais. Não é surpreendente, pois, que a aceitação do ponto de vista do capital como o horizonte geral de sua própria visão tenha restringido as medidas retificadoras plausíveis dos grandes pensadores do Iluminismo à defesa de contramedidas incorrigivelmente utópicas, mesmo na fase ascendente ainda relativamente flexível da progressão histórica do sistema do capital. Isto é, antes da época em que as determinações de classe antagônicas da sociedade de mercadorias plenamente desenvolvida se tornassem petrificadas na forma de uma estrutura social irreformável, cada vez mais reificada e alienada.”

 

 

“Naturalmente, o poder da falsa consciência não pode ser superado pela ilustração educacional (por mais bem-intencionada) somente dos indivíduos. Os indivíduos particulares como indivíduos isolados estão à mercê da falsa consciência reificadora, porque as relações reprodutivas reais historicamente dadas em que estão inseridos só podem funcionar com base na “personificação das coisas e reificação das pessoas”. Consequentemente, para alterar a inversão mistificadora e em última instância destrutiva da relação reprodutiva sustentável dos seres humanos, contrapondo-se ao mesmo tempo à dominação da falsa consciência reificadora sobre os indivíduos particulares, é preciso uma mudança societária oniabrangente. Nada menos abrangente do que isso pode prevalecer de maneira duradoura.

Contentar-se com a “reforma gradual” e as mudanças parciais correspondentes é autoderrotista. A questão não é se as mudanças são introduzidas repentinamente ou ao longo de um período maior, mas a conformação estratégica geral da transformação estrutural fundamental consistentemente perseguida, independentemente do tempo que a sua realização bem-sucedida possa levar. Os riscos de ou um ou outro entre as formas de controle sociometabólico mutuamente excludentes – a ora estabelecida e a futura – são globais tanto no espaço quanto no tempo. É por isso que o projeto socialista só pode obter êxito se for articulado e afirmado de maneira consistente como a alternativa hegemônica ao metabolismo social estruturalmente resguardado e alienante do capital. Isto é, se a ordem socialista alternativa abarcar no curso de seu desenvolvimento produtivo cada sociedade e o fizer no espírito de assegurar a irreversibilidade histórica da alternativa hegemônica do trabalho ao controle sociometabólico estabelecido do capital.

No projeto socialista, em virtude da crítica radical inevitável e abertamente professada da falsa consciência estruturalmente dominante do sistema do capital, as medidas adotadas de transformação material são inseparáveis dos objetivos educacionais defendidos. Isso porque os princípios orientadores da transformação socialista da sociedade são irrealizáveis sem o pleno envolvimento da educação como o desenvolvimento contínuo da consciência socialista. Todos os princípios orientadores anteriormente discutidos – desde a participação genuína em todos os níveis de decisão até o planejamento abrangente (concebido no sentido do planejamento que inclui a autônoma obtenção de sentido da própria vida” pelos indivíduos) e desde a realização progressiva da igualdade substantiva na sociedade como um todo até as condições globalmente sustentáveis da única economia historicamente viável em uma ordem internacional em progressão positiva – só podem traduzir-se em realidade se o poder da educação for plenamente ativado para esse propósito.”

 

 

“É um traço historicamente único da defesa socialista da mudança estrutural qualitativa que a consciência – e a autoconsciência – dos indivíduos deva enfocar a natureza parte inclusiva/oniabrangente da requerida transformação social e de sua própria parte nela, como integrante aos objetivos gerais em questão, em lugar de ser passível de compartimentação no âmbito privado de alguma individualidade isolada mais ou menos fictícia. Desse modo, também o horizonte temporal dos indivíduos sociais particulares é inseparável do tempo histórico abrangente – não importa em quão longo prazo – de toda a sua sociedade dinamicamente em desenvolvimento. Assim, pela primeira vez no curso da história humana espera-se que os indivíduos se tornem realmente conscientes de sua parte no desenvolvimento humano com relação tanto a seus objetivos transformadores abrangentes positivamente plausíveis quanto à escala temporal de seu próprio envolvimento real e contribuição específica ao processo de mudança de suas sociedades.”

 

 

“A tentativa de confinar o tempo histórico ao domínio do “gradual” e do “parcelado”, de modo a adequá-lo à apologética prescrição capitalista do “pouco a pouco”, e esperar que isso resulte em progresso social duradouro sempre foi um absurdo teórico e uma impossibilidade prática. Pois a instituição “gradual” e “parcelada” do “pouco a pouco”, desprovida de um quadro de referência abrangente apropriado, não faz sentido algum. Isso porque, sem vislumbrar, à luz dos atuais desenvolvimentos, uma estrutura estratégica convenientemente modificável, tal instituição se faz totalmente cega. Essa estrutura deve, desde sua origem, orientar-se com firmeza em direção a uma transformação socialista radical.

Todos sabemos, pela experiência amarga do movimento trabalhista, que os acréscimos graduais ao resultado de algumas medidas parciais iniciais trouxeram facilmente consigo tanto desastre e autoderrota como o modesto aprimoramento até mesmo tático – e certamente nunca estratégico. A propaganda da “reforma a passos lentos” promovida ubiquitariamente pelo reformismo do século XX alcançou, na verdade, nada mais que a preservação e até mesmo o fortalecimento da ordem estabelecida.

A intenção real por trás de tais estratégias “evolutivas” – desde os princípios bernsteinianos até suas mais recentes transmutações – sempre foi a hostilidade fanática contra o “holismo”. Ou seja: contra qualquer tentativa voltada a instituir e consolidar de forma radical na sociedade algumas transformações abrangentes extremamente necessárias. Caracteristicamente, o verdadeiro cômputo de toda a política que uma vez prometeu a realização gradual do socialismo foi a derrota clamorosa e a revogação dos direitos do movimento da classe trabalhadora, por meio da franca capitulação de sua representação política parlamentar diante de seu adversário de classe.

Dado o fato de que o controle metabólico da ordem social não pode ser fragmentado nem dividido entre forças que impelem para direções diametralmente opostas, é impensável que o capital – estruturalmente vinculado e confrontado pelo trabalho, como o sujeito da transformação emancipatória e com isso o único modo alternativo de controle societário oniabrangente historicamente factível – pudesse entregar “pouco a pouco” a seu antagonista estrutural o seu poder hegemônico de reprodução autoexpansiva. Especialmente na medida em que as ameaças históricas vitais – em vista da rede de interesses profundamente arraigados e cada vez mais destrutivos do sistema do capital – são maiores em nosso tempo do que jamais foram. É por essa razão que as determinações conflitantes do tempo histórico se colocam de tal modo que o antagonismo entre as alternativas hegemônicas mutuamente excludentes do capital e do trabalho deve ser resolvido na forma de ou uma ou outra. E temos agora uma visão bastante clara das fatídicas implicações de sua possível “resolução” em favor da ordem sociometabólica insustentável do capital. Nenhuma fantasia reformista ou engano deliberado pode alterar ou anular essas importantes determinações estruturais e históricas.”

 

 

“Comprometer-se com o caráter radicalmente ilimitado da história não significa, evidentemente, que o projeto socialista de intervenção consciente no processo histórico em curso possa ser posto “em banho-maria” até que “surjam condições mais favoráveis” e resolvam nossos problemas. Dada a destrutividade progressivamente agravada de nosso tempo, tais condições ambicionadas que favoreçam a alternativa socialista nunca poderiam simplesmente “surgir”. Devem ser combativamente conquistadas pelo trabalho e defendidas contra as forças retrógradas, como o antagonista hegemônico do capital, sob as condições existentes indubitavelmente difíceis, por mais que pareçam desfavoráveis para o momento.

Absolutamente certo é que o capital, como controlador inflexível do processo de reprodução societário em sua totalidade, não pode consentir de boa vontade nem mesmo em compromissos táticos com que, de acordo com as evidências históricas, romperá sempre no primeiro momento oportuno, se por conjuntura tiver sido compelido a estabelecê-los. Naturalmente, o capital seria ainda menos propenso ao cumprimento de sua própria parte de qualquer compromisso histórico admitido: uma intenção muito irreal. Representantes da esquerda que pensam e agem de outro modo podem portanto comprometer-se apenas consigo mesmos. Pois referimo-nos aqui a um princípio de exclusão mútua de importância vital, e não a alguma conveniência mútua marginal com base em que alguns compromissos tornam-se factíveis e legítimos. Como Marx energicamente sublinhou já à época de sua “Crítica do Programa de Gotha”: “Não pode haver barganha sobre princípios”.”

* Karl Marx, “Crítica do Programa de Gotha”, em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (São Paulo, Alfa-Ômega, s. d.). Grifos de Mészáros. (N. E.)

 

 

“É compreensível que o distinto escritor e crítico norte-americano Gore Vidal tenha descrito a política dos Estados Unidos, com amarga ironia, como um sistema de partido único com duas direitas.

Infelizmente, os Estados Unidos não são o único país que deve ser caracterizado nesses termos. Há muitos outros em que as funções de decisão política também são monopolizadas por disposições institucionais consensuais autolegitimadoras similares, com uma diferença desprezível entre si (se é que há alguma), não obstante a mudança ocasional do pessoal que ocupa os altos escalões.”

 

 

“Dada a crise estrutural do capital em nosso tempo, seria um milagre absoluto se ela não se manifestasse – e, com efeito, em um sentido profundo e de longo alcance – no domínio da política. Pois a política, ao lado da estrutura jurídica correspondente, ocupa uma posição de importância vital no sistema do capital. Isso se deve ao fato de que o Estado moderno é a estrutura política de comando totalizante do capital, necessária (enquanto a ordem reprodutiva ora estabelecida viver) para introduzir algum tipo de coesão (ou uma unidade que funcione de forma efetiva) – ainda que seja uma coesão extremamente problemática e periodicamente rompida -- na multiplicidade dos componentes centrífugos (os “microcosmos” produtivos e distributivos) do sistema do capital.

Esse tipo de coesão só pode ser instável, porque depende da relação de forças sempre existente, mas mutável por sua própria natureza. Uma vez rompida essa coesão, em razão de uma mudança significativa na relação de forças, ela tem de ser reconstituída de algum modo, a fim de compatibilizar-se com a nova relação de forças. Isto é, até que seja mais uma vez rompida. E assim indefinidamente, como um fato natural consumado. Esse tipo de dinâmica problematicamente autorrenovadora se aplica tanto internamente, entre as forças dominantes dos países particulares, como internacionalmente, exigindo reajustes periódicos de acordo com as relações de poder mutáveis da multiplicidade de Estados da ordem global do capital. Eis como o capital dos Estados Unidos pôde alcançar sua dominação global no século XX, em parte pela dinâmica interna de seu próprio desenvolvimento e, em parte, pela afirmação progressiva de sua superioridade imperialista sobre as potências imperialistas anteriores em grande medida enfraquecidas – sobretudo a Inglaterra e a França – ao longo e depois da Segunda Guerra Mundial.”

 

 

“O Estado capitalista é o facilitador essencial dos desenvolvimentos monopolistas, mesmo quando simula legislar contra eles, o que só pode fazer de um modo estritamente marginal. Nesse sentido, o Estado é o facilitador não somente das formas relativamente inócuas da expansão do capital, mas também de suas formas mais problemáticas e prejudiciais – inclusive o complexo industrial-militar, evidentemente mesmo quando a predominância do contravalor nas aventuras facilitadas ou ativamente patrocinadas pelo Estado é obviamente inegável. Qualquer outra possibilidade seria espantosa. Pois o Estado moderno é a estrutura política oniabrangente de comando do sistema do capital e, assim, não pode exercer suas funções políticas substantivas (não marginais) em contraposição às determinações materiais vitais do capital voltadas à sua expansão autorrealizadora, independentemente da visão assaz estreita (na verdade, cegamente prejudicial) da perspectiva de acumulação lucrativa a curto prazo. Eis porque as considerações ecológicas historicamente sustentáveis têm de ser rigidamente excluídas – com a ajuda de todo tipo de falsas intenções – das políticas adotadas pelos governos capitalistas retoricamente pró-ecologia. Essa relação incestuosa entre a rede de interesses materiais do capital e sua estrutura política de comando autolegitimadora sublinha com veemência a necessidade inescapável de uma mudança sistêmica genuína, para que seja bem-sucedida a nossa determinação de impugnar os perigos ecológicos hoje reconhecidos até mesmo no âmbito oficial.”

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