Lista de Livros no YouTube

Lista Completa

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI (Parte II), de István Mészáros

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-100-0

Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 400

Sinopse: Ver Parte I

 


“Enquanto isso, continua a intensificação das contradições e dos antagonismos associados a causas irremovíveis. Sob o comando do capital, estruturalmente incapaz de dar solução às suas contradições – e daí a maneira como ele adia o “momento da verdade” até que as pressões econômicas resultem em algum tipo de explosão –, existe uma tendência à representação equivocada do tempo histórico, tanto em direção ao passado quanto ao futuro, no interesse da eternização do presente. A leitura tendenciosa do passado resulta do imperativo ideológico de representar erroneamente o presente como a moldura estrutural necessária de toda mudança possível. Pois é precisamente em razão da necessidade de se projetar o presente estabelecido no futuro indefinido que o passado deve também ser imaginado – na forma de um dejà vu – como o domínio da presença eterna do sistema sob roupagens diferentes, de modo a remover as determinações históricas reais e as limitações temporais do presente.”

 

 

“A possibilidade de um movimento socialista radicalmente rearticulado enfrentar esse desafio é indicada por quatro importantes considerações.

A primeira é negativa. Resulta das contradições constantemente agravadas da ordem existente que acentuam a vacuidade das projeções apologéticas de sua permanência absoluta, pois a destrutividade pode se prolongar por muito tempo, como bem sabemos, em virtude de nossas condições em processo de constante deterioração, mas não eternamente. A globalização atual é saudada pelos defensores do sistema como a solução de seus problemas. Na realidade, ela aciona forças que colocam em relevo não somente a incontrolabilidade do sistema por qualquer processo racional, mas também, e ao mesmo tempo, sua própria incapacidade de cumprir as funções de controle que se definem como sua condição de existência e legitimidade.

A segunda consideração indica a possibilidade – e apenas a possibilidade – de uma evolução positiva dos acontecimentos. Contudo, essa possibilidade é muito real devido ao fato de a relação entre capital e trabalho ser não-simétrica. Isso quer dizer que, enquanto o capital depende absolutamente do trabalho – dado que o capital nada é sem o trabalho, e de sua exploração permanente –, a dependência do trabalho em relação ao capital é relativa, historicamente criada e historicamente superável. Noutras palavras, o trabalho não está condenado a continuar eternamente preso no círculo vicioso do capital.

A terceira consideração é igualmente relevante. Refere-se a uma importante mudança histórica na confrontação entre capital e trabalho, e traz consigo a necessidade de buscar uma nova forma de afirmar os interesses vitais dos “produtores livremente associados”. Isso contrasta nitidamente com o passado reformista que levou o movimento a um beco sem saída, liquidando simultaneamente até mesmo as concessões mais limitadas que foi possível arrancar do capital no passado. Assim, pela primeira vez na história, tornou-se totalmente inviável a manutenção da falsa lacuna entre metas imediatas e objetivos estratégicos globais – que tornou dominante no movimento operário a rota que conduziu ao beco sem saída do reformismo. O resultado é que a questão do controle real de uma ordem alternativa do metabolismo social surgiu na agenda histórica, por mais desfavoráveis que fossem as suas condições de realização no curto prazo.

E, finalmente, como corolário necessário desta última consideração, surgiu também a questão da igualdade substantiva, por oposição tanto à igualdade formal e à pronunciada desigualdade hierárquica substantiva do processo de tomada de decisão do capital, como a forma pela qual ela foi espelhada na fracassada experiência histórica pós-capitalista, pois o modo socialista alternativo de controle de uma ordem do metabolismo social não-antagônica e genuinamente planejável – uma necessidade absoluta no futuro – é totalmente inconcebível se não tiver a igualdade substantiva como princípio estruturador e regulador.”

 

 

“Ironicamente, pois, o desenvolvimento do sistema produtivo de longe o mais dinâmico da história culmina com a geração de um número cada vez maior de seres humanos supérfluos a seu maquinário de produção, muito embora – verdadeiro para o caráter incorrigivelmente contraditório do sistema – nada supérfluos como consumidores. A novidade histórica do tipo de desemprego no sistema globalmente completo é que as contradições de qualquer parte específica complicam e agravam o problema em outras partes e, por conseguinte, no todo. Pois a necessidade da produção de desemprego, “enxugamento” etc., surge necessariamente dos imperativos produtivos antagônicos do capital que buscam o lucro – e a acumulação – a que não pode absolutamente renunciar, de modo a restringir-se de acordo com os princípios racionais e humanamente gratificantes. O capital deve manter seu impulso inexorável em direção aos seus alvos autoexpansivos, por mais devastadoras que sejam as consequências, ou, do contrário, perde a capacidade de controlar o metabolismo social de reprodução. Não há interposição, nem sequer a mínima atenção às considerações humanas. Eis porque emerge pela primeira vez na história um sistema dinâmico – e dinamicamente destrutivo em suas implicações últimas – de controle sociometabólico autoexpansivo, que elimina cruelmente se necessário, a esmagadora maioria da humanidade do processo de trabalho. Esse é hoje o significado profundamente perturbador da “globalização”.”

 

 

“O capital é absolutamente incapaz de fazer considerações humanas.”

 

 

“Na verdade, a razão fundamental para a falta de transparência em nosso tempo não é o fato inalterável de que a sociedade é composta por indivíduos, mas sim a condição o radicalmente alterável de que eles estão submetidos a forças hierarquicamente estruturadas e antagônicas. As dificuldades básicas que confrontam a teoria econômica e o processo de decisão política não surgem das intenções divergentes dos indivíduos particulares – razão pela qual os bons serviços da “mão invisível” têm de ser invocados, enquanto se mantém o silêncio ou se deturpa de maneira tendenciosa a “mão” bem “visível” do Estado – mas da natureza antagônica das relações sociais prevalecentes. O poder dos indivíduos como indivíduos particulares – e não como personificações de forças sociais que agem de acordo com os imperativos de sua “posição social” – é extremamente exagerado, a fim de prejulgar a questão em favor da “mão invisível”. Entretanto, a principal razão pela qual o processo de decisão é incorrigivelmente viciado pela opacidade das determinações sociais pode ser localizada em seu caráter conflitual/adverso. Assim, para que possamos substituir a opacidade da objetividade reificada pela transparência das relações sociais controláveis, temos de superar a inércia fatídica da conflitualidade/adversidade.

A viabilidade do processo consciente de decisão econômica e política além do capital só é plausível sobre essa base. A submissão a uma disciplina exterior – seja em nome da moralidade fictícia que defende a “firme disciplina do mercado” ou a imposição da extração politicamente impingida de trabalho excedente – está, nesse respeito, fadada ao fracasso. A única disciplina compatível com a concepção de que estamos tratando (isto é, um novo tipo – não determinista – de teoria econômica, desenvolvido em conjunção com uma estrutura correspondente de processo consciente de decisão política) é a disciplina interna adotada pelos indivíduos com base nos objetivos compartilhados que precisam estabelecer para si mesmos de um modo não conflitual/adverso, sem pressão das determinações conflituosas irreconciliáveis. Do contrário, a consciência dos indivíduos se distorce e se transforma incorrigivelmente em variedades da falsa consciência. Pois são induzidos a racionalizar e justificar as decisões que lhes são impostas como se fossem decisões autônomas suas, certas e louváveis.

A teoria econômica não determinista pressupõe uma relação qualitativamente diferente entre economia e política em dois sentidos. O primeiro se refere à conexão direta entre os dois domínios, que podemos denominar a sua relação interna. Isso se segue do fato de que, uma vez que a preponderância dos imperativos materiais econômicos é deixada para trás, os processos de decisão política tradicionais podem ser significativamente redefinidos de uma forma muito menos unilateral. O segundo sentido, intimamente vinculado ao primeiro, diz respeito ao problema da superação da alienação tanto na economia quanto na política. Pois, o modo como os dois domínios funcionam sob o governo do capital só pode ser caracterizado como a alienação do poder de decisão dos indivíduos; de todos os indivíduos, que têm de se conformar ao papel alienado atribuído a eles como “personificações do capital” ou “personificações do trabalho”. Eis porque a noção concernente aos “indivíduos soberanos que afirmam suas intenções e perseguem seus interesses particulares na sociedade de mercado, a única sociedade sustentável” – em plena harmonia com o interesse da sociedade como um todo, graças à benevolente “mão invisível” – é tão absurdamente incapaz de caracterizar o estado de coisas atual25. O processo de decisão, tanto na política como no domínio da economia, é, na realidade, restringido e distorcido de maneira grosseira, correspondente aos imperativos alienantes da acumulação de capital e a expansão a que ambos têm de se submeter. Ao mesmo tempo, nega-se aos indivíduos como indivíduos o poder de decisão, no sentido de que suas “decisões” lhes são predeterminadas pelo “poder das coisas”, em sintonia com a alienação e a reificação. Assim, a mudança qualitativa na relação entre economia e política no segundo sentido significa a restituição do poder de decisão aos indivíduos como indivíduos sociais que agem conscientemente. Esse é o único modo possível de reconstruir a unidade de política e economia, ao lado da harmonização do processo de decisão individual e social no sentido significativo do termo.”

25 “O fundamento essencial do desenvolvimento da civilização moderna é permitir que as pessoas persigam suas próprias finalidades com base em seu próprio conhecimento e não sejam obrigadas pelos objetivos de outras pessoas”, Friedrich von Hayek, “The Moral Imperative of the Market”, em Martin J. Anderson (Ed.). The Unfinished Agenda: Essays on the Political Economy of Government Policy in Honour of Arthur Seldon (Londres, The Institute of Economic Affairs, 1986), p. 146. Alguém que fale nesses termos com toda a seriedade só pode evidenciar que não apenas não vive na “civilização moderna” da “sociedade moderna”, mas nem sequer no mesmo planeta que o restante de nós.

 

 

“O fracasso necessário do planejamento sob o capitalismo27 veio à tona na Inglaterra sob o governo de Harold Wilson, formado após a vitória eleitoral do Partido Trabalhista em 1964. Naquele momento, Wilson ainda falava de “conquistar os altos postos de comando da economia” e inventou um novo ministério econômico para lorde George Brown, o vice-líder do Partido Trabalhista. Esse ministério deveria introduzir mudanças importantes na administração da economia inglesa, em sintonia com os processos de planejamento defendidos. Entretanto, essa tentativa se verificou um completo fracasso e a aventura teve de conduzir a um fim infeliz. Em lugar de o governo conquistar os altos postos de comando da economia”, deu-se o oposto diametral: “os altos postos de comando” do grande círculo comercial conquistaram o governo, compelindo-o a abandonar por completo as antigas ideias da reforma social-democrática, e prenunciando com isso a transformação do próprio Partido Trabalhista no “amigo do comércio” – nas orgulhosas palavras de seu líder atual – do “Novo Trabalhismo”. No curso do desenvolvimento histórico do capital, e particularmente nas décadas pós-Segunda Guerra Mundial, o significado original de economia como o economizar foi completamente esquecido pelo imperativo do processo de autorreprodução sempre expansivo do sistema. Conforme mencionado anteriormente, a expansão sob o domínio do capital sempre foi subordinada ao imperativo da acumulação de capital, à qual – do ponto de vista do sistema – não se poderia admitir limites. O fracasso em alcançar o “crescimento” nesse sentido atrofiado, como a “expansão de bens de capital sempre expandidos”, é considerado, com extrema lugubridade, a violação da lógica interna do sistema. A ideia da introdução consciente de restrições reguladoras à acumulação de capital, no interesse do desenvolvimento sustentável, foi – e terá de ser sempre – excluída como algo absolutamente fadado ao fracasso. As determinações sistêmicas quase naturais do capital não a apoiariam. Assim, a “economia” se torna sinônima de “toda e qualquer coisa que conduza à contínua expansão/acumulação”, independentemente das consequências humanas e ambientais, que exclui o economizar como um conceito inútil, e mesmo hostil. Eis porque o planejamento abrangente como um corretivo necessário tem de ser categoricamente rejeitado, ainda que essa rejeição apriorística seja ideologicamente embelezada – desde Ludwig von Mises28 até Friedrich von Hayek e seus seguidores – como o “bom-senso”, impossível de desafiar.

No entanto, é evidente que, sem a redescoberta do significado original de economia como o necessário economizar da boa administração em um mundo de recursos finitos, sem a sua única aplicação consciente possível por meio do planejamento abrangente, as e consequências destrutivas do processo de reprodução do capital29 não podem ser reparadas. O desperdício extremo de nosso modo de controle sociometabólico – com respeito à utilização de recursos materiais não renováveis e ao perigoso impacto dos processos de produção do capital, bem como aos seus produtos grosseiramente subutilizados, sobre o meio-ambiente global – piora a cada dia, sem que haja nenhuma evidência de abordagem das determinações subjacentes na escala necessária. Mesmo as tentativas mais limitadas de planejar alguma melhoria, em um único domínio: a redução das emissões nocivas na atmosfera, por meio das “boas intenções” dos protocolos de Kyoto, são repudiadas sem cerimônia pelo país capitalista mais poderoso.

O problema é que abordar a necessidade de planejamento abrangente não é simplesmente uma questão de escala (parcial em sua aplicação a certos ramos da indústria por certas corporações, por exemplo, em oposição a abarcar o território nacional como um todo) ou mesmo da duração do processo (necessariamente temporário sob o capitalismo, no sentido de que deve restringir-se aos estados de emergência, por mais graves que sejam). Ainda mais importante, o compromisso com o planejamento abrangente coloca na agenda o desafio de entrever um modo de reprodução sociometabólico alternativo, ao menos por implicação. Pois, dadas as condições sob as quais o próprio problema pode surgir, até mesmo as medidas positivas parciais de intervenção reguladora – que, antes de tudo, tendem a ser predominantemente contramedidas às determinações quase naturais do capital – mantêm-se em constante perigo, sob a ameaça da completa reversão e mesmo da restauração capitalista em plena escala, a menos que se ampliem com êxito na direção de perfazer os tijolos do edifício de um modo radicalmente diferente de administrar o intercâmbio dos indivíduos entre si e com a natureza. A implosão do sistema de tipo soviético, com seu processo autoritário de planejamento, contestado de maneiras bastante heterodoxas pelos produtores, oferece uma prova bem eloquente da verdade dessa proposição.”

27 Uma mudança significativa nesse aspecto só seria possível em circunstâncias em que devido a algumas grandes crises econômicas e políticas – a pressão das massas populares, em conjunto com a prontidão das forças mais progressistas da legislação estatal, pudesse impugnar com a contundência e pelo tempo necessário a óbvia hostilidade dos círculos comerciais dominantes em direção a uma intervenção reguladora abrangente. Mas, evidentemente, uma situação como essa seria análoga ao estado de emergência experimentado durante a Segunda Guerra Mundial, ainda que em uma escala menor.

28 Ver o livro de Von Mises sobre o socialismo, Socialism (New Haven, Yale University Press, 1951).

29 Idealizado por muitos, inclusive por Schumpeter, como “destruição produtiva”, quando, na realidade, a produção destrutiva está se tornando cada vez mais dominante.

 

 

“Naturalmente, salientar a importância de uma perspectiva de longo prazo não significa que possamos ignorar o “aqui e agora”. Ao contrário, temos de nos preocupar com um horizonte muito mais extenso do que o habitual para que sejamos capazes de conceituar com realismo uma transição33 a uma ordem social diferente das determinações do presente. A perspectiva de longo prazo é necessária porque o alvo real da transformação só pode estabelecer-se no interior desse horizonte. Ademais, sem identificar o alvo apropriado, a jornada tende a se desnortear e, por conseguinte, as pessoas envolvidas podem facilmente se desviar de seus objetivos vitais. Por outro lado, o entendimento das determinações objetivas e subjetivas do “aqui e agora” tem a mesma importância. Pois a tarefa de instituir as mudanças necessárias se define já no presente, no sentido de que, a menos que sua realização tenha início no “aqui e agora” imediato, ainda que, por enquanto, de um modo modesto – com plena consciência das restrições existentes, bem como das dificuldades para se sustentar a jornada no seu horizonte mais remoto – não chegaremos a lugar nenhum. Embora não devamos encorajar, sem responsabilidade, uma ação precipitada e prematura, não podemos excluir o risco da prematuridade, ao dedicarmos-nos a um empreendimento tão fundamental e difícil como a instituição de uma grande mudança estrutural, nem mesmo quando os indivíduos concernidos agem com extrema responsabilidade. A verdade é que nada poderemos adquirir se ficarmos esperando as condições favoráveis” e “o momento certo”.”

33 Não é sem uma boa razão que o meu livro Para além do capital recebeu o seguinte subtítulo: “Rumo a uma teoria da transição”.

 

 

“Após mais de um século de promessas de eliminação – ou ao menos uma redução sensível – da desigualdade por meio da “taxação progressiva” e outras medidas legislativas do Estado e, portanto, de assegurar as condições do desenvolvimento socialmente viável em todo o mundo, verificou-se que a realidade é caracterizada por uma desigualdade sempre crescente, não apenas entre o “norte desenvolvido e o “sul subdesenvolvido”, mas também no interior dos países capitalisticamente mais avançados. Um relatório recente do Congresso dos Estados Unidos (que não pode ser acusado de ter “preconceito esquerdista”) admitiu que a renda do 1% mais rico da população norte-americana agora excede a dos 40% mais pobres3; um número que dobrou nas últimas duas décadas, sendo que 20% já era um número escandaloso mesmo nesse quadro anterior. Esses retrocessos caminharam lado a lado com a primeira estipulação de uma falsa oposição entre “igualdade de resultado” e “igualdade de oportunidade” e, em seguida, com o abandono até mesmo do falso apoio antes concedido à ideia (nunca realizada) de “igualdade de oportunidade”. Não que esse tipo de resultado final possa ser considerado surpreendente. Pois, uma vez que o “resultado” socialmente desafiador é eliminado de modo arbitrário da cena e oposto à “oportunidade”, esta última se torna desprovida de todo conteúdo e, em nome do termo totalmente vago da “igualdade” sem objeto (e pior: que nega resultados), torna-se a justificativa ideológica da negação prática efetiva de todas as oportunidades reais para aqueles que precisam delas.

Há muito tempo, os pensadores progressistas da burguesia emergente previam, otimistas, como de fato fez Henry Home, uma grande figura da escola histórica escocesa do Iluminismo, que a dominação de um ser social sobre o outro seria lembrada no futuro como um sonho ruim, pois “A razão, retomando sua autoridade soberana, banirá inteiramente a opressão e, no próximo século, considerar-se-á estranho que a opressão tenha predominado entre os seres sociais. Duvidar-se-á talvez até que tenha sido alguma vez seriamente posta em prática”4. Ironicamente, no entanto, à luz da forma como as coisas realmente se desenvolveram, o que hoje parece ser realmente difícil de acreditar é que os representantes intelectuais da burguesia em ascendência possam ter algum dia pensado dessa forma. Pois um gigante do Iluminismo francês do século XVIII, Denis Diderot, não hesitou em afirmar com grande radicalismo social que “se o trabalhador cotidiano é miserável a nação é miserável”5. Da mesma forma, Rousseau, com extremo radicalismo e ácido sarcasmo, descreveu a ordem prevalecente de dominação social e subordinação da seguinte maneira:

Podem-se resumir em poucas palavras os termos do pacto social entre esses dois níveis de homem: “Precisas de mim porque sou rico e tu és pobre. Chegaremos, pois, a um acordo. Permitirei que tenhas a honra de me servires, sob a condição de que concedas a mim o pouco que te resta, em troca dos esforços que despenderei em comandar-te”.6

Com o mesmo espírito, o grande filósofo italiano Giambattista Vico insistia em que o ápice do desenvolvimento histórico é “a era humana em que todos os homens reconheciam uns aos outros como iguais na natureza humana7. E, muito tempo antes, Thomas Münzer, o líder anabatista da revolução camponesa alemã, identificou com precisão em seu panfleto contra Lutero a causa fundamental do avanço do mal social em termos muito tangíveis, ao diagnosticá-lo como o culto à vendabilidade universal e à alienação. Conclui seu discurso afirmando como era intolerável o fato de que se tenha convertido em propriedade – aos peixes na água, aos pássaros no ar, as plantas na terra”8. Essa foi uma identificação perspicaz do que se desdobraria com poder integralmente engolidor no curso dos três séculos seguintes. Como é próprio às conquistas paradoxais das antecipações utópicas prematuras, expressou-se do ponto de vista das estruturas muito menos estabelecidas dos desenvolvimentos capitalistas iniciais uma visão muito mais clara dos perigos vindouros do que era perceptível aos participantes diretamente envolvidos nas vicissitudes das fases mais avançadas. Pois, uma vez que a tendência social de vendabilidade universal triunfa, em sintonia com as exigências internas da formação social do capital, aquilo que ainda aparece para Münzer como violação grosseira da ordem natural (e que, como sabemos, ameaça com o decorrer do tempo a própria existência da humanidade), para os pensadores que se identificam sem reservas com as restrições historicamente criadas (e a princípio igualmente impossíveis de se eliminar) da ordem social totalmente desenvolvida do capital parece evidentemente natural, inalterável e aceitável. Assim, muitas coisas tornam-se opacas e ofuscadas pela mudança do ponto de vista histórico. Mesmo o termo crucial da “liberdade” sofre uma redução em seu cerne alienado, saudado como a conquista “do poder de vender-se livremente” por meio do suposto “contrato entre iguais”, em oposição às restrições políticas da ordem feudal, mas ignorando e até idealizando as graves restrições materiais e sociais da nova ordem. Por conseguinte, os significados originais tanto de “liberdade” quanto de “igualdade” são transformados em determinações abstratas que se sustentam de maneira circular,9 tornando assim, como uma consequência necessária, a ideia de “fraternidade” – o terceiro membro das aspirações antes proclamadas em tom tão solene – extremamente redundante.”

3 Ver David Cay Johnston, “Gap between rich and poor found substantially wider”, em The New York Times, 5 de setembro de 1999.

4 Henry Home (lorde Kames), Loose Hints upon Education, chiefly concerning the Culture of the Heart (Londres, Thoemmes Continuum, [1781] 1996), p. 284.

5 Verbete de Diderot sobre Journalier na Encyclopédie.

6 Jean-Jacques Rousseau, A Discourse on Political Economy (Londres, Everyman edition, s. d.), p. 264. [Discurso sobre a economia política e Do contrato social, Petrópolis, Vozes, 1995 – N. T.) Rousseau também afirmou categoricamente que “a liberdade não pode existir sem a igualdade”, The Social Contract (Londres, Everyman, 1963), p. 42. [Na edição brasileira, lê-se: “Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência particular corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela”. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político (São Paulo. Abril Cultural, 1973), p. 72–N.T.)

7 Vico, The New Science, traduzido da terceira edição (Nova York, Doubleday & Co., [1974] 1961), p. 3. Grifos meus

8 Thomas Münzer, Hochverursachte Schutzrede und Antwort wider das geistlose, sanfilebende Fleisch zu Witten berg, welches mit verkehrter Weise durch den Diebstahl der heiligen Schrift die erbärmliche Christenheit also ganz jämmerlich besudelt hat (1524), citado por Marx em A questão judaica (São Paulo, Moraes, 1991), p. 60.

9 Em outras palavras, deparamo-nos com uma dupla circularidade, produzida pelo mais iníquo desenvolvimento histórico atual: define-se a “liberdade” como “igualdade contratual” (postulada abstratamente, mas na substância real extremamente fictícia), e a “igualdade” se esvazia no vago desejo de uma “liberdade” de aspirar à concessão de nada além da “igualdade de oportunidade” formalmente proclamada, mas socialmente nula.

 

 

“Por longuíssimo tempo, esperou-se que acreditássemos que todos os nossos problemas se resolveriam alegremente pelo “desenvolvimento” e pela “modernização” socialmente neutros. A tecnologia deveria superar por si só todos os obstáculos e dificuldades concebíveis. Era, na melhor das hipóteses, uma ilusão imposta a todos que, no desejo de encontrar uma saída para seu próprio papel ativo no processo de decisão, mantinham a esperança de que grandes melhorias em suas condições de existência se realizassem do modo prometido. Tiveram de descobrir com a amarga experiência que a panaceia tecnológica era um subterfúgio autovantajoso das contradições por parte daqueles que empunhavam os timões do controle social. A “revolução verde” na agricultura deveria ter resolvido de uma vez por todas o problema mundial da fome e da desnutrição. Ao contrário, criou corporações-monstro, como a Monsanto, que estabeleceram de tal forma seu poder em todo o mundo, que será necessária uma grande ação popular voltada às raízes do problema para erradicá-lo. Contudo, a ideologia das soluções estritamente tecnológicas continua a ser propagandeada até hoje, apesar de todos os fracassos. Recentemente, alguns líderes de governo, incluindo o inglês, começaram a pregar sermões sobre a vindoura “revolução verde industrial”, o que quer que isso signifique. Está claro, no entanto, que panaceia tecnológica de última moda é prometida, novamente, como uma forma de fugir da dimensão social e política inextirpável dos perigos ambientais cada vez mais intensos.

Assim, não é exagero dizer que, em nosso tempo, os interesses daqueles que nem sequer conseguem imaginar uma alternativa para a perspectiva de curto prazo da ordem atual, e para a projeção fantasiosa dos corretivos estritamente tecnológicos compatível com ela, colidem diretamente com o interesse da própria sobrevivência humana. No passado, o termo mágico para julgar a saúde de nosso sistema social era “crescimento”, que ainda hoje perdura como a estrutura em que se devem entrever as soluções. O que se pretende evitar com o louvor não qualificado do crescimento são precisamente as questões: que tipo de crescimento e com que finalidade? Em especial, porque a realidade do crescimento não qualificado sob nossas condições de reprodução sociometabólica se verifica como extremo desperdício e multiplica os problemas que as futuras gerações enfrentarão, já que um dia terão de lidar com as consequências da energia nuclear – tanto pacífica quanto militar – por exemplo. O parente do “crescimento”, o conceito de “desenvolvimento”, também deve sujeitar-se ao mesmo tipo de escrutínio crítico. Há muito tempo, quase todos o aceitavam sem hesitação e mobilizavam-se grandes recursos institucionais com o intuito de difundir o evangelho da “modernização e desenvolvimento” do tipo norte-americano no chamado “mundo subdesenvolvido”. Levou algum tempo para se perceber que havia algo fatalmente defeituoso no modelo recomendado. Pois, se o modelo dos Estados Unidos – no qual 4% da população mundial desperdiça 25% da energia mundial e dos recursos materiais estratégicos e também é responsável por 25% da poluição mundial – for seguido nos demais lugares, sufocaríamos todos num piscar de olhos. Eis porque se nos tornou necessário qualificar todo desenvolvimento futuro como desenvolvimento sustentável, a fim de preencher o conceito com um conteúdo realmente factível e socialmente desejável.”

 

 

“Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados. Consequentemente, uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança. Mas, sem um acordo sobre esse simples fato, caminhos dividem-se nitidamente. Pois, caso não se valorize um determinado modo de reprodução da sociedade como o necessário quadro de intercâmbio social, serão admitidos, em nome da reforma, apenas alguns ajustes menores em todos os âmbitos, incluindo o da educação. As mudanças sob tais limitações, apriorísticas e prejulgadas, são admissíveis apenas com o único e legítimo objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de forma que sejam mantidas intactas as determinações estruturais fundamentais da sociedade como um todo, em conformidade com as exigências inalteráveis da lógica global de um determinado sistema de reprodução. Podem-se ajustar as formas pelas quais uma multiplicidade de interesses particulares conflitantes se deve conformar com a regra geral preestabelecida da reprodução da sociedade, mas de forma nenhuma pode-se alterar a própria regra geral.

Essa lógica exclui, com uma irreversibilidade categórica, a possibilidade de legitimar o conflito entre as forças hegemônicas fundamentais rivais, em uma dada ordem social, como alternativas visíveis entre si, quer no campo da produção material, quer no âmbito cultural/educacional. Portanto, seria realmente um absurdo esperar uma formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que considerasse a hipótese da dominação dos servos, como classe, sobre os senhores da bem-estabelecida classe dominante. Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa hegemônica fundamental entre o capital e o trabalho. Não surpreende, portanto, que mesmo as mais nobres utopias educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital como modo de reprodução social metabólica. Os interesses objetivos de classe tinham de prevalecer mesmo quando os subjetivamente bem-intencionados autores dessas uto pias e discursos críticos observavam claramente e criticavam as manifestações desumanas dos interesses materiais dominantes. Suas posições críticas poderiam, no limite, apenas desejar utilizar as reformas educacionais que propusessem para remediar os piores efeitos da ordem reprodutiva capitalista estabelecida sem, contudo, eliminar seus fundamentos causais antagônicos e profundamente enraizados.

A razão para o fracasso de todos os esforços anteriores, e que se destinavam a instituir grandes mudanças na sociedade por meio de reformas educacionais lúcidas, reconciliadas com o ponto de vista do capital, consistia – e ainda consiste – no fato de as determinações fundamentais do sistema do capital serem irreformáveis. Como sabemos muito bem pela lamentável história da estratégia reformista, que já tem mais de cem anos, desde Edward Bernstein4 e seus colaboradores – que outrora prometeram a transformação gradual da ordem capitalista numa ordem qualitativamente diferente, socialista – o capital é irreformável porque, pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é totalmente incorrigível. Ou bem tem êxito em impor aos membros da sociedade, incluindo-se as personificações “carinhosas” do capital, os imperativos estruturais do seu sistema como um todo ou perde a sua viabilidade como o regulador historicamente dominante do modo bem-estabelecido de reprodução metabólica universal e social. Consequentemente, em seus parâmetros estruturais fundamentais, o capital deve permanecer sempre incontestável, mesmo que todos os tipos de corretivo estritamente marginais sejam não só compatíveis com seus preceitos, mas também benéficos, e realmente necessários a ele no interesse da sobrevivência continuada do sistema. Limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação social qualitativa. Do mesmo modo, contudo, procurar margens de reforma sistêmica na própria estrutura do sistema do capital é uma contradição em termos. É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente.”

4 Para uma discussão detalhada sobre a estratégia reformista de Bernstein, ver a seção 8.5 intitulada “O beco sem saída representativo de Bernstein”, em meu livro O poder da ideologia (São Paulo, Boitempo. 2004), p. 376-88.

Nenhum comentário:

Postar um comentário