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sexta-feira, 8 de maio de 2020

História e Consciência de Classe: Estudos sobre a dialética marxista (Parte III) – György Lukács

Editora: WMF Martins Fontes
ISBN: 978-85-469-0240-8
Tradução e notas: Marcelo Backes
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 600
Sinopse: Ver Parte I

“O empenho filosófico do jovem Marx orientava-se, em grande medida, no sentido de refutar as diversas teorias equivocadas da consciência (tanto a teoria “idealista” da escola hegeliana quanto a “materialista” de Feuerbach) e alcançar uma concepção correta sobre o papel da consciência na história. Já a Correspondência de 1843 concebe a consciência como imanente ao desenvolvimento. A consciência não está além do desenvolvimento histórico real. Não deve ser introduzida no mundo somente pelo filósofo; o filósofo não tem, portanto, o direito de lançar um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de desprezá-las. “Mostramos-lhe simplesmente [ao mundo] o porquê da sua luta na realidade, e a consciência é algo que ele tem de adquirir, mesmo que não queira.” Trata-se então somente de “explicar-lhes suas próprias ações”44. A grande polêmica contra Hegel45, na Sagrada família, concentra-se principalmente nesse ponto. A insuficiência de Hegel consiste no fato de ele deixar apenas aparentemente que o espírito absoluto componha de fato a história. Em relação aos processos históricos, a transcendência da consciência resultante dessa insuficiência torna-se, nos discípulos de Hegel, uma oposição arrogante e reacionária entre o “espírito” e a “massa”, oposição cujas debilidades, cujos absurdos e retrocessos a um nível já superado por Hegel são criticados impiedosamente por Marx. A crítica aforística a Feuerbach serve como complemento disso. Por outro lado, a ideia alcançada pelo materialismo de que a consciência é algo que pertence a este mundo passa a ser vista como uma simples fase do desenvolvimento, como a fase da “sociedade burguesa”, e a isso se opõe “a atividade prático-crítica”, a “transformação do mundo” como tarefa da consciência. Assim estava dado o fundamento filosófico para o ajuste de contas com os utopistas. Com efeito, no pensamento destes mostra-se a mesma dualidade de movimento social e consciência. A consciência aparece na sociedade como sendo de outro mundo e a retira do falso caminho até então percorrido para o caminho correto. O caráter não desenvolvido do movimento proletário ainda não lhes permite perceber na própria história, na maneira pela qual o proletariado se organiza em classe, ou seja, na consciência de classe do proletariado, a portadora do desenvolvimento. Ainda não estão em condição de “prestar contas do que se desenrola diante dos seus olhos e de se tornar o seu porta-voz”46.
44. Cartas dos Anais franco-alemães, MEW I, p. 345.
45. Cf. o ensaio “O que é marxismo ortodoxo?”.
46. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 143. Cf. também 111, 3, de Das kommunistische Manifest, MEW 4, pp. 489 ss.


“Pois é claro que toda a estrutura da produção capitalista repousa sobre essa interação entre uma necessidade submetida a leis estritas em todos os fenômenos isolados e uma irracionalidade relativa do processo como um todo. “A divisão do trabalho, tal como existe na manufatura, implica a autoridade absoluta do capitalista sobre homens que constituem simples membros de um mecanismo de conjunto que lhes pertence; a divisão social do trabalho opõe produtores independentes de mercadorias, que não reconhecem outra autoridade além daquela da concorrência, da coerção exercida pela pressão dos seus interesses mútuos.”29 Isso porque a racionalização capitalista, que se baseia no cálculo econômico privado, reclama em toda manifestação da vida essa relação mútua entre o pormenor submetido a leis e a totalidade contingente; ela pressupõe uma sociedade assim estruturada; produz e reproduz essa estrutura na medida em que se apossa da sociedade. Isso tem seu fundamento já na essência do cálculo especulador, da prática econômica dos possuidores de mercadorias, no estágio em que a troca de mercadorias se tornou universal. A concorrência entre os diversos proprietários de mercadorias seria impossível se à racionalidade dos fenômenos isolados correspondesse também uma configuração exata, racional e funcional das leis para toda a sociedade. Para que um cálculo racional seja possível, os sistemas de leis que regulam todas as particularidades de sua produção devem ser dominados por completo pelo proprietário de mercadorias. As oportunidades de exploração, as leis do “mercado” devem ser igualmente racionais, no sentido de que elas devem ser calculáveis e avaliadas segundo suas possibilidades. No entanto, não podem ser dominadas por uma “lei” como o são os fenômenos isolados, não podem de modo algum ser organizadas racionalmente por inteiro. Por si só, isso não exclui, evidentemente, o predomínio de uma “lei” sobre a totalidade. Contudo, essa “lei” deveria ser, de um lado, o produto “inconsciente” da atividade autônoma dos proprietários de mercadorias, que atuam sem depender uns dos outros, ou seja, uma lei das “contingências” que reagisse umas sobre as outras e não a de uma organização realmente racional. De outro, esse sistema de leis deve não somente se impor aos indivíduos, mas ainda jamais ser inteiramente adequadamente cognoscível. Pois o conhecimento completo da totalidade asseguraria ao sujeito desse conhecimento tal monopólio, que acabaria suprimindo a economia política.”
29. Kapital, I, IV, MEW 23, p. 377.


“O que há de novo no racionalismo moderno é que ele reivindica para si – e sua reivindicação vai crescendo ao longo do desenvolvimento – a descoberta do princípio da ligação entre todos os fenômenos que se opõem à vida do homem na natureza e na sociedade. Em contrapartida, todos os racionalismos anteriores nunca passaram de sistemas parciais. Os problemas “últimos” da existência humana persistem numa irracionalidade que escapa ao entendimento humano. Quanto mais tal sistema racional e parcial é ligado a essas questões “últimas” da existência, mais cruamente revela-se seu caráter simplesmente parcial de auxiliar e que não apreende a “essência”.”


“Marx exprimiu claramente a posição particular do proletariado na sociedade e na história, o ponto de vista a partir do qual sua essência adquire importância como sujeito-objeto idêntico do processo histórico-social de desenvolvimento, já em sua primeira crítica à Filosofia do direito, de Hegel: “Quando o proletariado anuncia a dissolução da ordem mundial até então existente, exprime apenas o segredo de sua própria existência, pois ele é a dissolução efetiva dessa ordem mundial.” Sendo assim, o autoconhecimento do proletariado é, ao mesmo tempo, o conhecimento objetivo da essência da sociedade. Enquanto persegue os seus fins de classe, o proletariado realiza de maneira consciente os fins – objetivos – do desenvolvimento da sociedade, os quais, sem a sua intervenção consciente, teriam de permanecer como possibilidades abstratas e barreiras objetivas.
Mas o que se modificou socialmente com essa atitude e até mesmo com a possibilidade de tomar intelectualmente uma posição em relação à sociedade? “De início”: absolutamente nada. Pois o proletariado aparece como produto da ordem social capitalista. Suas formas de existência – como mostramos na primeira seção – são constituídas de tal maneira, que a reificação deve se manifestar nelas do modo mais marcante e mais penetrante, produzindo a desumanização mais profunda. Portanto, o proletariado partilha a reificação de todas as manifestações de vida com a burguesia. Diz Marx108: “A classe possuidora e a classe do proletariado apresentam a mesma auto-alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade e confirmada nessa auto-alienação, reconhece a alienação como seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana. A segunda se sente aniquilada na alienação, percebe nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana.”
108. Die heilige Familie, MEW 2, p. 37.


“Por certo, mesmo no primeiro caso, a ciência histórica segundo o ideal de conhecimento de Rickert apareceria como extremamente problemática. Pois os “fatos” da história, a despeito de toda “caracterização de valor”, têm de permanecer numa facticidade bruta e incompreendida, visto que toda possibilidade de compreendê-los realmente, de perceber seu verdadeiro sentido, sua real função no processo histórico, tornou-se sistematicamente impossível com a renúncia do método a um conhecimento da totalidade. Mas a questão da história universal, como mostramos111, é um problema de método que surge necessariamente em toda exposição até do menor capítulo da história, do menor recorte. Pois a história como totalidade (história universal) não é nem a soma simplesmente mecânica dos acontecimentos históricos isolados, nem um princípio heurístico que transcende cada acontecimento histórico e que, portanto, só poderia se impor por meio de uma disciplina própria, a filosofia da história. A totalidade da história é, antes de tudo, ela mesma um poder histórico real– ainda que inconsciente e por isso desconhecida até hoje –, que não se deixa separar da realidade (e, portanto, do conhecimento) dos fatos históricos isolados, sem suprimir também sua realidade e sua facticidade. Ela é o fundamento último e real de sua realidade, de sua facticidade, portanto, da verdadeira possibilidade de conhecê-las, mesmo como fatos isolados. Já evocamos a teoria das crises de Sismondi para mostrar como a utilização deficiente da categoria da totalidade impediu o conhecimento real de um fenômeno isolado, a despeito da observação exata de todos os seus detalhes. Nessa mesma ocasião, vimos que a integração na totalidade (cuja condição é admitir que a verdadeira realidade histórica é precisamente o todo do processo histórico) muda não somente nosso julgamento sobre o fenômeno isolado de maneira decisiva, mas também provoca uma mudança fundamental no conteúdo desse fenômeno, enquanto fenômeno isolado. A oposição entre essa atitude, que isola os fenômenos históricos, e o ponto de vista da totalidade se impõe de maneira ainda mais flagrante se compararmos, por exemplo, a concepção burguesa e econômica da função da máquina com aquela de Marx112: “As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem porque não nascem da própria maquinaria, mas de sua utilização capitalista! Sendo assim, uma vez que a maquinaria, considerada isoladamente, encurta o tempo de trabalho, enquanto seu uso capitalista prolonga a jornada de trabalho; uma vez que, por si só, ameniza o trabalho, enquanto seu uso capitalista aumenta sua intensidade; uma vez que, por si só, representa uma vitória do homem sobre as forças da natureza, enquanto seu uso capitalista o coloca sob o jugo dessas forças; uma vez que, por si só, aumenta a riqueza dos produtores, enquanto seu uso capitalista os empobrece etc., o economista burguês explica que a consideração da maquinaria em si prova rigorosamente que todas essas contradições patentes não passam de uma aparência da realidade comum, mas que, em si, isto é, também na teoria, não existem.”
111. Cf. o ensaio, “O que é o marxismo ortodoxo?”.
112. Kapital I, MEW 23, p. 465


“A realidade imediata não pode, nem para o homem que a vive, nem para o historiador, ser dada imediatamente em suas formas estruturais verdadeiras. Estas devem ser primeiro buscadas e encontradas – e o caminho que leva à sua descoberta é o caminho do conhecimento do processo de desenvolvimento histórico como totalidade. À primeira vista – e todos aqueles que insistem no imediatismo nunca conseguirão superar essa “primeira vista” –, parece que ir mais longe implica um movimento de puro pensamento, um processo de abstração. Mas essa aparência surge dos hábitos de pensar e de sentir do simples imediatismo, no qual as formas imediatamente dadas dos objetos, sua existência e seu modo de ser imediatos aparecem como o que é primeiro, real, objetivo, enquanto suas “relações” se mostram como algo secundário e meramente subjetivo. Para esse imediatismo, toda modificação real deve representar algo incompreensível. O fato inegável da modificação se reflete, para as formas de consciência do imediatismo, como catástrofe, como mudança brutal e repentina, que vem do exterior e exclui toda mediação113. Para poder com a mudança, o pensamento deve superar a separação rígida dos seus objetos; deve colocar suas interrelações e a interação dessas “relações” e das “coisas” no mesmo plano de realidade. Quanto mais se distancia do simples imediatismo, mais se estende a malha dessas “relações”, quanto mais completa a integração das “coisas” ao sistema dessas relações, mais a mudança parece perder seu caráter incompreensível, despojar-se de sua essência aparentemente catastrófica e tornar-se, assim, compreensível.”
113 Na própria história, qualquer um pode ver facilmente que uma concepção que não se refere à história mundial nem à totalidade do processo de desenvolvimento acaba por transformar os pontos de mudança mais decisivos da história em catástrofes absurdas, visto que suas causas situam-se fora daqueles domínios em que suas consequências apresentam-se como sendo as mais catastróficas. Basta pensar na migração dos povos, na linha descendente da história alemã desde o Renascimento etc.”


“Desde a Guerra Mundial e a Revolução Mundial, a incapacidade completa de todos os pensadores e historiadores burgueses de ver os acontecimentos presentes da história mundial como história universal permanecerá como uma das mais horríveis lembranças para qualquer homem em são juízo. E esse fracasso total, que levou historiados meritórios e pensadores perspicazes ao piedoso ou desprezível nível intelectual do pior jornalismo de província, não pode ser sempre explicado como mero resultado de pressões exteriores (censura, adaptação aos interesses “nacionais” de classe etc.). A razão metódica para esse fracasso baseia-se também no fato de que relação contemplativa e imediata entre sujeito e objeto do conhecimento cria justamente esse espaço intermediário e irracional, “obscuro e vazio”, conforme a descrição de Fichte. Essa obscuridade e esse vazio, presentes no conhecimento do passado, mas ocultos pelo distanciamento criado pelo tempo, pelo espaço e pela mediação histórica, são agora necessariamente desvendados. Talvez a bela parábola de Ernst Bloch possa ilustrar esse limite teórico com mais clareza do que uma análise detalhada, que de todo modo não pode ser tratada aqui. Quando a natureza torna-se paisagem – em oposição, por exemplo, à vida inconsciente do camponês na natureza –, o imediatismo artístico vivenciado na paisagem, que evidentemente passou por muitas mediações, pressupõe nesse caso uma distância espacial entre o observador e a paisagem. O observador está fora dela, do contrário seria impossível que a natureza se tornasse uma paisagem para ele. Se ele tentasse integrar a si mesmo e a natureza que o envolve imediatamente e espacialmente na “natureza como paisagem”, sem sair desse imediatismo contemplativo e estético, logo ficaria claro que a paisagem começa a ser paisagem apenas a partir de uma distância determinada (embora variável) em relação ao observador, e que este só pode ter com a natureza essa relação de paisagem como observador espacialmente separado. Evidentemente, isso é apenas um exemplo que esclarece a situação teórica, pois a relação com a paisagem encontra na arte sua expressão adequada e não problemática, embora não se possa esquecer que na arte também se estabelece essa mesma distância intransponível entre o sujeito e o objeto, sempre presente na vida moderna, e que a arte pode significar apenas a configuração, e não a resolução dessa problemática. No entanto, tão logo a história é impelida para o presente – e isso é inevitável, visto que nos interessamos pela história para compreender realmente o presente –, esse “espaço nocivo”, segundo as palavras de Bloch, torna-se evidente. Como resultado da incapacidade de compreender a história, a atitude contemplativa da burguesia polariza-se em dois extremos: os “grandes indivíduos” como criadores soberanos da história e as “leis naturais” do meio histórico. Ambos são igualmente impotentes – quer estejam separados ou reunidos – quando desafiados a produzir uma interpretação do presente em toda a sua novidade radical119.”
119. Remeto novamente ao dilema do antigo materialismo exposto por Plekhanov. Conforme Marx mostrou em sua crítica contra Bruno Bauer (Die heilige Familie, MEW 2, pp. 82 ss.), a posição lógica de toda concepção burguesa da história tende à mecanização da “massa” e à irracionalização do herói. No entanto, pode-se encontrar, em Carlyle ou Nietzsche, exatamente a mesma dualidade de pontos de vista. Mesmo um historiador tão prudente como Rickert (apesar das ressalvas, por exemplo, op. cit., p. 380) tende a considerar o “meio” e o “movimento das massas” como determinados por leis naturais e apenas a personalidade individual como individualidade histórica (op. cit., pp. 444, 460-1 etc.).


“Tanto a forma objetiva do presente, elaborada intelectualmente, quanto o ponto de partida objetivo dessas mesmas elaborações fazem parte da sua essência social. Se, portanto, o ponto de vista do proletariado é confrontado com o da classe burguesa, o pensamento proletário não exige de modo algum uma tábula rasa, um recomeço “sem pressupostos” para a compreensão da realidade, como o fez o pensamento burguês em relação às formas feudais da Idade Média – pelo menos em sua tendência fundamental. É justamente porque o pensamento proletário tem por objetivo prático a transformação fundamental do conjunto da sociedade que ele concebe a sociedade burguesa e todas as suas produções intelectuais e artísticas como ponto de partida para seu próprio método. A função metodológica das categorias da mediação consiste no fato de que, com sua ajuda, aquelas significações imanentes que advêm necessariamente aos objetos da sociedade burguesa (mas que também estão necessariamente ausentes do surgimento imediato desses objetos na sociedade burguesa e, portanto, do seu reflexo mental no pensamento da burguesia) podem tornar-se objetivamente ativas e com isso ser elevadas ao nível da consciência do proletariado. Ou seja, não é nem um mero acaso, nem um problema puramente teórico-científico o fato de a burguesia deter-se teoricamente no imediatismo, enquanto o proletariado vai além dele. Na diferença dessas duas atitudes teóricas expressa-se, antes, a distinção do ser social de ambas as classes. Certamente, o conhecimento resultante do ponto de vista do proletariado é aquele objetiva e cientificamente superior. Deve-se ao seu método a solução daqueles problemas em torno dos quais os maiores pensadores da época burguesa se debateram inutilmente, ou seja, o adequado conhecimento histórico do capitalismo, que para o pensamento burguês devia permanecer inalcançável. Contudo, essa gradação objetiva do valor cognitivo do método novamente se mostra, por um lado, como problema histórico-social, como consequência necessária dos tipos de sociedade representados por ambas as classes e suas sucessões históricas, de modo que o “falso”, o “unilateral” da compreensão burguesa da história aparece como fator necessário na construção metódica do conhecimento social127. Por outro, isso mostra que todo método está necessariamente ligado ao ser da classe concernente. Para a burguesia, seu método ascende diretamente do seu ser social, o que significa que o simples imediatismo adere ao seu pensamento como algo exterior, mas, por isso mesmo, também como uma barreira insuperável do seu pensamento. Para o proletário, ao contrário, trata-se de superar internamente essa barreira do imediatismo no ponto departida, no momento em que assume seu ponto de vista. E visto que o método dialético produz e reproduz continuamente seus próprios aspectos essenciais, que sua essência é a negação de um desenvolvimento retilíneo e plano do pensamento, o proletariado encontra-se repetidas vezes confrontado com esse problema do ponto de partida tanto em seu esforço para compreender a realidade, como em cada passo prático e histórico. Para o proletariado, a barreira do imediatismo tornou-se uma barreira interna. Com isso, o problema é formulado claramente; com semelhante formulação do problema, já se abre caminho para uma possível resposta128.”
127. De fato, Engels também aceitou a teoria hegeliana do falso (que tem sua melhor definição no prefácio à Fenomenologia, Werke, II, pp. 30 ss.). Cf., por exemplo, a crítica do papel do “mal” na história. Feuerbach, MEW 21, p. 287. Isso se refere, no entanto, somente aos representantes efetivamente originais do pensamento burguês. Epígonos, ecléticos e meros defensores dos interesses da classe declinante pertencem a uma ordem de consideração totalmente diferente.
128. Sobre essa diferença entre proletariado e burguesia, cf. o ensaio “Consciência de classe”.


“A quantificação dos objetos e o fato de serem determinados por categorias abstratas da reflexão manifesta-se na vida do trabalhador diretamente como um processo de abstração, que se efetua nele próprio, que o separa de sua força de trabalho, obrigando-o a vendê-la como uma mercadoria que lhe pertence. Ao vender essa sua única mercadoria, e visto que ela é inseparável de sua pessoa física, o trabalhador insere a si mesmo e a ela num processo parcial, produzido mecânica e racionalmente, que ele já descobriu pronto, acabado e funcionando sem ele, e no qual ele é inserido como mero número reduzido a uma quantidade abstrata, como um instrumento específico mecanizado e racionalizado.
Desse modo, para o trabalhador, o caráter reificado da manifestação imediata da sociedade capitalista é levado ao extremo. Evidentemente, também para os capitalistas existe essa duplicação da personalidade, essa dilaceração do homem num elemento do movimento das mercadorias e num espectador (objetivo e impotente) desse movimento131. Mas, para a sua consciência, esse movimento assume necessariamente a forma de uma atividade – decerto objetivamente aparente –, de um efeito do seu sujeito. Essa aparência esconde dele o verdadeiro estado das coisas, enquanto para o trabalhador, a quem é negada essa margem de atividade aparente, a dilaceração do seu sujeito conserva a forma brutal do que tende a ser sua escravização sem limites. Por isso, enquanto objeto, é obrigado a sofrer um processo em que se transforma em mercadoria e se reduz à simples quantidade.”
131. Nisso se baseiam categorialmente todas as chamadas teorias da abstinência. A isso pertence sobretudo o significado, destacado por Max Weber, da “ascese intramundana” para o nascimento do “espírito” do capitalismo. Marx também constata esse fato, quando ressalta que, para os capitalistas, “seu próprio consumo privado é considerado como um roubo na acumulação do seu capital, assim como na contabilidade italiana os gastos privados figuram ao lado do débito dos capitalistas, oposto ao capital”. Kapital I, MEW 23, p. 619.


“Isso nos permite compreender o motivo pelo qual somente no proletariado a transformação em mercadoria da produção do indivíduo, antes separada de toda a sua personalidade, converte-se numa consciência revolucionária de classe. Com efeito, mostramos na primeira seção que a estrutura fundamental da reificação pode ser comprovada por todas as formas sociais do capitalismo moderno (burocracia). No entanto, essa estrutura só se torna evidente e só pode se tornar consciente na relação de trabalho do proletariado. Antes de tudo, seu trabalho possui, já no seu ser imediatamente dado, a forma nua e abstrata da mercadoria, enquanto em outras formas essa estrutura esconde-se atrás de uma fachada de “trabalho intelectual”, de “responsabilidade” etc. (às vezes atrás das formas de “patriarcalismo”); e quanto mais profundamente a reificação se estender na “alma” daquele que vende sua produção como mercadoria, mais ilusória será essa aparência (jornalismo). A essa dissimulação objetiva da forma mercantil corresponde um elemento subjetivo, ou seja, embora o processo que reifica o trabalhador e o transforma em mercadoria o desumanize, atrofiando e mutilando sua “alma” – enquanto ele não se rebelar conscientemente contra isso –, sua essência humana e anímica não são transformadas em mercadoria. Portanto, ele pode objetivar-se internamente de maneira completa contra essa sua existência, enquanto o homem reificado na burocracia etc. reifica-se, mecaniza-se, torna-se mercadoria, também naqueles órgãos que poderiam ser os únicos portadores de sua rebelião contra essa reificação. Seus pensamentos, sentimentos etc. são igualmente reificados em seu ser qualitativo. “Porém, é muito mais difícil”, diz Hegel137, “tornar fluidos os pensamentos rígidos do que a existência sensível.” Por fim, essa corrupção assume também formas objetivas. O trabalhador vê sua posição no processo de produção ora como algo definitivo, ora como uma forma imediata do caráter em si da mercadoria (a insegurança da oscilação diária do mercado etc.). Em contrapartida, em outras formas existe tanto a aparência de uma estabilidade (a rotina do serviço, a aposentadoria etc.) como a possibilidade – abstrata – de uma ascensão individual à classe dominante. Com isso, cultiva-se uma “consciência de status” apropriada para impedir de maneira eficaz o surgimento da consciência de classe. Desse modo, a negatividade puramente abstrata na existência do trabalhador constitui objetivamente não apenas a forma mais típica de manifestação da reificação, o modelo estrutural para a socialização capitalista; é também, subjetivamente e por essa razão, o ponto em que essa estrutura pode ser elevada à consciência e, dessa maneira, rompida na prática. “O trabalho enquanto determinação deixou de constituir com o indivíduo uma particularidade”, diz Marx138; é preciso apenas que as falsas formas de manifestação dessa existência sejam abolidas em seu imediatismo, para que a própria existência surja como classe para o proletariado.”
137. Werke n, p. 27.


“No entanto, a condição social do proletariado e seu ponto de vista correspondente ultrapassam de maneira qualitativamente decisiva o exemplo aqui mencionado. A peculiaridade do capitalismo consiste exatamente no fato de ele superar todas “as barreiras naturais” e transformar o conjunto das relações entre os homens numa relação puramente social142. Aprisionado nas categorias fetichistas, o pensamento burguês faz com que os efeitos dessas relações recíprocas dos homens se solidifiquem; por isso, esse pensamento permanece intelectualmente atrasado em relação ao desenvolvimento objetivo. As categorias abstratas e racionais da reflexão, que constituem a expressão objetiva e imediata dessa – primeira – socialização efetiva de toda a sociedade humana, aparecem para o pensamento burguês como algo último e insuperável. (Por isso, o pensamento burguês encontra-se numa relação imediata com elas.) O proletariado, porém, está colocado no centro desse processo de socialização. Essa metamorfose do trabalho em mercadoria elimina, por um lado, tudo o que é “humano” da existência imediata do proletariado e, por outro, o mesmo desenvolvimento anula em medida crescente tudo o que é “natural”, toda relação direta com a natureza partindo das formas sociais, de tal modo que, justamente em sua objetividade distante da humanidade e mesmo inumana, o homem socializado pode revelar-se como seu núcleo. E é nessa objetivação, nessa racionalização e coisificação de todas as formas sociais que aparece claramente, pela primeira vez, a estrutura da sociedade constituída a partir das relações dos homens entre si.”
142. Cf. a esse respeito a análise de Marx sobre o exército industrial de reserva e sobre a superpopulação. Kapital I, MEW23, pp. 657 ss.

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