Editora: Vozes
ISBN:
978-85-3262-291-4
Tradução: Vera
Lúcia Mello Josceline e Jaime Clasen (posfácio)
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272
Sinopse: Ver Parte I
Apesar disso, sem referir-nos a essa tradição não nos será possível
entender a natureza intransigente do anticapitalismo da Teologia da Libertação
nem o poder de sua força ética e religiosa.
A oposição irreconciliável (outro termo de Weber: Universohnlich) ou “luta de princípios” [prinzipiellen Kampf] da ética católica contra a modernidade
capitalista foi a inspiração para a crítica que os teólogos da libertação fazem
da reconciliação da Igreja com o mundo (burguês) moderno. Segundo o teólogo
chileno Pablo Richard, um dos fundadores do movimento “Cristãos pelo
socialismo”:
“para as classes oprimidas,
essa convergência, ou coerência entre a fé e o mundo moderno é uma realidade
estranha porque representa a santificação da opressão. O encontro entre a fé e
a razão científica moderna, entre a salvação e o progresso humano, aparece,
portanto, como um reflexo coerente do encontro ou da reconciliação entre a
Igreja e as classes dominantes. O processo de modernização da Igreja e de sua
conciliação com o mundo moderno se perverte no momento em que legitima o
sistema de dominação”.
Richard acrescenta o seguinte argumento, que parece fazer um eco
perfeito às observações de Weber sobre as razões da “afinidade negativa” entre
a Igreja e o capitalismo: “O cristianismo, reduzido a um código formal de
valores e princípios pela modernização, não pode, de forma alguma, interferir
com os cálculos econômicos, com a lei da maximização dos lucros, com a lei do
mercado”. A vida econômica segue seu curso, segundo a “lógica impiedosa da
racionalidade econômica e política do sistema capitalista moderno”32.
Outro tema característico da Teologia da Libertação é seu ataque ao
capitalismo como falsa religião, uma
nova forma de idolatria: a idolatria do Dinheiro (o antigo deus Mammon), do
Capital ou do Mercado. Combinando a análise marxista (moderna) do fetichismo da
mercadoria com a denúncia profética de deus falsos do Velho Testamento
(tradicional), os teólogos latino-americanos insistem a respeito da natureza
maligna desses ídolos cruéis que exigem sacrifícios humanos (“a dívida
externa”, por exemplo): os ídolos capitalistas ou fetiches (no sentido de Marx)
são Moloques que devoram a vida humana – uma imagem também usada por Marx em O Capital. A luta do Cristianismo da
Libertação contra a idolatria (capitalista) é apresentada como uma guerra de
deuses – como sabemos um conceito weberiano – entre o Deus da Vida e os ídolos
da morte (Jon Sobrino), ou entre o Deus de Jesus Cristo e a multiplicidade de
deuses no Olimpo do sistema capitalista (Pablo Richard).”
32 Max Weber, Die protestantische Ethik II. Kritiken und
Antikritiken. Gütersloh: GTB, 1972, p. 168.
“Para os teólogos da libertação e os agentes
pastorais que trabalham com as comunidades de base, um dos aspectos mais
negativos da modernidade urbana/industrial na América Latina — de um ponto de
vista social e ético — é a destruição dos elos comunitários tradicionais:
populações inteiras estão sendo desarraigadas de seu ambiente rural e
comunitário com o desenvolvimento do agrocapitalismo (“seres humanos
substituídos por carneiros” segundo a queixa de Tomás More — ou em vez de
carneiros, em muitos dos países latino-americanos, por gado) e jogados na
periferia dos centros urbanos, onde encontram um clima de individualismo
egoísta, uma competição descontrolada e a luta brutal pela sobrevivência. Em um
livro recente sobre as comunidades eclesiais de base, o jesuíta e teólogo
brasileiro Marcello Azevedo acusa a modernidade capitalista de ser responsável
pela ruptura de todo os elos entre o indivíduo e seu grupo e introduz as CEBs
como uma expressão concentrada de uma tentativa dupla de restaurar a
comunidade, na sociedade e na Igreja45. (...)
Estaremos, portanto, diante de uma tentativa
de voltar à comunidade orgânica tradicional da pré-modernidade — a Gemeinschaft descrita por Tönnies? Sim e
não. Sim, na medida em que diante de uma sociedade moderna que, segundo Leonardo
Boff “produziu uma atomização da existência e uma anonimidade geral de todas as
pessoas”, tenta-se criar (ou recriar) “comunidades onde as pessoas conhecem e
reconhecem umas às outras”, caracterizada de forma ideal por “relações diretas
de reciprocidade, fraternidade profunda ajuda mutua, comunhão em ideias
evangélicas e igualdade entre seus membros”47. Não, na medida em que
as comunidades não são simplesmente a reprodução de relacionamentos sociais
pré-modernos.”
45 Marcello Azevedo, SJ, Comunidades eclesiais de base e inculturação da fé. São Paulo:
Loyola, cap. II.1.
47 Leonardo Boff, Église en genèse. Les communautés de base. Paris: Desclée, 1978, p.
7-21.
“Em termos gerais, os teólogos da libertação
e a liderança das comunidades de base criticam a ideologia modernizante das
elites latino-americanas (tanto conservadoras como progressistas) e focalizam
os limites, as contradições e os desastres da modernidade
industrial/capitalista. Um dos leitmotivs
de seus documentos é que o progresso na América Latina ocorre às custas dos
pobres. A tecnologia propriamente dita não ocupa um lugar central nesse
discurso crítico, que só enfatiza que, nas sociedades contemporâneas
latino-americanas, a modernidade tecnológica e os benefícios da civilização são
monopolizados pelo Estado e pelas classes dominantes. Nas CEBs brasileiras por
exemplo e entre agentes pastorais, consultores leigos, teólogos e bispos que
cooperam com elas – é possível encontrar uma profunda desconfiança dos chamados
“megaprojetos de desenvolvimento” baseados na tecnologia moderna: barragens
hidroelétricas, rodovias expressas, usinas químicas ou nucleares gigantescas,
imensas empresas agroindustriais etc. Esses projetos são muitas vezes descritos
como “faraônicos” — uma expressão bíblica com conotações sociais e religiosas
claramente negativas. Os projetos preferidos pelas CEBs são empreendimentos de
cooperativas locais, com técnicas tradicionais ou semimodernas, empregando
pouco capital e muita mão de obra.
Dito isso, no entanto, é verdade que o
Cristianismo da Libertação não tem uma doutrina explícita sobre tecnologia. É
sobretudo no contexto social e político que o uso das tecnologias modernas é
rejeitado ou criticado. As técnicas modernas não são avaliadas pelos resultados
econômicos que produzem – em termos de lucro, rentabilidade, produtividade,
renda de exportações ou em moedas fortes – e sim em termos de suas
consequências para os pobres. Se as consequências forem positivas – em termos
de emprego ou condições de vida – são aceitas; se não o forem, podem ser
recusadas. O que vemos aqui é um certo pragmatismo, combinado com uma atitude
moral cuja inspiração é religiosa – a opção preferencial pelos pobres é o
critério pelo qual avaliamos a tecnologia.”
“O Cristianismo da Libertação, o movimento
social que tem sua expressão intelectual na Teologia da Libertação, critica a
modernidade “realmente existente” na América Latina (capitalismo dependente)
tanto em nome de valores pré-modernos como de uma modernidade utópica (a sociedade
sem classes), através da mediação socioanalítica da teoria marxista, que une a
crítica dos primeiros e a promessa da segunda. As posições modernas da Teologia da Libertação são inseparáveis de
suas pressuposições tradicionais – e
vice-versa. Temos aqui uma forma sociocultural que evita as dicotomias
clássicas entre modernidade e tradição, ética e ciência, religião e mundo
secular. Como uma reapropriação moderna da tradição, essa configuração cultural
tanto preserva como nega a tradição e a modernidade, em um processo de síntese
“dialética”. Sua opção preferencial pelos pobres é o critério segundo o qual
julga e avalia a doutrina tradicional da Igreja e também a sociedade ocidental
moderna.
É aqui, precisamente, onde reside a diferença
entre a Teologia da Libertação e as teologias progressistas europeias. Em um
livro recente, o teólogo francês Christian Duquoc afirmou, com enorme
percepção, que essas últimas teologias consideram a exclusão (dos pobres ou dos
países do Terceiro Mundo) como algo temporário ou acidental: o futuro pertence
ao Ocidente e ao progresso econômico, social e político que ele traz. Ao
contrário, a Teologia da Libertação considera a história de uma perspectiva
inversa, aquela dos vencidos e excluídos, os pobres (no sentido mais amplo,
incluindo as classes, raças e culturas oprimidas), que são os portadores da
universalidade e da salvação. Ao contrário da cultura progressista europeia, a
Teologia da Libertação rejeita a visão otimista da história como progresso, a
avaliação da tecnologia e da ciência moderna como condições objetivas para esse
progresso e a emancipação do indivíduo como seu critério principal. Isso não
quer dizer que ela rejeita o progresso técnico e científico ou a estrutura
formal das liberdades individuais: apenas ela não pode aceitar uma visão da
história que tem como posto de observação esses critérios ambivalentes
ocidentais55. Duquoc conclui através dessa comparação que Roma
prefere a Teologia da Libertação às teologias ocidentais que surgiram do
Iluminismo. Será possível que a participação ativa de cristãos na luta dos
pobres latino-americanos por libertação social parece, aos olhos do Vaticano,
menos subversiva que a aspiração dos intelectuais católicos europeus por
emancipação individual? Isso não está nada evidente: nos dois casos, Roma
enfrenta um desafio a sua autoridade e ao sistema de poder tradicional da
Igreja.
Na verdade, a Teologia da Libertação
compartilha algumas premissas básicas da cultura progressista ocidental, mas,
ao mesmo tempo, tem muito em comum com uma tradição diferente – o Romantismo. O
Cristianismo da Libertação, como outros movimentos sociais ou culturais contemporâneos
(por exemplo, a ecologia), é, em grande parte, um movimento Romântico, ou seja,
um movimento que protesta contra aspectos importantes da sociedade
capitalista/industrial moderna em nome de valores pré-modernos – nesse caso,
religião e comunidade.
Alguns autores brasileiros se referem à
natureza Romântica da “Igreja dos Pobres” e à sua utopia comunitária como evidência
de sua natureza retrógrada56. No entanto, existe também um
Romantismo revolucionário e/ou utópico, cujo objetivo não é uma volta ao
passado, uma impossível restauração de comunidades pré-modernas, e sim um
desvio que, saindo do passado, vai direto ao futuro, a projeção de valores
passados em uma nova utopia. A essa tradição, que funde nostalgias góticas (ou
pré-históricas) com o Iluminismo, que se estende de Rousseau a William Morris e
de Ernst Bloch a José Carlos Mariátegui, também pertence a Teologia da
Libertação.”
55 Christian Duqoc, Liberátion et
progressisme. Paris: Cerf, 1988, p. 28-96.
56 Veja Roberto Romano, Brasil: Igreja contra estado: crítica ao populismo
católico. São Paulo: Kairos, 1979, p. 173, 230-231.
Um conceito que pode demonstrar ser esclarecedor nesse tipo de análise é
aquele, já mencionado, utilizado por Max Weber para estudar o relacionamento
reciproco entre formas religiosas e ethos
econômico: a afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft].
Com base em certas analogias, certas afinidades, certas correspondências, duas estruturas
culturais podem – em determinadas circunstâncias históricas – entrar em um
relacionamento de atração, de escolha, de seleção mútua. Esse não é um processo
unilateral de influência e sim uma interação dialética e dinâmica que, em
alguns casos, pode levar à simbiose ou mesmo à fusão. Os seguintes são alguns
exemplos de possíveis áreas de afinidade ou correspondência estrutural entre o
cristianismo e o socialismo:
1 Como indicou Lucien Goldmann (veja capítulo 1) ambos rejeitam a
afirmação de que o indivíduo é a base da ética e criticam as visões
individualistas do mundo (liberal/racionalista, empiricista ou hedonista). A
religião (Pascal) e o socialismo (Marx) compartilham a fé em valores transindividuais.
2 Ambos acham que os pobres são
vítimas de injustiça. É óbvio que existe uma distância considerável entre os
pobres da doutrina católica e o proletariado da teoria marxista, mas não
podemos negar um certo “parentesco” socioético entre eles. Como vimos, um dos
primeiros autores alemães a falar sobre o proletariado, dez anos antes de Marx,
foi o filósofo católico Romântico Johannes von Baader.
3 Ambos compartilham o universalismo
– o internacionalismo ou “catolicismo” (em seu sentido etimológico) – ou
seja, uma doutrina e instituições que veem a humanidade como uma totalidade,
cuja unidade substantiva está acima de raças, grupos étnicos ou países.
4 Ambos dão grande valor à comunidade,
à vida comunitária, à partilha comunitária de bens, e criticam a atomização, a
anonimidade, a impersonalidade, a alienação e a competição egoísta da vida
social moderna.
5 Ambos criticam o capitalismo e as doutrinas do liberalismo econômico,
em nome de algum bem comum considerado mais importante que os interesses
individuais de proprietários privados.
6 Ambos têm a esperança de um reino futuro de justiça e liberdade, paz e fraternidade entre toda a humanidade.”
“Essa descoberta do marxismo pelos cristãos
progressistas, e pela Teologia da Libertação não foi um processo meramente
intelectual ou acadêmico. Seu ponto de partida foi um fato inevitável, uma
realidade brutal e geral na América Latina: a pobreza. Para muitos fiéis
preocupados com o social, o marxismo foi escolhido porque parecia ser a
explicação mais sistemática, coerente e global das causas para essa pobreza, e uma
proposta suficientemente radical para aboli-la.
A preocupação com os pobres foi uma tradição
da Igreja por quase dois milênios, que remonta às origens evangélicas do
cristianismo. Os teólogos latino-americanos se colocam continuadores dessa
tradição que lhes dá tanto referência quanto inspiração. No entanto, como já
enfatizei várias vezes, eles rompem radicalmente com o passado em um ponto
fundamental: para eles, os pobres já não são basicamente objetos de caridade, e
sim agentes de sua própria libertação. A ajuda ou assistência paternalista é
substituída pela solidariedade com a luta dos pobres por auto-emancipação. Aqui
é que se estabelece a conexão com o princípio político marxista fundamental: a
emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Essa
mudança talvez seja a nova contribuição política mais importante por parte dos
teólogos da libertação. E a que tem maiores consequências na área da práxis
social.
O Vaticano acusa os teólogos da libertação de
terem substituído os pobres da tradição cristã pelo proletariado marxista. Essa
crítica é inexata. Para os teólogos da libertação, “os pobres” é um conceito
que tem conotações morais, bíblicas e religiosas. O próprio Deus é definido por
eles como o “Deus dos Pobres” e Cristo se reencarna nos pobres crucificados dos
dias atuais. É também um conceito mais amplo que o das classes trabalhadoras:
inclui, segundo Gutiérrez, não só as classes exploradas mas também as raças
menosprezadas e as culturas marginalizadas – em seus escritos mais recentes,
ele acrescenta as mulheres, uma categoria social que é duplamente explorada.
Não há dúvida de que alguns marxistas irão
criticar essa substituição do conceito “materialista” do proletariado por uma
categoria assim tão vaga, emocional e imprecisa como é a categoria “pobres”. Na
verdade, o termo corresponde à situação latino-americana, onde encontramos,
tanto nas cidades como no campo, uma enorme massa de pessoas pobres, inclusive
trabalhadores, mas também desempregados, semi-empregados, boias frias, camelôs,
marginais, prostitutas etc. que são excluídos do sistema produtivo “formal”. Os
sindicalistas cristão/marxistas de El Salvador inventaram um termo que cobre
todos esses componentes da população oprimida e explorada: o
pobretariado.
A opção preferencial pelos pobres, adotada
pela Conferência de Puebla dos Bispos Latino-Americanos (1979), foi, na
prática, uma fórmula conciliatória, interpretada em um sentido tradicional
(assistência social) pelas correntes mais moderadas e conservadoras da Igreja
e, por parte dos teólogos da libertação, como um comprometimento com a
organização e a luta das populações pobres por sua própria libertação. Em
outras palavras, a luta de classes marxistas, não só como “instrumento de
análise” mas como diretriz para a ação, tornou-se um elemento essencial da
cultura política/religiosa dos setores mais radicais do Cristianismo da
Libertação. Como declarou Gustavo Gutiérrez em 1971:
Negar a realidade da luta de classes significa, na prática, tomar uma
posição a favor dos setores sociais dominantes. Nessa questão, a neutralidade é
impossível. [O que é preciso é] eliminar a apropriação por uns poucos da mais
valia produzida pelo trabalho da grande maioria e não apelos líricos a favor da
harmonia social. Precisamos construir uma sociedade socialista que seja mais
justa, mais livre e mais humana e não uma sociedade de conciliações falsas e
igualdade aparente.
Isso o levou à seguinte conclusão prática:
“Construir uma sociedade justa hoje em dia significa necessariamente estar
consciente e ativamente envolvido na luta de classes que tem lugar diante de
nossos olhos”68. Como é que isso se enquadra com a obrigação cristã
de amor universal? A resposta de Gutiérrez se distingue por seu grande rigor
político e generosidade moral: nós não odiamos nossos opressores, nós queremos
libertá-los também, libertando-os de sua própria alienação, de sua ambição, de
seu egoísmo – em uma palavra, de sua desumanidade. No entanto, para fazer isso,
precisamos determinadamente escolher o lado dos oprimidos e lutar concreta e
eficazmente contra a classe opressora.
Para lutar eficientemente contra a pobreza
precisamos entender suas causas. É aqui que a Teologia da Libertação converge,
uma vez mais, com o marxismo. Como o conhecido cardeal brasileiro, Dom Helder
Câmara, disse uma vez: “Quando eu pedia às pessoas que ajudassem os pobres, era
chamado de santo. Mas quando fazia a pergunta: por que existe tanta pobreza?
era chamado de comunista”. A pobreza da grande maioria e a incrível riqueza de
uns poucos privilegiados são sustentadas pela mesma base econômica – o capitalismo
dependente, o controle da economia pelas corporações multinacionais.”
68 Théologie de la libération, p. 276-277.
“Isso significa que a Igreja foi infiltrada
por ideias comunistas, como escreveram, em 1980, os especialistas republicanos norte-americanos?
Se, por “ideias comunistas”, queremos dizer as dos Partidos Comunistas, então
essa declaração está totalmente enganada. O Cristianismo da Libertação,
inspirado, em primeiro lugar, por considerações religiosas e éticas, demonstra
um anticapitalismo muito mais radical, intransigente e categórico – já que
inclui a dimensão da repulsa moral – que o dos Partidos Comunistas
latino-americanos que ainda acreditam nas virtudes progressistas da burguesia
industrial e no papel histórico “antifeudal” do desenvolvimento industrial
(capitalista). Um exemplo é suficiente para ilustrar esse paradoxo. O Partido
Comunista Brasileiro explicou, nas resoluções de seu Sexto Congresso (1967): “A
socialização dos meios de produção não corresponde ao nível atual da
contradição entre as forças produtivas e as relações de produção”70.
Em outras palavras, primeiro é preciso que o capitalismo industrial desenvolva
a economia e modernize o país antes que possamos começar a falar de socialismo.
No entanto, em 1973, os bispos e superiores das ordens religiosas do
centro-oeste brasileiro publicaram um documento intitulado O grito das Igrejas, com a seguinte conclusão:
Precisamos vencer o capitalismo: ele é o mal maior, um pecado acumulado,
as raízes podres, a árvore que produz todos os frutos que conhecemos tão bem: a
pobreza, a fome, a doença e a morte... Para fazê-lo é preciso ir além da
propriedade privada dos meios de produção (fábricas, terra, comércio e bancos).71
Outro documento episcopal é ainda mais
explícito. A Declaração dos Bispos do
Nordeste do Brasil (1973) declara:
A injustiça produzida por essa sociedade é fruto das relações
capitalistas de produção que necessariamente criam uma sociedade de classes
caracterizada pela discriminação e pela injustiça... Para sua libertação, a
classe oprimida não tem outra alternativa se não seguir a longa e difícil
estrada (a viagem já começou) que leva à propriedade social dos meios de
produção. Essa é a base principal do projeto histórico gigantesco da
transformação global da sociedade atual em uma nova sociedade na qual se torne
possível criar as condições objetivas que permitam aos oprimidos recuperar a
humanidade da qual foram destituídos... O Evangelho exorta a todos os cristãos
e a todos os homens de bem a se unirem a essa corrente profética.72
O documento foi assinado por treze bispos
(inclusive Dom Helder Câmara), pelos superiores regionais dos franciscanos,
jesuítas e redencionistas, e pelo abade do mosteiro beneditino na Bahia.”
70 Documentos do Partido Comunista Brasileiro,
Lisboa: Editora Avante, 1976, p. 71.
71 Los Obispos Latinoamericanos entre Medellín
y Puebla. San Salvador: UCA (Universidade Centroamericana), 1978, p. 71.
72 J’ai
entendu les cris de mon peuple (Exode, 3.7). Documents d’évéques et supérieurs
du nord-est brésilien, Bruxelas: Entraide et Fraternité, 1973. p. 42-41.
“Não há dúvida de que os teólogos da
libertação não podem aceitar a caracterização marxista da religião como “ópio
do povo”. No entanto, eles não rejeitam totalmente a crítica marxista da Igreja
e das práticas religiosas “realmente existentes”. Gustavo Gutiérrez, por
exemplo, admitiu que a Igreja latino-americana tinha contribuído para dar um
caráter sacro à ordem estabelecida: “A proteção que ela (a Igreja) recebe da classe
social que se beneficia com a sociedade capitalista que prevalece na América
Latina, e a defende, fez da Igreja institucionalizada uma parte do sistema e da
mensagem cristã, um componente da ideologia dominante”76. Esse
julgamento severo é compartilhado por um setor dos bispos latino-americanos. Os
bispos peruanos, por exemplo, em uma declaração adotada por sua Trigésima Sexta
Assembleia Episcopal (1969) declararam: “Acima de tudo, nós cristãos devemos
reconhecer que, por falta de fé, contribuímos, com nossas palavras e nossas
ações, com nosso silêncio e omissões, para a atual situação de injustiça”.
Um dos documentos mais interessantes sobre
esse assunto é a resolução adotada pelo Departamento de Educação do CELAM quase
no final da década de 1960 (antes da instituição ficar sob a hegemonia
conservadora):
A religião cristã foi e ainda é usada como uma ideologia para justificar
o governo dos poderosos. O cristianismo na América Latina foi uma religião
funcional para o sistema. Seus ritos, suas igrejas e suas obras contribuíram
para canalizar a insatisfação do povo na direção do Além, desconectando-a
totalmente do mundo atual. Assim, o cristianismo refreou o protesto do povo
contra um sistema injusto e opressivo.77
É claro, essa crítica é feita em nome de um cristianismo
autêntico, solidário com os pobres e oprimidos e não tem qualquer coisa em
comum com um questionamento da religião propriamente dita.”
76 Théologie
de la libération, p. 266.
77 Citado em ibid., p. 117-118. Em uma nota de rodapé, Gutiérrez menciona vários
outros documentos episcopais latino-americanos com a mesma ideia.