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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A guerra dos deuses: Religião e política na América Latina (Parte II), de Michael Löwy

Editora: Vozes

ISBN: 978-85-3262-291-4

Tradução: Vera Lúcia Mello Josceline e Jaime Clasen (posfácio)

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 272

Sinopse: Ver Parte I



“A Teologia da Libertação herdou da Igreja a tradição de hostilidade ou “aversão” (o termo de Weber: Abneigung) que o catolicismo tem do espírito do capitalismo. No entanto, modificou e modernizou essa hostilidade consideravelmente da seguinte maneira: a) radicalizando-a e tornando-a muito mais abrangente e sistemática; b) combinando a crítica moral com a crítica moderna (sobretudo marxista) da exploração; c) substituindo caridade por justiça social; d) recusando-se a idealizar o passado patriarcal; e e) propondo como alternativa uma economia socializada.

Apesar disso, sem referir-nos a essa tradição não nos será possível entender a natureza intransigente do anticapitalismo da Teologia da Libertação nem o poder de sua força ética e religiosa.

A oposição irreconciliável (outro termo de Weber: Universohnlich) ou “luta de princípios” [prinzipiellen Kampf] da ética católica contra a modernidade capitalista foi a inspiração para a crítica que os teólogos da libertação fazem da reconciliação da Igreja com o mundo (burguês) moderno. Segundo o teólogo chileno Pablo Richard, um dos fundadores do movimento “Cristãos pelo socialismo”:

“para as classes oprimidas, essa convergência, ou coerência entre a fé e o mundo moderno é uma realidade estranha porque representa a santificação da opressão. O encontro entre a fé e a razão científica moderna, entre a salvação e o progresso humano, aparece, portanto, como um reflexo coerente do encontro ou da reconciliação entre a Igreja e as classes dominantes. O processo de modernização da Igreja e de sua conciliação com o mundo moderno se perverte no momento em que legitima o sistema de dominação”.

Richard acrescenta o seguinte argumento, que parece fazer um eco perfeito às observações de Weber sobre as razões da “afinidade negativa” entre a Igreja e o capitalismo: “O cristianismo, reduzido a um código formal de valores e princípios pela modernização, não pode, de forma alguma, interferir com os cálculos econômicos, com a lei da maximização dos lucros, com a lei do mercado”. A vida econômica segue seu curso, segundo a “lógica impiedosa da racionalidade econômica e política do sistema capitalista moderno”32.

Outro tema característico da Teologia da Libertação é seu ataque ao capitalismo como falsa religião, uma nova forma de idolatria: a idolatria do Dinheiro (o antigo deus Mammon), do Capital ou do Mercado. Combinando a análise marxista (moderna) do fetichismo da mercadoria com a denúncia profética de deus falsos do Velho Testamento (tradicional), os teólogos latino-americanos insistem a respeito da natureza maligna desses ídolos cruéis que exigem sacrifícios humanos (“a dívida externa”, por exemplo): os ídolos capitalistas ou fetiches (no sentido de Marx) são Moloques que devoram a vida humana – uma imagem também usada por Marx em O Capital. A luta do Cristianismo da Libertação contra a idolatria (capitalista) é apresentada como uma guerra de deuses – como sabemos um conceito weberiano – entre o Deus da Vida e os ídolos da morte (Jon Sobrino), ou entre o Deus de Jesus Cristo e a multiplicidade de deuses no Olimpo do sistema capitalista (Pablo Richard).”

32 Max Weber, Die protestantische Ethik II. Kritiken und Antikritiken. Gütersloh: GTB, 1972, p. 168.

 

 

“Para os teólogos da libertação e os agentes pastorais que trabalham com as comunidades de base, um dos aspectos mais negativos da modernidade urbana/industrial na América Latina — de um ponto de vista social e ético — é a destruição dos elos comunitários tradicionais: populações inteiras estão sendo desarraigadas de seu ambiente rural e comunitário com o desenvolvimento do agrocapitalismo (“seres humanos substituídos por carneiros” segundo a queixa de Tomás More — ou em vez de carneiros, em muitos dos países latino-americanos, por gado) e jogados na periferia dos centros urbanos, onde encontram um clima de individualismo egoísta, uma competição descontrolada e a luta brutal pela sobrevivência. Em um livro recente sobre as comunidades eclesiais de base, o jesuíta e teólogo brasileiro Marcello Azevedo acusa a modernidade capitalista de ser responsável pela ruptura de todo os elos entre o indivíduo e seu grupo e introduz as CEBs como uma expressão concentrada de uma tentativa dupla de restaurar a comunidade, na sociedade e na Igreja45. (...)

Estaremos, portanto, diante de uma tentativa de voltar à comunidade orgânica tradicional da pré-modernidade — a Gemeinschaft descrita por Tönnies? Sim e não. Sim, na medida em que diante de uma sociedade moderna que, segundo Leonardo Boff “produziu uma atomização da existência e uma anonimidade geral de todas as pessoas”, tenta-se criar (ou recriar) “comunidades onde as pessoas conhecem e reconhecem umas às outras”, caracterizada de forma ideal por “relações diretas de reciprocidade, fraternidade profunda ajuda mutua, comunhão em ideias evangélicas e igualdade entre seus membros”47. Não, na medida em que as comunidades não são simplesmente a reprodução de relacionamentos sociais pré-modernos.”

45 Marcello Azevedo, SJ, Comunidades eclesiais de base e inculturação da fé. São Paulo: Loyola, cap. II.1.

47 Leonardo Boff, Église en genèse. Les communautés de base. Paris: Desclée, 1978, p. 7-21.

 

 

“Em termos gerais, os teólogos da libertação e a liderança das comunidades de base criticam a ideologia modernizante das elites latino-americanas (tanto conservadoras como progressistas) e focalizam os limites, as contradições e os desastres da modernidade industrial/capitalista. Um dos leitmotivs de seus documentos é que o progresso na América Latina ocorre às custas dos pobres. A tecnologia propriamente dita não ocupa um lugar central nesse discurso crítico, que só enfatiza que, nas sociedades contemporâneas latino-americanas, a modernidade tecnológica e os benefícios da civilização são monopolizados pelo Estado e pelas classes dominantes. Nas CEBs brasileiras por exemplo e entre agentes pastorais, consultores leigos, teólogos e bispos que cooperam com elas – é possível encontrar uma profunda desconfiança dos chamados “megaprojetos de desenvolvimento” baseados na tecnologia moderna: barragens hidroelétricas, rodovias expressas, usinas químicas ou nucleares gigantescas, imensas empresas agroindustriais etc. Esses projetos são muitas vezes descritos como “faraônicos” — uma expressão bíblica com conotações sociais e religiosas claramente negativas. Os projetos preferidos pelas CEBs são empreendimentos de cooperativas locais, com técnicas tradicionais ou semimodernas, empregando pouco capital e muita mão de obra.

Dito isso, no entanto, é verdade que o Cristianismo da Libertação não tem uma doutrina explícita sobre tecnologia. É sobretudo no contexto social e político que o uso das tecnologias modernas é rejeitado ou criticado. As técnicas modernas não são avaliadas pelos resultados econômicos que produzem – em termos de lucro, rentabilidade, produtividade, renda de exportações ou em moedas fortes – e sim em termos de suas consequências para os pobres. Se as consequências forem positivas – em termos de emprego ou condições de vida – são aceitas; se não o forem, podem ser recusadas. O que vemos aqui é um certo pragmatismo, combinado com uma atitude moral cuja inspiração é religiosa – a opção preferencial pelos pobres é o critério pelo qual avaliamos a tecnologia.”

 

 

“O Cristianismo da Libertação, o movimento social que tem sua expressão intelectual na Teologia da Libertação, critica a modernidade “realmente existente” na América Latina (capitalismo dependente) tanto em nome de valores pré-modernos como de uma modernidade utópica (a sociedade sem classes), através da mediação socioanalítica da teoria marxista, que une a crítica dos primeiros e a promessa da segunda. As posições modernas da Teologia da Libertação são inseparáveis de suas pressuposições tradicionais – e vice-versa. Temos aqui uma forma sociocultural que evita as dicotomias clássicas entre modernidade e tradição, ética e ciência, religião e mundo secular. Como uma reapropriação moderna da tradição, essa configuração cultural tanto preserva como nega a tradição e a modernidade, em um processo de síntese “dialética”. Sua opção preferencial pelos pobres é o critério segundo o qual julga e avalia a doutrina tradicional da Igreja e também a sociedade ocidental moderna.

É aqui, precisamente, onde reside a diferença entre a Teologia da Libertação e as teologias progressistas europeias. Em um livro recente, o teólogo francês Christian Duquoc afirmou, com enorme percepção, que essas últimas teologias consideram a exclusão (dos pobres ou dos países do Terceiro Mundo) como algo temporário ou acidental: o futuro pertence ao Ocidente e ao progresso econômico, social e político que ele traz. Ao contrário, a Teologia da Libertação considera a história de uma perspectiva inversa, aquela dos vencidos e excluídos, os pobres (no sentido mais amplo, incluindo as classes, raças e culturas oprimidas), que são os portadores da universalidade e da salvação. Ao contrário da cultura progressista europeia, a Teologia da Libertação rejeita a visão otimista da história como progresso, a avaliação da tecnologia e da ciência moderna como condições objetivas para esse progresso e a emancipação do indivíduo como seu critério principal. Isso não quer dizer que ela rejeita o progresso técnico e científico ou a estrutura formal das liberdades individuais: apenas ela não pode aceitar uma visão da história que tem como posto de observação esses critérios ambivalentes ocidentais55. Duquoc conclui através dessa comparação que Roma prefere a Teologia da Libertação às teologias ocidentais que surgiram do Iluminismo. Será possível que a participação ativa de cristãos na luta dos pobres latino-americanos por libertação social parece, aos olhos do Vaticano, menos subversiva que a aspiração dos intelectuais católicos europeus por emancipação individual? Isso não está nada evidente: nos dois casos, Roma enfrenta um desafio a sua autoridade e ao sistema de poder tradicional da Igreja.

Na verdade, a Teologia da Libertação compartilha algumas premissas básicas da cultura progressista ocidental, mas, ao mesmo tempo, tem muito em comum com uma tradição diferente – o Romantismo. O Cristianismo da Libertação, como outros movimentos sociais ou culturais contemporâneos (por exemplo, a ecologia), é, em grande parte, um movimento Romântico, ou seja, um movimento que protesta contra aspectos importantes da sociedade capitalista/industrial moderna em nome de valores pré-modernos – nesse caso, religião e comunidade.

Alguns autores brasileiros se referem à natureza Romântica da “Igreja dos Pobres” e à sua utopia comunitária como evidência de sua natureza retrógrada56. No entanto, existe também um Romantismo revolucionário e/ou utópico, cujo objetivo não é uma volta ao passado, uma impossível restauração de comunidades pré-modernas, e sim um desvio que, saindo do passado, vai direto ao futuro, a projeção de valores passados em uma nova utopia. A essa tradição, que funde nostalgias góticas (ou pré-históricas) com o Iluminismo, que se estende de Rousseau a William Morris e de Ernst Bloch a José Carlos Mariátegui, também pertence a Teologia da Libertação.”

55 Christian Duqoc, Liberátion et progressisme. Paris: Cerf, 1988, p. 28-96.

56 Veja Roberto Romano, Brasil: Igreja contra estado: crítica ao populismo católico. São Paulo: Kairos, 1979, p. 173, 230-231.

 

 

“A dúvida permanece: por que é que os “modelos de esperança” de orientação marxista foram capazes de conquistar um setor pequeno, mas significativo da Igreja Católica Apostólica Romana (bem como alguns grupos protestantes) na América Latina? Para sermos capazes de responder a essa pergunta, precisamos investigar quais os aspectos ou elementos da própria doutrina da Igreja e do marxismo podem ter favorecido, facilitado ou estimulado sua convergência.

Um conceito que pode demonstrar ser esclarecedor nesse tipo de análise é aquele, já mencionado, utilizado por Max Weber para estudar o relacionamento reciproco entre formas religiosas e ethos econômico: a afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft]. Com base em certas analogias, certas afinidades, certas correspondências, duas estruturas culturais podem – em determinadas circunstâncias históricas – entrar em um relacionamento de atração, de escolha, de seleção mútua. Esse não é um processo unilateral de influência e sim uma interação dialética e dinâmica que, em alguns casos, pode levar à simbiose ou mesmo à fusão. Os seguintes são alguns exemplos de possíveis áreas de afinidade ou correspondência estrutural entre o cristianismo e o socialismo:

1 Como indicou Lucien Goldmann (veja capítulo 1) ambos rejeitam a afirmação de que o indivíduo é a base da ética e criticam as visões individualistas do mundo (liberal/racionalista, empiricista ou hedonista). A religião (Pascal) e o socialismo (Marx) compartilham a fé em valores transindividuais.

2 Ambos acham que os pobres são vítimas de injustiça. É óbvio que existe uma distância considerável entre os pobres da doutrina católica e o proletariado da teoria marxista, mas não podemos negar um certo “parentesco” socioético entre eles. Como vimos, um dos primeiros autores alemães a falar sobre o proletariado, dez anos antes de Marx, foi o filósofo católico Romântico Johannes von Baader.

3 Ambos compartilham o universalismo – o internacionalismo ou “catolicismo” (em seu sentido etimológico) – ou seja, uma doutrina e instituições que veem a humanidade como uma totalidade, cuja unidade substantiva está acima de raças, grupos étnicos ou países.

4 Ambos dão grande valor à comunidade, à vida comunitária, à partilha comunitária de bens, e criticam a atomização, a anonimidade, a impersonalidade, a alienação e a competição egoísta da vida social moderna.

5 Ambos criticam o capitalismo e as doutrinas do liberalismo econômico, em nome de algum bem comum considerado mais importante que os interesses individuais de proprietários privados.

6 Ambos têm a esperança de um reino futuro de justiça e liberdade, paz e fraternidade entre toda a humanidade.”

 

 

“Essa descoberta do marxismo pelos cristãos progressistas, e pela Teologia da Libertação não foi um processo meramente intelectual ou acadêmico. Seu ponto de partida foi um fato inevitável, uma realidade brutal e geral na América Latina: a pobreza. Para muitos fiéis preocupados com o social, o marxismo foi escolhido porque parecia ser a explicação mais sistemática, coerente e global das causas para essa pobreza, e uma proposta suficientemente radical para aboli-la.

A preocupação com os pobres foi uma tradição da Igreja por quase dois milênios, que remonta às origens evangélicas do cristianismo. Os teólogos latino-americanos se colocam continuadores dessa tradição que lhes dá tanto referência quanto inspiração. No entanto, como já enfatizei várias vezes, eles rompem radicalmente com o passado em um ponto fundamental: para eles, os pobres já não são basicamente objetos de caridade, e sim agentes de sua própria libertação. A ajuda ou assistência paternalista é substituída pela solidariedade com a luta dos pobres por auto-emancipação. Aqui é que se estabelece a conexão com o princípio político marxista fundamental: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Essa mudança talvez seja a nova contribuição política mais importante por parte dos teólogos da libertação. E a que tem maiores consequências na área da práxis social.

O Vaticano acusa os teólogos da libertação de terem substituído os pobres da tradição cristã pelo proletariado marxista. Essa crítica é inexata. Para os teólogos da libertação, “os pobres” é um conceito que tem conotações morais, bíblicas e religiosas. O próprio Deus é definido por eles como o “Deus dos Pobres” e Cristo se reencarna nos pobres crucificados dos dias atuais. É também um conceito mais amplo que o das classes trabalhadoras: inclui, segundo Gutiérrez, não só as classes exploradas mas também as raças menosprezadas e as culturas marginalizadas – em seus escritos mais recentes, ele acrescenta as mulheres, uma categoria social que é duplamente explorada.

Não há dúvida de que alguns marxistas irão criticar essa substituição do conceito “materialista” do proletariado por uma categoria assim tão vaga, emocional e imprecisa como é a categoria “pobres”. Na verdade, o termo corresponde à situação latino-americana, onde encontramos, tanto nas cidades como no campo, uma enorme massa de pessoas pobres, inclusive trabalhadores, mas também desempregados, semi-empregados, boias frias, camelôs, marginais, prostitutas etc. que são excluídos do sistema produtivo “formal”. Os sindicalistas cristão/marxistas de El Salvador inventaram um termo que cobre todos esses componentes da população oprimida e explorada: o pobretariado.

A opção preferencial pelos pobres, adotada pela Conferência de Puebla dos Bispos Latino-Americanos (1979), foi, na prática, uma fórmula conciliatória, interpretada em um sentido tradicional (assistência social) pelas correntes mais moderadas e conservadoras da Igreja e, por parte dos teólogos da libertação, como um comprometimento com a organização e a luta das populações pobres por sua própria libertação. Em outras palavras, a luta de classes marxistas, não só como “instrumento de análise” mas como diretriz para a ação, tornou-se um elemento essencial da cultura política/religiosa dos setores mais radicais do Cristianismo da Libertação. Como declarou Gustavo Gutiérrez em 1971:

Negar a realidade da luta de classes significa, na prática, tomar uma posição a favor dos setores sociais dominantes. Nessa questão, a neutralidade é impossível. [O que é preciso é] eliminar a apropriação por uns poucos da mais valia produzida pelo trabalho da grande maioria e não apelos líricos a favor da harmonia social. Precisamos construir uma sociedade socialista que seja mais justa, mais livre e mais humana e não uma sociedade de conciliações falsas e igualdade aparente.

Isso o levou à seguinte conclusão prática: “Construir uma sociedade justa hoje em dia significa necessariamente estar consciente e ativamente envolvido na luta de classes que tem lugar diante de nossos olhos”68. Como é que isso se enquadra com a obrigação cristã de amor universal? A resposta de Gutiérrez se distingue por seu grande rigor político e generosidade moral: nós não odiamos nossos opressores, nós queremos libertá-los também, libertando-os de sua própria alienação, de sua ambição, de seu egoísmo – em uma palavra, de sua desumanidade. No entanto, para fazer isso, precisamos determinadamente escolher o lado dos oprimidos e lutar concreta e eficazmente contra a classe opressora.

Para lutar eficientemente contra a pobreza precisamos entender suas causas. É aqui que a Teologia da Libertação converge, uma vez mais, com o marxismo. Como o conhecido cardeal brasileiro, Dom Helder Câmara, disse uma vez: “Quando eu pedia às pessoas que ajudassem os pobres, era chamado de santo. Mas quando fazia a pergunta: por que existe tanta pobreza? era chamado de comunista”. A pobreza da grande maioria e a incrível riqueza de uns poucos privilegiados são sustentadas pela mesma base econômica – o capitalismo dependente, o controle da economia pelas corporações multinacionais.”

68 Théologie de la libération, p. 276-277.

 

 

“Isso significa que a Igreja foi infiltrada por ideias comunistas, como escreveram, em 1980, os especialistas republicanos norte-americanos? Se, por “ideias comunistas”, queremos dizer as dos Partidos Comunistas, então essa declaração está totalmente enganada. O Cristianismo da Libertação, inspirado, em primeiro lugar, por considerações religiosas e éticas, demonstra um anticapitalismo muito mais radical, intransigente e categórico – já que inclui a dimensão da repulsa moral – que o dos Partidos Comunistas latino-americanos que ainda acreditam nas virtudes progressistas da burguesia industrial e no papel histórico “antifeudal” do desenvolvimento industrial (capitalista). Um exemplo é suficiente para ilustrar esse paradoxo. O Partido Comunista Brasileiro explicou, nas resoluções de seu Sexto Congresso (1967): “A socialização dos meios de produção não corresponde ao nível atual da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção”70. Em outras palavras, primeiro é preciso que o capitalismo industrial desenvolva a economia e modernize o país antes que possamos começar a falar de socialismo. No entanto, em 1973, os bispos e superiores das ordens religiosas do centro-oeste brasileiro publicaram um documento intitulado O grito das Igrejas, com a seguinte conclusão:

Precisamos vencer o capitalismo: ele é o mal maior, um pecado acumulado, as raízes podres, a árvore que produz todos os frutos que conhecemos tão bem: a pobreza, a fome, a doença e a morte... Para fazê-lo é preciso ir além da propriedade privada dos meios de produção (fábricas, terra, comércio e bancos).71

Outro documento episcopal é ainda mais explícito. A Declaração dos Bispos do Nordeste do Brasil (1973) declara:

A injustiça produzida por essa sociedade é fruto das relações capitalistas de produção que necessariamente criam uma sociedade de classes caracterizada pela discriminação e pela injustiça... Para sua libertação, a classe oprimida não tem outra alternativa se não seguir a longa e difícil estrada (a viagem já começou) que leva à propriedade social dos meios de produção. Essa é a base principal do projeto histórico gigantesco da transformação global da sociedade atual em uma nova sociedade na qual se torne possível criar as condições objetivas que permitam aos oprimidos recuperar a humanidade da qual foram destituídos... O Evangelho exorta a todos os cristãos e a todos os homens de bem a se unirem a essa corrente profética.72

O documento foi assinado por treze bispos (inclusive Dom Helder Câmara), pelos superiores regionais dos franciscanos, jesuítas e redencionistas, e pelo abade do mosteiro beneditino na Bahia.”

70 Documentos do Partido Comunista Brasileiro, Lisboa: Editora Avante, 1976, p. 71.

71 Los Obispos Latinoamericanos entre Medellín y Puebla. San Salvador: UCA (Universidade Centroamericana), 1978, p. 71.

72 J’ai entendu les cris de mon peuple (Exode, 3.7). Documents d’évéques et supérieurs du nord-est brésilien, Bruxelas: Entraide et Fraternité, 1973. p. 42-41.

 

 

“Não há dúvida de que os teólogos da libertação não podem aceitar a caracterização marxista da religião como “ópio do povo”. No entanto, eles não rejeitam totalmente a crítica marxista da Igreja e das práticas religiosas “realmente existentes”. Gustavo Gutiérrez, por exemplo, admitiu que a Igreja latino-americana tinha contribuído para dar um caráter sacro à ordem estabelecida: “A proteção que ela (a Igreja) recebe da classe social que se beneficia com a sociedade capitalista que prevalece na América Latina, e a defende, fez da Igreja institucionalizada uma parte do sistema e da mensagem cristã, um componente da ideologia dominante”76. Esse julgamento severo é compartilhado por um setor dos bispos latino-americanos. Os bispos peruanos, por exemplo, em uma declaração adotada por sua Trigésima Sexta Assembleia Episcopal (1969) declararam: “Acima de tudo, nós cristãos devemos reconhecer que, por falta de fé, contribuímos, com nossas palavras e nossas ações, com nosso silêncio e omissões, para a atual situação de injustiça”.

Um dos documentos mais interessantes sobre esse assunto é a resolução adotada pelo Departamento de Educação do CELAM quase no final da década de 1960 (antes da instituição ficar sob a hegemonia conservadora):

A religião cristã foi e ainda é usada como uma ideologia para justificar o governo dos poderosos. O cristianismo na América Latina foi uma religião funcional para o sistema. Seus ritos, suas igrejas e suas obras contribuíram para canalizar a insatisfação do povo na direção do Além, desconectando-a totalmente do mundo atual. Assim, o cristianismo refreou o protesto do povo contra um sistema injusto e opressivo.77

É claro, essa crítica é feita em nome de um cristianismo autêntico, solidário com os pobres e oprimidos e não tem qualquer coisa em comum com um questionamento da religião propriamente dita.”

76 Théologie de la libération, p. 266.

77 Citado em ibid., p. 117-118. Em uma nota de rodapé, Gutiérrez menciona vários outros documentos episcopais latino-americanos com a mesma ideia.

A guerra dos deuses: Religião e política na América Latina (Parte I), de Michael Löwy

Editora: Vozes

ISBN: 978-85-3262-291-4

Tradução: Vera Lúcia Mello Josceline e Jaime Clasen (posfácio)

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 272

Sinopse: A teologia da Libertação é a expressão de um vasto movimento social que se enraíza na cultura dos excluídos latino-americanos. Em A guerra dos deuses, Michael Löwy analisa as íntimas relações entre religião, política e sociedade na América Latina durante as últimas três décadas. O autor, mediante uma sociologia da cultura inspirada em Marx e Weber, propõe uma interpretação renovada desse movimento teológico, por ele designado como “cristianismo da libertação,” levando em consideração os conflitos de classe e as tensões entre a ética católica e o espírito do capitalismo. A guerra dos deuses realiza uma importante contribuição teórica para a compreensão das dramáticas tensões que atravessam o campo religioso entre cristãos conservados e progressistas na América Latina.




“A conhecida frase “a religião é o ópio do povo” é considerada a quinta-essência da concepção marxista do fenômeno religioso, não só pela maioria daqueles que apoiam Marx como também por seus adversários. Até que ponto essa visão é apropriada? Em primeiro lugar, devemos enfatizar que essa afirmação não é, de modo algum, especificamente marxista. A mesma frase pode ser encontrada, em vários contextos, nos escritos de Kant, de Herder, de Feuerbach, de Bruno Bauer, de Moses Hess e de Heinrich Heine. Em seu ensaio sobre Ludwing Borne, por exemplo, Heine já usa a frase, de uma maneira positiva (embora irônica). “Bem-vinda seja a religião que verta, no cálice amargo do sofrimento humano, algumas gotas doces e soporíficas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, de esperança e de fé”. Moses Hess, em ensaios publicados na Suíça, em 1843, adota uma posição mais crítica (mas mesmo assim ambígua): “A religião pode tornar suportável... a triste consciência da escravidão... da mesma forma que o ópio é útil no caso de doenças penosas”1.

A expressão apareceu pouco tempo depois no artigo de Marx sobre Philosophy of Right, de Hegel (1844). Uma leitura cuidadosa do parágrafo de Marx onde aparece essa frase revela que ela é mais qualificada e menos unilateral do que se crê normalmente. Embora obviamente contrário à religião, Marx leva em consideração o caráter duplo do fenômeno: “A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da verdadeira angústia e um protesto contra a verdadeira angústia. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de um mundo sem espírito. É o opiato do povo”2.

Se lermos todo o ensaio, nos daremos conta de que o ponto de vista de Marx deve mais ao neo-hegelianismo de esquerda, que via a religião como alienação da essência humana, do que à filosofia do Iluminismo, que simplesmente a denunciava como sendo uma conspiração do clero. Na verdade, quando Marx escreveu o texto acima, ainda era discípulo de Feuerbach e um neo-hegelianista. Sua análise da religião é, portanto, pré-marxista, sem qualquer referência às classes sociais e bastante a-histórica. Mas tinha, sim, uma qualidade dialética, captando a natureza contraditória da “angústia” religiosa: tanto a legitimação das condições existentes como um protesto contra elas.

Foi só mais tarde, sobretudo em A Ideologia Alemã (1846), que teve início o verdadeiro estudo marxista da religião como uma realidade social e histórica. O elemento principal desse novo método para a análise da religião é abordá-la como uma das muitas formas de ideologia – ou seja, das produções espirituais de um povo, da produção de ideias, de representações e consciência, necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações sociais correspondentes. Embora de vez em quando Marx use o conceito de “reflexo” – que levou várias gerações de marxistas para um desvio estéril – a ideia principal do livro é a necessidade de explicar a gênese e o desenvolvimento de várias formas de consciência (religião, ética, filosofia etc.) em termos das relações sociais, “através das quais, é claro, é possível considerar o conjunto total em sua totalidade (e, portanto, também a ação recíproca desses vários aspectos uns sobre os outros)”3. Toda uma escola “dissidente” da sociologia da cultura marxista (Lukács, Goldmann) prefere o conceito dialético de totalidade em vez da teoria do reflexo.”

1 Citado em Helmut Gollwitzer, “marxistische religionskritik und christlicher Glaube”, Marxismusstudien, quarta edição,Tubingen: J.C.B. Mohr, 1962, p. 15-16. Outras referências a essa expressão podem ser encontradas nesse artigo.

2 Karl Marx, “Towards the Critique of Hegel’s Philosophy os Right” (1844), in: Louis S. Feuer (org.), Marx and Engels, Basic Writings on Politics and Philosopy. Londres: Fontana, 1969, p. 304.

3 Karl Marx e Friedrich Engels, The German Ideology, in: ibid., p. 50.

 

 

“Por outro lado, Marx muitas vezes se referia ao capitalismo como “religião do cotidiano” baseada no fetichismo da mercadoria. Descreveu o capital como “um Moloch que exige o mundo inteiro como sacrifício a ele devido” e o progresso capitalista como “um monstruoso deus pagão que só quer beber néctar nos crânios dos mortos”. Sua crítica à economia política é recheada de referências à idolatria: Baal, Moloch, Mammon, o Bezerro Dourado e, é claro, o próprio conceito de “fetiche”. No entanto, sua linguagem tem um significado um pouco mais metafórico do que substantivo (em termos de sociologia da religião)6.”

6 Karl Marx, Werke, Berlin: Dietz Verlag, 1960, vol 9, p. 226 e vol. 26, p. 488. Alguns teólogos da libertação (Enrique Dussel, Hugo Assmann) faze uso extensivo dessas referências em sua definição de capitalismo como idolatria.

 

 

“Embora materialista, ateísta e inimigo irreconciliável da religião, Engels conseguiu, apesar disso, captar, como o fez o jovem Marx, o caráter duplo do fenômeno: seu papel como legitimadora da ordem estabelecida mas também, dependendo das circunstâncias sociais, seu papel crítico, de protesto e até revolucionário. Além disso, a maioria dos estudos concretos que ele escreveu referem-se às formas rebeldes de religião.

Primeiramente, seu interesse era o cristianismo primitivo, que é definido como a religião dos pobres, dos exilados, dos amaldiçoados, dos perseguidos e oprimidos. Os primeiros cristãos vieram dos níveis mais baixos da sociedade: escravos, homens livres que tinham seus direitos abolidos e pequenos camponeses, incapacitados devido as dívidas.9 Engels chegou mesmo a elaborar um paralelo surpreendente entre esse cristianismo primitivo e o socialismo moderno: a) os dois grandes movimentos que não são criação de líderes e profetas – embora não faltem profetas em nenhum dos dois; b) ambos são movimentos dos oprimidos, dos que sofrem perseguição e cujos membros são proscritos e caçados pelas autoridades do governo; e c) ambos pregam uma libertação iminente da escravidão e da miséria. Para embelezar sua comparação, Engels, de uma maneira um tanto provocativa, citou uma frase do historiador francês Renan: “Se você quiser ter uma ideia de como eram as primeiras comunidades cristãs, dê uma olhada na filial mais próxima da Associação Internacional de Trabalhadores”.”

 

 

“O próprio Lênin, denunciou a religião como “um nevoeiro místico”, insistiu em seu artigo “Socialismo e religião” (1905) que o ateísmo não devia ser parte do programa do Partido porque “a unidade na luta verdadeiramente revolucionária das classes oprimidas para a criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade da opinião proletária sobre o paraíso no céu”16.”

16. V. I. Lênin,“Socialism and Religion”(1905), in: Collected Works, Moscou: Progress, 1972, vol. 10, p. 86.

 

 

“A parte mais surpreendente e original da obra de Goldmann é, no entanto, a tentativa de comparar – sem assimilar um ao outro – a fé religiosa e a fé marxista: ambas têm em comum a recusa do individualismo puro (racionalista ou empirista) e a crença nos valores transindividuais – Deus pela religião, a comunidade humana pelo socialismo. Em ambos os casos, a fé tem como base uma aposta – a aposta pascalina da existência de Deus e a aposta marxista da libertação da humanidade – que pressupõe riscos, o perigo de erro e a esperança de sucesso. Ambos envolvem uma crença básica que não é demonstrável no nível exclusivo de juízos factuais. O que os separa, então, é, logicamente, o caráter supra-histórico da transcendência religiosa: “A fé marxista é a fé no futuro histórico que os próprios seres humanos construirão, ou que devemos fazer com nossa atividade, uma ‘aposta’ no sucesso de nossas ações; a transcendência que é o objeto dessa fé não é nem supernatural nem trans-histórica, e sim, supra individual, nada mais e nada menos”28. Sem, de jeito algum, querer “cristianizar o marxismo”, Lucien Goldmann introduziu, graças ao conceito de fé, uma nova maneira de olhar o relacionamento conflitivo entre crença religiosa e ateísmo marxista.

A ideia de que existe um terreno comum entre os revolucionários e os de mente religiosa foi sugerido, de uma forma menos sistemática, pelo mais original e criativo dos marxistas latino-americanos, o peruano José Carlos Mariátegui. Em um ensaio de 1925, “o homem e o mito”, Mariatégui propõe uma visão um tanto heterodoxa dos valores revolucionários.

Os intelectuais burgueses se ocupam com a crítica racionalista, a teoria e a técnica do método revolucionário. Que falta de compreensão! A força dos revolucionários não reside em sua ciência; ela reside em sua fé, sua paixão, sua força de vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito... A emoção revolucionária... é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se mudaram do céu para a terra. Não são mais divinas; são humanas, são sociais. (...)

Esta formulação – a expressão de uma rebelião romântica/marxista contra a interpretação predominante (semipositivista) do materialismo histórico – pode parecer demasiado radical. De qualquer forma, devemos deixar claro que Mariátegui não queria fazer do socialismo uma Igreja ou uma seita religiosa, e sim tinha a intenção de trazer à tona a dimensão espiritual e ética da luta revolucionária: a fé (mística), a solidariedade, a indignação moral, o compromisso com risco da própria vida (ao que ele chamava de “heroico”). O socialismo, para Mariátegui, era inseparável de uma tentativa de re-encantar o mundo através da ação revolucionária. Não é muito surpreendente, portanto, que ele tenha se tornado uma das referências marxistas mais importantes para o fundador da Teologia da Libertação, o peruano Gustavo Gutiérrez.”

28 Lucien Goldmann, Le Dieu cachê, Paris, Gallimard, 1955, p. 99.

 

 

Weber insinua a existência de uma aversão, ou rejeição, básica e irreconciliável, ao espírito do capitalismo, por parte da Igreja Católica (e provavelmente também por parte de algumas denominações protestantes). Poderíamos falar de uma espécie de antipatia cultural – no sentido antigo, alquímico da palavra, “de falta de afinidade entre duas substâncias”. Em outras palavras, temo aqui uma exata inversão da afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft] com a ética protestante (algumas formas dela) e o espírito do capitalismo: haveria assim, entre a ética católica e o capitalismo, uma espécie de afinidade negativa – usando este termo como Weber o faz quando fala dos “privilégios negativos” das comunidades párias. Como o próprio Weber sugere, isso não impede uma acomodação e adaptação “realista” das instituições católicas ao sistema capitalista, particularmente na medida em que esse se torna cada vez mais poderoso; a crítica da Igreja é normalmente dirigida contra os excessos do liberalismo e não contra as bases do capitalismo. Além disso, diante de um perigo muito maior – o movimento trabalhista socialista – a Igreja não hesitou em unir-se às forças burguesas e capitalistas contra seu inimigo comum. Em geral, podemos dizer que a Igreja nunca achou que seria possível ou desejável abolir o capitalismo: seu objetivo sempre foi corrigir seus aspectos mais negativos através das ações caritativas e “sociais” do cristianismo. No entanto, profundamente enraizada na cultura católica, ainda persiste – algumas vezes escondida, outras manifesta – a aversão ética ao capitalismo, ou uma “afinidade negativa” com ele.”

 

 

“A pesquisa de Groethusysen e o trabalho de vários outros historiadores chamam a atenção para uma fonte de anticapitalismo católico que Weber parece haver negligenciado: a identificação ética e religiosa de Cristo com os pobres (inspirados por Mateus 25, 31). Durante séculos, a teologia e a tradição popular católicas viram os pobres como a imagem terrestre dos sofrimentos de Cristo. Como escreveu o teólogo A. Bonnefous em seu livro Le Chrestien charitable (1637), “o homem pobre a quem ajudamos talvez seja o próprio Jesus Cristo”.38 É claro que essa atitude levou principalmente a que se desse uma atenção caritativa aos pobres sem necessariamente rejeitar o sistema econômico vigente. No entanto, durante toda a história da Igreja, ela também alimentou movimentos e doutrinas rebeldes que desafiavam a injustiça social em nome dos pobres e, em tempos modernos, denunciavam o capitalismo como raiz do mal e a causa do empobrecimento. Como veremos, isso é particularmente verdadeiro na Teologia da Libertação na América Latina.”

38 Veja Jean-Pierre Gutton, La Societé et les pauvres. L’exemple de la généralité de Lyon 1534-1789. Paris: Le Belles Lettres, 1971.

 

 

“A Teologia da Libertação é o produto espiritual (como sabemos, o termo vem de A Ideologia Alemã, de Marx) desse movimento social, mas, ao legitimá-lo, ao lhe fornecer uma doutrina religiosa coerente, ela contribui enormemente para sua expansão e financiamento. No entanto, a fim de evitar desentendimentos e reducionismos (sociológicos ou de outro tipo) é preciso lembrar-nos, em primeiro lugar, de que a Teologia da Libertação não é um discurso social e político e sim, antes de qualquer coisa, uma reflexão religiosa e espiritual. Como enfatizou Gustavo Gutiérrez, em seu livro pioneiro Teologia da Libertação – Perspectivas:

A primeira tarefa da Igreja é celebrar, com alegria, a dádiva da ação redentora de Deus na humanidade, que se realizou através da morte e da ressureição de Cristo. É a Eucaristia, memorial e ação de graças. Memorial para Cristo que supõe uma aceitação sempre renovada do significado da vida: a dádiva total para os demais.3

O que muda – e muito profundamente – com respeito à tradição da Igreja é o significado concreto dessa “dádiva total para os demais” que ela adota. Se tivéssemos de resumir em uma única fórmula a ideia central da Teologia da Libertação, poderíamos nos referir à expressão consagrada pela Conferência dos Bispos Latino-Americanos de Puebla (1979): “a opção preferencial pelos pobres”. Mas é preciso acrescentar imediatamente que, para a nova teologia, esses pobres são os agentes de sua própria libertação e o sujeito de sua própria história – e não simplesmente, como na doutrina tradicional da Igreja, objeto da atenção caridosa.

O pleno reconhecimento da dignidade humana dos pobres e a missão histórica e religiosa especial que lhes foi atribuída pelo Cristianismo da Libertação é certamente uma das razões para o seu relativo sucesso – pelo menos em alguns países – em arregimentar o apoio das mais pobres da sociedade. Os motivos para isso podem ser entendidos mais facilmente se nos referirmos à extraordinária análise ideal-típica proposta por Max Weber em seu estudo da ética econômica das religiões mundiais:

O sentido da dignidade das camadas socialmente reprimidas ou das camadas cuja situação é negativamente (ou pelo menos positivamente) avaliada, é mais facilmente alimentada com a crença de que uma “missão” especial lhes foi confiada; seu mérito é garantido ou constituído por um imperativo ético... Seu valor é assim transportado para algo que vai mais além deles mesmos, transformado em uma “tarefa” que é colocada diante deles por Deus. Uma das fontes do poder ideal de profecias éticas entre as camadas socialmente em desvantagem reside nesse fato. O ressentimento não foi exigido como compensação; o interesse racional nas compensações materiais e ideais por si mesmas já foi perfeitamente suficiente.

Sejam quais forem as diferenças entre os teólogos da libertação, é possível descobrir uma série de princípios básicos na maior parte dos seus escritos, que constituem inovações radicais. Alguns dos mais importantes são:

1. A luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte adorados pelos novos Faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: Bens Materiais, Riqueza, o Mercado, a Segurança Nacional, o Estado, a Força Militar, a “Civilização Ocidental Cristã”.

2 Libertação humana histórica como a antecipação da salvação final em Cristo, o Reino de Deus.

3 Uma crítica da teologia dualista tradicional, como produto da filosofia grega de Platão, e não da tradição bíblica na qual a história humana e a história divina são diferentes, mais inseparáveis.

4 Uma nova leitura da Bíblia, que dá uma atenção significativa a passagens tais como a do Êxodo, que é vista como paradigma de luta de um povo escravizado por sua libertação.

5 Uma forte crítica moral e social do capitalismo dependente como sistema injusto e iníquo, como uma forma de pecado estrututral.

6 O uso do marxismo como instrumento socioanalítico a fim de entender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classe.

7 A opção preferencial pelos pobres e a solidariedade com sua luta pela autolibertação.

8 O desenvolvimento de comunidades de base cristãs entre os pobres como uma nova forma de Igreja e como alternativa para o modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista.”

3 Gustavo Gutiérrez, Théplogie de la liberátion – perspectives. Bruxelas: Lumem Vitae, 1974, p. 261.

 

 

“(...) Defrontamo-nos aqui com o tipo de fenômeno descrito pelo sociólogo francês Henri Desroche como “reativações mútuas do espírito messiânico e revolucionário”5. Mas em vez de “amálgama” ou “cumplicidade” (termos utilizados por Desroche) parece-me que seria mais útil usar aqui com o conceito de afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft] de Weber, para entender como essas duas dimensões se relacionam na cultura do Cristianismo da Libertação. Voltarei a essa questão mais adiante. Por enquanto, permitam apenas que eu levante a hipótese de que essa afinidade eletiva se baseia em uma matriz comum de crenças políticas e religiosas, ambas enquanto um “corpo de convicções individuais e coletivas que estão fora do domínio da verificação e experimentação empíricas... mas que dão sentido e coerência à experiência subjetiva daqueles que as possuem”6.

Algumas sugestões feitas por Lucien Goldmann em seu livro O Deus escondido podem nos ajudar a compreender essa matriz comum, que ele chamou de “fé”. Goldmann usou o conceito de fé – sob a condição de excluir “as contingências individuais, históricas e sociais que o associam a alguma região específica, ou até mesmo às religiões positivas de um modo geral” – para definir uma certa atitude total, comum às religiões e às utopias sociais, que se referem aos valores transindividuais e baseiam-se em um desafio7.

Goldmann comparou o valor religioso transcendente (Deus) ao valor utópico imanente (a comunidade humana) mas, no cristianismo de libertação latino-americano, a comunidade é, ela própria, um dos valores transindividuais mais centrais, possuindo um significado tanto transcendente quanto imanente, tanto ético/religioso como sociopolítico.

Essa matriz comum é uma condição importante para o desenvolvimento de um processo de afinidade eletiva na América Latina entre ética religiosa e utopias sociais. O sociólogo brasileiro Pedro Ribeiro argumenta, no entanto que, na “Igreja da libertação” o relacionamento entre prática religiosa e prática política é mais profundo que na afinidade eletiva: “ele tem que ser entendido como uma unidade dialética, que vê a religião e a política como dois momentos de uma única realidade: as práticas da transformação social implementadas pelas classes populares”.8 Eu acrescentaria apenas que o conceito de afinidade eletiva pode ser ampliado para incluir a possibilidade de obter-se uma espécie de fusão dialética.

Venho dando ênfase à fusão e à unidade, mas é importante referir-nos também à diferença e à distância entre os dois: não sendo um movimento político, a Teologia da Libertação não tem um programa, nem formula objetivos econômicos e políticos precisos. Admitindo a autonomia da esfera política, ela deixa essas questões para os partidos políticos da Esquerda, limitando-se a fazer uma crítica social e moral à injustiça, a aumentar a consciência da população, a espalhar esperanças utópicas e a promover inciativas “de baixo para cima”. Por outro lado, mesmo quando dão apoio a um movimento político (por exemplo, a Frente Sandinista), os teólogos da libertação normalmente mantêm uma distância crítica, comparando a prática real do movimento com as esperanças de emancipação dos pobres.”

5 Daniel Levine (org.), Churches and Politics in Latin America, Beverly Hills, CA: Sage, 1980, p. 17-19, 30; e Daniel Levine (org.), Religion and Political Conflict in Latin America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1986, p. 17.

6 Henri Desroche, Sociologie de l’espérance. Paris: Calmann-Lévy, 1973, p. 158.

7 Definição de crer [croire] por Daniéle Hervieu-Léger, La religion pour memóire. Paris: Cerf, 1993, p. 105. A ideia de uma matriz comum para a religião e para a política que regula“as passagens de uma para a outra segundo mecanismos extremamente complexos de reinterpretação e redefinição”aparece no livro recente de Patrick Michel, Politique e religion. La grande mutation. Paris: Albin Michel, 1994, p. 27. Michel de Certeau já havia escrito acerca do “complexo movimento para a frente e para trás entre religião e política” (e especificamente cristianismo e socialismo) através do qual ocorre uma transferência de crenças no mesmo contorno estrutural. Veja seu livro L’Invention du quotidien. 1. Arts de Faire, (1980). Paris; Galimmard-Folio, 1990, p. 265-268, e também p.261-264, onde ele escreve sobre as mudanças, transições e investimentos da energia crente [énergie croyante].

8 Lucien Goldmann, Le Dieu caché. Paris: Gallimard, 1955, p. 99. Veja também a edição inglesa The Hidden God, Londres: Routledge & Kegan Paul, 1964, p. 90.

 

 

“A Teologia da Libertação adota plenamente os valores modernos da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade, democracia e a separação entre Igreja e o Estado. Como enfatiza Leonardo Boff, a nova teologia latino-americana não sente nenhuma afinidade com uma certa tradição da Igreja institucional que, “desde o século XVI, de definiu como ‘contra’: contra a Reforma (1521), contra as Revoluções (1789), contra os valores que hoje são normalmente aceitos, mas que ainda eram condenados em 1856 por Gregório XVI como deliramentum, tais como a liberdade de consciência, a liberdade de opinião – excomungada e considerada ‘um erro pestilento’ pelo mesmo Papa – contra a democracia etc.”. Em um estilo semelhante, Gustavo Gutiérrez categoricamente rejeita a posição retrógrada dos Papas do século XIX, que permitiram que os setores mais conservadores da Igreja (os que alimentavam a esperança de uma restauração da antiga ordem social) eliminassem ou silenciassem, através de forte censura, “os grupos que estavam mais abertos para os movimentos a favor das liberdades da modernidade e ao pensamento crítico”. Por essa razão ele comemora o Vaticano II como sendo um despertar saudável para as grandes reivindicações da modernidade (direitos humanos, liberdades, igualdade social) por parte da Igreja moderna, em suma, “como uma rajada de vento fresco em um quarto abafado”27.

27 Boff, Igreja, carisma e poder, p. 94; e Gustavo Gutiérrez, La Force historique des pauvres. Paris: Cerf, 1986, p. 178-184.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

O novo conservadorismo brasileiro – Marina Basso Lacerda

Editora: Zouk
ISBN: 978-85-8049-079-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 228

Neoconservadorismo, direita política e peculiaridade neoconservadora
“Direita e esquerda” é uma linguagem posicional utilizada pela ciência política para se referir a grupos de posturas ideológicas. O uso dos termos deriva da Assembleia Constituinte que se seguiu à Revolução Francesa: “(...) como em todas as reuniões humanas, o semelhante começa a adaptar-se por si próprio ao semelhante (...). Há um lado direito, um lado esquerdo; (...) o Côté Droit, conservador, o Côté Gauche, destruidor (...)”I. A direita era então identificada “com posições aristocráticas, tradicionalistas e monárquicas; a esquerda com alinhamentos democráticos, racionalistas e, pelo menos potencialmente, republicanos”II.
Ao longo do século XIX, com a difusão do marxismo e do movimento operário, a posição de esquerda passou a incorporar a defesa dos interesses da classe proletária. A socialdemocracia e, em 1917, a Revolução Russa fizeram com que a burguesia e a defesa do capitalismo se deslocassem para a direita. O keynesianismo, a partir da década de 1930, enfatiza a oposição entre intervenção do Estado, à esquerda, e liberdade do mercado, à direitaIII.
Alguns autores, assim, tratam direita e conservadorismo como sinônimos, já que os anseios de mudança, em geral, estão relacionados a posições de esquerda. Mas outros autores, como Benoit e Benoit e LaverIV consideram que direita e conservadorismo não se confundem: direita se referiria a questões econômicas e conservadorismo a temas morais e culturais. Esta tese não se valerá da diferenciação proposta por Benoit e Laver; tampouco tomará os termos como sinônimos, embora sejam conceitos próximos. Conservadorismo se refere, neste trabalho, à ideologia produto de uma situação de conflito entre manutenção e alteração do status quo – conforme a definição de Huntington. Direita, por sua vez, refere-se a um conjunto de posições substantivas mais ou menos opostas à busca crescente por igualdade.
É o critério apresentado por Norberto BobbioV, para quem o que melhor caracteriza as doutrinas e os movimentos de esquerda é o igualitarismo, desde que entendido não como uma sociedade em que todos são iguais em tudo, mas como tendência a exaltar mais o que faz os homens iguais do que o que os faz desiguais, e de outro, a favorecer as políticas que objetivam tornais mais iguais os desiguais. O conceito de igualdade, para ele, é relativo – e não absoluto. Relativo aos sujeitos entre os quais se trata de repartir os bens e os ônus; aos bens e ônus a serem repartidos; e ao critério com base no qual os repartir. Varia, ainda, de acordo com as reivindicações por inclusão que são elaboradas em cada momento histórico.
O neoconservadorismo é um movimento de direita em se considerar os critérios substantivos que derivam dessa premissa geral, apresentados por diversos autores, sobre o contexto da política nos países europeus, da América e mesmo do Brasil. O neoconservadorismo privilegia a atuação estatal no sentido do saneamento das finanças e não na necessidade de investimentos sociais¹); o neoconservadorismo requer a atuação do Estado como repressor, o que tende a penalizar mais os pobres²; aderiu a regimes militares³. O neoconservadorismo ainda privilegia a segurança nacional e não os direitos humanos, o que se coaduna com um critério de direita para os países de periferia4.
Assim, temos que o neoconservadorismo é conservador, porque reage a um contexto de forte conflito político e social ao que é considerado ameaça às instituições vigentes, e é também de direita. Mas esses não são, como enfatizou-se, conceitos absolutos. Há conservadorismos e direitismos, conforme o contexto social e histórico. O que o diferencia, então, o neoconservadorismo de outros movimentos que também estão nessas posições do espectro político?
Sara DiamondVI assume a visão de Rosalind PetcheskyVII segundo a qual o que há de novo na nova direita estadunidense é o “foco nas questões sexuais e reprodutivas”. As questões sexuais, reprodutivas e sobre a família são, segundo as autoras, o cerne do programa político da coalizão neoconservadora, e o que a diferencia. Mais precisamente, teria sido a oposição a uma proposta legislativa que tratava de igualdade de direitos entre homens e mulheres (a ERA – abordaremos o tema adiante) que teria identificado a nova direita a partir de uma ideologia própria.
Para PierucciVIII, no mesmo sentido, a direita se tornou uma “nova direita” “justamente por injetar no conservadorismo socioeconômico revigorada ênfase nas teses conservadoras/restauracionistas em matéria sexual”. Para ele, sexo e família entrelaçam-se, complementando seu conservadorismo econômico e seu anticomunismo. O inimigo principal da nova direita cristã seria, para o autor, o feminismo. Além disso, como veremos, outra peculiaridade do ideário neoconservador é que seu eixo de gravidade reside em valores religiosos cristãos.
O neoconservadorismo, portanto, é um ideário conservador e de direita, e sua peculiaridade reside na centralidade que atribui às questões relativas à família, à sexualidade e à reprodução e aos valores cristãos. O movimento político neoconservador se materializou em uma coalizão. Trataremos, a partir de agora, dos principais elementos que constituem essa aliança.”
1: Cf. Benoit e Laver, Party policy in modern democracies, 2006; Castañeda, Utopia Desarmada, 1993; Fernandes, 1995; Kaysel, Regressando ao Regresso, 2015; Power, Centering Democracy?, 2008; Tarouco e Madeira, 2013; Zucco Jr., “Esquerda, direita e governo”, 2011.
2 Cf. Power, Meneguello e Mainwaring, Partidos conservadores no Brasil contemporâneo, 2000; Singer, Os sentidos do lulismo, 2000.
3 Cf. Madeira e Tarouco, 2010; Power, Meneguello e Mainwaring, 2000.
4 Cf. Castañeda, 1993; Tarouco e Madeira, 2013



“Também para Pippa Norris a “revolução conservadora”, ou neoconservadora, foi “sempre uma ampla coalizão”:
Sob Ronald Reagan, a coalizão consistiu de intelectuais neoconservadores organizados em grupos de reflexão (think tanks), fundações e institutos de política articulando crenças iconoclastas radicais de governo mínimo e mercado. A eles se uniram os republicanos ortodoxos, o ‘country-club GOP25’, enfatizando padrão tradicional cabeça-dura sobre patriotismo e crime. Finalmente, havia os soldados de infantaria, a direita cristã com apelo populista sobre a restauração dos ‘valores da família tradicional’ sobre o aborto e os direitos dos homossexuais. Essa coalizão difícil e heterogênea – intelectuais neoconservadores, partidos ortodoxos e a direita moral populista – foi cimentada pela política de ressentimento sob a liderança de Reagan.IX


“Os psicólogos Louise Silverstein e Carl AuerbachX consideram o argumento neoconservador, em parte, resultado de uma ansiedade sobre quem vai criar as crianças, diante da nova realidade social em que as mulheres não mais dedicadas exclusivamente ao trabalho doméstico. Assim, muitos acreditam que o retorno à família nuclear tradicional e à divisão gendrada do trabalho seria desejável. Nesse aspecto, porém, para os autores, o neoconservadorismo revela a defesa de uma perspectiva essencialista segundo a qual as mães ou os pais têm uma importância intrínseca, que assume que as diferenças entre homens e mulheres na reprodução biológica implica em diferentes papeis sociais da organização do cuidado com os filhos – o que, de acordo com eles, não teria respaldo empírico.
A posição neoconservadora é também, para Silverstein e AuerbachXI, uma tentativa dos homens heterossexuais de restabelecimento de suas posições de poder perdidas com o avanço feminista e LGBT. Muitos homens não têm mais o controle econômico exclusivo sobre suas famílias, assim como devem aceitar, em alguma medida, dividir tarefas domésticas. Assim, para os pesquisadores, o debate sobre as diferenças de gênero na paternidade inclui uma reação à perda de privilégio masculino, uma tentativa de recuperar a dominação masculina via família nuclear tradicional e heterocentrismo.
Mas há, como vimos, outro aspecto no argumento de que a família tradicional deveria ser restabelecida: o de que as pessoas não precisariam, com ela, de políticas estatais; não dependeriam, assim, dos programas de bem-estar. A reação contra o Estado de bem-estar e a reação antifeminista são, na síntese de PetcheskyXII, as duas faces do neoconservadorismo. A autora argumenta que ambos os aspectos se fortalecem mutuamente e que o elemento de ligação entre eles seria a ideologia privatista. De acordo com ela, historicamente nos Estados Unidos, a ideia de privacidade inclui não apenas a livre empresa, o livre mercado e a propriedade (e o Estado mínimo, portanto); incluiria também, para os conservadores, o poder do homem controlar sua família; de controlar os corpos de suas esposas, filhos e escravos.
Foi em defesa do poder privado do chefe de família que o Partido Republicano estabeleceu, em sua plataforma para a eleição de Reagan, a oposição a qualquer proposta que desse ao governo ingerência nesse âmbito. Pelo mesmo motivo os neoconservadores defenderam o Ato de Proteção da Família e se opuseram à Emenda de Direitos Iguais, mencionadas anteriormente. Com fundamento igual, antagonizaram-se à proposta de legislação federal sobre violência doméstica – ainda que aceitando que a violência doméstica existe, os representantes da nova direita e as feministas divergiam a respeito de suas causas; o argumento neoconservador era de que a existência do problema não seria resultado de uma cultura sexista, mas sim de desvios individuais que seriam solucionados com o fortalecimento da instituição familiarXIII.
Pelo mesmo motivo uma grande energia política foi investida na educação a fim de restabelecer “o controle local, parental e religioso” sobre a formação dos indivíduosXIV. Os neoconservadores defendiam que as prerrogativas parentais biológicas e ideológicas que deveriam prevalecer sobre as prerrogativas estataisXV. Assim, entre a direita cristã era aceito que a educação deveria incluir castigos físicos. Para James Dobson, fundador da organização Foco na Família, “uma surra deve ser suficientemente grave para fazer a criança chorar genuinamente de dor em vez de simplesmente de raiva ou humilhação”, e por isso ele liderou um movimento para autorizar os castigos corporais nas criançasXVI.
Várias outras medidas eram propostas pelos grupos pró-família em relação ao tema: (1) restauração da “oração voluntária” nas escolas públicas; (2) ensino do criacionismo nas escolas; (3) a oposição a qualquer interferência do governo federal sobre as escolas privadas e religiosas, inclusive sobre a segregação racial; (4) incentivos fiscais para matrícula de crianças em idade escolar em estabelecimentos privados e religiosos; (5) oposição à sindicalização dos professores da rede pública; (6) eliminação de todos os programas ou livros relacionados com a educação sexual, a homossexualidade, ou uma visão crítica dos papéis sexuais tradicionais; (7) e demissão de professores homossexuais de emprego em escola públicaXVII.
Havia, ainda, a reivindicação de homeschooling que, para GagoXVIII, era a vanguarda do nacionalismo cristão. Como o autor salienta, a proposta se fortalecia como reação neoconservadora quando nos anos 1960 e 1970 a escola pública ficou impregnada do ambiente de contracultura. De acordo com ele em 1983 Michael Farrys fundou The Home School Legal Defense Association, buscando a legalização da educação em casa em todos os estados da federação. A geração dos filhos educados em casa é conhecida como “Geração Moisés”, e a “Geração Josué” a que deveria reconquistar os Estados Unidos. A plataforma ideológica para alcançar este fim era a do criacionismo, ou seja, a visão de um Deus criador, “inimiga da teoria evolucionista”. Sob o domínio cristão, os Estados Unidos deixariam de ser um “país pecador, e os dez mandamentos formariam a base do sistema legal”.”



“A guerra contra o terrorismo e Guerra no Iraque refletiram o compromisso da administração Bush com o neoconservadorismo. (...) para Wendy BrownXIX, a exposição de motivos da investida de Bush no Iraque é exemplo de como a “declaração do que é verdadeiro, certo e bom sem qualquer necessidade de se referenciar na facticidade se tornou a modalidade neoconservadora de produção da verdade política”, o que combina a racionalidade militarista com o etos religioso do neoconservadorismo.”



““Idealismo punitivo” é a expressão que Greg GrandinXX usa para definir o uso neoconservador da violência para fins imperiais. Esse idealismo punitivo, entretanto, não é adotado pelos neoconservadores apenas no âmbito internacional. A punição é vista, Grandin aponta, como um caminho doméstico. Trata-se da imposição interna da “lei-e-ordem”, ou seja, do rigor penal contra os crimes e contra os dissidentes políticos internos. Outros autores registram que o pensamento neoconservador defende o uso rigoroso do poder coercitivo do Estado para promover a ordem contra a criminalidade, vista como opção individual e não no contexto de explicações econômicas, políticas e sociais; reivindica-se, ainda assim, a posse de armas para os indivíduos, para a autodefesa do cidadão de bemXXI.
Se na filosofia do Estado de bem-estar vigia o paradigma da segurança social, na sociedade neoliberal/neoconservadora, com elementos desintegradores e excludentes, prevalece o princípio da “insegurança coletiva”XXII. O desmonte do Estado de bem-estar teve, assim, como contraparte o fortalecimento penal, processo ocorrido nos Estados Unidos a partir dos anos 19807. Os retrocessos em políticas sociais implicam em expansão do sistema penal como estratégia para conter e administrar as manifestações da desigualdade, da exclusão e do desempregoXXIII. Exige-se um Estado mínimo nas relações econômicas e sociais, mas um Estado máximo para tratar das respectivas consequências deletériasXXIV.
Acumulação capitalista “mais insidiosa” e a redução do Estado – controle de gastos públicos, redução de impostos, flexibilização do mercado de trabalho (“permitir ao mercado o emprego de um mínimo de trabalhadores, extraindo-lhes o máximo de produtividade”) – implica em menos liberdade ao coletivo dos cidadãos, em uma “liberdade apenas aos mercados”. A insegurança causada pela diminuição da proteção social é contrabalanceada pelo incremento dos sentimentos vingativos e pelo agravamento das políticas de segurança – e não por soluções coletivas que enfrentassem a real natureza dos problemas, centrada na brutal desigualdade e exclusão. Assim, escolhem-se determinados indivíduos para serem culpados pelos problemas sistêmicos. Geralmente, esses culpados são os mais vulneráveis: os negros, os pobres e os imigrantes indesejáveisXXV.”
7 É o que aponta WacquantXXVI , que demostra o aumento, a partir de 1979, dos gastos com o sistema carcerário, e a redução em outras áreas – por exemplo, de acordo com ele, em 1985 os créditos para funcionamento das penitenciárias superaram o montante do orçamento do principal programa de ajuda social, Aid to Families with Dependent Children (AFDC).



Neoliberalismo e neoconservadorismo: a aliança paradoxal
Na síntese de NobleXXVII, a virada neoliberal nos Estados Unidos exigiu a construção de um novo projeto de hegemonia que foi possibilitado com a costura da aliança neoconservadora. Ele enfatiza a junção, principalmente no Sul daquele país, de capitalistas de direita, de trabalhadores politicamente atomizados e ainda de camadas da classe média já extremamente conservadoras, grupos sobre os quais o pentecostalismo tinha grande influência, e opostos a todos os aspectos do Great Society. Como aponta o autor, a crítica aos programas de bem-estar residia no fato de que ignorariam a distinção entre o pobre “merecedor” e pobre “indigno”, ao oferecer ajuda a todos em situação de necessidade8.
Mas há diferenças importantes entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo. Mais que isso: a costura entre libertarismo na economia e tradicionalismo é até mesmo paradoxalXXVIII. O neoliberalismo, com sua retórica a favor da liberdade individual, não é a princípio incompatível com o multiculturalismo, com movimentos pela liberdade artística, pela diversificação dos estilos de vidaXXIX. A racionalidade neoliberal implica na criação de necessidades para estímulo ao mercado, o que colide com a racionalidade neoconservadora de produzir uma ordem orientada para a repressão dos desejos. O neoliberalismo trabalha com a ideia de futuro no qual as fronteiras serão apagadas pelo nexo monetário, enquanto o neoconservadorismo busca fortalecer o nacionalismoXXX. Como, então, se explica a aliança do neoliberalismo com o neoconservadorismo?
Para Wendy BrownXXXI, neoliberalismo e neoconservadorismo são dois ideários políticos convergentes em muitos sentidos. Ambos contribuem para produzir a irresponsabilidade do governo em relação ao fundamento de suas decisões; ambos atuam contra a liberdade política e a igualdade entre os cidadãos, porque o primeiro as desvaloriza em favor dos critérios de mercado e o segundo valoriza o uso do poder do Estado para fins morais. O neoliberalismo transforma, para ela, problemas coletivos em problemas individuais com soluções de mercado e defende o estatismo no modelo de empresa, em que normas democráticas são substituídas por critérios de eficiência e lucro. O neoconservadorismo, em compensação, prepara o terreno para as características autoritárias da governança neoliberal, porque o discurso político-religioso permite, para ela, mobilizar uma cidadania submissa.
Além disso, para BrownXXXII, ambos se unem no fato de que o neoconservadorismo em parte é uma resposta à erosão da moralidade no capitalismo; trata-se de um preenchimento do vazio com valores morais rígidos, com a vantagem de serem esses valores opostos ao comunismo e à distribuição de renda. (...)
Irving Kristol, um dos pais do neoconservadorismo, de acordo com HighXXXIII, defendeu as políticas recessivas neoliberais por produzirem um déficit necessário ao conservadorismo; é dizer, a redução do Estado reduziria a dependência da assistência social, o que encorajaria a virtude social. De acordo com KristolXXXIV, as políticas sociais que “recompensam” mães solteiras, em especial, são problemáticas. Haveria uma distinção nítida, para Kristol, entre “mulheres casadas com filhos que se divorciaram, ou viúvas ou abandonadas pelos seus maridos” e as “mães de bem-estar”, que “se deixam engravidar e ter um filho”. Já vimos esse argumento no item sobre a defesa neoconservadora da família patriarcal. Aqui voltamos ao tema do papel da mulher na visão neoconservadora. Para MelichXXXV, as mulheres, de modo geral com menos renda e patrimônio que os homens, dependem mais de políticas públicas. Por isso ferem-nas, de modo particular, medidas “que objetivem aumentar a riqueza cortando impostos que pagariam para programas que ajudariam os pobres e as classes médias”. Para a defesa neoliberal da redução do Estado, portanto, o fortalecimento da família tradicional passa a ser necessário, porque mulheres sozinhas ficam em situação de maior vulnerabilidade.
SnyderXXXVI argumenta que a função da “mitologia dos valores da família”, ao lado de defender o patriarcado, é fortalecer a aliança entre os neoconservadores e o mercado. Para ela, a ideologia da unidade da família autossuficiente fornece uma justificativa para cortar os serviços sociais do governo, o que beneficia desproporcionalmente corporações e elites econômicas. Como sustenta Snyder, a “continuidade da pobreza essencialmente mantém um grande grupo de indivíduos desesperados e sem poder”, que devem ser protegidos pelo discurso de defesa da família. A retórica dos ‘valores familiares’ aumenta, para a autora, “os problemas de ação coletiva, encorajando as pessoas a se identificarem como membros da família e não como trabalhadores, como participantes de um movimento feminista, ou mesmo como cidadãos”, o que também é necessário ao neoliberalismo.
PetcheskyXXXVII, como vimos, sintetiza essas duas faces da aliança neoconservadora, de reação antifeminista e de reação contra o Estado de bem-estar. O elemento que os une é ideologia privatista, que inclui o poder privado do livre mercado e o poder privado do patriarcado. A combinação entre Estado, mercado e família no programa neoconservador é explicada pelas categorias de Esping-Andersen.”

8 A distinção entre “trabalhadores” e “pessoas que não trabalham” seguiu sendo fundamental aos movimentos de direita. É o caso do Tea Party. Como apontam Williamson, Skocpol e CogginXXXVIII, é a dicotomia ideológica que justifica, por parte do grupo de direita contemporâneo nos Estados Unidos, a rejeição a programas sociais, que são vistos como pagamento para pessoas que não merecem, que não trabalham, que não funcionam socialmente.



“O neoconservadorismo é um movimento político que forjou um ideário privatista (defende o predomínio do poder privado da família e das corporações), antilibertário (a favor da interferência pública em aspectos da vida pessoal), neoliberal (contra a intervenção do Estado para a redução das desigualdades), conservador (articula-se em reação ao Estado de bem-estar, ao movimento feminista e LGBT) e de direita (se opõe a movimentos reivindicatórios que buscam maior igualdade de direitos).
Enquanto ideário, o neoconservadorismo é, como mencionado, um conjunto de preferências, um modo de pensamento, uma mentalidade que alia idealismo punitivo externo e interno, absolutismo do livre mercado e valores da direita cristã, além de apoio ao movimento sionista.
O eixo da linguagem neoconservadora é a ideia de privatização. Seja no sentido de garantir o total livre mercado, livre de ingerências estatais; seja no sentido de se manter intocado o poder patriarcal. A peculiaridade do ideário neoconservador reside no foco que tem em relação às questões sexuais e reprodutivas. A defesa da família tradicional e dos valores religiosos oferece laços sociais sólidos que visam a compensar a falta de solidariedade deixada pelas políticas neoliberais. O fortalecimento da família e dos papeis tradicionais de gênero seria necessário, também, para que as pessoas não dependessem de políticas públicas. Além da família, outro tratamento dado à pobreza, na linguagem neoliberal e neoconservadora, seria o rigor penal.
A defesa de Israel é o pilar da coalizão neoconservadora que não se comunica diretamente com a ideia de privatização. O ponto une intelectuais neoconservadores – de maioria judia – e a direita cristã. A aliança, nesse aspecto, foi costurada principalmente por motivos ideológicos (a família como cimento da sociedade) e teológicos (teoria do dispensacionalismo). O militarismo anticomunista faz parte da agenda neoconservadora como elemento de projeção de poder dos Estados Unidos e de disseminação do capitalismo pelo mundo. Destacou-se, nessa agenda, o papel da direita cristã na América Latina. Sob o comando de Reagan, organizações religiosas e missionários atuaram de modo a combater os influxos progressistas; atuaram em nome da expansão da palavra de Deus, do combate ao comunismo, em uma guerra espiritual do bem contra o mal.
A hipótese desta tese é de que há um movimento neoconservador, nos moldes existentes nos Estados Unidos, na Câmara dos Deputados brasileira. Ou seja, a hipótese é de que existe uma articulação de grupos em prol de uma agenda neoconservadora. Essa articulação defenderia, portanto, os diferentes elementos que compõem o ideário neoconservador. Isso será verdade se se verificar que existe um movimento político que contempla: a) defesa de valores morais religiosos e da família tradicional em reação ao feminismo e ao movimento LGBT; b) o punitivismo; c) o militarismo anticomunista; d) a defesa de Israel, e) o neoliberalismo.”



“O fenômeno Bolsonaro será estudado por pesquisas variadas, Essas são apenas linhas ensaísticas. Mas o que fica delas é que Bolsonaro, em si, encarna progressivamente uma coalizão neoconservadora. Defensor assíduo do militarismo interno e externo, anticomunista e antipetista em toda sua trajetória, parceiro preferencial de Israel, cresce ao agregar fortemente o elemento “anti-gay” e ao abraçar o evangelismo; viabiliza-se presidente da República orientado por um discípulo da Escola de Chicago, que atuou no laboratório neoliberal de Pinochet e que defende a ortodoxia econômica — outros Chicago boys, ou mais propriamente Chicago olds, foram depois escolhidos para outros postos estratégicos do governo Bolsonaro: Joaquim Levy, futuro presidente do BNDES; Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil; e Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, os três doutores em economia pela Universidade de ChicagoXXXIX. Bolsonaro, de um lado, se aproxima do mercado para viabilizar sua eleição. O mercado, por outro lado, adere paulatinamente à campanha e à formação de governo do candidato. Paulo Guedes é o símbolo da junção entre um e outro.”



“O ator central do neoconservadorismo norte-americano e brasileiro é a direita cristã.”


  
“Nesse sentido pode-se falar em um quinto elemento, que é a força do argumento neoconservador. É a força da união entre a promessa de progresso material com valores transcendentes e laços sociais sólidosXXXX. A insegurança em relação à organização dos afetos dá lugar a papéis sociais bem definidos. Em um mundo de constante mudança, as respostas baseadas em autoridade, na família e em princípios religiosos delimitados oferecem conforto. As incertezas relacionadas à saúde, moradia, educação, desemprego e violência urbana são compensadas com as ideias de pulso forte e de hierarquia. A inclusão social pela via programática estatal parecer complexa e difícil de alcançar. Já as respostas que o neoconservadorismo oferece são imediatas e plenas de sentido. E isso cativa os cidadãos-eleitores, com reflexo na política institucional.”


“A posição neoconservadora é, para Silverstein e AuerbachXXXXI, uma tentativa dos homens heterossexuais de restabelecimento de suas posições de poder perdidas no interior da família. Isso pode explicar o fato de os protagonistas da ação neoconservadora no Brasil serem homens. Não se encontrou nenhuma mulher com participação significativa no ativismo nos temas que constituem a ideologia neoconservadora.”



“Bolsonaro é diferente disso. Ele, que antes não se manifestava sobre o tema, adotou como mantra de campanha a tríade desregulamentação (do mercado de trabalho), desburocratização (redução do Estado) e privatização (embora, nesse caso, com declarações contraditórias a respeito da extensão do programa de venda de estatais). O presidente eleito, que ao longo de sua trajetória sempre militou por itens de uma agenda neoconservadora – militarismo interno, anticomunismo externo e um certo ativismo anti-LGBT –, vai crescendo politicamente à medida em que incorpora uma agenda neoconservadora completa: quintuplica sua votação para deputado federal após protagonizar a batalha contra o “kit gay”; a fim de eleger-se presidente da República sela seu compromisso com o mercado ao indicar como guru econômico um discípulo da Escola de Chicago que chegou a atuar no laboratório do neoliberalismo no mundo, o Chile de Pinochet. Se os atores neoconservadores aderem a pautas de mercado por acreditarem nelas, os atores do mercado vão progressivamente aderindo à coalizão neoconservadora à medida que sua força vai crescendo.
Neoliberalismo, punição e família se entrelaçam. Entrelaçam-se, em parte, porque os protagonistas da ação pró-família patriarcal e neoconservadora criminal de regra encamparam agendas que são verdadeiras expressões contemporâneas do Consenso de Washington. Mas se entrelaçam também pela mentalidade que informa as visões. Para os neoconservadores, o melhor programa contra a pobreza é uma família estável. O modelo de Estado defendido pelos neoconservadores é o corporativo: moldado pela Igreja, comprometido com a família tradicionalXXXXII. Na falha da família e do mercado, dentre os tratamentos dados às patologias da pobreza, há o bem-estar promovido por políticas públicas ou o direito penal; opta-se, nessa cosmovisão, pelo segundo. O neoliberalismo é punitivoXXXXIII , tratando com o rigor criminal os efeitos de políticas de austeridade.
A simbiose entre neoliberalismo e neoconservadorismo é aparentemente paradoxalXXXXIV, mas se explica. A ideologia privatista — do poder aos pais de família e do mercado — é marca forte do neoconservadorismoXXXXV. A pobreza acarretada pela redução de políticas de bem-estar mantém um grande grupo de indivíduos desesperados e sem poder que devem ser protegidos pelo discurso de defesa da famíliaXXXXVI. O neoliberalismo demanda formas de solidariedade que não ameacem a competição e que sejam não classistasXXXXVII, A família não ameaça a competição. A doutrina individualista do pentecostalismo não ameaça a competição. Pelo contrário, a estimula — falas de parlamentares evangélicos enfatizam que a livre iniciativa e o empreendedorismo são dons de Deus. O neoconservadorismo engendra, para usar a expressão de BiroliXXXXVIII , um moralismo compensatório pela perda de qualidade de vida a que políticas neoliberais levam.”



“Os dois aspectos que mais diferenciam o neoconservadorismo brasileiro em relação ao neoconservadorismo norte-americano têm a ver com a posição do Brasil como um país de periferia. Um deles, como se mencionou logo acima, é o desprestigio de uma estratégia internacional autonomista, reforçando a posição subordinada do Brasil em relações assimétricas. O segundo, tratado anteriormente, é o fato de a aplicação do pacote neoliberal em países em desenvolvimento implicar a desnacionalização de recursos e, portanto, o reforço de uma posição de subordinação.
Mas os aspectos que aproximam o neoconservadorismo norte-americano e o novo conservadorismo brasileiro residem no cerne do argumento neoconservador: a união dos princípios de autoridade militar e religiosa, associados ao estimulo à livre competição e ao enriquecimento individual; os valores morais rígidos em um mundo de inseguranças; a família como um projeto de boa sociedade. Se as respostas baseadas em políticas públicas de bem-estar social parecem longínquas, as respostas neoconservadoras parecem bastante imediatas. Eis a força do argumento neoconservador, e é ela que explica porque o neoconservadorismo ofereceu um colchão que viabilizou o surgimento e a implantação do neoliberalismo na década de 1980, e porque o novo conservadorismo possibilita a retomada de um projeto de hegemonia neoliberal no Brasil.”



I: T. Carlyle, História da Revolução Francesa, 1962 [1871], p. 192.
II: L. Fernandes, Muito barulho por nada?,1995, p. 108.
III: G. S. Tarouco e R. M. Madeira, “Partidos, Programas e o Debate sobre Esquerda e Direita no Brasil”, 2009, p. 3; 2013, p. 151.
IV: Party policy in modern democracies, 2006, pp. 2, 13 e 14, 103, 28, 30, 32, 41, 42, 52.
V: Direita e esquerda, 1995, pp. 95, 96, 99, 110.
VI: Spiritual Warfare, 1995, p. 165.
VII: Antiabortion, Antifeminism, and the Rise of the New Right, 1981, p. 207.
VIII: As bases da nova direita, 1989, p.115-16.
IX: Conservatism in Disarray?, 1996, pp. 165-66.
X: Desconstructing the Essential Father, 1999, pp. 3-5, 13.
XI: Ibid.
XII: Ibid., 1981, pp. 207, 210, 222.
XIII: op. cit., 1981, pp. 210, 21, 25, 26.
XIV: op. cit., 1981, p. 227.
XV: op. cit., 1995, p. 166.
XVI: Snyder, The Allure of Authoritarianism, 2007, pp. 487-509.
XVII: Diamond, 1995, p. 166, Petchesky, 1981, p. 221)
XVIII: op. cit., 2013, p. 12, 13.
XIX: American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization, 2006, p. 707.
XX: Empire's Workshop: Latin America, the United States, and the Rise of the New Imperialism, 2006, pp. 104, 138-9, 152-3.
XXI: Kilduff, O controle da pobreza operado através do sistema penal, 2010, p. 241; Linker et al., 2011, p. 195 e 207; Norris, 1996, p. 165; Petchesky, 1981, p. 222
XXII: Dornelles, 2008, Conflito e Segurança: Entre Pombos e Falcões, p. 19.
XXIII: Kilduff, 2010, p. 240-41.
XXIV: Dornelles, 2008, 64.
XXV: K. Argüello, Do Estado social ao Estado penal, 2005, pp. 2-5.
XXVI: As prisões da miséria ,2001 [1999], pp. 55-56.
XXVII: From Neoconservative to New Right, 2007, p. 111.
XXVIII: J. Himmelstein, The New Right, 1983, pp. 21-23
XXX: Brown, 2006, p. 699.
XXXI: 2006, pp. 690, 699-700, 703-5.
XXXII: 2006, pp. 699-700.
XXXIII: The Recent Historiography of American Neoconservatism, 2009, p. 480.
XXXIV: A Conservative Welfare State, 1993: apud Noble, 2007, pp. 110, 116.
XXXV: The Republican War Against Women, 1998, p. 283.
XXXVI: 2007, pp. 144, 157-8.
XXXVII: 1981, p. 207, 210, 222.
XXXVIII: The Tea Party and the Remaking of the Republican Conservatism, 2011, pp. 33-35.
XXXIX: NUNES, 2018.
XXXX: Himmelstein, 1983.
XXXXI: 1999, pp. 3-5, 13.
XXXXII: Esping-Andersen, As três economias políticas do welfare state, 1991.
XXXXIII: W. Davies, The New Neoliberalism, 2016.
XXXXIV: Himmelstein, 1983.
XXXXV: Petchesky, 1981.
XXXXVI: Snyder, 2007.
XXXXVII: Harvey, 2005; Noble, 2007.
XXXXVIII: 2017.