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sexta-feira, 24 de julho de 2020

A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Parte IV) — David Harvey

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-4430-374-0
Tradução: Artur Renzo
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
Sinopse: Ver Parte I

“Marx reconhecia que o valor da força de trabalho variava de país para país, dependendo de “preço e volume das necessidades vitais elementares, natural e historicamente desenvolvidas, custos da educação do trabalhador, papel do trabalho feminino e infantil, produtividade do trabalho, sua grandeza extensiva e intensiva”. Variações geográficas na intensidade do trabalho são particularmente importantes. O “trabalho nacional mais intensivo produz, em tempo igual, mais valor, que se expressa em mais dinheiro”. A “lei do valor” é “modificada” pela “diversidade nacional dos salários”3 e pelas variações geográficas em extensão, intensidade, produtividade e porosidade da jornada de trabalho. Produtividades diferentes de trabalho conforme as diferenças naturais (por exemplo, alimentos mais baratos provenientes de terras férteis sob um clima favorável), diferentes definições de vontades, necessidades e desejos conforme a situação natural e cultural e dinâmicas de lutas de classes significam que a equalização da taxa de lucro não virá acompanhada de uma equalização da taxa de exploração entre os países4. Na eventualidade de uma transação comercial entre países, o “país favorecido recebe mais trabalho em troca de menos trabalho, embora essa diferença, esse excedente, tal como no intercâmbio entre o trabalho e o capital em geral, seja embolsado por uma classe determinada”5. Não ganha brinde quem adivinhar qual é a classe beneficiada. “Aqui”, diz Marx, “a lei do valor sofre uma modificação essencial [...] o país mais rico explora o mais pobre, mesmo quando o segundo ganha com a troca.”6 Isso evita qualquer “nivelamento direto de valores por tempo de trabalho e ainda o nivelamento de preços de custo por uma taxa geral de lucro entre os diferentes países”7.
O trabalho social que realizamos para os outros em determinada parte do mundo é diferente, tanto qualitativa quanto quantitativamente, do trabalho social que realizamos para os outros em outra parte do mundo. Na eventualidade de uma transação comercial entre diferentes regimes de valor regionais, o trabalho social de uma região pode acabar subsidiando e sustentando a economia e o estilo de vida de outra. Regimes de alta produção de valor, como aqueles baseados em setores produtivos trabalho-intensivos (por exemplo, México ou Bangladesh), podem estar sustentando regimes capital-intensivos de alta produtividade (como os Estados Unidos). E ainda mais grave: as usinas de engarrafamento de dívidas em Nova York e Londres, que produzem antivalor, cobram o resgate desse valor nas fábricas de Bangladesh e Shenzhen, e não nas quebradas de Manhattan ou Soho.
Esse argumento tem implicações de grande alcance. No Livro I d’O capital, Marx se pergunta como a igualdade pressuposta pelas relações concorrenciais de troca pode ser compatível com a desigualdade da produção de mais-valor. A resposta repousa na transformação da força de trabalho em mercadoria e na exploração do trabalho vivo na produção. No Livro III, Marx resolve outra surpreendente charada. A equalização da taxa de lucro por meio da concorrência força a troca das mercadorias não por seus valores, mas por seus preços de produção8. Os capitalistas recebem mais-valor de acordo com a força de trabalho que empregam. A redistribuição de mais-valor a que isso leva em situações de comércio aberto no interior da classe capitalista favorece produtores capital-intensivos em detrimento de produtores trabalho-intensivos.
A lei da redistribuição capitalista, conforme apresentada no Livro III, evoca alguns paralelos interessantes. O comitê do Senado encarregado de investigar a crise de 2007-2008 perguntou a Lloyd Blankfein, CEO da Goldman Sachs, como ele definiria o papel do banco. Ele respondeu que a função do banco era “fazer o trabalho de Deus”9. Presume-se que tinha em mente a injunção bíblica do Evangelho de Mateus (25:29): “porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem será tirado”. É isso o que a equalização da taxa de lucro faz. As consequências têm um alcance potencialmente longo, dada a insistência de Marx (e de Ricardo) de que o trabalho é a fonte última do valor. O comércio entre um regime capital-intensivo (tal como o da Alemanha) e regimes trabalho-intensivos (tais como o de Bangladesh) resultará na transferência de valor e mais-valor do segundo para o primeiro. Isso será realizado de maneira “silenciosa” e “natural” através do próprio processo do mercado. Para tanto, não são necessárias táticas imperialistas de dominação e extrativismo, mas a simples promoção de práticas de livre-comércio. Essa é a maneira “silenciosa” pela qual regiões ricas enriquecem à custa das regiões pobres, que vão ficando cada vez mais para trás. Por esse motivo, muitos dos ditos países em desenvolvimento recorrem ao protecionismo, particularmente no caso das chamadas “indústrias nascentes”. Isso também ajuda a explicar por que tantos países em desenvolvimento, a começar pelo Japão dos anos 1960, preferem organizar e subsidiar formas de desenvolvimento capitalista capital-intensivas, em vez de formas trabalho-intensivas10. Aquilo que se denomina “subir na cadeia de valor” em direção a produções de maior valor agregado torna-se uma ambição generalizada.”
2 Peter Haggett, Locational Analysis in Human Geography (Londres, Edward Arnold, 1965).
3 Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 631, 632, 633.
4 Os detalhes dos esparsos comentários de Marx sobre esse tópico estão reunidos em David Harvey, Spaces of Capital. cit. cap. 12.
5 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 277.
6 Idem, Theories of Surplus Value, Part 3, cit., p. 106.
7 Idem, Theories of Surplus Value, Part 2, cit., p. 474-5.
8 Idem, O capital, Livro III, cit., cap. 9.
9 Dealbook, “Blankfein Says Hes Just Doing ‘God’s Work’”, The New York Times [coluna], 9 nov., 2009.


““Para os senhores economistas”, no entanto, “é terrivelmente difícil avançar teoricamente da autoconservação do valor no capital à sua multiplicação.”9 Nossa compreensão do mundo se torna refém da insanidade de uma razão econômica burguesa que não apenas justifica como promove a acumulação sem limites, enquanto simula uma infinidade virtuosa de crescimento harmonioso e melhorias contínuas e alcançáveis no bem-estar social. Os economistas jamais enfrentaram a “má infinidade” do crescimento exponencial infindável, que só pode culminar em desvalorização e destruição. Ao contrário, louvam as virtudes de uma burguesia que triunfantemente “capturou o progresso histórico e o colocou a serviço da riqueza”10. Esquivam-se sistematicamente de saber se as crises são inerentes a tal sistema. As crises, dizem eles, devem-se a atos de Deus ou da natureza ou a equívocos humanos e erros de cálculo (em especial aqueles que podem ser atribuídos a intervenções estatais equivocadas). Todos ou qualquer um desses motivos pode provocar um descarrilamento da máquina supostamente imaculada do infinito capitalismo de livre mercado. Mas os economistas insistem que a máquina em si permanece o epítome da perfeição. Quando se depararem com uma crise, os economistas só poderão alegar que, “se a produção fosse realizada conforme os livros didáticos, as crises jamais ocorreriam”.
Toda razão que eles [os economistas] levantam contra as crises é uma contradição exorcizada e, portanto, uma contradição real. O desejo de convencer a si mesmos da não existência de contradições e ao mesmo tempo a expressão de um vão desejo de que as contradições, que estão efetivamente presentes, não existissem.11
A ciência econômica contemporânea não tem contradições.
Foi nesse contexto que Marx decidiu dedicar tanto de seu esforço teórico e de sua vida intelectual à crítica da economia política e da loucura da razão econômica. Nesse processo, ele revela irracionalidades e “formas insanas” cada vez mais profundas no pensamento sistêmico e no programa político que supostamente nos conduziria a um utopismo da vida cotidiana. As leis contraditórias do movimento que ele identifica beneficiam unicamente a classe capitalista e seus acólitos, ao mesmo tempo que reduzem populações inteiras a exploração de seu trabalho vivo na produção, a escassas oportunidades em sua vida cotidiana e a servidão por dívida em suas relações sociais.
Marx descobre que a loucura da razão econômica burguesa é ainda mais exacerbada pelos crescentes antagonismos entre o valor e suas representações monetárias. À medida que o dinheiro se desprende necessariamente de qualquer lastro material (como as mercadorias-dinheiro ouro e prata), suas construções idealistas (como números de dólares, euros, ienes etc.) e, sobretudo, sua crescente manifestação na forma de dinheiro de crédito tornam-se vulneráveis aos caprichos dos juízos humanos, suscetíveis a excessos e manipulações de quem tem as rédeas do poder. “De sua figura de servo, na qual se manifesta como simples meio de circulação, converte-se repentinamente em senhor e deus no mundo das mercadorias”, cuja riqueza universal “pode ser tangivelmente incorporada às posses de um indivíduo singular”. O dinheiro é uma reivindicação individualizada sobre o trabalho social dos outros, exatamente da mesma maneira que a dívida constitui uma reivindicação sobre o trabalho futuro dos outros. O dinheiro confere a seu possuidor “o poder universal sobre a sociedade, sobre o inteiro mundo dos prazeres, dos trabalhos etc.”12. Do tempo de Marx para cá, ampliou-se enormemente o hiato entre a proliferação dessas reivindicações e a base de valor na qual elas supostamente estão lastreadas. Hoje, se todos se dirigissem aos bancos para sacar em espécie o equivalente de seus depósitos, levaria meses, se não anos, até que se conseguisse imprimir as notas necessárias. Todos os dias, 2 trilhões de dólares trocam de mãos nos mercados de comércio exterior.”
5 Idem, O capital, Livro III, p. 523.
6 Ibidem, p. 401.
7 Idem, Grundrisse, cit., p. 338.
8 Idem, O capital, Livro III, p. 442.
9 Idem, Grundrisse, cit., p. 210.
10 Idem, cit., p. 490.
11 Idem, Theories of Surplus Value, Part 2, cit., p. 468 e 549. Boa parte dos economistas reconhece as imperfeições de mercado provenientes de efeitos de externalidade e de imperfeições informacionais (e até as estudam enquanto “fracassos de mercado”). Os que possuem uma orientação mais keynesiana chegam a admitir um papel a ser desempenhado pelo Estado no sentido de garantir um gerenciamento adequado da oferta e da demanda agregada, principalmente voltado para amortecer as oscilações e os solavancos dos ciclos econômicos na esperança de eliminar crises e depressões. Mas o objetivo deles é fundamentalmente o de corrigir imperfeições e definir políticas otimizadas para balizar o envolvimento do Estado a fim de restaurar ao seu devido lugar o conceito do equilíbrio harmonioso. Nenhum deles, nem mesmo figuras como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs, que reivindicam posições políticas progressistas, possuem qualquer concepção das contradições internas do capital ou dos perigos da má infinidade do crescimento exponencial infinito.


“O valor em Marx é trabalho alienado socialmente necessário. Na medida em que capital é valor em movimento, a circulação de capital implica a circulação de formas alienadas. Até que ponto essas alienações estão por trás das evidentes manifestações políticas de descontentamento e desespero?
A alienação inerente à valorização é bem conhecida e de longa data. O trabalhador que cria valor é afastado (alienado) dos meios de produção, do comando do processo de trabalho, do seu produto e do mais-valor. O capital faz com que pareça que muitos dos poderes inerentes (e dádivas gratuitas) do trabalho e da natureza pertencem a ele e se originam dele, porque é o capital que lhes confere significado. Até mesmo a mente e as funções corporais do trabalhador, assim como todas as forças naturais livremente investidas na produção, aparecem como poderes contingentes do capital, porque é ele que as mobiliza. A alienação da relação com a natureza é com a natureza humana e, portanto, uma precondição para a afirmação da produtividade e dos poderes do capital. Além disso, a produtividade do trabalho é conduzida por tecnologias escolhidas pelo capital não apenas para confirmar seu controle sobre o trabalhador mas também para minar a dignidade e os supostos poderes do trabalho tanto na produção quanto no mercado. A não ser que alguma resistência seja efetivamente mobilizada, o destino dos trabalhadores será o trabalho desprovido de sentido, empregos contingentes, desemprego e salários cada vez mais baixos. Não há dúvida de que em muitas partes do globo a alienação do trabalho vem se intensificando e aprofundando com as transformações tecnológicas, a supressão do poder organizado dos movimentos da classe trabalhadora e a mobilização da concorrência global por meio da reorganização dos regimes territoriais de valor no mundo. O desemprego e, não menos importante, o subemprego e a perda de sentido são subprodutos das fortes correntes de transformação tecnológica e organizacional. Os discursos utópicos sobre as novas configurações tecnológicas baseadas em inteligência artificial que estão nos conduzindo ao limiar de um admirável mundo novo de consumismo emancipatório e tempo livre para todos ignoram completamente a alienação desumanizante dos processos de trabalho residuais e dispensáveis que decorrem desse processo. É impossível ignorar os efeitos coletivos traumáticos e destrutivos do fechamento de indústrias manufatureiras sobre os laços sociais que uniam as pessoas em determinado tempo e espaço. Marx, por sua vez, considerava que era preciso traçar uma importante distinção entre trabalhadores que eram objetificados e explorados pelo capital, mas ainda sentiam que eram necessários (portanto mantinham certo orgulho e dignidade), e os trabalhadores que eram alienados, despossuídos e se sentiam descartáveis38. As condições de emprego decorrentes da mecanização e da automação tendiam para esse segundo tipo de trabalho. A perda da dignidade e do respeito é sentida quase tão duramente quanto a perda do emprego.
Mas há outras dimensões nesse problema. Trabalhadores são contratados individualmente e competem entre si por oportunidades de emprego. Eles precisam se vender ao capital como portadores de força de trabalho alardeando suas qualidades e ao mesmo tempo diminuindo e depreciando as de seus concorrentes. A concorrência entre trabalhadores frustra a cooperação e impede a construção de solidariedades de classe. Introduz toda sorte de fragmentações. Os trabalhadores passam a estranhar uns aos outros. Isso se torna ainda mais repulsivo quando se mistura ao racismo, as discriminações de gênero e de orientação sexual, as hostilidades religiosas, étnicas ou sexuais no mercado de trabalho (divisões que, historicamente, o capital promove com avidez). A concorrência aguda (sob condições de desemprego disseminado e maior integração espacial das forças de trabalho do mundo) está intensificando essas divisões e tensões no interior da força de trabalho, com consequências políticas previsíveis, particularmente em situações em que as solidariedades sociais anteriores se dissolveram por causa da desindustrialização. Foram esses, por exemplo, os sentimentos que Donald Trump soube explorar tão bem em 2016, em sua campanha à presidência dos Estados Unidos.
A alienação no processo de realização toma diversas formas e muitas vezes é uma faca de dois gumes. O estado das vontades, necessidades e desejos está sempre na origem da demanda. Marx considerava, sem ironia, que a criação de novas vontades e necessidades era parte da missão civilizatória do capital39. É difícil contestar essa opinião quando consideramos, por exemplo, todos os valores de uso que agora podem ser mobilizados para prolongar a expectativa de vida das pessoas, que nos primórdios do capitalismo era de 35 anos em média e hoje, em muitas regiões do mundo, é de setenta anos ou mais. O capital produz uma cornucópia de valores de uso a partir da qual as pessoas podem criar relações sociais e formas não alienadas de estar na natureza e umas com as outras. A potencialidade está lá. O mundo é repleto de brechas com espaços heterotópicos em que grupos buscam, em meio a um mar de alienação, construir modos não alienados de viver e de ser. As alienações experimentadas na produção podem ser recuperadas por meio do consumo compensatório de valores de uso que melhoram a qualidade da vida cotidiana40. Por outro lado, as vontades, necessidades e desejos do complexo militar-industrial, do lobby armamentista ou da indústria automobilística foram e continuam a ser fontes poderosas de demanda agregada, projetada pela influência corporativa sobre o aparato estatal e pelas escolhas impostas de estilo de vida. Suas contribuições ao bem-estar social são no mínimo dúbias. A base econômica de uma cidade como São Paulo é uma indústria automobilística que produz veículos que ficam horas parados em engarrafamentos, entupindo ruas, cuspindo poluentes e isolando indivíduos uns dos outros. Quão saudável é essa economia?”
36 David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo (trad. Rogerio Bettoni, São Paulo, Boitempo, 2016).
37 Bertell Ollman, Alienation, cit.
38 Karl Marx, Grundrisse, cit.
39 Ibidem, p. 283-4.
40 Andre Gorz, Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica (trad. Ana Montoia, Sao Paulo, Annablume, 2003); sobre os limites do consumismo compensatório, ver Karl Marx, Grundrisse. cit., p. 207 e seg.


“A relação entre o processo de realização e a história do consumismo se sobrepõe à evolução histórica dos distintos estilos de vida. A construção dos subúrbios e dos condomínios fechados nos Estados Unidos pode ter salvado o capitalismo global das condições de retorno à depressão econômica, mas também confinou as escolhas de habitação, de maneira que estejam ligadas não apenas a exigências materiais (por exemplo, ter carro e casa própria) mas também sejam acompanhadas de justificativas políticas e ideológicas de certo modo de vida (o chamado “american dream”) que limita e aprisiona, em vez de ampliar os horizontes da realização pessoal. A ascensão do “consumismo compensatório” nas classes trabalhadoras é complementada pelo consumismo conspícuo de “bens hedonistas” em todas as classes sociais, que não remontam a nada além de um desperdício conspícuo. A busca infindável de satisfação de vontades, necessidades e desejos — que não podem nunca ser realmente satisfeitos — vem necessariamente acompanhada do crescimento exponencial infindável da produção. Embora seja errado considerar a reconfiguração de todas as novas vontades, necessidades e desejos como “alienada”, não é difícil enxergar que as alienações estão proliferando na sociedade consumista que o capital necessariamente constrói e vem se intensificando em muitos lugares e em certas classes marginalizadas. O abismo entre a promessa e a realização vem se alargando.
Se a circulação de capital está sob imensa pressão competitiva para se acelerar, isso exige que haja também um aumento na velocidade do consumo. Eu ainda uso os talheres que eram dos meus avós. Se o capital produzisse apenas itens desse tipo, já teria afundado há muito tempo numa crise permanente. O capital desenvolve toda uma gama de táticas — da obsolescência programada à mobilização de pressões de propaganda e a moda como ferramentas de persuasão — para acelerar o tempo de rotação no consumo. Considere o caso de uma produção original da Netflix. O fato de eu a consumir não impede que outros também a consumam, e o tempo de consumo é de, digamos, cerca de uma hora — em comparação com os meus talheres, que já duram mais de cem anos. O valor implicado na produção e na transmissão do filme por meio de complexas infraestruturas de comunicação é recuperado pelos milhões de usuários que assinam a Netflix. Não é à toa que o capital tem cultivado uma “sociedade do espetáculo” a fim de garantir uma forma de crescimento do mercado de produtos efêmeros para consumo instantâneo41. As consequências sociais são amplas, e muitas delas são facas de dois gumes. A rapidez na transformação de estilos de vida, tecnologias e expectativas sociais faz com que se multipliquem as inseguranças sociais e aumentem as tensões sociais entre gerações, assim como entre grupos sociais cada vez mais diversificados. Todos parecem mais interessados em consultar seus smartphones ou tablets do que em conversar uns com os outros. O enraizamento dos significados culturais torna-se mais precário e aberto as reconstruções casuais, conforme as fantasias contemporâneas. Identidades flutuam em um mar de vínculos transitórios e efêmeros. Pessoas e produtos que correspondam a isso são necessários para que o capital cumpra a exigência de crescimento exponencial infindável. Da perspectiva da acumulação infindável de capital, é com isso que se parece o “consumo racional”.”
41 Guy Debord, A sociedade do espetáculo (trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997).


“Convido os leitores a comparar essa sequência as linhas gerais do que ocorreu na crise financeira de 2007-2008 (substituindo “hipotecas” por “letras de câmbio”):
Num sistema de produção em que toda a rede de conexões do processo de reprodução se baseia no crédito, quando este cessa de repente e só se admitem pagamentos à vista, tem de se produzir evidentemente uma crise, uma demanda violenta de meios de pagamento. À primeira vista, a crise se apresenta como uma simples crise de crédito e crise monetária. E, com efeito, trata-se apenas da conversibilidade das letras de câmbio [hipotecas] em dinheiro. Mas a maioria dessas letras [hipotecas] representa compras e vendas reais, cuja extensão, que vai muito além das necessidades sociais e acaba servindo de base a toda a crise. Ao mesmo tempo, há uma massa enorme dessas letras [hipotecas] que representa apenas negócios fraudulentos, que agora vem à luz e estouram como bolhas de sabão; além disso, há especulações feitas com capital alheio, porém malogradas; e, por fim, capitais-mercadorias [casas] desvalorizados, ou até mesmo invendáveis [...]. Esse sistema artificial inteiro de expansão forçada do processo de reprodução não pode naturalmente ser remediado fazendo com que um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra [o Federal Reserve], conceda a todos os especuladores, com suas cédulas, o capital que lhes falta e compre todas as mercadorias depreciadas [casas] a seus antigos valores nominais. Além disso, aqui tudo aparece distorcido, pois nesse mundo de papel jamais se manifestam o preço real e seus fatores reais [...]. Principalmente nos centros em que se concentra todo o negócio monetário do país, como Londres, nota-se claramente essa distorção; todo o processo se torna incompreensível, mas em menor medida nos centros de produção.49
Isso nos leva a considerar o poder e a importância daquele aspecto da distribuição que opera como uma câmara de compensação para a conversão de dinheiro ocioso em circulação de capital portador de juros. É aqui, pela criação de antivalor e pela promoção de servidão por dívida, que a loucura da razão econômica assume o controle. Em um mundo com excesso de liquidez (denominação frequentemente usada pelo FMI em seus relatórios), esse dinheiro precisa ser mobilizado, centralizado e emprestado com a garantia e a certeza de uma produção futura de valor. A conversão de dinheiro excedente em uma forma de anticapital que demanda seu quinhão futuro é realizada nas instituições financeiras. O credor retém o direito de propriedade referente ao dinheiro ao longo do processo todo e espera receber de volta esse valor monetário em um prazo estipulado, acrescido de um excedente, que é o juro, e de um ganho de capital, que também pode ser alcançado com um aumento das valorações dos ativos da empresa na bolsa.
O gerenciamento geral dessa operação de conversão (ou metamorfose, como Marx preferiria se referir a ela) do dinheiro em antivalor está localizado em larga medida naquilo que chamei em outro lugar de “nexo Estado-finanças”50. Nos Estados Unidos (assim como na maior parte das democracias ocidentais), isso é constituído de um departamento do Tesouro (que tem sempre um estatuto especial no interior do aparato estatal) e de um Banco Central, que é o ápice do sistema bancário privado. A primeira estrutura desse tipo surgiu com a fundação do Banco da Inglaterra, em 1694. Uma carta régia de Guilherme e Maria concedeu monopólio bancário e garantiu amplos poderes a um grupo de comerciantes ricos em troca de crédito e financiamento a um Estado que havia sido quebrado pelo desregramento dos reis da Casa de Stuart. O equilíbrio de poder entre o Estado e as finanças se deslocou com o tempo. Desde que Bill Clinton admitiu, nos primeiros anos de sua presidência, que seu programa econômico dependia do consentimento dos credores, o posto de secretário do Tesouro dos Estados Unidos tem sido ocupado por alguém da Goldman Sachs.
Esse nexo Estado-finanças não é sujeito a controle democrático ou popular. Sua função é garantir a regulação e o controle do sistema bancário privado, em benefício do capital como um todo. A natureza das finanças, sugere Marx, é garantir o gerenciamento do “capital comum de uma classe”51. Da perspectiva do todo, o nexo Estado-finanças é análogo ao sistema nervoso central de qualquer totalidade orgânica. Ele sanciona e garante práticas de alavancagem que pegam dinheiro ocioso em depósitos e o convertem em anticapital. O papel do anticapital, como vimos anteriormente, é comprometer o futuro do maior número possível de agentes econômicos e condenar todos — consumidores, produtores, comerciantes, proprietários e até os próprios financistas — à servidão por dívida.
“O capital, como mercadoria de tipo específico” sempre teve “um modo peculiar de alienação”:
toda a enorme expansão do sistema de crédito, todo o crédito em geral, é explorada por eles como se fosse seu capital privado. Esses sujeitos possuem o capital e a receita sempre em forma de dinheiro ou de direitos que versam diretamente sobre o dinheiro. A acumulação da fortuna dessa classe pode ter lugar de maneira muito distinta da acumulação real, mas, em todo caso, demonstra que essa classe embolsa uma parcela considerável desta última.52
O problema é que a finança normalmente:
estabelece o monopólio [em certas esferas] e, com isso, provoca a ingerência estatal. Produz uma nova aristocracia financeira, uma nova classe de parasitas sob a forma de projetistas, fundadores e diretores meramente nominais; todo um sistema de especulação e de fraude no que diz respeito à fundação de sociedades por ações e ao lançamento e comércio de ações.53
Ademais, “se o mais-valor é concebido sob a forma sem conceito dos juros, o limite é apenas quantitativo” e a consequência disso, acrescenta Marx, “desafia toda a fantasia”54. A má infinidade mostra sua cara. O bônus que os operadores de Wall Street deram a si mesmos no período de crise “desafia toda a fantasia”. Foi isso o que causou indignação no movimento Occupy, que surgiu de repente no Zuccotti Park de Wall Street, em 2011.
O efeito disciplinador do ônus da dívida é vital para a reprodução da forma contemporânea do capital. Dívida significa que não somos mais “livres para escolher”, como supõe Milton Friedman em seu elogio do capitalismo. O capital não perdoa nossas dívidas, conforme pede a Bíblia, ele insiste que nós as quitemos com produção futura de valor. O futuro já foi anunciado e encerrado (pergunte a qualquer estudante que tenha 100 mil dólares de empréstimo universitário para pagar). A dívida nos aprisiona em certas estruturas de produção futura de valor. A dívida é o meio predileto do capital de impor sua forma particular de escravidão. Isso se torna duplamente perigoso quando o poder dos credores subverte e tenta aprisionar a soberania do Estado. É por esse motivo que a única maneira de o capital sobreviver é por meio da coerência e da fusão obtidas pelo nexo Estado-finanças. Com isso, completa-se o processo de alienação de populações inteiras de qualquer influência e poder reais. Nem o Estado nem o capital oferecem alívio às privações e aos desempoderamentos. Atenas é tradicionalmente celebrada como o berço da democracia. Hoje é apenas o berço da servidão por dívida, a total e completa demolição de qualquer democracia.
O poder corruptor e alienante do dinheiro — que, quando assume a forma de juro, age “como se tivesse amor no corpo”55 — é parte do problema. Não foi só Marx que reconheceu as alienações envolvidas. Até mesmo Keynes, um profundo defensor da ordem burguesa, mas ocasionalmente um afiado crítico, opinou sobre o tema:
Quando a acumulação da riqueza não for mais de grande importância social, haverá grandes mudanças nos códigos morais. Seremos capazes de nos libertar de muitos dos princípios pseudomorais que nos atormentam há duzentos anos, pelos quais elevamos algumas das mais repugnantes qualidades humanas a posição das mais altas virtudes. Seremos capazes de nos dar ao luxo de ousar avaliar o imperativo do dinheiro pelo que ele realmente vale. Amar o dinheiro enquanto posse — em contraposição a amar o dinheiro como meio para os gozos e as realidades da vida — será  reconhecido por aquilo que é, uma morbidez um tanto asquerosa, uma daquelas propensões semicriminosas, semipatológicas, que se deve encaminhar com um estremecimento aos especialistas em doenças mentais. Seremos finalmente livres para nos desfazer de todos os tipos de costumes sociais e práticas econômicas que afetam a distribuição de riqueza e de recompensas e penalidades econômicas, e que hoje conservamos a todo custo, por mais repugnantes e injustas que sejam, porque são tremendamente úteis à promoção da acumulação do capital.56
O fato de a riqueza humana, que deveria ter toda sorte de significados sociais, estar cada vez mais aprisionada na métrica única do poder monetário é por si só problemático.
De fato, porém, se despojada da estreita forma burguesa, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, capacidades, fruições, forças produtivas etc. dos indivíduos, gerada pela troca universal? [...] [O que é senão a] elaboração absoluta de seus talentos criativos, sem qualquer outro pressuposto além do desenvolvimento histórico precedente [...]? [O que é senão um desenvolvimento] em que o ser humano não se reproduz em uma determinabilidade, mas produz sua totalidade? Em que não procura permanecer como alguma coisa que deveio, mas é no movimento absoluto do devir? Na economia burguesa — e na época de produção que lhe corresponde —, essa exteriorização total do conteúdo humano aparece como completo esvaziamento; essa objetivação universal, como estranhamento total, e a desintegração de todas as finalidades unilaterais determinadas, como sacrifício do fim em si mesmo a um fim totalmente exterior.57
É isso o que “desafia toda fantasia”. Esse é o mundo insano e profundamente preocupante em que vivemos.”
46 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 500.
47 Costas Lapavitsas e Heiner Flassbeck, Against the Troika: Crisis and Austerity in the Eurozone (Londres, Verso, 2015).
48 David Harvey, Para entender O Capital: Livros II e III cit.
49 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 547.
50 David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo, cit.
51 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 416.
52 Ibidem, p. 396 e 535.
53 Ibidem, d. 496.
54 Ibidem, p. 449.
55 Johan Wolfgang von Goethe, Fausto, citado em Karl Marx. Grundrisse, cit., p. 587.
56 John Maynard Keynes, Essays in Persuasion (Nova York, Classic House Books, 2009), p. 199.
57 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 399-400.

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