Editora: Herder
Tradução: José Wisniewski Filho
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 310
Sinopse: Ver Parte
I
“Quem reconhecer o Cristo em Jesus, e só
nele, e reconhecer a Jesus como o Cristo, quem conceber a total identidade de
pessoa e obra como elemento decisivo, abandonará a exclusividade da fé e sua
antítese em relação ao amor, e unirá a ambos em um todo que torna impensável a
sua separação. O traço de união entre Jesus e Cristo, a ausência de separação
de pessoa e obra, a identidade de um homem com o ato da entrega denotam também
o traço de união entre amor e fé. Pois o “eu” de Jesus, sua pessoa que agora avança
até o centro, encontra a sua peculiaridade no fato de este “eu” não se situar
em nenhum isolamento autônomo, mas haurir a sua total existência do “tu” do Pai
e em existir para o “vós” dos homens. Ele é identidade de Logos (verdade) e
amor, e transforma o amor em Logos, em verdade da existência humana. Portanto,
a fé postulada por uma cristologia assim compreendida, essencialmente tende a
tomar-se a abertura universal do amor incondicional. Porque acreditar em um
Cristo assim compreendido significa simplesmente tornar o amor conteúdo da fé
de modo que se possa dizer: amor é fé.
Isto corresponde ao painel que Jesus traçou
na grande parábola do juízo final (Mt
25,21-66): o encontro, a identificação de Cristo nos últimos dos homens,
nos que necessitam do nosso auxílio, é equiparado à profissão de fé exigida
pelo Senhor julgador. Portanto, crer em Cristo é o mesmo que reconhecer como
sendo Cristo o homem que precisa do meu auxílio, tal como me vem ao encontro; é
compreender o apelo do amor como apelo da fé. A aparente alteração do Credo
cristológico na incondicionalidade do serviço e da disponibilidade humanas, que
se processa em Mt 25, depois do que foi dito, nada mais é do que o irromper de
uma dogmática de resto já presente; de fato, é, em verdade, a consequência do
traço de união entre Jesus e Cristo ou seja, do âmago da cristologia. Porque
tal traço de união – repitamo-lo – é simultaneamente o traço de união entre fé
e amor. E por isto, fé que não seja amor não é, mas apenas parece, fé cristã. E
por isto, fé que não seja amor não é, mas apenas parece, fé cristã.”
“Na história da fé cristã, na reflexão sobre
Jesus, desenvolveram-se duas linhas, nascendo uma da outra: a teologia da
Encarnação, que nasceu do pensamento grego, dominando na tradição católica do
Oriente e do Ocidente, e a teologia da cruz que, vinculada a Paulo e às formas
mais antigas da fé cristã, irrompeu decididamente no pensamento da Reforma. A
primeira fala do ser e gira em torno do fato de um homem ser Deus, com o que, simultaneamente, Deus é homem; este fato
espantoso torna-se-lhe o elemento decisivo. Todos os demais acontecimentos
posteriores empalidecem diante deste acontecimento da identidade de homem e
Deus, da encarnação de Deus. Frente a isto o resto não pode passar de
secundário. O entrelaçar de Deus e homem surge como o realmente decisivo, o
salvífico, como o lídimo futuro do homem, para o qual, finalmente, todas as
linhas devem convergir.
A teologia da cruz, ao contrário, não quer
deter-se em semelhante ontologia; em vez disto, fala do acontecimento; segue o
testemunho inicial que ainda não indagava sobre o ser, mas sobre o agir de
Deus na cruz e na ressurreição, que venceu a morte, e comprovou Jesus como o
Senhor e a esperança da humanidade. Dos respectivos pontos de partida resulta a
tendência diferenciada: a Teologia da encarnação tende a uma visão estática e
otimista. O pecado do homem facilmente toma a feição de uma etapa de passagem,
de importância bastante secundária. O decisivo não é o homem no pecado, a ser
curado: o que é decisivo ultrapassa de muito a uma tal reparação do passado e,
se coloca no rumo do entrecruzar-se de homem e Deus. Em contraposição, a
teologia da Cruz conduz a uma concepção dinâmico-atuante, cosmo-crítica do
cristianismo, que compreende o fato somente como ruptura, descontínua e sempre
a reaparecer, na auto-segurança e na autocerteza do homem e das suas
instituições, inclusive da Igreja. (...)
Contudo, através das nossas considerações
deveria transparecer algo assim como a unidade última de ambos os movimentos,
unidade que tornasse a ambos possíveis como polaridade, e impedisse que se
dissolvessem como antíteses. Constatamos com efeito que o ser de Cristo
(teologia de encarnação!) é actualitas,
é saída de si, êxodo; não é um ser a repousar em si, mas o ato do ser enviado,
da filiação, do serviço. E vice-versa: esse agir não é mero agir, mas ser;
desce às raízes do ser e identifica-se com ele. Esse ser é êxodo,
transformação. Portanto, uma teologia do ser e da encarnação bem compreendida
forçosamente desembocará na teologia da cruz, tornando-se uma com ela;
vice-versa, uma teologia da cruz, que avalie totalmente a sua dimensão,
forçosamente se tornará teologia do Filho e do ser.”
“Mas, não haveria, por trás deles, um núcleo
único, simples, como que o germe do cristianismo? (...) Em última análise, se
concentra no único e uno princípio do amor. Digamo-lo grosseiramente e até com
equívocos: não é verdadeiro cristão o membro confessional do partido, mas
aquele que se tornou realmente humano pela sua vivência cristã. Não aquele que
observa de maneira servil um sistema de normas e de leis, apenas com vistas
para si mesmo, mas aquele que se tornou livre para a simples humana bondade.
Certamente, para ser autêntico, o princípio “amor” há de incluir a fé. Somente assim
conserva-se o que é. Porque sem a fé, que aprendemos a encarar como expressão
de uma derradeira necessidade humana de receber e da insuficiência de todas as
próprias realizações, o amor não passará de ação arbitrária. O amor assim, se
elimina, transformando-se em autojustiça: fé e amor condicionam-se mutuamente.
Desta forma deve-se acrescentar que no princípio “amor” está presente o
princípio “esperança” que busca o todo, ultrapassando o instante e o seu
parcelamento. Portanto, nossa análise conduz-nos de per si às palavras com que
S. Paulo indica as colunas mestras do Cristianismo: “Agora estas três coisas
são constantes: a fé, a esperança, a caridade; mas a maior delas é a caridade”
(1Cor
13,33).”
“Como autêntica “filha de Sião” Maria é o
símbolo da Igreja, imagem do homem crente incapaz de chegar à graça e até a si
mesmo, a não ser pela dádiva do amor – por graça. A palavra com que Bernanos
encerra o “Diário de um cura de aldeia”, – “tudo é graça” – palavra em que uma
vida aparentemente confinada à debilidade e ao fracasso se revela como cheia de
riqueza e de realização, esta palavra tornou-se realmente acontecimento em
Maria, a “cheia de graça” (Lc
1,28). Maria não contesta nem ameaça a exclusividade da salvação por
Cristo, mas comprova-a. Imagem da humanidade que, em seu conjunto, é
expectativa, tanto mais precisando dessa imagem, quanto mais se encontra em
perigo de abandonar a esperança, entregando-se à ação que por indispensável que
seja – jamais será capaz de preencher o vazio que ameaça o homem o qual não
encontra aquele amor absoluto a dar-lhe sentido, solução e o realmente
necessário para a vida.”
“Na Bíblia a cruz não surge como um episódio
no mecanismo do direito ofendido, mas, muito pelo contrário, como expressão do
radicalismo do amor que se doa totalmente, como o episódio no qual alguém é
aquilo que faz e faz o que é; como expressão de uma vida que é completamente
ser-para os outros. Para quem observar mais atentamente, a teologia da cruz da
S. Escritura exprime verdadeiramente uma revolução em confronto com as ideias
de reparação e salvação da história religiosa extracristã. Naturalmente não se
pode negar que, na consciência cristã posterior, essa revolução foi largamente
neutralizada e só poucas vezes foi reconhecida em toda a sua plenitude. Nas
religiões do mundo, reparação denota geralmente a restauração do destruído
relacionamento com Deus mediante ações dos homens. Quase todas as religiões
giram em torno do problema da expiação. Elas nascem da consciência do homem
quanto à sua culpa para com Deus e denotam a tentativa de sufocar a consciência
da culpa, de vencer a culpa por meio de ações oferecidas a Deus. A obra
reparadora com que os homens querem apaziguar a divindade e torná-la propícia,
ocupa o centro da história das religiões.
No Novo Testamento a questão quase parece o
oposto. Não é o homem que se dirige a Deus trazendo-lhe um dom propiciatório; é
Deus que vem ao encontro do homem para lhe dar. Com a iniciativa do seu poder
de amor Deus restaura o direito abalado, transformando em justo o homem
pecador, tornando vivo o que fora morto, graças à sua misericórdia criadora.
Sua justiça é graça; é justiça atuante que endireita o homem vergado, isto é,
torna-o justo. Estamos na encruzilhada que o cristianismo traçou na história
das religiões. O Novo Testamento não afirma que os homens aplacam a Deus, coisa
que, aliás, deveríamos esperar, já que foram eles os que erraram e não Deus. O
Novo Testamento diz que “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo”
(2Cor
5,19). Eis algo realmente inaudito, novo – o ponto de partida da existência
cristã e o centro da teologia da cruz: Deus não espera que os culpados se
apresentem e se reconciliem; vai-lhes ao encontro e os reconcilia. Revela-se aí
a verdadeira direção da Encarnação e da Cruz.
De acordo com isto, a Cruz aparece no Novo
Testamento primariamente como um movimento de cima para baixo. Não é a obra
expiatória oferecida pela humanidade à divindade ofendida, mas manifestação
daquele insano amor de Deus que se esbanja, lançando-se na humilhação com o
fito de salvar o homem; é sua aproximação de nós, não vice-versa. Com esta
virada na ideia da expiação, ou seja, no eixo religioso em geral, o culto
cristão e a existência inteira recebem novo rumo. Adoração realiza-se primeiro
mediante a agradecida aceitação da ação salvadora de Deus. Por isto é com razão
que denominamos Eucaristia, ação de graças, a forma essencial do culto cristão.
Nele não se apresentam a Deus realizações humanas; consiste, antes, na
circunstância de o homem se deixar presentear; não glorificamos a Deus
oferecendo-lhe do que supostamente é nosso – como se já lhe não pertencesse
desde sempre! – mas aceitando o que é dele, reconhecendo-o, assim, como Senhor
único. Adoramo-lo fazendo cair a ficção de um domínio com que poderíamos
apresentar-nos diante dele como sócios independentes, quando na realidade nele
somente e por ele é que estamos em condições de existir. O oferecimento cristão
não consiste em dar o que Deus não teria sem nós, mas em tornar-nos totalmente
receptivos, deixando-nos levar completamente por ele. Deixar Deus agir em nós –
eis o sacrifício cristão.”
“Em última análise, a dor é resultado e
expressão do dilaceramento de Jesus Cristo, desde a sua existência em Deus até
ao inferno do “Meu Deus, por que me abandonaste?” Quem tiver a existência assim
distendida a ponto de encontrar-se simultaneamente mergulhado em Deus e
abismado nas profundezas da criatura abandonada por Deus, deve, por assim
dizer, esfacelar-se – um tal estará realmente “crucificado”. Ora, esse dilaceramento
é idêntico ao amor: é sua realização até o fim (Jo
13,1) e expressão concreta da amplidão que o amor cria.
A partir deste ponto de vista poderia
tornar-se claro o verdadeiro fundo de uma devoção à paixão, que tenha sentido,
e tornar-se evidente como se entrosam devoção à paixão e espiritualidade
apostólica. Poderia tornar-se evidente que o fervor apostólico, o serviço em
prol do homem e do mundo se interpenetraram com o cerne da mística cristã e da
devoção cristã à paixão. As duas coisas não se estorvam mas uma vive no âmago
da outra. Assim também deveria ter-se tornado claro que na cruz não se trata de
alguma adição de sofrimentos físicos, como se o seu valor redentivo consistisse
na maior soma possível de torturas. Como poderia Deus alegrar-se com o
sofrimento de sua criatura, ou até de seu Filho, ou mesmo ver aí a taxa com que
se devesse comprar dele a reconciliação? Bíblia e fé cristã estão muito
distanciadas de tais ideias. Não é a dor como tal que conta, mas a vastidão do
amor, desdobrando a existência de modo tal que une o distante e o vizinho,
pondo em contato com Deus o homem abandonado por Deus. Só o amor confere rumo e
sentido ao sofrimento. Fosse outro o caso, os algozes do Calvário teriam sido
verdadeiros sacerdotes; os que provocaram a dor teriam oferecido o sacrifício.
Mas, como não dependia disto, mas daquele núcleo que o sustenta e realiza, não
foram os carrascos e sim Jesus o sacerdote a unir em seu corpo os dois extremos
separados do mundo (Ef
2,13s).
E com isto respondemos substancialmente à
pergunta da qual partimos: Não seria um conceito indigno de Deus representá-lo
como um Deus a exigir a morte do Filho para aplacar a sua própria ira? A isto
apenas se pode responder: De fato, assim não se pode pensar de Deus. Mas, uma
tal ideia de Deus nada tem de comum com o conceito de Deus no Novo Testamento.
Porquanto este trata exatamente de modo inverso, do Deus que, por si mesmo,
queria ser, em Cristo, o ômega a última letra – do alfabeto da criação. Trata
do Deus que é amor em ato, o puro “para” e que, por isto, penetra
necessariamente no incógnito do último verme (Sl
22 [21], 7). Trata do Deus que se identifica com a sua criatura, pondo no contineri a minimo, no ser apanhado e
subjugado e envolvido pelo mínimo, aquela “superabundância” que lhe confere
credenciais de Deus.
A cruz é revelação. Não revela uma coisa
qualquer, mas Deus e o homem. Descobre quem é Deus e como é o homem. Na
filosofia grega existe estranho pressentimento disto: a imagem do justo
crucificado descrita por Platão. O grande filósofo pergunta qual seria a
situação, neste mundo, de um homem totalmente justo. Chega ao resultado de que
a justiça de um homem só se torna perfeita e comprovada, caso ele tome sobre si
a aparência da injustiça, porque só então aparece que ele não segue a opinião
dos homens, mas se coloca unicamente ao lado da justiça por ela mesma.
Portanto, de acordo com Platão, o justo autêntico há de ser um incompreendido e
perseguido; aliás, Platão não receia escrever: “Então hão de dizer que o justo,
nestas circunstâncias, será flagelado, torturado, amarrado, que os olhos lhe
serão vazados a fogo e, finalmente, após todos estes maus tratos, será
crucificado...”54. Este texto, escrito 400 anos antes de Cristo,
sempre voltará a comover profundamente o cristão. Na seriedade da reflexão
filosófica prevê-se que o justo perfeito no mundo deve ser o justo crucificado;
pressentiu-se aí algo daquela revelação do homem que se realiza na cruz.”
54 Politeia
II, 361 e-36 a. Conforme a versão de S. TEUFFEL, em: PLATON, Sämtliche Werke II, Colônia-Olten,
51967, 51; cfr ainda H. U. VON BALTHASAR, Herrlichkeit
1II/1, Einsiedeln, 1965, 156-161; E. BENZ, "Der gekreuzigte Gerechte bei
Plato, im NT und in der alten Kirche", Abhandlungen
der Mainzer Akademie 1950, Heft 12.
“O que vem a ser morte, que acontece quando
alguém morre, tombando sob o destino da morte? Todos temos de reconhecer o
nosso embaraço diante deste problema. Ninguém sabe a resposta com exatidão,
porque todos vivemos aquém da morte, não lhe tendo ainda provado o amargor.
Talvez, porém, se possa tentar uma aproximação a partir, novamente, do grito de
Jesus na cruz, grito no qual identificamos a essência do que vem a ser descida
de Jesus, participação no destino da morte dos homens. Porquanto, nesta
derradeira prece, do mesmo modo como na cena da agonia no Horto das Oliveiras,
revela-se, qual elemento mais profundo de sua paixão, não uma dor física
qualquer, mas a solidão radical, o completo abandono. Ora, nisto manifesta-se
afinal o abismo da solidão humana em geral, do homem que, em seu âmago, está
sozinho. Essa solidão, às mais das vezes camuflada, sem deixar de constituir a
verdadeira situação do homem, denota simultaneamente o paradoxo mais profundo
em relação à natureza do homem, que não pode estar sozinho, mas carece de
companhia. Por esta razão a solidão é a causa do medo, fundada na fragilidade
do ser, destinado a existir e, não obstante, condenado ao que lhe é impossível.
Tentemos exemplificá-lo ainda. Uma criança
obrigada a atravessar sozinha uma floresta em noite escura tem medo mesmo se
lhe provarem de modo convincente que nada existe capaz de provocar o temor. No
momento em que se vê no meio da treva, sentindo a solidão de modo radical, eis
que surge o medo, o medo essencialmente humano, que não é temor de alguma
coisa, mas medo em si. O receio de algo concreto é inócuo em si, podendo ser
superado pelo afastamento de sua causa. O medo de um cachorro bravo, por
exemplo, elimina-se prendendo o cão. Agora, porém, deparamos com algo muito
mais profundo: cercado da solidão última, o homem teme não uma coisa
determinada; muito mais, sente receio da solidão, experimenta o horror e a
fragilidade do seu próprio ser, impossíveis de serem vencidos racionalmente. Vá
outro exemplo: sozinho, à noite, a fazer guarda a um defunto, o homem sentirá,
de algum modo sinistro a sua situação, mesmo estando em condições e
esforçando-se em convencer-se racionalmente de que seus sentimentos carecem de
base. Sabe perfeitamente que o morto nada lhe poderá fazer e que sua situação
talvez fosse muito mais perigosa, se ele ainda estivesse vivo. O que desperta
aqui é uma espécie toda outra de medo; não medo de alguma coisa, mas da lúgubre
solidão em si, da fragilidade da existência, frente a frente com a solidão da
morte.
Mas, sendo totalmente inoperante o argumento
da falta de objeto, como poderá ser superado um tal medo? Pois bem, a criança
perderá o medo no momento em que sua mão sentir o aconchego de outra mão amiga,
em que soar outra voz falando com ela; ou seja, no instante em que experimentar
a presença de uma pessoa bondosa. O que se encontra a sós com um defunto,
também sentirá desaparecer o receio, se houver alguém em sua companhia, e
sentir a proximidade de um “tu”. Esta superação do medo revela simultaneamente
a sua natureza, a saber, que se trata de medo de estar só, de temor de um ser
que somente pode viver com outros. O medo propriamente dito não pode ser
vencido pela razão, mas exclusivamente pela presença de um ente amoroso.
Mas, cumpre levar mais longe ainda a nossa pergunta:
Na hipótese de existir uma solidão onde palavra alguma de outrem consiga
penetrar, transformando-a; na suposição de uma solidão tão profunda que nenhum
“tu” a alcance, estaríamos diante da solidão e do horror total, daquilo a que o
teólogo denomina “inferno”. Desta perspectiva é possível definir exatamente o
inferno: ele denota uma solidão onde a palavra do amor não tem mais guarida,
conotando com isto a fragilidade essencial da existência. Neste contexto, a
quem não acorreria a opinião de poetas e filósofos hodiernos, segundo a qual
todos os encontros entre homens se conservam na superfície, não estando aberta
a homem nenhum a entrada ao âmago do outro? Portanto, ninguém pode realmente
alcançar o íntimo do outro; qualquer encontro, por lindo que seja, serve apenas
para narcotizar a incurável ferida da solidão. Deste modo, no mais fundo do
nosso ser, habitaria o inferno, o desespero – a solidão tão inevitável quão
terrível. Sartre, como se sabe, construiu a sua antropologia a partir desta
ideia. Mas também um poeta tão conciliador e otimista como Hermann Hesse deixa
transparecer, em última análise, os mesmos pensamentos:
“Estranho, andar na névoa!
Viver é solidão;
Ninguém conhece ninguém,
O só está só...”
De fato, uma coisa é certa: existe uma noite,
em cujo ermo voz alguma ecoa; há uma porta pela qual só podemos passar
sozinhos: a porta da morte. Todo o medo do mundo finalmente nada mais é do que
medo diante desta solidão. Daqui compreende-se porque o Antigo Testamento
conhece uma palavra apenas para
conotar inferno e morte, a palavra xeol: porque ambas as coisas são
idênticas para o Antigo Testamento. A morte é a solidão simplesmente. Mas, a
solidão à qual não pode chegar o amor é o inferno.
Voltamos assim ao nosso ponto de partida, ao
artigo da descida aos infernos. Ele declara que Cristo atravessou as portas da
nossa solidão derradeira; que em sua paixão desceu ao abismo do nosso abandono.
Onde voz alguma está em condições de alcançar-nos, ali ele se encontra. Com
isto o inferno foi vencido, ou mais exatamente: a morte, que antes era o
inferno, não o é mais. Ambas as coisas não são mais o mesmo, porque em seu
centro está a vida, porque em seu meio habita o amor. Só o excluir, o fechar-se
voluntário é inferno, ou, no dizer da Bíblia, é morte segunda (por exemplo Ap
20,14). Mas a morte não mais é um caminho para o seio desta solidão, as
portas do xeol estão abertas. Creio
que, neste enfoque, poderão ser bem compreendidas as metáforas patrísticas de
sabor tão mitológico, que falam da libertação dos mortos, da abertura das
portas. Também tornar-se-á compreensível o texto de Mateus, de aparência tão
mítica, sobre os túmulos que se abriram e os corpos dos santos que ressurgiram
por ocasião da morte de Jesus (Mt
27,52). As portas da morte estão abertas, desde que na morte reside a vida:
reside o amor.”
“O abismo a que chamamos Inferno, só o homem
pode dá-lo a si mesmo. Aliás, cumpre exprimi-lo mais fortemente: o inferno
consiste formalmente no fato de o homem não querer aceitar nada, de querer ser
totalmente autárquico. É a expressão do trancar-se no puramente próprio. Por
conseguinte, a essência desse abismo consiste em não querer o homem aceitar, em
não querer tomar, preferindo apoiar-se completamente em si mesmo, bastar-se a
si mesmo. Atingindo a sua última radicalidade, o homem torna-se o intocável, o
solitário, o recusado. Inferno é o “querer-ser-só-eu-mesmo”, é aquilo que
sucede quando o homem se tranca naquilo que lhe é próprio. Inversamente a
essência daquilo que chamamos “céu” está na exclusiva possibilidade de se
receber, assim como alguém só é capaz de se dar o inferno. O céu, por natureza,
é não-auto-construído nem auto-construível; na linguagem escolástica se diz que
o céu, como graça, é um donum indebitum
et superadditum naturæ (uma dádiva indevida e acrescentada à natureza).
Somente enquanto amor realizado é que o céu sempre pode ser doado ao homem; mas
o seu inferno é a solidão daquele que não quer acreditar, que não se sujeita ao
estado de mendigo, encolhendo-se para dentro de si mesmo.”
“O homem, a pessoa, sempre conservou a sua
primazia sobre a ideia.
Aqui inclui-se outra e muito importante
consequência. Se a vitória da ultracomplexidade final está baseada no espírito
e na liberdade, absolutamente não se trata de um caudal cósmico neutro, mas de
um princípio que inclui responsabilidade. Não acontece automaticamente, como
qualquer processo físico, mas baseando-se em decisões. Por esta razão, o
retorno do Senhor é não somente salvação, não apenas o ômega a recolocar tudo
em seu lugar, mas também julgamento. Aliás, a esta altura, estamos em condições
até de definir o sentido do discurso sobre juízo final. Ele nos diz que o
estágio final do mundo não é resultado de um desenvolvimento natural, mas da
responsabilidade baseada na liberdade. Do seio destas conexões também se há de
procurar compreender por que o Novo Testamento, apesar de sua mensagem da
graça, insiste em que no fim os homens serão julgados “por suas obras”, não
havendo possibilidade para ninguém de escapar a esta prestação de contas sobre
a própria vida. Existe uma liberdade que não é eliminada pela graça, mas, muito
pelo contrário, é por ela levada à sua plenitude: o destino definitivo do homem
não lhe será imposto fora de sua decisão vital. O que, aliás, também é
necessário acentuar como limite contra um falso dogmatismo e uma segurança
cristã errada quanto à vida. Só uma tal averiguação preserva a igualdade dos
homens, mantendo a identidade de sua responsabilidade. (...)
Quem se confiar à fé, tornar-se-á consciente
de que existem ambas as coisas: a radicalidade da graça a libertar o homem
impotente e, não menos, a seriedade perene da responsabilidade que desafia o
homem dia e noite. As duas coisas reunidas significam que o cristão dispõe, por
um lado, da tranquilidade libertadora e desinibidora daquele que vive da
superabundância da divina justiça e se chama Jesus Cristo. Existe uma
serenidade que conta com a certeza: em última análise nada posso destruir do
que ele construiu. Em si o homem
carrega a terrível certeza de que o seu poder destruidor é infinitamente maior
do que o seu poderio construtivo. Mas sabe igualmente que, em Cristo, o poder
de reconstruir se revelou infinitamente mais potente. Daí decorre uma profunda
liberdade, um saber sobre o amor não arrependido de Deus, que, atravessando
todas as confusões, continua a nos querer bem. Torna-se possível fazer, sem
medo, a própria obra que perdeu o seu aspecto pavoroso, por ter perdido o seu
poder destruidor: o resultado do mundo não depende de nós, mas está nas mãos de
Deus. Mas, ao mesmo tempo, o cristão sabe não ter sido colocado dentro de uma
coisa qualquer, sabe não ser a sua atividade um brinquedo que Deus lhe deixa
nas mãos, sem o tomar a sério. Sabe que deve responder; que, como
administrador, deve prestar contas do que lhe foi confiado. Responsabilidade só
existe onde houver um que a exige e examina. O artigo sobre o Juízo Final
mostra-nos ante os olhos de modo inequívoco este exame final da nossa vida.
Nada e ninguém nos confere credenciais para minimizar a imensa seriedade que
paira sobre um acontecimento assim, que revela a nossa vida como sendo caso
sério, que lhe confere assim a sua dignidade.
“Para julgar os vivos e os mortos”, o que,
certamente, significa que ninguém, senão ele
tem o direito último de julgar. Com isto está dito que a injustiça do mundo não
retém a última palavra, também não se afirma que ela será eliminada
indiferentemente por meio de um ato geral de graça; existe, antes, uma
instância última de apelação que defende o direito para poder realizar o amor.
Um amor que destruísse o direito criaria a injustiça, não passando assim de
caricatura de amor. Verdadeiro amor conota excesso de direito, excesso sobre o
justo, nunca porém destruição da justiça, que há de ser e permanecer a forma
básica do amor.”
“A palavra “santo” não denota em primeiro
lugar a santidade de pessoas humanas, mas aponta para as dádivas divinas que
distribuem santidade em meio à miséria humana. A Igreja é chamada de “santa”,
não porque todos os seus membros sejam santos, isentos de pecado – sonho a se
renovar em todos os séculos mas sem lugar no mundo vigilante do nosso texto,
sonho que exprime tão comovedoramente um anseio dos homens que jamais o podem
abandonar, até que um novo céu e uma terra nova lhes deem o que este tempo presente
jamais lhes poderá conceder. Já neste ponto há de reconhecer-se que os críticos
mais implacáveis da Igreja em nosso tempo, secretamente, também vivem deste
sonho e, como o encaram desiludidos, batem, a porta da casa e denunciam-no como
falso. Mas, tornemos ao assunto: a santidade da Igreja consiste naquela força
de santificação que Deus exerce nela, apesar da pecaminosidade humana.
Deparamos aqui com a precípua característica da “nova aliança”: em Cristo o
próprio Deus amarrou-se aos homens, deixou-se atar por eles. A nova aliança não
se baseia mais – no cumprimento de mútuas estipulações, mas é presente de Deus,
como graça que subsiste também contra a infidelidade do homem. É expressão do
amor de Deus que não se deixa vencer pela incapacidade do homem, mas, apesar de
tudo, sempre volta a mostrar-se-lhe bondoso, a recebê-lo exatamente como
pecador, a voltar-se para o homem, a santificá-lo, a amá-lo.
Devido à doação jamais revogada pelo Senhor,
a Igreja é continuamente santificada por ele, sendo o lugar onde a santidade do
Senhor está presente entre os homens. Mas trata-se de autêntica santidade do
Senhor a tornar-se presente, escolhendo sem cessar, em amor paradoxal, as mãos
poluídas dos homens para vasos de sua presença. É santidade que, como santidade
de Cristo, se irradia sem cessar no meio do pecado da Igreja. Assim a figura
paradoxal da Igreja, onde o divino tantas vezes se apresenta em mãos indignas,
onde o divino sempre está presente apenas sob a forma do “apesar de tudo”, essa
figura é para os crentes um sinal do “mesmo assim” de um amor de Deus ainda
maior. O excitante entrelaçamento de fidelidade de Deus e de humana
infidelidade, que caracteriza a estrutura da Igreja, é como que a dramática
figura da graça, mediante a qual a realidade desta graça, enquanto agraciamento
dos indignos em si, se torna presente de modo claro na história. Partindo daí,
podemos dizer que a Igreja é a figura da graça neste mundo, precisamente em sua
estrutura paradoxal de santidade e pecaminosidade.
Avancemos mais um passo. Santidade é
imaginada, no sonho humano por um mundo melhor, como isenção do pecado e do
mal, e com eles não misturada; conserva-se assim, de algum modo, uma ideia de
preto-e-branco, que elimina e condena implacavelmente a respectiva forma
negativa (que naturalmente admite muitas maneiras de ser concebida). Na
hodierna crítica da sociedade e nas ações através das quais ela é exercida,
torna-se clara demais esta tendência que sempre acompanha os ideais humanos.
Por isso, o escandaloso na santidade de Cristo já era, para os seus coevos, o
fato de faltar-lhe totalmente esse traço julgador – não caiu fogo sobre os
indignos nem se permitiu aos zelosos arrancar o joio que eles viam a vicejar.
Ao contrário, sua santidade revelava-se precisamente como procura dos
pecadores, que Jesus atraía para perto de si; como um misturar-se até o extremo
de ele mesmo se ter tornado “pecado”, carregando a maldição da lei em seu
suplício – total comunidade de destino com o perdido (cfr. 2Cor
5,21; Gál 3,13). Jesus atraiu a si o pecado e tornou-o parte dele,
revelando deste modo o que é autêntica “santidade”: não isolamento, não
julgamento, mas amor salvador. Não é a Igreja a mera continuação desse divino
compromisso com a miséria humana; não é a Igreja a mera continuação da comunidade
da mesa de Jesus com os pecadores, do seu misturar-se com a miséria do pecado,
de modo a dar a impressão de naufragar nele? Na pecadora santidade da Igreja,
em contraste com a humana expectativa dos puros, não se revela a verdadeira
santidade de Deus que é amor, amor que não se conserva em nobre distância
diante dos puros intocáveis, mas se mistura com a sujeira do mundo para
vencê-la? Nesta perspectiva a santidade da Igreja poderia ser outra coisa que o
mútuo suportar-se que, naturalmente, flui para todos do fato de Cristo a todos
sustentar?
Confesso: para mim a santidade pecadora da
Igreja tem algo de infinitamente confortador. Pois não se deveria desanimar
diante de uma santidade imaculada, capaz de exercer influência sobre nós
exclusivamente julgando e queimando? E quem poderia afirmar de si que não tem
necessidade de ser suportado e até sustentado por outros? E como poderia
dispensar o suportar, quem vive de ser suportado por parte dos outros? Não
estaria aí a única dádiva que ele está em condições de oferecer em troca, o
único consolo que lhe resta, por suportar assim como é suportado? A santidade
na Igreja começa com o suportar-se e conduz ao portar, ao carregar; ora, onde
não há mais o suportar, cessa o portar, e à existência sem apoio só lhe resta
cair no vácuo. (...)
A Igreja não vive de outro modo senão em nós,
vive da luta dos pecadores pela santidade, como, logicamente, esta luta vive da
dádiva divina sem a qual seria irrealizável. Mas esta luta frutificará e
edificará somente quando animada pelo espírito do suportar, pelo verdadeiro
amor. Simultaneamente tocamos aqui no critério a ser aplicado sempre a qualquer
luta crítica por uma santidade melhor, critério que não só não se opõe ao
suportar, mas que é por ele exigido. Esse critério é a edificação. Um amargor
que só destrói, já se julga a si mesmo. Uma porta fechada, sem dúvida, pode
servir de lembrete a sacudir os que ficaram do lado de dentro. Mas a ilusão de
que na solidão se possa edificar mais do que no convívio não passa de ilusão, exatamente
como a utopia de uma Igreja dos “santos” em invés de uma “santa Igreja”, que é
santa porque o Senhor oferece nela a dádiva da santidade sem merecimento3.”
3 Cfr. H. DE LUBAC, Die Kirche, Einsiedeln,
1968 (frances 31954), 251-282.
“Se o cosmos é história e se a matéria
representa um momento na história do espírito, não existe um eterno neutro
estar-um-ao-lado-do-outro de matéria e espírito, mas uma última “complexidade”
na qual o mundo encontra o seu ômega e a sua unidade. Então haverá um último
nexo entre matéria e espírito, em que se consuma o destino do homem e do mundo,
mesmo se hoje nos seja impossível precisar a espécie deste nexo. Então haverá
um “último dia” em que o destino de cada homem estará completo, porque se terá
consumado o destino da humanidade.
Meta do cristão não é uma felicidade
particular, mas o conjunto. Ele acredita em Cristo, crendo assim no futuro do
mundo e não só em seu futuro pessoal. Sabe que esse futuro é mais do que ele
mesmo pode realizar. Sabe que existe um sentido que ele não está em condições
de destruir. Mas, será isto motivo para cruzar os braços? Pelo contrário – por
saber que há sentido, pode e deve realizar, alegre e impávido, a obra da
história, mesmo com o sentimento, na miopia de quem só vê o seu pequeno
segmento de atividade, de estar realizando trabalho de Sísifo, em que, geração
após geração, a pedra volta a ser rolada morro acima, para tornar a escorregar,
fazendo vãos todos os esforços. O crente sabe que está “avançando” e não
andando em círculo. O crente sabe que a história não é um tapete de Penélope,
sempre retecido, para sempre voltar a ser desfeito. Talvez os cristãos também
se sintam oprimidos pelos pesadelos do temor e da inutilidade, de cujo seio o
mundo pré-cristão criou tais imagens impressionantes do medo frente à
esterilidade do trabalho humano. Mas, em seu pesadelo ressoa salvadora a voz da
realidade: “Coragem! Eu venci o mundo!” (Jo
16,33). O mundo novo, cuja descrição, na figura da Jerusalém definitiva, é
o epílogo da Bíblia, não é nenhuma utopia, mas certeza, para cujo encontro
marchamos pela fé. Há uma salvação do mundo – eis a confiança que sustenta o
cristão e que o faz considerar como valendo a pena, também hoje, ser cristão.”