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sexta-feira, 27 de julho de 2018

Introdução ao Cristianismo: Preleções sobre o Símbolo Apostólico (Parte I) – Joseph Ratzinger

Editora: Herder
Tradução: José Wisniewski Filho
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 310
Sinopse: Trata-se de uma síntese do Credo. A partir de uma densa compreensão da fé, o leitor percorre artigo por artigo do Credo, adentrando-se, nas verdades do Símbolo Apostólico. A fé é um dom, mas é feita a um ser racional que pede um mínimo de inteligência de quem crê. Este texto abre caminho para a caminhada em meio às difíceis veredas da modernidade iluminista.

“Crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e este para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio.”


“A tendência natural do homem leva-o ao visível, ao que se pode pegar e reter como propriedade. Cumpre-lhe voltar-se, internamente, para ver até que ponto abre mão do que lhe é próprio, ao deixar-se arrastar assim para fora da sua gravidade natural. Deve converter-se, voltar-se para conhecer quão cego está ao confiar apenas no que os olhos enxergam. A fé é impossível sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a tendência natural. Sim, a fé é a conversão, na qual o homem descobre estar seguindo uma ilusão ao se comprometer apenas com o palpável e sensível. E aqui está a razão mais profunda por que a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do ser, e somente quem se volta, recebe-a. E, porque nossa tendência não cessa de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre nova em seu aspecto de conversão ou volta, e somente através de uma conversão longa como a vida é que podemos ter consciência do que vem a ser “eu creio”.
A partir daí é compreensível que a fé representa algo de quase impossível e problemático não apenas hoje e nas condições específicas da nossa situação moderna, mas, quiçá, de modo um tanto menos claro e identificável, já representou, sempre, o salto por cima de um abismo infinito, a saber, da contingência que esmaga o homem: a fé sempre teve algo de ruptura arriscada e de salto, por representar o desafio de aceitar o invisível como realidade e fundamento incondicional. Jamais a fé foi uma atitude conatural consequente do declive da existência humana; ela foi sempre uma decisão desafiadora da mesma raiz da existência, postulando sempre uma volta, uma conversão do homem, só possível na escolha.”


“A fé cristã não se ocupa somente com o eterno, como à primeira vista poderia supor-se, com o eterno que se conservasse como algo totalmente diverso, fora do mundo humano e do tempo; ela ocupa-se muito mais com o Deus na história, com Deus como homem. A fé apresenta-se como revelação, ao parecer vencer o abismo entre eterno e temporal, entre visível e invisível, fazendo-nos encontrar Deus como homem, o Eterno como temporal, Deus como um de nós. Aliás, a sua pretensão de ser revelação funda- se no fato de ela ter trazido o eterno, por assim dizer, para dentro do nosso mundo: “O que ninguém jamais viu – Ele no-lo explicou, aquele que descansa no peito do Pai” (Jo 1,18) – Cristo tornou-se “exegese” de Deus para os homens, quase estaria eu tentado a afirmar com base no texto bíblico7. Mas contentemo-nos com o vocábulo português; o original autoriza-nos a tomá-lo bem ao pé da letra: Jesus realmente explicou (ou seja, desdobrou, abriu) a Deus, conduzindo-o para fora de si, ou, mais drasticamente, na primeira carta de João: liberou-o à nossa contemplação e palpação, de modo tal que o jamais avistado por alguém agora está ao alcance do nosso tacto histórico8.”
7: Theou oudeis eoraken popote; monogenes theos... exegesato. O verbo exegeomai significa: ser chefe, servir de guia, de conselheiro, dar exemplo e, em sentido derivado (no texto presente): explicar, interpretar, expor. Cristo seria, então, quem explica, interpreta, expõe aos homens o segredo de Deus. (A. CHASSANG, Nouveau Dictionnaire Grec- Français) (Nota do Tradutor). / 8: 1 Jo 1,1-3.


“Ao contrapor o par de conceitos “estar – compreender” àquele outro “saber – fazer”, aludo a uma expressão bíblica fundamental, intraduzível, sobre a fé, cujo profundo jogo de palavras Lutero tentara reproduzir na fórmula: “Se não crerdes, não ficareis”; mais literalmente poder-se-ia traduzir: “Se não crerdes (se não vos agarrardes a Jahvé), não tereis apoio algum” (Is 7,9). A única raiz ‘mn abrange uma multiplicidade de sentidos cuja interdependência e diferenciação perfaz a grandiosidade desta frase. A raiz ‘mn (amém) inclui os sentidos de: verdade, firmeza, fundamento sólido, solo, conotando ainda: fidelidade, fiel, confiar-se, apoiar-se em alguma coisa, crer em alguém ou alguma coisa. Deste modo a fé em Deus surge como um apoiar-se em Deus, mediante o qual o homem consegue base sólida para a sua vida. Com o que a fé é descrita como adesão, como um colocar-se confiante no terreno da palavra de Deus. A versão grega (Septuaginta) reproduziu a citada frase não somente idiomaticamente, mas também conceitualmente, para o mundo grego, formulando-a: “Se não crerdes, não compreendereis”. Afirmou-se, por vezes, que nesta tradução se patenteia o processo de helenização, o afastamento do sentido bíblico original. A fé teria sido intelectualizada: em vez de exprimir: estar postado no terreno firme da palavra de Deus digna de fé, teria sido criado um nexo com a compreensão e a razão, desalojando assim a fé para um plano que, de modo algum lhe condiz. No que, talvez, haja uma pitada de razão. Apesar disto, julgo que, em seu conjunto, conservou-se a ideia básica, embora com os sinais alterados.”


“Voltemos a uma pergunta que sintetiza tudo: que é a fé, afinal de contas? Nossa resposta poderia ser: a fé é a forma de firmar-se o homem no conjunto da realidade, forma irredutível ao conhecimento e incomensurável pelo conhecimento; fé é o dar-sentido sem o que a totalidade do homem ficaria localizada, sentido que constitui a base do cálculo e da atividade humana e sem a qual, finalmente, não poderia nem calcular, nem agir, porque somente é capaz disto à luz de um sentido que o norteie. Com efeito, o homem não vive apenas do pão da facticidade; como homem, ele vive do amor, do sentido das coisas. O sentido é o pão que lhe possibilita subsistir, em sentido próprio, como homem. Sem a palavra, sem uma finalidade, sem o amor, o homem chega à situação de não poder mais viver, mesmo cercado de todo o conforto humano. Quem ignoraria até que ponto uma tal situação de fracasso (entregar os pontos... não poder mais...) pode surgir em meio à fartura exterior? Ora, sentido não se deriva de saber. Querer torná-lo real através do conhecimento da facticidade seria como a absurda tentativa do barão de Münchhausen ao querer livrar-se a si mesmo do atoleiro, puxando-se pelos cabelos. O absurdo deste quadro expõe com exatidão a situação básica do homem. Ninguém está em condições de arrancar-se a si mesmo do pantanal da incerteza, da incapacidade de viver. Nem nos salvamos de semelhante situação, como quiçá ainda poderia pensar Descartes com o seu cogito, ergo sum (penso, logo existo), mediante uma série de conclusões racionais. Sentido autofabricado não é sentido; sentido, ou seja, um solo, um pedaço de chão sobre o qual a existência possa firmar-se e desenvolver-se como um todo, um tal sentido não pode ser feito, só pode ser recebido.”


“A atitude cristã do crente exprime-se na palavrinha “amém” em que se interpenetram os significados: confiar, confiar-se, fidelidade, firmeza, base sólida, estar em pé, verdade; e isto quer dizer que somente a verdade é o lugar em que o homem pode firmar-se, só ela pode constituir para ele um sentido. Só a verdade é a base adequada para o homem ficar em pé. Portanto o ato da fé cristã inclui essencialmente a convicção de que o fundamento que dá o sentido, o Logos sobre o qual nos colocamos, também é a verdade, exatamente enquanto como sentido15. Sentido que não fosse a verdade, seria um non-sens, um absurdo. A inseparabilidade de sentido, fundamento, verdade, expressa tanto no Logos grego, como no “amém” hebraico anuncia ao mesmo tempo uma concepção cósmica inteira. Na inseparabilidade de sentido, fundamento, verdade – riqueza vocabular que não podemos reproduzir em nossa língua, com um termo só – que tais palavras encerram, transparece a rede inteira de coordenadas em que a fé cristã contempla o mundo e se lhe apresenta. E isso também significa que a fé, em sua essência, não é um amontoado de paradoxos cegos. Significa ainda que é loucura pretextar mistério como desculpa para o fracasso da inteligência, como não poucas vezes tem acontecido. Se a teologia apresenta uma série de irregularidades, querendo não só desculpá-las, mas, se possível, canonizá-las, apelando para o mistério, estamos aí diante de um abuso da autêntica ideia de “mistério”, cuja finalidade não é destruir a inteligência, mas, antes, possibilitar a fé, como ato racional. Em outras palavras: fé certamente não é conhecimento no sentido de conhecer o factível e de sua forma de calculabilidade. A fé jamais pode ser algo assim e se tornaria ridícula, se tentasse estabelecer-se nestas formas experimentais. Mas vale também o contrário: o conhecimento experimental do factível, por natureza, está limitado ao fenômeno e ao funcional, não representando o caminho para encontrar a verdade da qual desistiu em razão do seu método. O caminho que o homem recebe para preocupar-se com a verdade do ser não é o conhecimento, mas a compreensão: compreensão do sentido ao qual aderiu. Sem dúvida devemos acrescentar que a compreensão só se patenteia no “estar-em-pé” e não fora daí. Uma coisa não acontece sem a outra, porque compreender significa agarrar e conceber como tal o sentido aceito como fundamento. Creio ser isto o sentido exato de “compreender”: que aprendamos a conceber a base sobre a qual nos colocamos, como sentido e como verdade; que aprendamos a reconhecer que o fundamento representa um sentido.
Assim sendo, compreender não conota contradição à fé, mas representa os seus mais lídimos interesses. Pois o conhecimento da funcionalidade do mundo, transmitido de modo tão grandioso pelo hodierno pensamento técnico-científico, ainda não traz consigo uma compreensão do mundo e do ser. Compreensão nasce da fé. Por isto a teologia, como tratado compreensível, lógico (= racional, intelectual- compreensivo) de Deus, é uma das tarefas originais da fé cristã.”
15: O sentido do vocábulo grego Logos corresponde, de algum modo, à raiz hebraica ‘mn (amém): palavra, sentido, razão, verdade estão nele incluídos.


“Jesus é a presença do próprio eterno neste mundo. Em sua vida, na irrestrição do seu ser para os homens está presente o sentido do mundo; ele doa-se-nos como amor, que também me ama a mim, tornando amável a vida mediante dádiva, tão inconcebível, de um amor não ameaçado por nenhuma transitoriedade, por nenhuma perturbação egoística.”


“A natureza da fé está em não ser uma reflexão sobre o que pode ser refletido e que, afinal, estaria à disposição como resultado do meu pensamento; para a fé, é característico que ela surge da audição, sendo aceitação do que não se imagina, de modo que, na fé, o pensamento sempre será, em última análise, uma reflexão sobre o que foi ouvido e aceito.
Expresso de outro modo: existe na fé uma precedência da palavra sobre o pensamento, que a distingue estruturalmente do feitio filosófico. Na filosofia o pensamento precede a palavra, porque a filosofia é produto da reflexão que, a seguir, se procura revestir de palavras, as quais, contudo, permanecem secundárias em comparação com o pensamento e, por isto, sempre podem ser substituídas por outras palavras. Pelo contrário, a fé aproxima-se de fora, sendo-lhe essencial esta qualidade de vir de fora. Repitamos: a fé não é produto auto-imaginado, mas o que me foi dito, que me encontra, me alicia e me compromete, como algo não imaginado nem imaginável. É-lhe essencial a dupla estrutura do: “Crês?” – “Creio!”, a estrutura do ser chamado de fora e da resposta. Portanto, não é anormal se, abstraindo de algumas exceções, devemos dizer: não cheguei à fé mediante uma procura particular da verdade, mas por uma aceitação que, por assim dizer, me antecedeu. E fé não pode nem deve ser mero produto da reflexão. A suposição de que a fé deveria nascer através da própria reflexão ou imaginação e mediante uma busca puramente pessoal da verdade, no fundo já é expressão de determinado ideal, de uma mentalidade intelectual que desconhece o aspecto peculiar da fé, que consiste na aceitação do que não é imaginável – aceitação responsável, sem dúvida – em que o objeto aceito jamais chega a tornar-se minha posse total, em que a dianteira nunca será vencida completamente, em que, no entanto, a meta deve ser: apoderar-se sempre mais do que foi recebido, através da minha entrega a ele como ao maior.
Por ser assim, porque a fé não é o que inventei, mas o que me sobreveio de fora, por isto a sua palavra não está à minha disposição, nem está sujeita à mudança, ao meu talante, mas é-me superior e sempre está à frente, tomando a dianteira ao meu pensamento. A figura do processo da fé está caracterizada pela positividade do que me sobrevém, não se originando de mim e revelando-me o que não sou capaz de doar-me. Por isto, existe aqui uma primazia da palavra expressa sobre o pensamento, de tal modo que não é o pensamento quem cria a sua terminologia, mas a palavra apresentada indica a rota ao pensamento que compreende. Com este primado da palavra e com a “positividade” da fé que aí se manifesta, relaciona-se o caráter social da fé, que conota uma segunda diferença frente à estrutura essencial individualística do pensamento filosófico. Filosofia, por sua natureza, é obra do indivíduo que, como tal, reflete sobre a verdade. O pensamento, o pensado pertencem-lhe, ao menos em aparência, porque surgem do próprio pensador, muito embora nenhum pensamento viva só do que lhe é próprio, mas, ciente ou inscientemente, se complique em numerosos entrelaçamentos. O laboratório do pensamento é o âmago do espírito; por isto ele, inicialmente, permanece circunscrito ao pensador, tendo estrutura individualista. Torna-se comunicável somente secundariamente, ao revestir-se da palavra que, aliás, de modo geral, só consegue torná-lo compreensível aos outros de modo aproximativo. Em oposição, como vimos, a palavra anunciadora representa o principal elemento da fé. Como o pensamento, internamente, é apenas espiritual, a palavra constitui-lhe a ponte de comunicação. A palavra é o modo de estabelecer a comunicação no campo espiritual, é a forma pela qual o espírito se encarna, isto é, se torna corpo, se torna social. O primado da palavra significa ainda que a fé está orientada para a comunidade do espírito, de maneira diversa do que o pensamento filosófico. Na filosofia encontra-se, no começo, a pesquisa particular da verdade, que, a seguir, secundariamente, procura e encontra companheiros de jornada. Fé, ao contrário, é, primeiro, o apelo dirigido à comunidade visando a união ou unidade do espírito pela unidade da palavra; seu sentido é de antemão social: criar unidade de espírito pela unidade da palavra; e só secundariamente os indivíduos encontrarão o caminho aberto para a aventura pessoal da verdade.
Ao destacar-se na estrutura dialogal da fé uma imagem humana, podemos acrescentar que igualmente surge ali uma imagem de Deus. Ao homem compete tratar com Deus, quando lhe cabe tratar com o seu próximo. A fé está essencialmente orientada para o “tu” e para o “nós”, e o homem somente consegue unir-se a Deus através destes dois vínculos. O que, ao inverso, significa não serem separáveis relação com Deus e relação com o outro, a partir da mesma estrutura interna da fé; o nexo com Deus, com o “tu”, com o “nós” é mútuo, bilateral e não corre paralelo. Ainda poderíamos formular o mesmo pensamento sob outro ponto de enfoque: Deus quer vir ao homem somente mediante o homem; não procura o homem a não ser no meio dos seus semelhantes.”


“A fé de Israel, sem dúvida, representa um elemento novo, em confronto com a fé dos povos vizinhos; contudo não se trata de algo caído do céu, mas de uma cristalização efetuada no embate com a fé dos outros povos, em que uma seleção belicosa e uma re-interpretação diferente representam, ao mesmo tempo, o elo e a mudança.
“Iahvé, teu Deus, é um único Deus”, profissão fundamental situada no âmago do nosso “Credo” é, em seu sentido original, uma renúncia aos deuses vizinhos. É profissão no sentido pleno da palavra, isto é, não uma constatação de uma opinião ao lado de outras, mas uma opção existencial. Como renúncia aos deuses significa repúdio ao endeusamento dos poderes políticos, e ao endeusamento do “morre e torna-te” cósmico. Afirma-se que fome, amor e domínio são as três forças que movem a humanidade. Ampliando-se esta afirmação, pode-se constatar que as três formas fundamentais do politeísmo são a adoração do pão, a adoração do Eros e a divinização do poder. Os três caminhos são aberrações, absolutizações do que não é o absoluto e, por isto, escravização do homem. Certamente, trata-se de aberrações em que transparece alguma coisa do poder que sustenta o universo. Mas a profissão de fé de Israel é, como foi dito, uma declaração de guerra contra a tríplice adoração, constituindo assim um processo de máxima importância na história da libertação do homem. Na declaração de guerra contra a tríplice adoração, a profissão de fé é, ao mesmo tempo, um grito de guerra contra a proliferação do divino em geral. É a renúncia a deuses próprios. Ou, expresso de outro modo, a renúncia à divinização do que é próprio do homem, típica do politeísmo. E também é a renúncia à própria segurança, ao medo, que tenta apaziguar o ominoso, prestando-lhe culto; e é a adesão ao Deus único do céu, como potência que protege tudo; significa coragem de confiar-se à força que domina o universo inteiro, sem tomar o divino nas mãos.
A atmosfera inicial oriunda da fé de Israel não se alterou fundamentalmente no “Credo” cristão primitivo. Também nele o ingresso na comunidade e a aceitação do seu “símbolo” significa uma decisão existencial de pesadas consequências. Pois quem entrasse neste “Credo”, simultaneamente consumiria a renúncia à legislação do mundo do qual era parte integrante, uma renúncia à adoração do poder político dominador, sobre o qual se baseava o império romano, renúncia da adoração do prazer, do culto do medo e da superstição que predominavam no mundo. Não foi por acaso que a luta cristã se deflagrou no campo assim demarcado, transformando-se em guerra em torno da própria forma básica da vida pública antiga.”


“O amor definitivo, indivisível e uno entre homem e mulher finalmente só se realiza e se compreende na unidade e indivisibilidade do amor de Deus. Hoje cresce o nosso conhecimento de que não se trata, no amor, de uma dedução filosófica independente, mas de uma realidade muito mais fundamental que resiste ou cai de acordo com a fé em um Deus único. E compreendemos melhor que a liberação do amor, degenerando em simpatia (ou camaradismo) do instinto, representa a entrega do homem às fúrias desencadeadas do sexo e do Eros, sob cuja escravidão cruel ele tomba, sonhando ter-se emancipado. Subtraindo-se a Deus, atacam-no os deuses, e a liberação do homem só se realiza na medida em que se deixa livrar e cessa de apoiar-se sobre si mesmo.”


“Somente se tem Deus, quando não se dispõe de nenhum Deus próprio, confiando-se somente ao Deus que é o Deus dos outros, exatamente como o meu, porque ambos lhe pertencemos.”


“O paradoxo da filosofia antiga, sob o enfoque religioso-histórico, consiste no fato de ter ela destruído o mito, racionalmente, tentando, ao mesmo tempo, re-legitimá-lo religiosamente – isto é: não foi revolucionária religiosamente, mas, no máximo, evolucionária, tratando a religião como questão do teor de vida e não como questão da verdade. Paulo descreveu muito exatamente este processo na Epístola aos Romanos (1,18-31), apoiando-se na literatura sapiencial, usando a linguagem profética (e respectivamente, o estilo antigo-testamentário dos livros sapienciais). Já no livro da Sabedoria (cap. 13-15) encontra-se a alusão a esse destino trágico da religião antiga e ao paradoxo inerente à separação de verdade e piedade (ou fé). Paulo reassume o que ali se disse em poucos versículos, descrevendo a sorte da religião antiga a partir desse divórcio entre Logos e mito: “O que de Deus se pode conhecer... é para eles manifesto, tendo-lho Deus manifestado... Mas, conhecendo embora a Deus, não o honraram como Deus... Trocaram a glória do Deus indefectível pela reprodução em imagens do homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de répteis... “ (Rom 1,19-23).
A religião não segue a senda do Logos, mas persiste no mito compreendido como vazio de qualquer realidade. Com isto era inevitável a sua ruína, consequência do afastamento da verdade, que levou a considerar a religião como mera institutio vitae, simples convenção e forma de vida. Em contraste com semelhante situação, Tertuliano descreveu a posição cristã com muita ênfase, em frase ousada, ao dizer: “Cristo se denominou a verdade, não o costume”16. Vejo aí uma das grandes frases da teologia patrística. Está aí condensada de modo único a luta da Igreja antiga e a tarefa permanente imposta à fé cristã, caso queira conservar-se fiel a si mesma. A divinização da consuetudo Romana, da “origem” da cidade de Roma, que transformava os seus costumes em norma autossuficiente do comportamento contrapõe-se à pretensão exclusivista da verdade. Com isto o cristianismo colocou-se decididamente ao lado da verdade, dando as costas a uma ideia de religião que se satisfazia em ser figura cerimonial, à qual se podia acrescentar um sentido qualquer na fase da interpretação.”
16: Dominus noster Christus veritatem se, non consuetudinem cognominavit. De virginibus velandis I, 1, in: Corpus Christianorum seu nova Patrum collectio (CChr), II, 1209.


“No símbolo apostólico, base das nossas considerações, exprime-se o paradoxo da unidade do Deus da fé e do Deus dos filósofos, sobre que se apoia a imagem cristã de Deus, e isto mediante os dois atributos “Pai” e “Dominador único” (“Senhor do universo”). O segundo título – pantokrator em grego – aponta para o “Iahvé Zebaoth” (Sabaoth) do Antigo Testamento, cujo significado não é mais possível esclarecer. Traduzido literalmente vem a ser algo como “Deus das multidões”, “Deus das potências”; “Senhor das potências ou dos exércitos” é o que se lê na versão grega da Bíblia. Apesar de todas as incertezas sobre a sua origem, sempre se pode afirmar que este vocábulo quer descrever Deus como o Senhor do céu e da terra. A expressão visava, em atitude polêmica contra a religião babilônica dos astros, apresentar a Deus como o Senhor, a quem pertencem os astros, ao lado do qual eles não podem subsistir como potências divinas independentes: os astros não são deuses, mas instrumentos de Deus, postos ao alcance de suas mãos, como os exércitos à disposição do general. A palavra pantokrator, a partir daí, tem, primeiro, um sentido cósmico e, mais tarde, também um sentido político; descreve a Deus como o Senhor de todos os Senhores. Denominando a Deus, ao mesmo tempo, “Pai” e “onipotente” (ou: “único Senhor”) o Credo fundiu um conceito familiar e uma ideia de poder cósmico na descrição de Deus. Com isto exprime exatamente aquilo de que se trata na imagem cristã de Deus, a tensão do poder absoluto e do absoluto amor, da distância absoluta e da absoluta proximidade, do ser simplesmente e da imediata preocupação com o que há de mais humano no homem, o entrelaçamento do máximo e do mínimo, de que se falou antes.
O termo “Pai”, que continua totalmente aberto quanto ao seu ponto de relacionamento, reúne, ao mesmo tempo, o primeiro artigo do Credo com o segundo; aponta para a cristologia, entrelaçando ambas as peças de modo tal, que o que se deve afirmar de Deus só se torna completamente claro ao se olhar também para o Filho. Por exemplo, o que significa “onipotência”, “absoluta soberania”, torna-se claro cristãmente apenas ao pé do presépio e da cruz. Somente ali, onde o Deus conhecido como Senhor do universo penetra na última impotência da auto-entrega à menor de suas criaturas, pode ser formulado, em verdade, o conceito de onipotência em Deus. Aqui nasce também uma nova ideia de força e um conceito novo de poder e domínio. A força suprema revela-se no fato de poder ser paciente o bastante para privar-se totalmente de toda a força; no fato de ser poderosa, não através da violência, mas exclusivamente pela liberdade do amor, que, mesmo sendo repudiada, é mais forte do que os poderes jactanciosos do mundo.”


“A ideia de liberdade é a característica da fé cristã em Deus, em oposição a qualquer espécie de monismo. A fé coloca no começo de todo o ser, não uma consciência qualquer, mas uma liberdade criadora que torna a criar liberdades. Neste sentido, poder-se-ia denominar, em grau supremo, a fé cristã como uma filosofia da liberdade. Para a fé, a explicação do real em conjunto não está em uma consciência que abrange tudo nem em uma única materialidade; pelo contrário, à frente da fé encontra-se uma liberdade que pensa e, pensando, cria liberdades, transformando assim a liberdade em forma estrutural de todo o ser.”


“Amor é sempre mistério: mais do que se pode calcular e compreender. Portanto, o próprio amor – o Deus incriado e eterno – deve ser mistério em grau supremo: o mistério por excelência.”


“Não existe o mero observador. Não há objetividade pura. Pode-se dizer: quanto mais elevada a posição de um objeto em relação ao homem, quanto mais tal objeto penetra no centro do que é nosso, comprometendo o próprio observador, tanto menos possível é o completo distanciar-se da objetividade pura. Portanto, onde quer que se apresente uma resposta como objetiva e desapaixonada, como declaração que, afinal, ultrapassa as piedosas prevenções, explicando tudo com científica objetividade: forçoso se torna dizer que o próprio sujeito se tornou vítima de um logro. Tal espécie de objetividade não é acessível ao homem. Ele não pode pesquisar e existir como simples observador. Quem tenta ser mero observador não descobre nada. Também a realidade “Deus” pode ser focalizada somente por quem se incluir na experiência com Deus – experiência que denominamos fé. Só entrando, consegue-se saber; só participando da experiência, consegue-se perguntar; e só quem pergunta, recebe resposta.
Pascal exprimiu isto em seu famoso argumento da aposta, com uma clareza quase monstruosa e com uma agudeza que chega a roçar as raias do suportável. O debate com o parceiro incrédulo atingiu um ponto em que ele reconhece dever decidir-se por Deus. Mas gostaria de evitar o salto, de possuir uma clareza matemática: “Não existirá algum meio de iluminar a treva e suspender a incerteza do jogo?” “Sim, há um meio e mais de um: a Sagrada Escritura e todos os outros argumentos em favor da religião”. “Mas, tenho as mãos atadas, os lábios mudos... Meu feitio é assim, não posso crer. Que fazer?” “Então você confessa que a impossibilidade de sua fé não se origina da razão; pelo contrário: a razão conduz à fé; portanto, a sua recusa tem outro motivo. Por isto não adianta convencê-lo mais ainda, mediante um amontoado de provas da existência de Deus; antes de tudo, impõe-se que você combata as suas paixões. Você deseja alcançar a fé e não conhece o caminho? Quer ficar curado da descrença e não conhece o remédio? Aprenda daqueles que, outrora, foram acossados por dúvidas, como você... Imite-lhes o proceder, faça tudo o que a fé exige, como se já fosse crente. Frequente a Missa, use água benta, etc. Isto, certamente, o fará humilde e o conduzirá à fé”.”


“Nossa consideração demonstra que unidade cristã denota, primeiramente, unidade com Cristo, possível onde cessa a acentuação do próprio “eu”, substituída pela existência simplesmente descomprometida “de” e “para”. A uma vida assim com Cristo, mergulhada completamente na disponibilidade daquele que não queria considerar nada como seu (veja também Fl 2,6), segue-se a completa união – “para que sejam um, como nós o somos”. Toda falta de união, toda separação baseia-se em uma carência oculta do autêntico espírito cristão, em um apego ao que é próprio, com o que se acarreta a ruína da unidade.”


“Jesus não deixou uma doutrina passível de ser separada do seu “eu”, como se podem colecionar e avaliar as ideias dos grandes pensadores sem levar em consideração a pessoa do autor. O Símbolo não oferece uma doutrina de Jesus. Nem sequer se chegou a pensar numa evidente tentativa de ver nele uma doutrina, porque o sentido fundamental presente no Símbolo atua em direção completamente outra. E, de acordo com a declaração do Credo, Jesus não fez uma obra capaz de se distinguir e de ser representada como distinta do seu “eu”. Compreendê-lo como o “Cristo” significa estar convencido de que ele se entregou a si mesmo dentro da sua palavra: não é um “eu” que fala (como acontece conosco) – ele identificou-se com a sua palavra de modo tal, que “eu” e “palavra” são indistinguíveis: ele é palavra. De modo idêntico, para a fé, sua obra nada mais é do que o irrestrito identificar-se com essa obra; ele se faz e se dá; sua obra é sua autodoação.
Karl Barth certa vez exprimiu essa constatação da fé do modo seguinte: “Jesus é simplesmente portador de um cargo. Portanto, não é, primeiro, um homem e depois um encarregado de certa tarefa... Não existe dentro de Jesus uma humanidade neutra... Poderia ser repetida, em nome dos quatro Evangelhos, a preciosa palavra de Paulo (2 Cor 5,16): ‘e, se todavia temos conhecido a Cristo segundo a carne, agora, porém, já não o conhecemos assim’. Os evangelistas se mantiveram inteiramente desinteressados a respeito de tudo o que esse homem pode ter sido e ter feito fora da sua missão de Cristo e independente de sua realização... Mesmo quando relatam sobre a sua fome e sede, suas refeições e bebidas, seu amor, sua tristeza, sua ira e até suas lágrimas, os evangelistas tocam em detalhes secundários, nos quais, em parte alguma, transparece algo assim como uma personalidade independente da obra, com determinados interesses, inclinações e afetos... Seu existir como homem é sua obra”9. Em outras palavras, a afirmação decisiva da fé sobre Jesus está na inseparável unidade das duas palavras “Cristo Jesus”, onde se oculta a experiência da identidade de existência e missão. Neste sentido, realmente pode-se falar de uma “teologia funcional”: a existência inteira de Jesus é função do “para nós”, mas – por isto mesmo – a função é sua existência10.
Interpretando assim, afinal, poder-se-ia afirmar realmente que doutrina e feitos do Jesus histórico, como tais, não são importantes, bastando o simples fato – a saber, contanto que se compreenda que tal fato conota a realidade inteira da pessoa, que se cobre, como tal, com sua doutrina, que se identifica com sua ação, tendo aí a sua peculiaridade única e a sua irrepetível unicidade. A pessoa de Jesus é sua doutrina e sua doutrina é Jesus mesmo. Portanto, fé cristã, isto é, fé em Jesus como o Cristo, é verdadeiramente “fé pessoal”. E só a partir daí é que se poderá entender realmente o que vem a ser isto. Tal fé não é a aceitação de um sistema, mas a aceitação de uma pessoa, que é a sua palavra; da palavra como pessoa e da pessoa como palavra. (...)
“Hoje podemos constatar com bastante segurança, ter sido a cruz o local de origem da fé em Jesus como o Cristo, isto é, o local do nascimento da fé “cristã”, em geral. Jesus mesmo não se proclamou diretamente como o Cristo (“Messias”). Esta afirmação, para nós um tanto estranha, destaca-se, a esta altura, com bastante clareza, do debate tantas vezes confuso dos historiadores. Nem mesmo se poderá fugir a tal conclusão, se se lança mão de crítica adequada frente ao precipitado processo de subtração em voga na atual pesquisa sobre Jesus. Portanto, Jesus não se proclamou claramente como Messias (Cristo) – quem o fez foi Pilatos ao aderir, por sua vez, à acusação dos judeus; cedendo à sua acusação, proclamou, nas três línguas universais de então, a Jesus como o Rei (Messias, Cristo) crucificado. O título da execução, paradoxalmente, passou a ser “profissão de fé”, ponto de partida e raiz da fé cristã que considera a Jesus como o Cristo: como crucificado esse Jesus é o Cristo, o rei. Sua crucificação é sua entronização; sua entronização é a doação de si mesmo aos homens; é a identificação da palavra, missão e existência na entrega desta mesma existência. Sua existência é sua palavra. Ele é palavra por ser amor. A partir da cruz, a fé compreende sempre mais que esse Jesus não somente fez e disse alguma coisa, mas que nele se identificam missão e pessoa, que ele sempre é o que diz. Para João bastou muito simplesmente tirar daí a última conclusão: se é assim – eis o pensamento cristológico fundamental do seu Evangelho então esse Jesus Cristo é a “Palavra”; ora, uma pessoa que não somente tem palavras, mas que é a sua própria palavra e sua obra é o próprio Logos (“a palavra”, o “sentido”, a “razão”); que existe desde sempre e para sempre; que é o fundamento sobre o qual repousa o universo – se em alguma parte encontrarmos uma tal pessoa, será ela aquele sentido, aquela razão (ratio) que nos sustenta e pela qual todos subsistimos.
Eis como se desdobra a compressão a que chamamos fé: os cristãos encontram, pela primeira vez, na cruz, a identificação de pessoa, palavra e obra. E ali reconheceram o elemento propriamente decisivo diante do qual o resto passa a plano secundário. Por isto, sua profissão de fé podia reduzir-se ao simples entrelaçamento das duas palavras “Jesus” e “Cristo” – fusão em que tudo estava expresso. Jesus é visto a partir da cruz, cuja linguagem é mais eloquente do que todas as palavras: ele é o Cristo – nada mais é preciso acrescentar. O “eu” crucificado do Senhor representa uma realidade de tal plenitude que tudo o mais pode ficar para trás.”
9: K. BARTH, Kirchliche Dogmatik III, 2, Zurique 1948, 66-69; citado conforme H. U. VON BALTHASAR, "Zwei Glaubensweisen", em: Spiritus Creator, Einsiedeln, 1967, 76-91, citação: 89 s. Deve-se cotejar o trabalho de BALTHASAR.
10: H. U. VON BALTHASAR, o. cit. sobretudo 90. O MESMO, Verbum Caro, Einsiedeln, 1960, 11-72, sobretudo 32 e s, 54 e ss.

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