Editora:
Boitempo
ISBN: 978-65-5717-023-6
Tradução: Nélio
Schneider
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Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 400
Sinopse: Durante o século XIX, o progresso científico e tecnológico trouxe
importantes conquistas no campo das ciências naturais: o nascimento da química
moderna, a teoria evolutiva de Darwin, a descoberta por Pasteur e outros do
mundo microbiano. Nesse contexto, Engels procura com sua Dialética da natureza
oferecer de uma só vez, ao marxismo uma concepção materialista da natureza
elaborada, e às ciências um modelo filosófico a partir do qual se guiar.
Confrontando tendências anticientíficas em vigor entre os
próprios cientistas – materialismo vulgar, metafísica, idealismo, agnosticismo,
mecanicismo, espiritualismo –, Engels expõe alguns dos principais conceitos da
tradição dialética, articulando-os e aplicando-os com rigor a diversos campos
do conhecimento. Deixa-se ver assim não apenas a enorme erudição de seu autor,
mas também a profundidade do compromisso do marxismo com o desenvolvimento
científico. Entre diversas passagens célebres, cultuadas e criticadas, tem
papel de destaque a impressionante elaboração sobre a função do trabalho no
processo de hominização, que encerra o livro.
Obra póstuma e inacabada, a influência da Dialética da
natureza pode ser notada desde sua primeira publicação, seja nos escritos de
figuras proeminentes do movimento operário e do marxismo soviético, seja em
controvérsias decisivas do chamado marxismo ocidental. Além disso, vem sendo
amplamente recuperada pela ecologia marxista contemporânea. Portanto, é
incontornável não apenas para quem busca entender a história de formação do
marxismo, mas também para quem deseja conhecer os caminhos abertos por ele na
atualidade.
(As inserções entre colchetes ([]), redigidas pelo
tradutor e pela edição, acrescentam termos faltantes no texto ou o complementam
para melhor compreensão. As anotações reproduzidas entre chaves ({}), por sua
vez, foram feitas por Engels no manuscrito. Todas as notas de rodapé numeradas
são de autoria do tradutor, elaboradas com base na edição alemã e em pesquisas
próprias. As notas de rodapé marcadas com asterisco foram incluídas por Engels,
e as notas à margem do texto reproduzem anotações do autor na lateral do
manuscrito. Frases incompletas se mantiveram conforme o original.)
“A existência normal dos animais é dada nas
condições simultâneas em que vivem e às quais se adaptam – as do ser humano,
assim que este se diferencia do animal no sentido estrito, nunca antes
existiram e deverão ser elaboradas pelo desenvolvimento histórico futuro. O ser
humano é o único animal capaz de sair por esforço próprio da condição meramente
animal – sua condição normal é condição adequada à sua consciência, a ser
criada por ele mesmo.”
“A ciência natural moderna foi a única que
logrou implementar um desenvolvimento científico, sistemático e global, em
contraposição às intuições geniais dos antigos sobre a filosofia da natureza e
às descobertas dos árabes, que foram extremamente importantes, mas esporádicas
e, em grande parte, desapareceram sem produzir resultados. A moderna
investigação científica da natureza é datada, a exemplo de toda a história mais
recente, daquela época portentosa que nós, alemães, de acordo com a desgraça
nacional2 que então se abateu sobre nós, chamamos de Reforma, os
franceses chamam de Renascença e os italianos de Cinquecento, época que
nenhuma dessas denominações é capaz de expressar adequadamente. Trata-se da
época que se inicia na segunda metade do século XV. O reinado, apoiando-se nos
burgueses citadinos, deu cabo do poder da nobreza feudal e fundou as grandes
monarquias assentadas essencialmente no nacionalismo, nas quais se
desenvolveram as modernas nações europeias e a moderna sociedade burguesa; os
burgueses e a nobreza ainda se engalfinhavam quando a guerra camponesa alemã
anunciou profeticamente as futuras lutas de classes, trazendo ao palco não só
os camponeses revoltados – o que nada tinha de novo – mas, na esteira deles, os
rudimentos do atual proletariado com a bandeira vermelha na mão e a exigência
da comunhão de bens nos lábios3. Os manuscritos resgatados [antes] da
queda de Bizâncio4, as estátuas antigas desenterradas das ruínas de
Roma fizeram surgir diante do Ocidente surpreso um novo mundo, o da Antiguidade
grega; à vista dos seus luminares desapareceram os fantasmas da Idade Média; a
Itália viveu um florescimento inesperado da arte, que se manifestou como um
reflexo da Antiguidade clássica e nunca mais foi alcançado. Na Itália, na
França, na Alemanha, surgiu uma nova literatura, a primeira literatura moderna,
logo depois a Inglaterra e a Espanha viveram sua idade literária clássica. Os
limites do antigo orbis terrarum [globo terrestre] foram ultrapassados e
a Terra começou a ser propriamente descoberta, lançaram-se os fundamentos para
o posterior comércio mundial e a transição do artesanato para a manufatura,
que, por sua vez, constituiu o ponto de partida para a grande indústria moderna
[resultado: domínio da burguesia]. A ditadura espiritual da Igreja foi
vencida; em sua maior parte, os povos germânicos dispersaram-se de vez e
acolheram o protestantismo, enquanto entre os romanos um livre pensamento
bem-humorado, emprestado dos árabes e nutrido pela filosofia grega
recém-descoberta, criava raízes e preparava o materialismo do século XVIII.
Foi a maior revolução
progressista já vivida pela humanidade até então, uma era que precisou de
gigantes e gerou gigantes, gigantes na capacidade de pensar, na paixão e no
caráter, gigantes em versatilidade e erudição. Os homens que fundaram o moderno
domínio da burguesia eram tudo menos burgueses tacanhos. Ao contrário, o
caráter aventureiro da época os bafejou em maior ou menor medida. Naquela
época, não houve praticamente nenhum homem importante que não tivesse feito
longas viagens, que não falasse quatro ou cinco idiomas, que não brilhasse em
várias especialidades. Leonardo da Vinci foi não só um grande pintor mas também
um grande matemático, um grande mecânico e um grande engenheiro, ao qual os
mais diversos ramos da física devem importantes descobertas; Albrecht Dürer foi
pintor, calcogravurista, escultor, arquiteto, e ainda inventou um sistema de
fortificação cujas ideias foram retomadas muito tempo depois por [Marc-René de]
Montalembert e pela fortificação alemã mais recente. Maquiavel foi estadista, historiador,
poeta e, ao mesmo tempo, o primeiro escritor militar digno de menção da época
mais recente. Lutero lavou o estábulo de Áugias5 não só da Igreja
mas também da língua alemã, criou a prosa alemã moderna6 e compôs
texto e melodia daquele coral convicto da vitória que se tornou a Marselhesa do
século XVI7. É que os protagonistas daquele tempo ainda não haviam
sido escravizados pela divisão do trabalho, cujo efeito limitante e unilateral
percebemos com grande frequência em seus sucessores. Mas é particularmente
próprio deles que quase todos tenham vivido e atuado no movimento da época, na
luta prática, tomando partido e participando da luta, seja com a palavra e a
escrita, seja com a espada, alguns com ambas. Daí a plenitude e a força de
caráter que fazem deles homens íntegros. Estudiosos trancados em seu escritório
são exceção: ou eram pessoas do segundo e terceiro escalões ou filisteus
precavidos que não queriam se arriscar.
Naquele tempo, a investigação
científica da natureza também se movia em meio à revolução generalizada, e do
começo ao fim ela própria foi revolucionária, pois tinha de conquistar seu
direito à existência. De mãos dadas com os grandes italianos, dos quais se data
a filosofia mais recente, ela alimentou as fogueiras e os cárceres da
Inquisição com seus mártires. É sintomático que os protestantes se tenham
antecipado aos católicos na perseguição à livre investigação científica da
natureza. Calvino mandou [Miguel] Serveto para a fogueira quando ele estava
prestes a descobrir o trajeto da circulação sanguínea, com o requinte de tê-lo
mantido vivo, assando por duas horas; a Inquisição pelo menos se contentou em
simplesmente queimar Giordano Bruno8.
O ato revolucionário pelo qual a
investigação científica da natureza declarou sua independência e, de certo
modo, repetiu Lutero queimando a bula papal9 foi a publicação da
obra imortal com a qual Copérnico, mesmo timidamente e já em seu leito de
morte, desafiou a autoridade eclesiástica para o duelo a respeito das coisas
naturais10. Foi naquela data que a pesquisa da natureza começou a se
emancipar da teologia, embora a discussão sobre demandas recíprocas
particulares se arraste até hoje e em algumas cabeças não esteja nem perto de
chegar a uma conclusão. Porém, a partir daquele momento, o desenvolvimento das
ciências avançou a passos largos e ganhou força, pode-se dizer que na proporção
do quadrado da distância (temporal) de seu ponto de partida. É como se a
intenção fosse demonstrar que, dali por diante, valeria para o sumo produto da
matéria orgânica, ou seja, para o espírito humano, a lei inversa à do movimento
vigente para a matéria inorgânica.
A tarefa principal nesse primeiro
período recém-iniciado da ciência natural era dar conta do material mais
imediato. Na maioria das disciplinas, foi preciso partir do material bruto. A
Antiguidade deixara como legado Euclides e o sistema solar ptolemaico; os
árabes, a notação decimal, os rudimentos da álgebra, os números modernos e a
alquimia; a Idade Média cristã, absolutamente nada. Nessas condições, a ciência
mais elementar da natureza, a mecânica dos corpos terrestres e celestes,
assumiu necessariamente a liderança e, ao lado dela e a seu serviço, a
descoberta e o aperfeiçoamento dos métodos matemáticos. Nesse campo,
realizaram-se coisas grandiosas. Ao final do período marcado por [Isaac] Newton11
e [Carlos] Lineu12, encontramos os ramos da ciência de certa maneira
finalizados. Os métodos matemáticos mais essenciais foram fixados em seus
traços básicos; a geometria analítica primorosamente por [René] Descartes13,
os logaritmos por Neper14, o cálculo diferencial e integral por
[Gottfried Wilhelm von] Leibniz e talvez Newton15. O mesmo vale para
a mecânica dos corpos fixos, cujas leis principais foram esclarecidas de uma
vez por todas16. Por fim, na astronomia do sistema solar, Kepler
descobriu as leis do movimento planetário17 e Newton as formulou sob
as leis universais do movimento da matéria. Os demais ramos da ciência natural
estavam muito distantes até mesmo de uma finalização provisória como essa. A
mecânica dos corpos líquidos e gaseiformes foi elaborada somente mais para o
fim desse período. [Torricelli por ocasião da contenção dos rios alpinos18]
A física propriamente dita ainda não passara da fase rudimentar, com exceção da
óptica, cujos progressos excepcionais foram provocados pela necessidade prática
da astronomia. A química acabara de se emancipar da alquimia por meio da teoria
flogística19. A geologia ainda não ultrapassara o estágio
embrionário da mineralogia; portanto, a paleontologia ainda não podia existir.
Por fim, a área da biologia ainda se ocupava essencialmente da coleta e do
primeiro exame da quantidade colossal de material tanto do campo da botânica e
da zoologia como do campo da anatomia e do campo propriamente fisiológico. [Ainda
não se falava de anatomia comparativa, distribuição climat[ológica], geografia
animal e vegetal.] Praticamente não se podia falar ainda de comparação das formas
de vida, de investigação de sua disseminação geográfica, de suas condições de
vida climatológicas etc. Nessa altura, apenas a botânica e a zoologia chegaram
a uma finalização aproximada com Lineu.”
3 Sobre isso, ver Friedrich
Engels, Der deutsche Bauernkrieg (MEGA 2 I/10) [ed. bras.: As guerras
camponesas na Alemanha, trad. equipe da editora, São Paulo, Grijalbo,
1977].
4 Ainda antes da queda de
Bizâncio (ocorrida em 1453), alguns humanistas italianos, como Guarino
Veronese, Giovanni Aurispa e Francesco Filelfo, trazem da Grécia numerosos
manuscritos, preservando-os assim da destruição. Em meados do século XV, boa
parte da literatura grega nas áreas da filosofia, da história e da poesia é
traduzida para o latim, principalmente em Florença (Marsílio Ficino e Pico
della Mirandola), Roma (Enea Silvio, Poggio Bracciolini, Filelfo e Lorenzo
Valla) e Pádua (Pietro Pomponazzi). Humanistas alemães e holandeses também
participaram da missão de traduzir os autores gregos e latinos clássicos:
Erasmo de Roterdã, Rodolfo Agrícola, Johann Reuchlin e Willibald Pirckheimer. A
emigração e a fuga de eruditos gregos para o Ocidente quando Bizâncio foi
tomada pelos turcos em 1453 fizeram com que voltassem a ser conhecidos
sobretudo os escritos de Platão, Aristóteles e Epicuro.
5 Mitologia grega: referência a
um dos doze trabalhos impostos a Hércules, limpar o estábulo do rei Áugias de
Eleia.
6 Lutero deu uma contribuição
decisiva para a criação da prosa alemã moderna com a sua tradução da Bíblia
para o alemão. A primeira tradução completa da Bíblia em língua alemã foi
publicada em 1534 e, até 1546, ano da morte de Lutero, teve dez reedições.
7 Referência ao canto coral “Ein
feste Burg ist unser Gott” [Nosso Deus é castelo forte], que Heinrich Heine
chamou de “hino de Marselha da Reforma” (“Zur Geschichte der Religion und
Philosophie in Deutschland, em Der Salon, v. 2 (Hamburgo, Hoffmann und
Campe, 1835), p. 80). Mais tarde, Engels chama o coral luterano de “Marselhesa
da guerra dos camponeses” (carta a Hermann Schlüter, de 15 de maio de 1885).
8 O médico e teólogo espanhol
Miguel Serveto foi queimado com requintes de crueldade por ordem do reformador
João Calvino em 1553, em Genebra. Giordano Bruno foi queimado pela Inquisição
católica em 1600, depois de passar oito anos na prisão.
9 Em dezembro de 1520, na cidade
universitária de Wittenberg, Martinho Lutero queimou publicamente a bula papal
em que era ameaçado de excomunhão caso não retirasse as críticas que fizera à
Igreja. O conflito teve início com a publicação de 95 teses acadêmicas em 31 de
outubro de 1517, em Wittenberg, para discussão nas universidades.
10 No dia de seu falecimento, 24
de maio de 1543, Nicolau Copérnico recebeu o primeiro exemplar impresso do seu
agora famoso livro De revolutionibus orbium coelestium [Da revolução
das órbitas celestes], no qual fundamentou o sistema heliocêntrico. No
prefácio dirigido ao papa Paulo III, ele diz que manteve a obra escondida por
quase quarenta anos e só concordou em publicá-la por insistência de seus amigos
Nikolaus von Schönberg e Tiedemann Giese.
11 Em sua obra Philosophiae
naturalis principia mathematica (nova ed., Glasgow, John Wright, 1822, 4 v.
[ed. bras.: Princípios matemáticos de filosofia natural, trad. André
Koch Assis e Fábio Duarte Joly, São Paulo, Edusp, 2012]), Isaac Newton,
partindo da teoria de Copérnico, fundamenta a mecânica como teoria dinâmica
unitária para a Terra e o cosmo, como síntese das leis do movimento dos
planetas de Kepler e dos conhecimentos de Galilei sobre o movimento das massas terrestres.
12 Com sua obra Systema
naturae, sive Regna tria naturae systematice proposita per classes, ordines,
genera et species (Leiden, J. Haak, 1735), Carlos Lineu criou o primeiro
sistema botânico completo, em que fez uma reordenação dos reinos mineral e
animal, resultado de 220 anos de esforços em torno da formulação de princípios
válidos de classificação das múltiplas formas da vida vegetal e animal. Ele
introduziu a nomenclatura binária e agrupou todos os organismos em categorias
hierarquizadas (espécies, gêneros, ordens, classes, reinos).
13 René Descartes tem importância fundamental para
a ciência do século XVII. Deu sua contribuição não só como filósofo mas também
como matemático e físico. Na matemática, fundamentou a geometria analítica.
14 Trata-se do escocês John
Napier, que publicou em 1614, em Edimburgo, uma tabela de logaritmos que
rapidamente se disseminou.
15 Hoje está praticamente assegurado
que Gottfried Wilhelm von Leibniz e Isaac Newton inventaram o cálculo
diferencial e integral, baseados nos trabalhos de muitos antecessores, entre os
quais Galileu Galilei, Christiaan Huygens, Pierre de Fermat, Bonaventura
Cavalieri e Isaac Barrow. Leibniz foi o primeiro a publicar, embora anos antes
Newton já dispusesse dos cálculos.
16 Essas leis principais são os
três axiomas de Newton que fundamentam toda a mecânica clássica.
17 Referência às três leis de
Kepler, publicadas em Astronomia nova (Praga, 1609) e Harmonices
mundi (Linz, 1619).
18 Ver sobre isso carta de Engels
a Walther Borgius, de 25 de janeiro de 1894: “Se a técnica, como o sr. diz,
depende em grande parte do estado da ciência, então esta depende muito mais do estado
e das necessidades de técnica. Se a sociedade tem uma necessidade
técnica, isso faz a ciência avançar muito mais do que dez universidades. Toda a
hidrostática (Torricelli etc.) foi suscitada pela necessidade de regular as
torrentes nas montanhas da Itália nos séculos XVI e XVII. Só passamos a saber
algo racional a respeito da eletricidade desde que se descobriu sua
aplicabilidade técnica. Na Alemanha, infelizmente o pessoal se habituou a
escrever a história das ciências como se elas tivessem caído do céu”.
19 A teoria do flogisto foi
fundamentada em torno de 1700 por Georg Ernst Stahl e dizia que todos os
materiais inflamáveis contêm uma substância imponderável que abandona o
material durante a queima. Essa teoria serviu de base para o desenvolvimento da
química no século XVIII e só foi superada no final do mesmo século por
Antoine-Laurent de Lavoisier, quando este descobriu que a queima é produzida
pela ligação de oxigênio com outros materiais.
“E assim retornamos ao modo de ver as coisas dos
grandes fundadores da filosofia grega, a saber, que a existência da natureza em
sua totalidade, do menor ao maior, dos grãos de areia até os sóis, dos
protistas até o ser humano, dá-se no perene surgir e desaparecer, no fluxo
incessante, no movimento e na mutação incansáveis. Mas há uma diferença
essencial: o que no caso dos gregos era intuição genial, no nosso caso é
resultado de pesquisa rigorosamente científica em conformidade com a
experiência e, por conseguinte, apresenta-se de forma muito mais determinada e
clara.”
“Com o ser humano ingressamos na história.
Os animais também têm história, a de sua ascendência e desenvolvimento
gradativo até o seu estado atual, mas essa história é feita para eles e, não
obstante eles próprios dela participarem, ela transcorre sem que saibam e
queiram. Os humanos, em contraposição, quanto mais se distanciam do animal em
sentido estrito, tanto mais eles próprios fazem sua história, com consciência,
tanto menor se torna a influência de efeitos imprevistos e forças não
controladas sobre essa história, tanto mais precisamente o desfecho histórico
corresponde ao fim anteriormente estabelecido. Mas, se aplicarmos esse critério
à história humana, inclusive à dos povos mais desenvolvidos do presente,
descobriremos que ainda existe uma desproporção colossal entre as metas
propostas e os resultados alcançados, que predominam os efeitos imprevistos,
que as forças sem controle são muito mais poderosas do que as que foram postas
em movimento de acordo com um plano. E isso não poderá ser diferente enquanto
exatamente a atividade histórica mais essencial dos humanos, aquela que os
alçou da animalidade à humanidade, aquela que constitui a base material de suas
outras atividades, a saber, a produção que visa suprir suas necessidades
vitais, ou seja, hoje em dia a produção social, estiver sujeita às vicissitudes
de interferências não intencionais de forças sem controle e cumprir sua
finalidade apenas excepcionalmente, realizando com muito mais frequência
exatamente o seu oposto. Nos países industrializados mais avançados, dominamos
as forças da natureza e as coagimos a servir aos humanos; assim, multiplicamos
ao infinito a produção, de modo que agora uma criança produz mais do que antes
produziam cem adultos. E qual é a consequência disso? Aumento de sobretrabalho
e aumento da miséria das massas, e a cada dez anos uma grande quebradeira.
Darwin não se deu conta da sátira amarga que escreveu sobre os humanos, e
especialmente sobre os seus conterrâneos, ao demonstrar que a livre
concorrência, a luta pela existência que os economistas celebram como conquista
histórica suprema, constitui o estado normal do reino animal. Somente
uma organização consciente da produção social, na qual se produz e se distribui
de acordo com um plano, poderá alçar os humanos também em termos sociais acima
do resto do mundo animal, como a produção em geral fez com os humanos em termos
específicos. O desenvolvimento histórico torna tal organização diariamente mais
incontornável, mas também diariamente mais possível. A partir dela se datará uma
era histórica em que os próprios humanos e com eles todos os ramos de sua
atividade, principalmente também a ciência da natureza, receberão um impulso
que porá em densas sombras tudo o que se conseguiu até agora46.”
46 As ideias sobre a história
humana são desenvolvidas por Engels em outros escritos: Herrn Eugen Dührings
Umwälzung der Wissenschaft (MEGA 2 I/27), p. 223-36 [ed. bras.: Anti-Dühring, cit., p. 289-303]; “Ludwig
Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie”, Die Neue
Zeit, Stuttgart, v. 4, 1886, p. 198-209.
“O pensamento teórico de cada época e, portanto,
também o da nossa é um produto histórico que, em diferentes épocas, assume
formas muito diferentes e, desse modo, conteúdos muitos diferentes. A ciência
do pensar é, portanto, como qualquer outra, uma ciência histórica, a ciência do
desenvolvimento histórico do pensamento humano. E isso é importante também para
a aplicação prática do pensamento em campos empíricos. Pois, em primeiro lugar,
a teoria das leis do pensamento de modo nenhum é uma “verdade eterna” estabelecida
de uma vez por todas, como imagina o entendimento filistino quando ouve a
palavra “lógica”. Desde Aristóteles até hoje, a própria lógica
formal é um campo de acirrados debates e, até hoje, mesmo a dialética só foi
investigada mais aprofundadamente por dois pensadores, Aristóteles e Hegel. Mas a dialética, precisamente,
é a mais importante forma de pensamento para a atual ciência natural, porque
ela é a única que oferece a analogia e, desse modo, o método explicativo para
os processos de desenvolvimento que ocorrem na natureza, para os nexos maiores,
para as transições de um campo de investigação para outro.”
“Entre os gregos – justamente por ainda não terem partido para a sua
decomposição, para a sua análise –, a natureza ainda é vista em sua totalidade,
em seus grandes traços. A interconexão global dos fenômenos naturais não é
demonstrada em seus detalhes, mas é, para os gregos, resultado da contemplação
direta. Nisso reside a insuficiência da filosofia grega, razão pela qual teve
mais tarde de ceder espaço para outras maneiras de ver as coisas. Nisso, porém,
reside também a sua superioridade em comparação com todos os seus posteriores
adversários metafísicos. No confronto com os gregos, a metafísica teve razão no
detalhe, enquanto os gregos tiveram razão nos grandes traços em confronto com a
metafísica. Essa é uma das razões pelas quais somos forçados a retornar
reiteradamente, tanto na filosofia quanto em tantos outros campos, às
realizações daquele pequeno povo, cujo talento e atividade universais lhe
asseguraram um lugar na história do desenvolvimento da humanidade que nenhum
outro povo jamais poderá reivindicar. A outra razão, porém, é que, nas
múltiplas formas da filosofia grega, já se encontram, em estado embrionário, em
surgimento, quase todas as concepções posteriores. Por conseguinte, a ciência
natural teórica é igualmente forçada a retornar aos gregos, caso queira
acompanhar a história do surgimento e do desenvolvimento de seus atuais
enunciados universais10. E esse reconhecimento conquista cada vez
mais espaço. Cada vez mais raros são os pesquisadores da natureza que, ao lidar
eles próprios com rejeitos da filosofia grega, por exemplo, a atomística, como
se fossem verdades eternas, desdenham com soberba baconista os gregos porque
estes não tinham uma ciência natural empírica. Seria de desejar que esse
reconhecimento avançasse para uma real tomada de conhecimento da filosofia
grega.”
10 Ver Karl Marx, Grundrisse: manuscritos
econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política (trad. Nélio Schneider, São
Paulo/Rio de Janeiro, Boitempo/ Editora da UFRJ, 2011), p. 63-5. Ver Friedrich Engels, Anti-Dühring, cit., p. 48-51.
“Sobretudo é preciso constatar que aqui não se
trata de modo nenhum de uma defesa do ponto de partida hegeliano, a saber, que o
espírito, o pensamento, a ideia são o original e o mundo real é apenas um
decalque da ideia. Feuerbach já havia desistido disso. Entrementes, todos
concordamos que, no campo científico como um todo, seja na natureza, seja na
história, se deve partir dos fatos dados, ou seja, na ciência natural,
das diferentes formas concretas e das formas de movimento da matéria; e que,
portanto, também na ciência natural teórica, os nexos não devem ser formulados
e introduzidos nos fatos, mas devem ser descobertos a partir deles e, quando
descobertos, devem ser demonstrados pela experiência, na medida do possível.”
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