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terça-feira, 6 de agosto de 2024

O mito do desenvolvimento econômico, de Celso Furtado

Editora: Paz e Terra

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 90

Sinopse: O mito do desenvolvimento econômico foi escrito no início dos anos 70, quando pela primeira vez se teve uma ideia aproximada das consequências, no plano ecológico, da planetarização do sistema econômico. A permanecer no estilo atual de desenvolvimento, a pressão sobre a base de recursos não-renováveis será tão grande que, ou ocorrerá uma catástrofe ecológica ou se aprofundará o processo da exclusão social, privando as grandes maiorias, particularmente nos países de terceiro mundo, dos benefícios de um autêntico desenvolvimento. Esta seria, portanto, uma simples miragem. A relação de dependência das economias periféricas com os países centrais inviabiliza qualquer tipo de desenvolvimento para os primeiros, visto que essa relação aumenta as disparidades entre esses dois grupos e entre ricos e pobres dentro dos países subdesenvolvidos. É nesse sentido que o economista Celso Furtado o qualifica de mito.



“Os mitos têm exercido uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham em compreender a realidade social. Do bon sauvage, com que sonhou Rousseau, à ideia milenária do desaparecimento do Estado, em Marx, do “princípio populacional” de Malthus à concepção walrasiana do equilíbrio geral, os cientistas sociais têm sempre buscado apoio em algum postulado enraizado num sistema de valores que raramente chegam a explicitar. O mito congrega um conjunto de hipóteses que não podem ser testadas. Contudo, essa não é uma dificuldade maior, pois o trabalho analítico se realiza a um nível muito mais próximo à realidade. A função principal do mito é orientar, num plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem a qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. Assim, os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo que lhe proporcionam conforto intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva.1

A literatura sobre desenvolvimento econômico do último quarto de século nos dá um exemplo meridiano desse papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos 90% do que aí encontramos se funda na ideia, que se dá por evidente, segundo a qual o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideraram a revolução industrial, pode ser universalizado. Mais precisamente: pretende-se que os padrões de consumo da minoria da humanidade, que atualmente vive nos países altamente industrializados, são acessíveis às grandes massas de população em rápida expansão que formam o chamado Terceiro Mundo. Essa ideia constitui, seguramente, uma prolongação do mito do progresso, elemento essencial na ideologia diretora da revolução burguesa, dentro da qual se criou a atual sociedade industrial.

Com o campo de visão da realidade delimitado por essa ideia diretora, os economistas passaram a dedicar o melhor de sua imaginação a conceber complexos esquemas do processo de acumulação de capital no qual o impulso dinâmico é dado pelo progresso tecnológico, enteléquia concebida fora de qualquer contexto social. Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano cultural, de um crescimento exponencial do estoque de capital. As grandes metrópoles modernas, com seu ar irrespirável, crescente criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da juventude na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho de progresso linear em que se embalavam os teóricos do crescimento. Menos atenção ainda se havia dado ao impacto no meio físico de um sistema de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados.”

1 Não é meu propósito abordar aqui a epistemologia das ciências sociais. Desde Dilthey sabemos que as ciências sociais “cresceram no meio da prática da vida”. (Cf. Wilhelm Dilthey, Introduction à l'étude des sciences humaines, Paris, 1942, p. 34.) E Max Weber demonstrou claramente como se complementam a “explicação compreensiva” e a “compreensão explicativa” dos processos sociais. O mito introduz no espírito um elemento discriminador que perturba o ato de compreensão, o qual consiste, segundo Weber, em “captar por interpretação o sentido ou o conjunto significativo que se tem em vista”. (Cf. Max Weber, Economie et société, Paris, 1971, t. I, p. 8.). Veja-se também J. Freud, Les théories des sciences humaines (Paris, 1973).

 

 

“No último quarto de século, foram elaborados complexos modelos de economias nacionais de dimensões relativamente reduzidas, mas amplamente abertas ao mundo exterior, como a da Holanda, ou de amplas dimensões e mais autocentradas, como a dos Estados Unidos. O conhecimento analítico proporcionado por esses modelos permitiu formular hipóteses sobre o comportamento a mais longo prazo de certas variáveis, particularmente da demanda de produtos considerados de valor estratégico pelo governo dos Estados Unidos. Esses estudos puseram em evidência o fato de que a economia norte-americana tende a ser crescentemente dependente de recursos não renováveis produzidos fora do país. E esta, seguramente, uma conclusão de grande importância , que está na base da política de crescente abertura da economia dos Estados Unidos e de fortalecimento das grandes empresas capazes de promover a exploração de recursos naturais em escala planetária. As projeções a mais longo prazo, feitas no quadro analítico a que acabamos de nos referir, baseiam-se implicitamente na ideia de que a fronteira externa do sistema é ilimitada. O conceito de reservas dinâmicas, função do volume de investimentos programados e de hipóteses sobre o progresso das técnicas, serve para tranquilizar os espíritos mais indagadores. Como a política de defesa dos recursos não reprodutíveis compete aos governos e não às empresas que os exploram, e como as informações e a capacidade para apreciá-las estão principalmente com as empresas, o problema tende a ser perdido de vista.”

 

 

“A importância do estudo feito para o Clube de Roma deriva exatamente do fato de que nele foi abandonada a hipótese de um sistema aberto no que concerne à fronteira dos recursos naturais. Não se encontra aí qualquer preocupação com respeito à crescente dependência dos países altamente industrializados vis-à-vis dos recursos naturais dos demais países, e muito menos com as consequências para estes últimos do uso predatório pelos primeiros de tais recursos. A novidade está em que o sistema pôde ser fechado em escala planetária, numa primeira aproximação, no que se refere aos recursos não renováveis. Uma vez fechado o sistema, os autores do estudo formularam-se a seguinte questão: que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegarem efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou, alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso.”

 

 

“A evidência à qual não podemos escapar é que em nossa civilização a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico. O economista limita o seu campo de observação a processos parciais, pretendendo ignorar que esses processos provocam crescentes modificações no mundo físico.3 A maioria deles transforma energia livre ou disponível, sobre a qual o homem tem perfeito comando, em energia não disponível. Demais das consequências de natureza diretamente econômica, esse processo provoca elevação da temperatura média de certas áreas do planeta cujas consequências a mais longo prazo dificilmente poderiam ser exageradas. A atitude ingênua consiste em imaginar que problemas dessa ordem serão solucionados necessariamente pelo progresso tecnológico, como se a atual aceleração do progresso tecnológico não estivesse contribuindo para agravá-los. Não se trata de especular se teoricamente a ciência e a técnica capacitam o homem para solucionar este ou aquele problema criado por nossa civilização. Trata-se apenas de reconhecer que o que chamamos de criação de valor econômico tem como contrapartida processos irreversíveis no mundo físico, cujas consequências tratamos de ignorar. Convém não perder de vista que na civilização industrial o futuro está em grande parte condicionado por decisões que já foram tomadas no passado e/ou que estão sendo tomadas no presente em função de um curto horizonte temporal. À medida em que avança a acumulação de capital, maior é a interdependência entre o futuro e o passado. Consequentemente, aumenta a inércia do sistema, e as correções de rumo tornam-se mais lentas ou exigem maior esforço.”

 

 

“A psicologia humana é tal que dificilmente podemos nos concentrar por muito tempo em problemas que superam um horizonte temporal relativamente curto.”

 

 

“Captar a natureza do subdesenvolvimento não é tarefa fácil: muitas são as suas dimensões, e as que são facilmente visíveis nem sempre são as mais significativas. Mas se algo sabemos com segurança é que subdesenvolvimento nada tem a ver com a idade de uma sociedade ou de um país. E também sabemos que o parâmetro para medi-lo é o grau de acumulação de capital aplicado aos processos produtivos e o grau de acesso ao arsenal de bens finais que caracterizam o que se convencionou chamar de estilo de vida moderno. Mesmo para o observador superficial parece evidente que o subdesenvolvimento está ligado a uma maior heterogeneidade tecnológica, a qual reflete a natureza das relações externas desse tipo de economia.”

 

 

“Por que este e não aquele país passou a linha demarcatória e entrou para o clube dos países desenvolvidos nessa segunda fase crucial da evolução do capitalismo industrial, que se situa entre os anos 1870 e o primeiro conflito mundial, é problema cuja resposta pertence mais à História do que à análise econômica. Em nenhuma parte essa passagem ocorreu no quadro do laissez-faire: foi sempre o resultado de uma política deliberadamente concebida com esse fim. O que interessa assinalar é que a linha demarcatória tendeu a acentuar-se. Como a industrialização em cada época se molda em função do grau de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo, o esforço relativo requerido para dar os primeiros passos tende a crescer com o tempo. Mais ainda: uma vez que o atraso relativo alcança certo ponto, o processo de industrialização sofre importantes modificações qualitativas. Já não se orienta ele para formar um sistema econômico nacional e sim para completar o sistema econômico internacional. Algumas indústrias surgem integradas a certas atividades exportadoras, e outras como complemento de atividades importadoras. De uma forma ou de outra, elas ampliam o grau de integração do sistema econômico internacional. Nas fases de crise deste último, procura-se reduzir o conteúdo de importações de certas atividades industriais, o que leva ocasionalmente à instalação de indústrias integradoras do sistema econômico no nível nacional. Assim, por um processo inverso, através de um esforço para reduzir a instabilidade resultante da forma de inserção na economia internacional, molda-se um sistema industrial com um maior ou menor grau de integração.”

 

 

“O que cria a diferença fundamental e dá origem à linha divisória entre desenvolvimento e subdesenvolvimento é a orientação dada à utilização do excedente engendrado pelo incremento de produtividade. A atividade industrial tende a concentrar grande parte do excedente em poucas mãos e a conservá-lo sob o controle do grupo social diretamente comprometido com o processo produtivo. Por outro lado, como o capital invertido na indústria está sendo constantemente renovado, a porta fica permanentemente aberta para a introdução de inovações. Dessa forma, um sistema industrial tende a crescer por suas próprias forças, a menos que seja submetido a insuficiência de demanda efetiva. Explica-se, assim, que aqueles países que procuraram criar um sistema econômico nacional, na segunda fase da evolução do capitalismo industrial, hajam protegido atividades agrícolas e outras, que não ofereciam “vantagens comparativas”. Mediante essa proteção eles asseguravam demanda ao setor industrial, compensando amplamente com incrementas de produtividade neste setor o que perdiam nas demais atividades “protegidas”.

Nos países em que as vantagens comparativas assumem a forma de especialização na exportação de produtos primários (particularmente os produtos agrícolas), o excedente adicional assume a forma de um incremento das importações. Como a especialização não requer nem implica modificações nos métodos produtivos, e a acumulação se realiza com recursos locais (abertura de terras, estradas e construções rurais, crescimento de rebanho etc.), o incremento da capacidade para importar permanece disponível para ser utilizado na aquisição de bens de consumo. Dessa forma, é pelo lado da demanda de bens finais de consumo que esses países se inserem mais profundamente na civilização industrial. Esse dado é fundamental para compreender o sentido que neles tomará, em fase subsequente, o processo de industrialização. Não é minha intenção abordar aqui, em detalhe, o problema da especificidade dessa industrialização fundada na chamada “substituição de importações”; limitar-me-ei a assinalar que ela tende a reproduzir em miniatura sistemas industriais apoiados em um processo muito mais amplo de acumulação de capital. Na prática, essa miniaturização assume a forma de instalação no país em questão de uma série de subsidiárias de empresas dos países cêntricos, o que reforça a tendência para reprodução de padrões de consumo de sociedades de muito mais elevado nível de renda média. Daí resulta a conhecida síndrome de tendência à concentração da renda, tão familiar a todos os que estudam a industrialização dos países subdesenvolvidos.

 

 

“A tendência à concentração que criou em certos ramos situações de virtual monopólio provocou reações inversas de defesa do interesse público, como as leis antitruste do fim do século passado. Fechada a porta ao monopólio, foi necessário desenvolver formas de coordenação mais sutis. O oligopólio constitui o coroamento dessa evolução: ele permite que um pequeno grupo de grandes firmas criem barreiras à entrada de outras em um setor de atividade econômica e administrem conjuntamente os preços de certos produtos, conservando, contudo, autonomia financeira, tecnológica e administrativa. A administração dos preços cria vantagem relativa para as empresas que mais inovam tanto em processos produtivos quanto na introdução de novos produtos em determinado setor. A diferença da concorrência tradicional de preços, que se traduz em redução dos lucros, debilitamento financeiro, fechamento de fábricas ou, no caso de que se imponha um monopolista, em elevação de preços e redução de demanda, o mundo dos oligopólios se assemelha muito mais a uma corrida em que, salvo acidente, todos alcançam o objetivo final, sendo maior a recompensa dos que chegam na frente. É um esporte ao qual só têm acesso campeões, como as finais de Wimbledon.”

 

 

“A forma oligopolista de coordenação de decisões, graças à sua enorme flexibilidade, pôde ser transplantada para o espaço semi-unificado que se está constituindo no centro do sistema capitalista. Favorecendo por todas as formas a inovação, o oligopólio constitui poderoso instrumento de expansão econômica. Graças à liberdade de ação de que vêm gozando as firmas oligopólicas, o comércio de produtos manufaturados entre os países cêntricos cresceu com extraordinária rapidez no correr dos últimos decênios. Por outro lado, a enorme capacidade financeira que essas firmas tendem a acumular leva-as a buscar a diversificação, dando origem ao conglomerado internacional, que é a forma mais avançada da empresa moderna.

À primeira vista, pode parecer que a grande empresa deriva sua força principalmente das economias de escala de produção. Isso é apenas em parte verdade. As economias de escala são fundamentais na metalurgia, na química básica, papel e outras indústrias de processo contínuo e também ali onde a mão-de-obra é utilizada de forma intensiva e o trabalho pode ser organizado em cadeia. Tudo isso responde apenas por uma parte do enorme processo de concentração da indústria moderna. A sua grande força deriva de que ela trabalha em mercados organizados, está em condições de administrar os preços e, portanto, de se assegurar autofinanciamento e poder planejar suas atividades a longo prazo. Mas não há dúvida de que foram as indústrias do primeiro tipo que constituíram o campo experimental em que se desenvolveram as técnicas oligopolistas. Isso porque, onde as economias de escala são importantes, as imobilizações de capital são consideráveis, o que facilita a criação de barreiras à entrada de novos sócios no clube. Somente quando essas barreiras são sólidas é possível administrar preços e planejar a longo prazo. Demais, nesse tipo de indústria é muito mais difícil manter ocultos os planos de expansão. Por último, nas indústrias que produzem artigos homogêneos, os custos de produção são relativamente transparentes, na medida em que as técnicas são conhecidas. É natural, portanto, que hajam sido as empresas desse grupo as primeiras que se organizaram internacionalmente como oligopólios. E foi a evolução no país cêntrico da empresa oligopólica internacional produtora de insumos industriais que deu origem a uma das primeiras famílias de empresas diversificadas. Com efeito, à medida que as grandes empresas internacionais se foram capacitando para administrar os preços dos metais não-ferrosos, tornou-se interessante para elas transformarem-se em grandes utilizadoras desses metais. Por outro lado, para planejar a produção de cobre a longo prazo era necessário conhecer a evolução da economia do alumínio, por exemplo. Daí a emergência de novas formas de oligopólio visando a coordenar a economia não de um produto, mas de um conjunto de produtos até certo ponto substituíveis. Exemplo claro dessa evolução é dado pelas grandes companhias de petróleo: elas tenderam a diversificar-se no campo da petroquímica e da enorme família de indústrias que daí parte; mas também procuraram instalar-se nos setores concorrentes, do carvão a energia atômica.

Se observamos em conjunto as duas linhas de diversificação, a vertical e a horizontal, vemos que uma empresa que se expande nessas duas direções tende a ser levada a controlar atividades econômicas na aparência totalmente desconectadas umas das outras. A partir de certo momento, as vantagens da diversificação passam a ser estritamente de caráter financeiro, pois o excesso de liquidez de um setor pode ser utilizado noutro, ocasionalmente mais dinâmico. Ora, esse tipo de coordenação pode ser obtida por meio de instituições financeiras, por definição muito mais flexíveis. Esse processo evolutivo tende, portanto, a levar a uma coordenação financeira, através de instituições bancárias e semelhantes, e a uma coordenação oligopolista, no plano operacional.

As observações que vimos de fazer se baseiam na observação da estrutura econômica norte-americana. Muito menos informação dispomos acerca das formas que estão assumindo os oligopólios no espaço econômico, mais heterogêneo, em processo de unificação no centro da economia capitalista. Sabemos, sim, que os recursos financeiros postos à disposição das grandes empresas cresceram consideravelmente, que os sistemas bancários nacionais europeus passaram por um rápido e drástico processo de reestruturação em base regional e que o sistema bancário norte-americano se expandiu internacionalmente de forma vertiginosa. Também sabemos que as grandes empresas operam internacionalmente através de centros de decisão que escapam, em grande medida, ao controle dos governos nacionais dos respectivos países.

A evolução estrutural dos países cêntricos teria necessariamente de repercutir nas relações econômicas internacionais. Neste terreno, mais que em qualquer outro, a grande empresa leva vantagem. Com efeito, somente ela está em condições de administrar recursos aplicados simultaneamente em diversos países. É natural, portanto, que as antigas transações internacionais, organizadas por intermediários que especulavam com estoques ou jogavam nas bolsas de mercadorias, venham sendo progressivamente substituídas por transações entre empresas pertencentes a um grupo, cujas atividades estão articuladas. À medida que as atividades econômicas foram sendo organizadas dentro dos países cêntricos para permitir um planejamento das atividades das empresas a mais longo prazo, impôs-se a necessidade de também planejar as transações internacionais mediante contratos de suprimento a longo prazo, instalação de subsidiárias ou outras formas de articulação.

Operando simultaneamente em vários países e realizando transações internacionais entre membros de um mesmo grupo, as grandes empresas tenderam a desenvolver sofisticadas técnicas de administração de preços, que exigem na prática uma grande disciplina dentro dos oligopólios. O mesmo produto pode ser vendido a preços diversos em vários países, independentemente dos custos locais de produção, e os preços praticados nas transações internacionais dentro de um mesmo grupo são fixados tendo em conta as diversidades de políticas fiscais, os problemas cambiais etc. Essas técnicas são praticadas no quadro dos oligopólios, portanto não devem desorganizar os mercados nem impedir o crescimento destes. O interesse particular que apresenta o seu estudo reside em que elas permitem entrever a verdadeira significação da grande empresa dentro da economia capitalista moderna.

O traço mais característico do capitalismo na sua fase evolutiva atual está em que ele prescinde de um Estado, nacional ou multinacional, com a pretensão de estabelecer critérios de interesse geral disciplinadores do conjunto das atividades econômicas. Não que os Estados se preocupem menos, hoje em dia, com o interesse coletivo. À medida que as economias ganharam em estabilidade, a ação do Estado no plano social pôde ampliar-se. Mas, como tanto a estabilidade quanto a expansão dessas economias dependem fundamentalmente das transações internacionais e estas estão sob o controle das grandes empresas, as relações dos Estados nacionais com estas últimas tenderam a ser relações de poder. Em primeiro lugar, a grande empresa controla a inovação — a introdução de novos processos e novos produtos — dentro das economias nacionais, certamente o principal instrumento de expansão internacional; em segundo lugar, elas são responsáveis por grande parte das transações internacionais e detêm praticamente a iniciativa nesse terreno; em terceiro lugar, operam internacionalmente sob orientação que escapa em grande parte à ação isolada de qualquer governo; e, em quarto, mantêm uma grande liquidez fora do controle dos bancos centrais e têm fácil acesso ao mercado financeiro internacional.

O que dissemos no parágrafo anterior deve ser entendido não como declínio da atividade política, mas como transformação das funções dos Estados e emergência de nova forma de organização política, cujo perfil ainda se está definindo. Não se necessita muita perspicácia para perceber que, a partir do segundo conflito mundial, o sistema capitalista operou com unidade de comando político, apoiado em um sistema unificado de segurança. A existência dessa relativa unidade de comando político se deve a rápida reconstrução das economias da Europa ocidental e do Japão, o processo de “descolonização”, a organização do Mercado Comum Europeu, a ação persistente do GATT visando ao desarmamento tarifário, os grandes movimentos de capital que permitiram às grandes empresas adquirir a preeminência internacional, a aceitação do padrão-dólar como substituto do antigo padrão-ouro. A dificuldade para entender esse processo está em que o raciocínio analógico muito pouco nos ajuda neste caso. É perfeitamente claro que a tutela política norte-americana foi um resultado “natural” do último conflito mundial. Que o maior sacrifício humano e econômico nesse conflito haja cabido à União Soviética e que a destruição do poder militar e político da Alemanha e do Japão haja beneficiado os Estados Unidos dentro do campo capitalista são dados da história que devemos aceitar como tais. O que interessa assinalar é que, estabelecida a preeminência política norte-americana, criaram-se condições para que se dessem profundas modificações estruturais no sistema capitalista. Não se pode afirmar que essas modificações hajam sido desejadas e muito menos planejadas pelos centros políticos ou econômicos dos Estados Unidos. A verdade é que delas resultou um crescimento econômico muito mais intenso e uma elevação de níveis de vida relativamente muito maior na Europa ocidental e no Japão. Aparentemente, os norte-americanos superestimaram a vantagem relativa que já haviam obtido no campo econômico, ou superestimaram as ameaças de subversão social e a capacidade da União Soviética para ampliar a sua esfera de influência. Em todo caso, eles organizaram um sistema de segurança abrangente do conjunto do mundo capitalista e por essa forma exerceram uma efetiva tutela política sobre os Estados nacionais que formam esse mundo.”

 

 

“As relações comerciais entre países cêntricos e periféricos, mais ainda do que entre países cêntricos, transformaram-se progressivamente em operações internas das grandes empresas.”

 

 

“Não havendo conhecido a fase de formação de um sistema econômico nacional dotado de relativa autonomia — fase que permitiu integrar as estruturas internas e homogeneizar a tecnologia —, as economias periféricas conhecem um processo de agravação das disparidades internas à medida que se industrializam guiadas pela substituição de importações. Fizemos referência a esse fato, consequência inelutável da tentativa de reprodução em um país pobre das formas de vida de países que já alcançaram níveis muito mais altos de acumulação de capital. Ora, esse tipo de industrialização, que em períodos anteriores tropeçava em obstáculos consideráveis criados pela falta de capitais, pela dificuldade de acesso à tecnologia, pela pequenez do mercado interno, realiza-se atualmente com extraordinária rapidez graças à cooperação dos oligopólios internacionais. Utilizando tecnologia amortizada, algumas vezes equipamentos já também amortizados e mobilizando capital local, as grandes empresas estão em condições de instalar indústrias na maior parte dos países da periferia, em particular se essas indústrias se integram parcialmente com atividades de importação.

Sobra dizer que a industrialização que atualmente se realiza na periferia sob o controle das grandes empresas é processo qualitativamente distinto da industrialização que, em etapa anterior, conheceram os países cêntricos e, ainda mais, da que nestes prossegue no presente. O dinamismo econômico no centro do sistema decorre do fluxo de novos produtos e da elevação dos salários reais que permite a expansão do consumo de massa. Em contraste, o capitalismo periférico engendra o mimetismo cultural e requer permanente concentração da renda a fim de que as minorias possam reproduzir as formas de consumo dos países cêntricos. Esse ponto é fundamental para o conhecimento da estrutura global do sistema capitalista. Enquanto no capitalismo cêntrico a acumulação de capital avançou no correr do último século, com inegável estabilidade na repartição da renda, funcional como social, no capitalismo periférico a industrialização vem provocando crescente concentração.

A evolução do sistema capitalista, no último quarto de século, caracterizou-se por um processo de homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, dentro da periferia, separa uma· minoria privilegiada e as grandes massas da população. Esses processos não são independentes uns dos outros: devem ser considerados dentro de um mesmo quadro evolutivo. A integração do centro permitiu intensificar a sua taxa de crescimento econômico, o que responde em grande parte pela ampliação do fosso que o separa da periferia.”

 

 

“Pouca dúvida existe, entretanto, de que a elevação das taxas de crescimento está ligada às economias de escala, ao intenso intercâmbio tecnológico e ao movimento de capitais que acompanharam o processo de integração das economias cêntricas. Sem o esforço simultâneo de maior ordenação interna, a nível nacional, a expansão internacional sob a égide das grandes empresas teria, muito provavelmente, provocado desajustes locais, maior concentração geográfica da atividade econômica e, possivelmente, reações no plano político que quiçá viessem a retardar o processo de integração cêntrica. É sabido, por exemplo, que o forte dinamismo do setor externo dá origem a tensões internas que seriam particularmente graves se essas economias não houvessem desenvolvido técnicas tão sofisticadas de coordenação a nível interno. Dessa forma, também se pode afirmar que esse avanço da coordenação, ao nível interno, acelerou a integração no nível internacional. Em síntese: a ação dos Estados nacionais, no centro do sistema, ampliou-se em determinadas direções para assegurar a estabilidade interna, sem a qual as fricções no plano internacional seriam inevitáveis; mas, por outro lado, modificou-se qualitativamente, a fim de adaptar-se à atuação das grandes empresas estruturadas em oligopólios, que têm a iniciativa no plano tecnológico e são o verdadeiro elemento motor no plano internacional”.

 

 

“A conclusão geral que surge é que a hipótese de extensão ao conjunto do sistema capitalista das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos não têm cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema. E é essa a razão pela qual uma ruptura cataclísmica, num horizonte previsível, carece de verossimilhança. O interesse principal do modelo que leva a essa previsão de ruptura cataclísmica está em que ele proporciona uma demonstração cabal de que o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana. Temos assim a prova cabal de que o desenvolvimento econômico — a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos — é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas, como desconhecer que essa ideia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios para legitimar a destruição de formas de culturas arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela, tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abrem ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos, como são os investimentos, as exportações e o crescimento. A importância principal do modelo de The limits to growth é haver contribuído, ainda que não haja sido o seu propósito, para destruir esse mito, seguramente um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos dentro da nova estrutura do sistema capitalista.”

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