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segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★★★

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ISBN: 978-85-7164-495-3

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Páginas: 312

Sinopse: Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma “treva branca” que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas.

O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti.

Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu — “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.



“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

 

 

“A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca.”

 

 

É desta massa que nós somos feitos? metade de indiferença e metade de ruindade.”

 

 

“Mas esta cegueira é tão anormal, tão fora do que a ciência conhece, que não poderá durar sempre, E se fôssemos ficar assim para o resto da vida, Nós, Toda a gente, Seria horrível, um mundo todo de cegos, Não quero nem imaginar.”

 

 

“Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos. nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes nenhum cão reconhece outro cão ou se lhe dá a conhecer. pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando.”

 

 

“Se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.”

 


“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”

 

 

“Baixinho, como de costume, para não descobrir o segredo da sua presença ali, a mulher do médico sussurrou ao ouvido do marido, Talvez tenha sido também teu doente, é um homem de idade, calvo, de cabelos brancos, e traz uma venda preta num dos olhos, lembro-me de que falaste dele, Que olho, O esquerdo, Deve de ser ele. O médico avançou para a coxia e disse, levantando um pouco a voz, Gostaria de poder tocar a pessoa que acabou de se juntar a nós, peço-lhe que venha andando nesta direcção, eu irei ao seu encontro. Toparam-se a meio caminho, os dedos com os dedos, como duas formigas que deveriam reconhecer-se pelos manejos das antenas, não será assim neste caso, o médico pediu licença, com as mãos tenteou a cara do velho, encontrou rapidamente a venda, Não há dúvida, era o último que nos faltava aqui, o paciente da venda preta, exclamou, Que quer dizer, quem é o senhor, perguntou o velho, Sou, era o seu oftalmologista, lembra-se, estivemos a combinar a data da sua operação à catarata, Como foi que me reconheceu, Sobretudo pela voz, a voz é a vista de quem não vê, Sim, a voz, também estou a reconhecer a sua, quem nos diria, senhor doutor, agora já não é preciso que me opere, Se há remédio para isto, precisamos ambos dele, Recordo-me de o senhor doutor me ter dito que depois de operado nem iria reconhecer o mundo em que vivia, nesta altura sabemos quanta razão tinha.”

 

 

“Excluiu o Governo, portanto, a hipótese, primeiramente ventilada, de que o país se encontrasse sob a acção de uma epidemia sem precedentes conhecidos, provocada por um agente mórbido ainda não identificado, de efeito instantâneo, com ausência total de sinais prévios de incubação ou de latência. Tratar-se-ia, pois, de acordo com a nova opinião científica e a consequente e actualizada interpretação administrativa, de uma casual e desafortunada concomitância temporal de circunstâncias também por enquanto não averiguadas e em cuja exaltação patogénica já era possível, acentuava o comunicado do Governo, a partir do tratamento dos dados disponíveis, que indicam a proximidade de uma clara curva de resolução, observar indícios tendenciais de esgotamento. Um comentador de televisão teve o rasgo de encontrar a metáfora justa quando comparou a epidemia, ou fosse lá o que fosse, a uma flecha lançada para o alto, a qual, ao atingir o acúmen da ascensão, se detém um momento, como suspensa, e logo começa a descrever a obrigatória curva descendente, que, querendo-o Deus, com esta invocação regressava o comentador à trivialidade das trocas humanas e à epidemia propriamente dita, a gravidade tratará de acelerar, até que desapareça o terrível pesadelo que nos atormenta, meia dúzia de palavras estas que constantemente apareciam nos distintos meios de comunicação social, os quais sempre acabavam por formular o piedoso voto de que os infelizes cegos viessem a recuperar em breve a visão perdida, prometendo-lhes, entretanto, a solidariedade de todo o corpo social organizado, tanto o oficial quanto o privado. Num passado remoto, razões e metáforas semelhantes haviam sido traduzidas pelo impertérrito optimismo da gente do comum em ditérios como este, Não há bem que sempre dure, nem mal que ature, ou, em versão literária, Assim como não há bem que dure sempre, também não há mal que sempre cure, máximas supremas de quem teve tempo pare aprender com os baldões da vida e da fortuna, e que, transportadas pare a terra dos cegos, deverão ser lidas como segue, Ontem vimos, hoje não vemos, amanhã veremos, com uma ligeira entoação interrogativa no terço final da frase, como se a prudência, no último instante, tivesse decidido, pelo sim, pelo não, acrescentar a reticência de uma dúvida à esperançadora conclusão.”

 

 

“Provavelmente, só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são.”

 

 

O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira.”

 

 

Estes cegos, se não lhes acudirmos, não tardarão a transformar-se em animais, pior ainda, em animais cegos.”

 

 

“Há que dar remédio a este horror, não aguento, não posso continuar a fingir que não vejo, Pensa nas consequências, o mais certo é que depois tentem fazer de ti uma escrava, um pau-mandado, terás de atender a todos e a tudo, exigir-te-ão que os alimentes, que os laves, que os deites e os levantes, que os leves daqui para ali, que os assoes e lhes seques as lágrimas, gritarão por ti quando estiveres a dormir, insultar-te-ão se tardares, E tu, como queres tu que continue a olhar para estas misérias, tê-las permanentemente diante dos olhos, e não mexer um dedo para ajudar, O que fazes já é muito, Que faço eu, se a minha maior preocupação é evitar que alguém se aperceba de que vejo, Alguns irão odiar-te por veres, não creias que a cegueira nos tornou melhores, Também não nos tornou piores, Vamos a caminho disso, vê tu só o que se passa quando chega a altura de distribuir a comida, Precisamente, uma pessoa que visse poderia tomar a seu cargo a divisão dos alimentos por todos os que estão aqui, fazê-lo com equidade, com critério, deixaria de haver protestos, acabariam essas disputas que me põem louca, tu não sabes o que é ver dois cegos a lutarem, Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam, Amanhã vou dizer-lhes que vejo, Oxalá não venhas a ter de arrepender-te, Amanhã lhes direi, fez uma pausa e acrescentou, Se não tiver eu finalmente entrado também nesse mundo.”

 

 

“Com o mal das minhas vizinhas posso eu bem, palavras que nenhuma disse, mas que todas pensaram, na verdade ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra.”

 

 

“Pouco a pouco foram regressando as forças. As lágrimas continuavam a correr, mas lentas, serenas, como diante de um irremediável. Levantou-se a custo. Tinha sangue nas mãos e na roupa, e subitamente o corpo exausto avisou-a de que estava velha, Velha e assassina, pensou, mas sabia que se fosse necessário tornaria a matar, E quando é que é necessário matar, perguntou-se a si mesma enquanto ia andando na direcção do átrio, e a si mesma respondeu, Quando já está morto o que ainda é vivo.”

 

 

“Escuta, tu sabes muito mais do que eu, ao pé de ti não passo duma ignorante, mas o que penso é que já estamos mortos, estamos cegos porque estamos mortos, ou então, se preferes que diga isto doutra maneira, estamos mortos por que estamos cegos, dá no mesmo, Eu continuo a ver, Felizmente para ti, felizmente para o teu marido, para mim, para os outros, mas não sabes se continuarás a ver, no caso de vires a cegar tornar-te-ás igual a nós, acabaremos todos como a vizinha de baixo, Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã, se estiver cega, Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam, Não podes guiar nem dar de comer a todos os cegos do mundo, Deveria, Mas não podes, Ajudarei no que estiver ao meu alcance, Bem sei que o farás, se não fosses tu talvez já não estivesse viva, E agora não quero que morras, Devo ficar, é a minha obrigação, esta é a minha casa, quero que os meus pais me encontrem se voltarem, Se voltarem, tu mesma o disseste, e falta saber se então eles ainda serão os teus pais, Não compreendo, Disseste que a vizinha de baixo tinha sido boa pessoa, Coitada, Coitados dos teus pais, coitada de ti, quando se encontrarem, cegos de olhos e cegos de sentimentos, porque os sentimentos com que temos vivido e que nos fizeram viver como éramos, foi de termos olhos que nasceram, sem olhos os sentimentos vão tornar-se diferentes, não sabemos como, não sabemos quais, tu dizes que estamos mortos porque estamos cegos, aí está, Amas o teu marido, Sim, como a mim mesma, mas se eu cegar, se depois de cegar deixar de ser quem tinha sido, quem serei então para poder continuar a amá-lo, e com que amor, Dantes, quando víamos, também havia cegos, Poucos em comparação, os sentimentos em uso eram os de quem via, portanto os cegos sentiam com os sentimentos alheios, não como cegos que eram, agora, sim, o que está a nascer são os autênticos sentimentos dos cegos, e ainda vamos no princípio, por enquanto ainda vivemos da memória do que sentíamos, não precisas ter olhos para saberes como a vida já é hoje.”

 

 

“Foi à mesa que a mulher do médico expôs o seu pensamento, Chegou a altura de decidirmos o que devemos fazer, estou convencida de que toda a gente está cega, pelo menos comportavam-se como tal as pessoas que vi até agora, não há água, não há electricidade, não há abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve de ser isto, Haverá um governo, disse o primeiro cego, Não creio, mas, no caso de o haver, será um governo de cegos a quererem governar cegos, isto é, o nada a pretender organizar o nada, Então não há futuro, disse o velho da venda preta, Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como poderemos viver neste presente, Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse, Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos, mas então deixará de ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se considerará ainda tão humano como antes cria ser.”

 

 

“Disseste que há grupos organizados de cegos, observou o médico, isso significa que estão a ser inventadas maneiras novas de viver, não é forçoso que acabemos destroçados, como prevês, Não sei até que ponto estarão realmente organizados, só os vejo andarem por aí à procura de comida e de sítio para dormir, nada mais, Regressámos à horda primitiva, disse o velho da venda preta, com a diferença de que não somos uns quantos milhares de homens e mulheres numa natureza imensa e intacta, mas milhares de milhões num mundo descamado e exaurido, E cego, acrescentou a mulher do médico, quando começar a tornar-se difícil encontrar água e comida, o mais certo é que estes grupos se desagreguem, cada pessoa pensará que sozinha poderá sobreviver melhor, não terá de repartir com outros, o que puder apanhar é seu, de ninguém mais, Os grupos que por aí existem devem ter chefes, alguém que mande e organize, lembrou o primeiro cego, Talvez, mas neste caso tão cegos estão os que mandem como os que forem mandados.”

 

 

“Dos olhos cegos saem-lhe duas lágrimas, pela primeira vez perguntou se tinha alguma razão para continuar a viver. Não achou resposta, as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível.”

 

 

“Não nos esqueçamos do que foi a nossa vida durante o tempo que estivemos internados, descemos todos os degraus da indignidade, todos, até atingirmos a abjecção, embora de maneira diferente pode suceder aqui o mesmo, lá ainda tínhamos a desculpa da abjecção dos de fora, agora não, agora somos todos iguais perante o mal e o bem, por favor, não me perguntem o que é o bem e o que é o mal, sabíamo-lo de cada vez que tivemos de agir no tempo em que a cegueira era uma excepção, o certo e o errado são apenas modos diferentes de entender a nossa relação com os outros, não a que temos com nós próprios, nessa não há que fiar, perdoem-me a prelecção moralística, é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o, e agora ponto final na dissertação, vamos comer. Ninguém fez perguntas, o médico só disse, Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma, A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta que se trata de pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.”

 

 

Tanto nos custa a ideia de que temos de morrer, disse a mulher do médico, que sempre procuramos arranjar desculpas para os mortos, é como se antecipadamente estivéssemos a pedir que nos desculpem quando a nossa vez chegar.”

 

 

“Contentar-se com o que se vai tendo é o mais natural quando se está cego, disse a mulher do médico, Como foi que viveram desde que principiou a epidemia, Saímos do internamento há três dias, Ah, são dos que foram postos de quarentena, Sim, Foi duro, Seria dizer pouco, Horrível, O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos, Ou temo-los, mas deixemos de usar as palavras que os expressam, E portanto perdemo-los.”

 

 

O tempo estava claro, parecia que as chuvas tinham acabado, e o sol, ainda que pálido, já começava a sentir-se na pele, Não sei como poderemos continuar a viver se o calor apertar, disse o médico, todo este lixo a apodrecer por aí, os animais mortos, talvez mesmo pessoas, deve haver pessoas mortas dentro das casas, o mal é não estarmos organizados, devia haver uma organização em cada prédio, em cada rua, em cada bairro, Um governo, disse a mulher, Uma organização, o corpo também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização, E como poder uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, Organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos. Terás razão, talvez, mas a experiência desta cegueira só nos trouxe morte e miséria, os meus olhos, tal como o teu consultório, não serviram para nada, Graças aos teus olhos é que estamos vivos, disse a rapariga dos óculos escuros, Também o estaríamos se eu fosse cega, o mundo está cheio de cegos vivos, Eu acho que vamos morrer todos, é uma questão de tempo, Morrer sempre foi uma questão de tempo, disse o médico, Mas morrer só porque se está cego, não deve haver pior maneira de morrer, Morremos de doenças, de acidentes, de acasos, E agora morreremos também porque estamos cegos, quero dizer, morreremos de cegueira e de cancro, de cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida, de cegueira e de enfarte, as doenças poderão ser diferentes de pessoa para pessoa, mas o que verdadeiramente agora nos está a matar é a cegueira, Não somos imortais, não podemos escapar à morte, mas ao menos devíamos não ser cegos, disse a mulher do médico, Como, se esta cegueira é concreta e real, disse o médico, Não tenho a certeza, disse a mulher, Nem eu, disse a rapariga dos óculos escuros.”

 


Compreendo o que queres dizer quando falas de estares a viver um sonho. Sentou-se à secretária, pousou as mãos no tampo de vidro coberto de pó, depois disse, com um sorriso triste e irónico, como se se dirigisse a alguém que estivesse na sua frente, Pois não, senhor doutor, tenho muita pena, mas o seu caso não tem remédio, se quer que lhe dê um último conselho acolha-se ao dito antigo, tinham razão os que diziam que a paciência é boa para a vista, Não nos faças sofrer, disse a mulher, Desculpa-me, desculpa-me tu também, estamos no lugar onde dantes se faziam os milagres, agora nem sequer tenho as provas dos meus poderes mágicos, levaram-nas todas, O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver, disse a mulher, amparar a fragilidade da vida um dia após outro dia, como se fosse ela a cega, a que não sabe para onde ir, e talvez assim seja, talvez ela realmente não o saiba, entregou-se às nossas mãos depois de nos ter tornado inteligentes, e a isto a trouxemos, Falas como se também tu estivesses cega, disse a rapariga dos óculos escuros, De uma certa maneira, é verdade, estou cega da vossa cegueira, talvez pudesse começar a ver melhor se fôssemos mais os que veem, Temo que sejas como a testemunha que anda à procura do tribunal aonde a convocou não sabe quem e onde terá de declarar não sabe quê, disse o médico, O tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água esgota-se, a comida tornou-se veneno, seria esta a minha primeira declaração, disse a mulher do médico, E a segunda, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Abramos os olhos, Não podemos, estamos cegos, disse o médico, É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver, Mas eu quero ver, disse a rapariga dos óculos escuros, Não será por isso que verás, a única diferença era que deixarias de ser a pior cega, E agora vamo-nos, não há mais que ver aqui, disse o médico.

No caminho para a casa da rapariga dos óculos escuros atravessaram uma grande praça onde havia grupos de cegos que escutavam os discursos doutros cegos, à primeira vista nem uns nem outros pareciam cegos, os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamava-se ali o fim do mundo, a salvação penitencial, a visão do sétimo dia, o advento do anjo, a colisão cósmica, a extinção do sol, o espírito da tribo, a seiva da mandrágora, o unguento do tigre, a virtude do signo, a disciplina do vento, o perfume da lua, a reivindicação da treva, o poder do esconjuro, a marca do calcanhar, a crucificação da rosa, a pureza da linfa, o sangue do gato preto, a dormência da sombra, a revolta das marés, a lógica da antropofagia, a castração sem dor, a tatuagem divina, a cegueira voluntária, o pensamento convexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra, Aqui não há ninguém a falar de organização, disse a mulher do médico ao marido, Talvez a organização seja noutra praça, respondeu ele. Continuaram a andar. Um pouco adiante a mulher do médico disse, Há mais mortos no caminho do que é costume, É a nossa resistência que está a chegar ao fim, o tempo acaba-se, a água esgota-se, as doenças crescem, a comida torna-se veneno, tu o disseste antes, lembrou o médico, Quem sabe se entre estes mortos não estarão os meus pais, disse a rapariga dos óculos escuros, e eu aqui passando ao lado deles, e não os vejo, É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver, disse a mulher do médico.”

 

 

Quando a leitura terminou, noite dentro, o velho da venda preta disse, A isto estamos reduzidos, a ouvir ler, Eu não me queixo, poderia ficar assim para sempre, disse a rapariga dos óculos escuros, Nem eu me estou a queixar, só digo que apenas servimos para isto, para ouvir ler a história de uma humanidade que antes de nós existiu, aproveitamos o acaso de haver aqui ainda uns olhos lúcidos, os últimos que restam, se um dia eles se apagarem, não quero nem pensar, então o fio que nos une a essa humanidade partir-se-á, será como se estivéssemos a afastar-nos uns dos outros no espaço, para sempre, e tão cegos eles como nós, Enquanto puder, disse a rapariga dos óculos escuros, manterei a esperança, a esperança de vir a encontrar os meus pais, a esperança de que a mãe deste rapaz apareça, Esqueceste-te de falar da esperança de todos, Qual, A de recuperar a vista, Há esperanças que é loucura ter, Pois eu digo-te que se não fossem essas já eu teria desistido da vida, Dá-me um exemplo, Voltar a ver, Esse já conhecemos, dá-me outro, Não dou, Porquê, Não te interessa, E como sabes que não me interessa, que julgas tu conhecer de mim para decidires, por tua conta, o que me interessa e o que não me interessa, Não te zangues, não tive intenção de magoar-te, Os homens são todos iguais, pensam que basta ter nascido de uma barriga de mulher para saber tudo de mulheres, Eu de mulheres sei pouco, de ti nada, e quanto a homem, para mim, ao tempo que isso vai, agora sou um velho, e zarolho, além de cego, Não tens mais nada para dizeres contra ti, Muito mais, nem tu imaginas quanto a lista negra das auto-recriminações vai crescendo à medida que os anos passam, Nova sou eu, e já estou bem servida, Ainda não fizeste nada de verdadeiramente mau, Como podes sabê-lo, se nunca viveste comigo, Sim, nunca vivi contigo, Por que repetiste nesse tom as minhas palavras, Que tom, Esse, Só disse que nunca vivi contigo, O tom, o tom, não finjas que não compreendes, Não insistas, peço-te, Insisto, preciso saber, Voltamos às esperanças, Pois voltemos, O outro exemplo de esperança que me recusei a dar era esse, Esse, qual, A última auto-recriminação da minha lista, Explica-te, por favor, não entendo de charadas, O monstruoso desejo de que não venhamos a recuperar a vista, Porquê, Para continuarmos a viver assim, Queres dizer, todos juntos, ou tu comigo, Não me obrigues a responder, Se fosses só um homem poderias fugir à resposta, como todos fazem, mas tu mesmo disseste que és um velho, e um velho, se ter vivido tanto tem algum sentido, não deverá virar a cara à verdade, responde, Eu contigo, E por que queres tu viver comigo, Esperas que o diga diante de todos eles, Fizemos uns diante dos outros as coisas mais sujas, mais feias, mais repugnantes, com certeza não é pior o que tens para dizer-me, Já que o queres, então seja, porque o homem que eu ainda sou gosta da mulher que tu és, Custou assim tanto a fazer a declaração de amor, Na minha idade, o ridículo mete medo, Não foste ridículo, Esqueçamos isto, peço-te, Não tenciono esquecer nem deixar que esqueças, É um disparate, obrigaste-me a falar, e agora, E agora é a minha vez, Não digas nada de que te possas arrepender, lembra-te da lista negra, Se eu estiver a ser sincera hoje, que importa que tenha de arrepender-me amanhã, Cala-te, Tu queres viver comigo e eu quero viver contigo, Estás doida, Passaremos a viver juntos aqui, como um casal, e juntos continuaremos a viver se tivermos de nos separar dos nossos amigos, dois cegos devem poder ver mais do que um, É uma loucura, tu não gostas de mim, Que é isso de gostar, eu nunca gostei de ninguém, só me deitei com homens, Estás a dar-me razão, Não estou, Falaste de sinceridade, responde-me então se é mesmo verdade gostares de mim, Gosto o suficiente para querer estar contigo, e isto é a primeira vez que o digo a alguém, Também não mo dirias a mim se me tivesses encontrado antes por aí, um homem de idade, meio calvo, de cabelos brancos, com uma pala num olho e uma catarata no outro, A mulher que eu então era não o diria, reconheço, quem o disse foi a mulher que sou hoje, Veremos então o que terá para dizer a mulher que serás amanhã, Pões-me à prova, Que ideia, quem seria eu para pôr-te à prova, a vida é que decide essas coisas, Uma já ela decidiu.”

 

 

“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.”

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