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terça-feira, 6 de agosto de 2024

O mito do desenvolvimento econômico, de Celso Furtado

Editora: Paz e Terra

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 90

Sinopse: O mito do desenvolvimento econômico foi escrito no início dos anos 70, quando pela primeira vez se teve uma ideia aproximada das consequências, no plano ecológico, da planetarização do sistema econômico. A permanecer no estilo atual de desenvolvimento, a pressão sobre a base de recursos não-renováveis será tão grande que, ou ocorrerá uma catástrofe ecológica ou se aprofundará o processo da exclusão social, privando as grandes maiorias, particularmente nos países de terceiro mundo, dos benefícios de um autêntico desenvolvimento. Esta seria, portanto, uma simples miragem. A relação de dependência das economias periféricas com os países centrais inviabiliza qualquer tipo de desenvolvimento para os primeiros, visto que essa relação aumenta as disparidades entre esses dois grupos e entre ricos e pobres dentro dos países subdesenvolvidos. É nesse sentido que o economista Celso Furtado o qualifica de mito.



“Os mitos têm exercido uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham em compreender a realidade social. Do bon sauvage, com que sonhou Rousseau, à ideia milenária do desaparecimento do Estado, em Marx, do “princípio populacional” de Malthus à concepção walrasiana do equilíbrio geral, os cientistas sociais têm sempre buscado apoio em algum postulado enraizado num sistema de valores que raramente chegam a explicitar. O mito congrega um conjunto de hipóteses que não podem ser testadas. Contudo, essa não é uma dificuldade maior, pois o trabalho analítico se realiza a um nível muito mais próximo à realidade. A função principal do mito é orientar, num plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem a qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. Assim, os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo que lhe proporcionam conforto intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva.1

A literatura sobre desenvolvimento econômico do último quarto de século nos dá um exemplo meridiano desse papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos 90% do que aí encontramos se funda na ideia, que se dá por evidente, segundo a qual o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideraram a revolução industrial, pode ser universalizado. Mais precisamente: pretende-se que os padrões de consumo da minoria da humanidade, que atualmente vive nos países altamente industrializados, são acessíveis às grandes massas de população em rápida expansão que formam o chamado Terceiro Mundo. Essa ideia constitui, seguramente, uma prolongação do mito do progresso, elemento essencial na ideologia diretora da revolução burguesa, dentro da qual se criou a atual sociedade industrial.

Com o campo de visão da realidade delimitado por essa ideia diretora, os economistas passaram a dedicar o melhor de sua imaginação a conceber complexos esquemas do processo de acumulação de capital no qual o impulso dinâmico é dado pelo progresso tecnológico, enteléquia concebida fora de qualquer contexto social. Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano cultural, de um crescimento exponencial do estoque de capital. As grandes metrópoles modernas, com seu ar irrespirável, crescente criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da juventude na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho de progresso linear em que se embalavam os teóricos do crescimento. Menos atenção ainda se havia dado ao impacto no meio físico de um sistema de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados.”

1 Não é meu propósito abordar aqui a epistemologia das ciências sociais. Desde Dilthey sabemos que as ciências sociais “cresceram no meio da prática da vida”. (Cf. Wilhelm Dilthey, Introduction à l'étude des sciences humaines, Paris, 1942, p. 34.) E Max Weber demonstrou claramente como se complementam a “explicação compreensiva” e a “compreensão explicativa” dos processos sociais. O mito introduz no espírito um elemento discriminador que perturba o ato de compreensão, o qual consiste, segundo Weber, em “captar por interpretação o sentido ou o conjunto significativo que se tem em vista”. (Cf. Max Weber, Economie et société, Paris, 1971, t. I, p. 8.). Veja-se também J. Freud, Les théories des sciences humaines (Paris, 1973).

 

 

“No último quarto de século, foram elaborados complexos modelos de economias nacionais de dimensões relativamente reduzidas, mas amplamente abertas ao mundo exterior, como a da Holanda, ou de amplas dimensões e mais autocentradas, como a dos Estados Unidos. O conhecimento analítico proporcionado por esses modelos permitiu formular hipóteses sobre o comportamento a mais longo prazo de certas variáveis, particularmente da demanda de produtos considerados de valor estratégico pelo governo dos Estados Unidos. Esses estudos puseram em evidência o fato de que a economia norte-americana tende a ser crescentemente dependente de recursos não renováveis produzidos fora do país. E esta, seguramente, uma conclusão de grande importância , que está na base da política de crescente abertura da economia dos Estados Unidos e de fortalecimento das grandes empresas capazes de promover a exploração de recursos naturais em escala planetária. As projeções a mais longo prazo, feitas no quadro analítico a que acabamos de nos referir, baseiam-se implicitamente na ideia de que a fronteira externa do sistema é ilimitada. O conceito de reservas dinâmicas, função do volume de investimentos programados e de hipóteses sobre o progresso das técnicas, serve para tranquilizar os espíritos mais indagadores. Como a política de defesa dos recursos não reprodutíveis compete aos governos e não às empresas que os exploram, e como as informações e a capacidade para apreciá-las estão principalmente com as empresas, o problema tende a ser perdido de vista.”

 

 

“A importância do estudo feito para o Clube de Roma deriva exatamente do fato de que nele foi abandonada a hipótese de um sistema aberto no que concerne à fronteira dos recursos naturais. Não se encontra aí qualquer preocupação com respeito à crescente dependência dos países altamente industrializados vis-à-vis dos recursos naturais dos demais países, e muito menos com as consequências para estes últimos do uso predatório pelos primeiros de tais recursos. A novidade está em que o sistema pôde ser fechado em escala planetária, numa primeira aproximação, no que se refere aos recursos não renováveis. Uma vez fechado o sistema, os autores do estudo formularam-se a seguinte questão: que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegarem efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou, alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso.”

 

 

“A evidência à qual não podemos escapar é que em nossa civilização a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico. O economista limita o seu campo de observação a processos parciais, pretendendo ignorar que esses processos provocam crescentes modificações no mundo físico.3 A maioria deles transforma energia livre ou disponível, sobre a qual o homem tem perfeito comando, em energia não disponível. Demais das consequências de natureza diretamente econômica, esse processo provoca elevação da temperatura média de certas áreas do planeta cujas consequências a mais longo prazo dificilmente poderiam ser exageradas. A atitude ingênua consiste em imaginar que problemas dessa ordem serão solucionados necessariamente pelo progresso tecnológico, como se a atual aceleração do progresso tecnológico não estivesse contribuindo para agravá-los. Não se trata de especular se teoricamente a ciência e a técnica capacitam o homem para solucionar este ou aquele problema criado por nossa civilização. Trata-se apenas de reconhecer que o que chamamos de criação de valor econômico tem como contrapartida processos irreversíveis no mundo físico, cujas consequências tratamos de ignorar. Convém não perder de vista que na civilização industrial o futuro está em grande parte condicionado por decisões que já foram tomadas no passado e/ou que estão sendo tomadas no presente em função de um curto horizonte temporal. À medida em que avança a acumulação de capital, maior é a interdependência entre o futuro e o passado. Consequentemente, aumenta a inércia do sistema, e as correções de rumo tornam-se mais lentas ou exigem maior esforço.”

 

 

“A psicologia humana é tal que dificilmente podemos nos concentrar por muito tempo em problemas que superam um horizonte temporal relativamente curto.”

 

 

“Captar a natureza do subdesenvolvimento não é tarefa fácil: muitas são as suas dimensões, e as que são facilmente visíveis nem sempre são as mais significativas. Mas se algo sabemos com segurança é que subdesenvolvimento nada tem a ver com a idade de uma sociedade ou de um país. E também sabemos que o parâmetro para medi-lo é o grau de acumulação de capital aplicado aos processos produtivos e o grau de acesso ao arsenal de bens finais que caracterizam o que se convencionou chamar de estilo de vida moderno. Mesmo para o observador superficial parece evidente que o subdesenvolvimento está ligado a uma maior heterogeneidade tecnológica, a qual reflete a natureza das relações externas desse tipo de economia.”

 

 

“Por que este e não aquele país passou a linha demarcatória e entrou para o clube dos países desenvolvidos nessa segunda fase crucial da evolução do capitalismo industrial, que se situa entre os anos 1870 e o primeiro conflito mundial, é problema cuja resposta pertence mais à História do que à análise econômica. Em nenhuma parte essa passagem ocorreu no quadro do laissez-faire: foi sempre o resultado de uma política deliberadamente concebida com esse fim. O que interessa assinalar é que a linha demarcatória tendeu a acentuar-se. Como a industrialização em cada época se molda em função do grau de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo, o esforço relativo requerido para dar os primeiros passos tende a crescer com o tempo. Mais ainda: uma vez que o atraso relativo alcança certo ponto, o processo de industrialização sofre importantes modificações qualitativas. Já não se orienta ele para formar um sistema econômico nacional e sim para completar o sistema econômico internacional. Algumas indústrias surgem integradas a certas atividades exportadoras, e outras como complemento de atividades importadoras. De uma forma ou de outra, elas ampliam o grau de integração do sistema econômico internacional. Nas fases de crise deste último, procura-se reduzir o conteúdo de importações de certas atividades industriais, o que leva ocasionalmente à instalação de indústrias integradoras do sistema econômico no nível nacional. Assim, por um processo inverso, através de um esforço para reduzir a instabilidade resultante da forma de inserção na economia internacional, molda-se um sistema industrial com um maior ou menor grau de integração.”

 

 

“O que cria a diferença fundamental e dá origem à linha divisória entre desenvolvimento e subdesenvolvimento é a orientação dada à utilização do excedente engendrado pelo incremento de produtividade. A atividade industrial tende a concentrar grande parte do excedente em poucas mãos e a conservá-lo sob o controle do grupo social diretamente comprometido com o processo produtivo. Por outro lado, como o capital invertido na indústria está sendo constantemente renovado, a porta fica permanentemente aberta para a introdução de inovações. Dessa forma, um sistema industrial tende a crescer por suas próprias forças, a menos que seja submetido a insuficiência de demanda efetiva. Explica-se, assim, que aqueles países que procuraram criar um sistema econômico nacional, na segunda fase da evolução do capitalismo industrial, hajam protegido atividades agrícolas e outras, que não ofereciam “vantagens comparativas”. Mediante essa proteção eles asseguravam demanda ao setor industrial, compensando amplamente com incrementas de produtividade neste setor o que perdiam nas demais atividades “protegidas”.

Nos países em que as vantagens comparativas assumem a forma de especialização na exportação de produtos primários (particularmente os produtos agrícolas), o excedente adicional assume a forma de um incremento das importações. Como a especialização não requer nem implica modificações nos métodos produtivos, e a acumulação se realiza com recursos locais (abertura de terras, estradas e construções rurais, crescimento de rebanho etc.), o incremento da capacidade para importar permanece disponível para ser utilizado na aquisição de bens de consumo. Dessa forma, é pelo lado da demanda de bens finais de consumo que esses países se inserem mais profundamente na civilização industrial. Esse dado é fundamental para compreender o sentido que neles tomará, em fase subsequente, o processo de industrialização. Não é minha intenção abordar aqui, em detalhe, o problema da especificidade dessa industrialização fundada na chamada “substituição de importações”; limitar-me-ei a assinalar que ela tende a reproduzir em miniatura sistemas industriais apoiados em um processo muito mais amplo de acumulação de capital. Na prática, essa miniaturização assume a forma de instalação no país em questão de uma série de subsidiárias de empresas dos países cêntricos, o que reforça a tendência para reprodução de padrões de consumo de sociedades de muito mais elevado nível de renda média. Daí resulta a conhecida síndrome de tendência à concentração da renda, tão familiar a todos os que estudam a industrialização dos países subdesenvolvidos.

 

 

“A tendência à concentração que criou em certos ramos situações de virtual monopólio provocou reações inversas de defesa do interesse público, como as leis antitruste do fim do século passado. Fechada a porta ao monopólio, foi necessário desenvolver formas de coordenação mais sutis. O oligopólio constitui o coroamento dessa evolução: ele permite que um pequeno grupo de grandes firmas criem barreiras à entrada de outras em um setor de atividade econômica e administrem conjuntamente os preços de certos produtos, conservando, contudo, autonomia financeira, tecnológica e administrativa. A administração dos preços cria vantagem relativa para as empresas que mais inovam tanto em processos produtivos quanto na introdução de novos produtos em determinado setor. A diferença da concorrência tradicional de preços, que se traduz em redução dos lucros, debilitamento financeiro, fechamento de fábricas ou, no caso de que se imponha um monopolista, em elevação de preços e redução de demanda, o mundo dos oligopólios se assemelha muito mais a uma corrida em que, salvo acidente, todos alcançam o objetivo final, sendo maior a recompensa dos que chegam na frente. É um esporte ao qual só têm acesso campeões, como as finais de Wimbledon.”

 

 

“A forma oligopolista de coordenação de decisões, graças à sua enorme flexibilidade, pôde ser transplantada para o espaço semi-unificado que se está constituindo no centro do sistema capitalista. Favorecendo por todas as formas a inovação, o oligopólio constitui poderoso instrumento de expansão econômica. Graças à liberdade de ação de que vêm gozando as firmas oligopólicas, o comércio de produtos manufaturados entre os países cêntricos cresceu com extraordinária rapidez no correr dos últimos decênios. Por outro lado, a enorme capacidade financeira que essas firmas tendem a acumular leva-as a buscar a diversificação, dando origem ao conglomerado internacional, que é a forma mais avançada da empresa moderna.

À primeira vista, pode parecer que a grande empresa deriva sua força principalmente das economias de escala de produção. Isso é apenas em parte verdade. As economias de escala são fundamentais na metalurgia, na química básica, papel e outras indústrias de processo contínuo e também ali onde a mão-de-obra é utilizada de forma intensiva e o trabalho pode ser organizado em cadeia. Tudo isso responde apenas por uma parte do enorme processo de concentração da indústria moderna. A sua grande força deriva de que ela trabalha em mercados organizados, está em condições de administrar os preços e, portanto, de se assegurar autofinanciamento e poder planejar suas atividades a longo prazo. Mas não há dúvida de que foram as indústrias do primeiro tipo que constituíram o campo experimental em que se desenvolveram as técnicas oligopolistas. Isso porque, onde as economias de escala são importantes, as imobilizações de capital são consideráveis, o que facilita a criação de barreiras à entrada de novos sócios no clube. Somente quando essas barreiras são sólidas é possível administrar preços e planejar a longo prazo. Demais, nesse tipo de indústria é muito mais difícil manter ocultos os planos de expansão. Por último, nas indústrias que produzem artigos homogêneos, os custos de produção são relativamente transparentes, na medida em que as técnicas são conhecidas. É natural, portanto, que hajam sido as empresas desse grupo as primeiras que se organizaram internacionalmente como oligopólios. E foi a evolução no país cêntrico da empresa oligopólica internacional produtora de insumos industriais que deu origem a uma das primeiras famílias de empresas diversificadas. Com efeito, à medida que as grandes empresas internacionais se foram capacitando para administrar os preços dos metais não-ferrosos, tornou-se interessante para elas transformarem-se em grandes utilizadoras desses metais. Por outro lado, para planejar a produção de cobre a longo prazo era necessário conhecer a evolução da economia do alumínio, por exemplo. Daí a emergência de novas formas de oligopólio visando a coordenar a economia não de um produto, mas de um conjunto de produtos até certo ponto substituíveis. Exemplo claro dessa evolução é dado pelas grandes companhias de petróleo: elas tenderam a diversificar-se no campo da petroquímica e da enorme família de indústrias que daí parte; mas também procuraram instalar-se nos setores concorrentes, do carvão a energia atômica.

Se observamos em conjunto as duas linhas de diversificação, a vertical e a horizontal, vemos que uma empresa que se expande nessas duas direções tende a ser levada a controlar atividades econômicas na aparência totalmente desconectadas umas das outras. A partir de certo momento, as vantagens da diversificação passam a ser estritamente de caráter financeiro, pois o excesso de liquidez de um setor pode ser utilizado noutro, ocasionalmente mais dinâmico. Ora, esse tipo de coordenação pode ser obtida por meio de instituições financeiras, por definição muito mais flexíveis. Esse processo evolutivo tende, portanto, a levar a uma coordenação financeira, através de instituições bancárias e semelhantes, e a uma coordenação oligopolista, no plano operacional.

As observações que vimos de fazer se baseiam na observação da estrutura econômica norte-americana. Muito menos informação dispomos acerca das formas que estão assumindo os oligopólios no espaço econômico, mais heterogêneo, em processo de unificação no centro da economia capitalista. Sabemos, sim, que os recursos financeiros postos à disposição das grandes empresas cresceram consideravelmente, que os sistemas bancários nacionais europeus passaram por um rápido e drástico processo de reestruturação em base regional e que o sistema bancário norte-americano se expandiu internacionalmente de forma vertiginosa. Também sabemos que as grandes empresas operam internacionalmente através de centros de decisão que escapam, em grande medida, ao controle dos governos nacionais dos respectivos países.

A evolução estrutural dos países cêntricos teria necessariamente de repercutir nas relações econômicas internacionais. Neste terreno, mais que em qualquer outro, a grande empresa leva vantagem. Com efeito, somente ela está em condições de administrar recursos aplicados simultaneamente em diversos países. É natural, portanto, que as antigas transações internacionais, organizadas por intermediários que especulavam com estoques ou jogavam nas bolsas de mercadorias, venham sendo progressivamente substituídas por transações entre empresas pertencentes a um grupo, cujas atividades estão articuladas. À medida que as atividades econômicas foram sendo organizadas dentro dos países cêntricos para permitir um planejamento das atividades das empresas a mais longo prazo, impôs-se a necessidade de também planejar as transações internacionais mediante contratos de suprimento a longo prazo, instalação de subsidiárias ou outras formas de articulação.

Operando simultaneamente em vários países e realizando transações internacionais entre membros de um mesmo grupo, as grandes empresas tenderam a desenvolver sofisticadas técnicas de administração de preços, que exigem na prática uma grande disciplina dentro dos oligopólios. O mesmo produto pode ser vendido a preços diversos em vários países, independentemente dos custos locais de produção, e os preços praticados nas transações internacionais dentro de um mesmo grupo são fixados tendo em conta as diversidades de políticas fiscais, os problemas cambiais etc. Essas técnicas são praticadas no quadro dos oligopólios, portanto não devem desorganizar os mercados nem impedir o crescimento destes. O interesse particular que apresenta o seu estudo reside em que elas permitem entrever a verdadeira significação da grande empresa dentro da economia capitalista moderna.

O traço mais característico do capitalismo na sua fase evolutiva atual está em que ele prescinde de um Estado, nacional ou multinacional, com a pretensão de estabelecer critérios de interesse geral disciplinadores do conjunto das atividades econômicas. Não que os Estados se preocupem menos, hoje em dia, com o interesse coletivo. À medida que as economias ganharam em estabilidade, a ação do Estado no plano social pôde ampliar-se. Mas, como tanto a estabilidade quanto a expansão dessas economias dependem fundamentalmente das transações internacionais e estas estão sob o controle das grandes empresas, as relações dos Estados nacionais com estas últimas tenderam a ser relações de poder. Em primeiro lugar, a grande empresa controla a inovação — a introdução de novos processos e novos produtos — dentro das economias nacionais, certamente o principal instrumento de expansão internacional; em segundo lugar, elas são responsáveis por grande parte das transações internacionais e detêm praticamente a iniciativa nesse terreno; em terceiro lugar, operam internacionalmente sob orientação que escapa em grande parte à ação isolada de qualquer governo; e, em quarto, mantêm uma grande liquidez fora do controle dos bancos centrais e têm fácil acesso ao mercado financeiro internacional.

O que dissemos no parágrafo anterior deve ser entendido não como declínio da atividade política, mas como transformação das funções dos Estados e emergência de nova forma de organização política, cujo perfil ainda se está definindo. Não se necessita muita perspicácia para perceber que, a partir do segundo conflito mundial, o sistema capitalista operou com unidade de comando político, apoiado em um sistema unificado de segurança. A existência dessa relativa unidade de comando político se deve a rápida reconstrução das economias da Europa ocidental e do Japão, o processo de “descolonização”, a organização do Mercado Comum Europeu, a ação persistente do GATT visando ao desarmamento tarifário, os grandes movimentos de capital que permitiram às grandes empresas adquirir a preeminência internacional, a aceitação do padrão-dólar como substituto do antigo padrão-ouro. A dificuldade para entender esse processo está em que o raciocínio analógico muito pouco nos ajuda neste caso. É perfeitamente claro que a tutela política norte-americana foi um resultado “natural” do último conflito mundial. Que o maior sacrifício humano e econômico nesse conflito haja cabido à União Soviética e que a destruição do poder militar e político da Alemanha e do Japão haja beneficiado os Estados Unidos dentro do campo capitalista são dados da história que devemos aceitar como tais. O que interessa assinalar é que, estabelecida a preeminência política norte-americana, criaram-se condições para que se dessem profundas modificações estruturais no sistema capitalista. Não se pode afirmar que essas modificações hajam sido desejadas e muito menos planejadas pelos centros políticos ou econômicos dos Estados Unidos. A verdade é que delas resultou um crescimento econômico muito mais intenso e uma elevação de níveis de vida relativamente muito maior na Europa ocidental e no Japão. Aparentemente, os norte-americanos superestimaram a vantagem relativa que já haviam obtido no campo econômico, ou superestimaram as ameaças de subversão social e a capacidade da União Soviética para ampliar a sua esfera de influência. Em todo caso, eles organizaram um sistema de segurança abrangente do conjunto do mundo capitalista e por essa forma exerceram uma efetiva tutela política sobre os Estados nacionais que formam esse mundo.”

 

 

“As relações comerciais entre países cêntricos e periféricos, mais ainda do que entre países cêntricos, transformaram-se progressivamente em operações internas das grandes empresas.”

 

 

“Não havendo conhecido a fase de formação de um sistema econômico nacional dotado de relativa autonomia — fase que permitiu integrar as estruturas internas e homogeneizar a tecnologia —, as economias periféricas conhecem um processo de agravação das disparidades internas à medida que se industrializam guiadas pela substituição de importações. Fizemos referência a esse fato, consequência inelutável da tentativa de reprodução em um país pobre das formas de vida de países que já alcançaram níveis muito mais altos de acumulação de capital. Ora, esse tipo de industrialização, que em períodos anteriores tropeçava em obstáculos consideráveis criados pela falta de capitais, pela dificuldade de acesso à tecnologia, pela pequenez do mercado interno, realiza-se atualmente com extraordinária rapidez graças à cooperação dos oligopólios internacionais. Utilizando tecnologia amortizada, algumas vezes equipamentos já também amortizados e mobilizando capital local, as grandes empresas estão em condições de instalar indústrias na maior parte dos países da periferia, em particular se essas indústrias se integram parcialmente com atividades de importação.

Sobra dizer que a industrialização que atualmente se realiza na periferia sob o controle das grandes empresas é processo qualitativamente distinto da industrialização que, em etapa anterior, conheceram os países cêntricos e, ainda mais, da que nestes prossegue no presente. O dinamismo econômico no centro do sistema decorre do fluxo de novos produtos e da elevação dos salários reais que permite a expansão do consumo de massa. Em contraste, o capitalismo periférico engendra o mimetismo cultural e requer permanente concentração da renda a fim de que as minorias possam reproduzir as formas de consumo dos países cêntricos. Esse ponto é fundamental para o conhecimento da estrutura global do sistema capitalista. Enquanto no capitalismo cêntrico a acumulação de capital avançou no correr do último século, com inegável estabilidade na repartição da renda, funcional como social, no capitalismo periférico a industrialização vem provocando crescente concentração.

A evolução do sistema capitalista, no último quarto de século, caracterizou-se por um processo de homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, dentro da periferia, separa uma· minoria privilegiada e as grandes massas da população. Esses processos não são independentes uns dos outros: devem ser considerados dentro de um mesmo quadro evolutivo. A integração do centro permitiu intensificar a sua taxa de crescimento econômico, o que responde em grande parte pela ampliação do fosso que o separa da periferia.”

 

 

“Pouca dúvida existe, entretanto, de que a elevação das taxas de crescimento está ligada às economias de escala, ao intenso intercâmbio tecnológico e ao movimento de capitais que acompanharam o processo de integração das economias cêntricas. Sem o esforço simultâneo de maior ordenação interna, a nível nacional, a expansão internacional sob a égide das grandes empresas teria, muito provavelmente, provocado desajustes locais, maior concentração geográfica da atividade econômica e, possivelmente, reações no plano político que quiçá viessem a retardar o processo de integração cêntrica. É sabido, por exemplo, que o forte dinamismo do setor externo dá origem a tensões internas que seriam particularmente graves se essas economias não houvessem desenvolvido técnicas tão sofisticadas de coordenação a nível interno. Dessa forma, também se pode afirmar que esse avanço da coordenação, ao nível interno, acelerou a integração no nível internacional. Em síntese: a ação dos Estados nacionais, no centro do sistema, ampliou-se em determinadas direções para assegurar a estabilidade interna, sem a qual as fricções no plano internacional seriam inevitáveis; mas, por outro lado, modificou-se qualitativamente, a fim de adaptar-se à atuação das grandes empresas estruturadas em oligopólios, que têm a iniciativa no plano tecnológico e são o verdadeiro elemento motor no plano internacional”.

 

 

“A conclusão geral que surge é que a hipótese de extensão ao conjunto do sistema capitalista das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos não têm cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema. E é essa a razão pela qual uma ruptura cataclísmica, num horizonte previsível, carece de verossimilhança. O interesse principal do modelo que leva a essa previsão de ruptura cataclísmica está em que ele proporciona uma demonstração cabal de que o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana. Temos assim a prova cabal de que o desenvolvimento econômico — a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos — é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas, como desconhecer que essa ideia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios para legitimar a destruição de formas de culturas arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela, tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abrem ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos, como são os investimentos, as exportações e o crescimento. A importância principal do modelo de The limits to growth é haver contribuído, ainda que não haja sido o seu propósito, para destruir esse mito, seguramente um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos dentro da nova estrutura do sistema capitalista.”

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★★★

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ISBN: 978-85-7164-495-3

Análise em vídeo: Clique aqui

Páginas: 312

Sinopse: Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma “treva branca” que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas.

O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti.

Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu — “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.



“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

 

 

“A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca.”

 

 

É desta massa que nós somos feitos? metade de indiferença e metade de ruindade.”

 

 

“Mas esta cegueira é tão anormal, tão fora do que a ciência conhece, que não poderá durar sempre, E se fôssemos ficar assim para o resto da vida, Nós, Toda a gente, Seria horrível, um mundo todo de cegos, Não quero nem imaginar.”

 

 

“Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos. nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes nenhum cão reconhece outro cão ou se lhe dá a conhecer. pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando.”

 

 

“Se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.”

 


“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”

 

 

“Baixinho, como de costume, para não descobrir o segredo da sua presença ali, a mulher do médico sussurrou ao ouvido do marido, Talvez tenha sido também teu doente, é um homem de idade, calvo, de cabelos brancos, e traz uma venda preta num dos olhos, lembro-me de que falaste dele, Que olho, O esquerdo, Deve de ser ele. O médico avançou para a coxia e disse, levantando um pouco a voz, Gostaria de poder tocar a pessoa que acabou de se juntar a nós, peço-lhe que venha andando nesta direcção, eu irei ao seu encontro. Toparam-se a meio caminho, os dedos com os dedos, como duas formigas que deveriam reconhecer-se pelos manejos das antenas, não será assim neste caso, o médico pediu licença, com as mãos tenteou a cara do velho, encontrou rapidamente a venda, Não há dúvida, era o último que nos faltava aqui, o paciente da venda preta, exclamou, Que quer dizer, quem é o senhor, perguntou o velho, Sou, era o seu oftalmologista, lembra-se, estivemos a combinar a data da sua operação à catarata, Como foi que me reconheceu, Sobretudo pela voz, a voz é a vista de quem não vê, Sim, a voz, também estou a reconhecer a sua, quem nos diria, senhor doutor, agora já não é preciso que me opere, Se há remédio para isto, precisamos ambos dele, Recordo-me de o senhor doutor me ter dito que depois de operado nem iria reconhecer o mundo em que vivia, nesta altura sabemos quanta razão tinha.”

 

 

“Excluiu o Governo, portanto, a hipótese, primeiramente ventilada, de que o país se encontrasse sob a acção de uma epidemia sem precedentes conhecidos, provocada por um agente mórbido ainda não identificado, de efeito instantâneo, com ausência total de sinais prévios de incubação ou de latência. Tratar-se-ia, pois, de acordo com a nova opinião científica e a consequente e actualizada interpretação administrativa, de uma casual e desafortunada concomitância temporal de circunstâncias também por enquanto não averiguadas e em cuja exaltação patogénica já era possível, acentuava o comunicado do Governo, a partir do tratamento dos dados disponíveis, que indicam a proximidade de uma clara curva de resolução, observar indícios tendenciais de esgotamento. Um comentador de televisão teve o rasgo de encontrar a metáfora justa quando comparou a epidemia, ou fosse lá o que fosse, a uma flecha lançada para o alto, a qual, ao atingir o acúmen da ascensão, se detém um momento, como suspensa, e logo começa a descrever a obrigatória curva descendente, que, querendo-o Deus, com esta invocação regressava o comentador à trivialidade das trocas humanas e à epidemia propriamente dita, a gravidade tratará de acelerar, até que desapareça o terrível pesadelo que nos atormenta, meia dúzia de palavras estas que constantemente apareciam nos distintos meios de comunicação social, os quais sempre acabavam por formular o piedoso voto de que os infelizes cegos viessem a recuperar em breve a visão perdida, prometendo-lhes, entretanto, a solidariedade de todo o corpo social organizado, tanto o oficial quanto o privado. Num passado remoto, razões e metáforas semelhantes haviam sido traduzidas pelo impertérrito optimismo da gente do comum em ditérios como este, Não há bem que sempre dure, nem mal que ature, ou, em versão literária, Assim como não há bem que dure sempre, também não há mal que sempre cure, máximas supremas de quem teve tempo pare aprender com os baldões da vida e da fortuna, e que, transportadas pare a terra dos cegos, deverão ser lidas como segue, Ontem vimos, hoje não vemos, amanhã veremos, com uma ligeira entoação interrogativa no terço final da frase, como se a prudência, no último instante, tivesse decidido, pelo sim, pelo não, acrescentar a reticência de uma dúvida à esperançadora conclusão.”

 

 

“Provavelmente, só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são.”

 

 

O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira.”

 

 

Estes cegos, se não lhes acudirmos, não tardarão a transformar-se em animais, pior ainda, em animais cegos.”

 

 

“Há que dar remédio a este horror, não aguento, não posso continuar a fingir que não vejo, Pensa nas consequências, o mais certo é que depois tentem fazer de ti uma escrava, um pau-mandado, terás de atender a todos e a tudo, exigir-te-ão que os alimentes, que os laves, que os deites e os levantes, que os leves daqui para ali, que os assoes e lhes seques as lágrimas, gritarão por ti quando estiveres a dormir, insultar-te-ão se tardares, E tu, como queres tu que continue a olhar para estas misérias, tê-las permanentemente diante dos olhos, e não mexer um dedo para ajudar, O que fazes já é muito, Que faço eu, se a minha maior preocupação é evitar que alguém se aperceba de que vejo, Alguns irão odiar-te por veres, não creias que a cegueira nos tornou melhores, Também não nos tornou piores, Vamos a caminho disso, vê tu só o que se passa quando chega a altura de distribuir a comida, Precisamente, uma pessoa que visse poderia tomar a seu cargo a divisão dos alimentos por todos os que estão aqui, fazê-lo com equidade, com critério, deixaria de haver protestos, acabariam essas disputas que me põem louca, tu não sabes o que é ver dois cegos a lutarem, Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam, Amanhã vou dizer-lhes que vejo, Oxalá não venhas a ter de arrepender-te, Amanhã lhes direi, fez uma pausa e acrescentou, Se não tiver eu finalmente entrado também nesse mundo.”

 

 

“Com o mal das minhas vizinhas posso eu bem, palavras que nenhuma disse, mas que todas pensaram, na verdade ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra.”

 

 

“Pouco a pouco foram regressando as forças. As lágrimas continuavam a correr, mas lentas, serenas, como diante de um irremediável. Levantou-se a custo. Tinha sangue nas mãos e na roupa, e subitamente o corpo exausto avisou-a de que estava velha, Velha e assassina, pensou, mas sabia que se fosse necessário tornaria a matar, E quando é que é necessário matar, perguntou-se a si mesma enquanto ia andando na direcção do átrio, e a si mesma respondeu, Quando já está morto o que ainda é vivo.”

 

 

“Escuta, tu sabes muito mais do que eu, ao pé de ti não passo duma ignorante, mas o que penso é que já estamos mortos, estamos cegos porque estamos mortos, ou então, se preferes que diga isto doutra maneira, estamos mortos por que estamos cegos, dá no mesmo, Eu continuo a ver, Felizmente para ti, felizmente para o teu marido, para mim, para os outros, mas não sabes se continuarás a ver, no caso de vires a cegar tornar-te-ás igual a nós, acabaremos todos como a vizinha de baixo, Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã, se estiver cega, Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam, Não podes guiar nem dar de comer a todos os cegos do mundo, Deveria, Mas não podes, Ajudarei no que estiver ao meu alcance, Bem sei que o farás, se não fosses tu talvez já não estivesse viva, E agora não quero que morras, Devo ficar, é a minha obrigação, esta é a minha casa, quero que os meus pais me encontrem se voltarem, Se voltarem, tu mesma o disseste, e falta saber se então eles ainda serão os teus pais, Não compreendo, Disseste que a vizinha de baixo tinha sido boa pessoa, Coitada, Coitados dos teus pais, coitada de ti, quando se encontrarem, cegos de olhos e cegos de sentimentos, porque os sentimentos com que temos vivido e que nos fizeram viver como éramos, foi de termos olhos que nasceram, sem olhos os sentimentos vão tornar-se diferentes, não sabemos como, não sabemos quais, tu dizes que estamos mortos porque estamos cegos, aí está, Amas o teu marido, Sim, como a mim mesma, mas se eu cegar, se depois de cegar deixar de ser quem tinha sido, quem serei então para poder continuar a amá-lo, e com que amor, Dantes, quando víamos, também havia cegos, Poucos em comparação, os sentimentos em uso eram os de quem via, portanto os cegos sentiam com os sentimentos alheios, não como cegos que eram, agora, sim, o que está a nascer são os autênticos sentimentos dos cegos, e ainda vamos no princípio, por enquanto ainda vivemos da memória do que sentíamos, não precisas ter olhos para saberes como a vida já é hoje.”

 

 

“Foi à mesa que a mulher do médico expôs o seu pensamento, Chegou a altura de decidirmos o que devemos fazer, estou convencida de que toda a gente está cega, pelo menos comportavam-se como tal as pessoas que vi até agora, não há água, não há electricidade, não há abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve de ser isto, Haverá um governo, disse o primeiro cego, Não creio, mas, no caso de o haver, será um governo de cegos a quererem governar cegos, isto é, o nada a pretender organizar o nada, Então não há futuro, disse o velho da venda preta, Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como poderemos viver neste presente, Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse, Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos, mas então deixará de ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se considerará ainda tão humano como antes cria ser.”

 

 

“Disseste que há grupos organizados de cegos, observou o médico, isso significa que estão a ser inventadas maneiras novas de viver, não é forçoso que acabemos destroçados, como prevês, Não sei até que ponto estarão realmente organizados, só os vejo andarem por aí à procura de comida e de sítio para dormir, nada mais, Regressámos à horda primitiva, disse o velho da venda preta, com a diferença de que não somos uns quantos milhares de homens e mulheres numa natureza imensa e intacta, mas milhares de milhões num mundo descamado e exaurido, E cego, acrescentou a mulher do médico, quando começar a tornar-se difícil encontrar água e comida, o mais certo é que estes grupos se desagreguem, cada pessoa pensará que sozinha poderá sobreviver melhor, não terá de repartir com outros, o que puder apanhar é seu, de ninguém mais, Os grupos que por aí existem devem ter chefes, alguém que mande e organize, lembrou o primeiro cego, Talvez, mas neste caso tão cegos estão os que mandem como os que forem mandados.”

 

 

“Dos olhos cegos saem-lhe duas lágrimas, pela primeira vez perguntou se tinha alguma razão para continuar a viver. Não achou resposta, as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível.”

 

 

“Não nos esqueçamos do que foi a nossa vida durante o tempo que estivemos internados, descemos todos os degraus da indignidade, todos, até atingirmos a abjecção, embora de maneira diferente pode suceder aqui o mesmo, lá ainda tínhamos a desculpa da abjecção dos de fora, agora não, agora somos todos iguais perante o mal e o bem, por favor, não me perguntem o que é o bem e o que é o mal, sabíamo-lo de cada vez que tivemos de agir no tempo em que a cegueira era uma excepção, o certo e o errado são apenas modos diferentes de entender a nossa relação com os outros, não a que temos com nós próprios, nessa não há que fiar, perdoem-me a prelecção moralística, é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o, e agora ponto final na dissertação, vamos comer. Ninguém fez perguntas, o médico só disse, Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma, A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta que se trata de pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.”

 

 

Tanto nos custa a ideia de que temos de morrer, disse a mulher do médico, que sempre procuramos arranjar desculpas para os mortos, é como se antecipadamente estivéssemos a pedir que nos desculpem quando a nossa vez chegar.”

 

 

“Contentar-se com o que se vai tendo é o mais natural quando se está cego, disse a mulher do médico, Como foi que viveram desde que principiou a epidemia, Saímos do internamento há três dias, Ah, são dos que foram postos de quarentena, Sim, Foi duro, Seria dizer pouco, Horrível, O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos, Ou temo-los, mas deixemos de usar as palavras que os expressam, E portanto perdemo-los.”

 

 

O tempo estava claro, parecia que as chuvas tinham acabado, e o sol, ainda que pálido, já começava a sentir-se na pele, Não sei como poderemos continuar a viver se o calor apertar, disse o médico, todo este lixo a apodrecer por aí, os animais mortos, talvez mesmo pessoas, deve haver pessoas mortas dentro das casas, o mal é não estarmos organizados, devia haver uma organização em cada prédio, em cada rua, em cada bairro, Um governo, disse a mulher, Uma organização, o corpo também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização, E como poder uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, Organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos. Terás razão, talvez, mas a experiência desta cegueira só nos trouxe morte e miséria, os meus olhos, tal como o teu consultório, não serviram para nada, Graças aos teus olhos é que estamos vivos, disse a rapariga dos óculos escuros, Também o estaríamos se eu fosse cega, o mundo está cheio de cegos vivos, Eu acho que vamos morrer todos, é uma questão de tempo, Morrer sempre foi uma questão de tempo, disse o médico, Mas morrer só porque se está cego, não deve haver pior maneira de morrer, Morremos de doenças, de acidentes, de acasos, E agora morreremos também porque estamos cegos, quero dizer, morreremos de cegueira e de cancro, de cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida, de cegueira e de enfarte, as doenças poderão ser diferentes de pessoa para pessoa, mas o que verdadeiramente agora nos está a matar é a cegueira, Não somos imortais, não podemos escapar à morte, mas ao menos devíamos não ser cegos, disse a mulher do médico, Como, se esta cegueira é concreta e real, disse o médico, Não tenho a certeza, disse a mulher, Nem eu, disse a rapariga dos óculos escuros.”

 


Compreendo o que queres dizer quando falas de estares a viver um sonho. Sentou-se à secretária, pousou as mãos no tampo de vidro coberto de pó, depois disse, com um sorriso triste e irónico, como se se dirigisse a alguém que estivesse na sua frente, Pois não, senhor doutor, tenho muita pena, mas o seu caso não tem remédio, se quer que lhe dê um último conselho acolha-se ao dito antigo, tinham razão os que diziam que a paciência é boa para a vista, Não nos faças sofrer, disse a mulher, Desculpa-me, desculpa-me tu também, estamos no lugar onde dantes se faziam os milagres, agora nem sequer tenho as provas dos meus poderes mágicos, levaram-nas todas, O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver, disse a mulher, amparar a fragilidade da vida um dia após outro dia, como se fosse ela a cega, a que não sabe para onde ir, e talvez assim seja, talvez ela realmente não o saiba, entregou-se às nossas mãos depois de nos ter tornado inteligentes, e a isto a trouxemos, Falas como se também tu estivesses cega, disse a rapariga dos óculos escuros, De uma certa maneira, é verdade, estou cega da vossa cegueira, talvez pudesse começar a ver melhor se fôssemos mais os que veem, Temo que sejas como a testemunha que anda à procura do tribunal aonde a convocou não sabe quem e onde terá de declarar não sabe quê, disse o médico, O tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água esgota-se, a comida tornou-se veneno, seria esta a minha primeira declaração, disse a mulher do médico, E a segunda, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Abramos os olhos, Não podemos, estamos cegos, disse o médico, É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver, Mas eu quero ver, disse a rapariga dos óculos escuros, Não será por isso que verás, a única diferença era que deixarias de ser a pior cega, E agora vamo-nos, não há mais que ver aqui, disse o médico.

No caminho para a casa da rapariga dos óculos escuros atravessaram uma grande praça onde havia grupos de cegos que escutavam os discursos doutros cegos, à primeira vista nem uns nem outros pareciam cegos, os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamava-se ali o fim do mundo, a salvação penitencial, a visão do sétimo dia, o advento do anjo, a colisão cósmica, a extinção do sol, o espírito da tribo, a seiva da mandrágora, o unguento do tigre, a virtude do signo, a disciplina do vento, o perfume da lua, a reivindicação da treva, o poder do esconjuro, a marca do calcanhar, a crucificação da rosa, a pureza da linfa, o sangue do gato preto, a dormência da sombra, a revolta das marés, a lógica da antropofagia, a castração sem dor, a tatuagem divina, a cegueira voluntária, o pensamento convexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra, Aqui não há ninguém a falar de organização, disse a mulher do médico ao marido, Talvez a organização seja noutra praça, respondeu ele. Continuaram a andar. Um pouco adiante a mulher do médico disse, Há mais mortos no caminho do que é costume, É a nossa resistência que está a chegar ao fim, o tempo acaba-se, a água esgota-se, as doenças crescem, a comida torna-se veneno, tu o disseste antes, lembrou o médico, Quem sabe se entre estes mortos não estarão os meus pais, disse a rapariga dos óculos escuros, e eu aqui passando ao lado deles, e não os vejo, É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver, disse a mulher do médico.”

 

 

Quando a leitura terminou, noite dentro, o velho da venda preta disse, A isto estamos reduzidos, a ouvir ler, Eu não me queixo, poderia ficar assim para sempre, disse a rapariga dos óculos escuros, Nem eu me estou a queixar, só digo que apenas servimos para isto, para ouvir ler a história de uma humanidade que antes de nós existiu, aproveitamos o acaso de haver aqui ainda uns olhos lúcidos, os últimos que restam, se um dia eles se apagarem, não quero nem pensar, então o fio que nos une a essa humanidade partir-se-á, será como se estivéssemos a afastar-nos uns dos outros no espaço, para sempre, e tão cegos eles como nós, Enquanto puder, disse a rapariga dos óculos escuros, manterei a esperança, a esperança de vir a encontrar os meus pais, a esperança de que a mãe deste rapaz apareça, Esqueceste-te de falar da esperança de todos, Qual, A de recuperar a vista, Há esperanças que é loucura ter, Pois eu digo-te que se não fossem essas já eu teria desistido da vida, Dá-me um exemplo, Voltar a ver, Esse já conhecemos, dá-me outro, Não dou, Porquê, Não te interessa, E como sabes que não me interessa, que julgas tu conhecer de mim para decidires, por tua conta, o que me interessa e o que não me interessa, Não te zangues, não tive intenção de magoar-te, Os homens são todos iguais, pensam que basta ter nascido de uma barriga de mulher para saber tudo de mulheres, Eu de mulheres sei pouco, de ti nada, e quanto a homem, para mim, ao tempo que isso vai, agora sou um velho, e zarolho, além de cego, Não tens mais nada para dizeres contra ti, Muito mais, nem tu imaginas quanto a lista negra das auto-recriminações vai crescendo à medida que os anos passam, Nova sou eu, e já estou bem servida, Ainda não fizeste nada de verdadeiramente mau, Como podes sabê-lo, se nunca viveste comigo, Sim, nunca vivi contigo, Por que repetiste nesse tom as minhas palavras, Que tom, Esse, Só disse que nunca vivi contigo, O tom, o tom, não finjas que não compreendes, Não insistas, peço-te, Insisto, preciso saber, Voltamos às esperanças, Pois voltemos, O outro exemplo de esperança que me recusei a dar era esse, Esse, qual, A última auto-recriminação da minha lista, Explica-te, por favor, não entendo de charadas, O monstruoso desejo de que não venhamos a recuperar a vista, Porquê, Para continuarmos a viver assim, Queres dizer, todos juntos, ou tu comigo, Não me obrigues a responder, Se fosses só um homem poderias fugir à resposta, como todos fazem, mas tu mesmo disseste que és um velho, e um velho, se ter vivido tanto tem algum sentido, não deverá virar a cara à verdade, responde, Eu contigo, E por que queres tu viver comigo, Esperas que o diga diante de todos eles, Fizemos uns diante dos outros as coisas mais sujas, mais feias, mais repugnantes, com certeza não é pior o que tens para dizer-me, Já que o queres, então seja, porque o homem que eu ainda sou gosta da mulher que tu és, Custou assim tanto a fazer a declaração de amor, Na minha idade, o ridículo mete medo, Não foste ridículo, Esqueçamos isto, peço-te, Não tenciono esquecer nem deixar que esqueças, É um disparate, obrigaste-me a falar, e agora, E agora é a minha vez, Não digas nada de que te possas arrepender, lembra-te da lista negra, Se eu estiver a ser sincera hoje, que importa que tenha de arrepender-me amanhã, Cala-te, Tu queres viver comigo e eu quero viver contigo, Estás doida, Passaremos a viver juntos aqui, como um casal, e juntos continuaremos a viver se tivermos de nos separar dos nossos amigos, dois cegos devem poder ver mais do que um, É uma loucura, tu não gostas de mim, Que é isso de gostar, eu nunca gostei de ninguém, só me deitei com homens, Estás a dar-me razão, Não estou, Falaste de sinceridade, responde-me então se é mesmo verdade gostares de mim, Gosto o suficiente para querer estar contigo, e isto é a primeira vez que o digo a alguém, Também não mo dirias a mim se me tivesses encontrado antes por aí, um homem de idade, meio calvo, de cabelos brancos, com uma pala num olho e uma catarata no outro, A mulher que eu então era não o diria, reconheço, quem o disse foi a mulher que sou hoje, Veremos então o que terá para dizer a mulher que serás amanhã, Pões-me à prova, Que ideia, quem seria eu para pôr-te à prova, a vida é que decide essas coisas, Uma já ela decidiu.”

 

 

“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.”