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domingo, 19 de setembro de 2021

História da vida privada (I): do Império Romano ao ano mil (Parte III) — Philippe Ariès e Georges Duby (Org.)

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1378-1

Tradução: Hildegard Fiest

Organização: Paul Veiny

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 648

Sinopse: Ver Parte I


 

2. Antiguidade tardiaPeter Brown

 

“Seja qual for a cidade, o fato fundamental da sociedade do Império Romano é a convicção de que existe uma distância social intransponível entre os notáveis “bem-nascidos” e seus inferiores. A evolução mais sensível do período romano é a discreta mobilização da cultura e da educação moral para afirmar tal distância. As classes superiores procuram diferenciar-se das inferiores através de um estilo de cultura e vida moral cuja mensagem mais vibrante é que não pode ser partilhado pelos outros. Elas criaram uma moral da distância social, estreitamente ligada à cultura tradicional posta à disposição das elites em suas cidades. No próprio seio dessa cultura e da moral que a acompanha reside a necessidade de assimilar as regras concretas do intercâmbio entre pessoas das classes superiores na condução dos negócios públicos da civitas.”

 

 

“Baseada na posição e na autovigilância, a qualidade de uma moral, arraigada na necessidade de uma pessoa da classe superior de provar a distância social por meio de um código excepcional de comportamento, imediatamente aparece nas preocupações morais da época antonina. Tomemos dois exemplos: as relações com os inferiores e as relações sexuais. Veremos que são igualmente regulamentadas por um exigente código de comportamento público.

Condena-se espancar um escravo num acesso de raiva. Não porque se trata de cometer um ato desumano contra um irmão humano, mas porque tal rompante representa uma ruptura da autoimagem harmoniosa do homem “bem-nascido”. A irrupção de uma violência anormal constitui uma forma de “contágio moral” que leva o senhor a comportar-se com um escravo de modo tão incontrolado quanto o do próprio escravo.

 

MEDO DO PRAZER

Preocupações similares determinam as atitudes frente às relações sexuais. Não se estabelece distinção entre amor homossexual e amor heterossexual; o prazer físico é visto como uma continuidade subjacente entre os dois; o prazer sexual, enquanto tal, não coloca nenhum problema para o moralista da classe superior. Em compensação, julga-se — e muito severamente — o efeito que tal prazer pode exercer sobre o comportamento público e as relações sociais do homem. A vergonha que pode estar ligada a uma relação homossexual reside apenas no “contágio moral” que pode levar um homem das classes superiores a submeter-se ou fisicamente, adotando uma posição passiva no ato sexual, ou moralmente, entregando-se a um inferior de qualquer sexo. As relações entre homens e mulheres estão sujeitas às mesmas limitações. As inversões da verdadeira hierarquia — da qual constitui um exemplo típico a prática da sexualidade oral com uma parceira — são as mais reprovadas e (será preciso dizer?) estimulantes formas de degradação, sob o efeito do “contágio moral” de uma pessoa inferior: a mulher. O medo da efeminação e da dependência emocional, fundamentado na necessidade de manter a imagem pública de um homem realmente integrado à classe superior, e não em escrúpulos relativos à sexualidade em si, determina o código moral segundo o qual a maioria dos notáveis conduz sua vida sexual.

Nos dois casos o medo da sujeição social a um inferior é sutilmente apoiado por uma ansiedade fisiológica convergente. Um homem é um homem porque evolui com eficácia no mundo público. E evolui porque seu feto “cozinhou” no calor do ventre mais completamente que o de uma mulher; também seu corpo é um reservatório dos “calores” preciosos dos quais depende a energia masculina. Embora se possa estabelecer seguramente a diferença entre homens e mulheres — no caso da mulher pelo baixo nível de “calor” e pela consequente fraqueza moral de seu temperamento —, o homem ativo não se beneficia de semelhante segurança. Sempre pode perder “calor”. Uma descarga sexual excessiva pode “resfriar-lhe” o temperamento, e a perda de seus recursos se revelaria então com impiedosa clareza, através de uma perda de entusiasmo na cena pública. Assim, a voz plena e musical do homem público, que Quintiliano e seus contemporâneos tanto gostam de ouvir ressoar pelos barulhentos espaços públicos da cidade, é o fruto precioso de uma masculinidade cuidadosamente preservada pela “abstinência sexual”. O puritanismo bem real das morais tradicionais das classes superiores nos mundos grego e latino pesa muito sobre aqueles que as adotaram. Não depende da sexualidade em si, mas baseia-se, antes, na sexualidade como fonte possível de “contágio moral”. Através da “efeminação”, supostamente resultante de prazeres sexuais excessivos com parceiros de ambos os sexos, a complacência sexual pode com efeito corroer a superioridade incontestada do “bem-nascido”.

 

BOM PARA O POVO

Daí também o particularismo restritivo dos códigos sexuais da época, que não se aplicam a todos. Os notáveis tendem a se submeter e a submeter suas famílias a um código de austero puritanismo masculino, mais próximo do que ainda se pratica nas regiões islâmicas do que do puritanismo da Europa setentrional moderna. Entretanto, envoltos em suas atitudes obrigatórias, os notáveis são mais livres para manifestar a outra face de seu eu público, sua popularitas [vontade de agradar ao povo]. Nas relações com os inferiores, como distribuidores das boas coisas da vida urbana, prodigalizam, àqueles que a seu ver devem desfrutá-los, prazeres mais vulgares que os seus: uma sucessão de espetáculos, comodidades e decorações cujas crueza e franca obscenidade contrastam de modo flagrante com o autocontrole altaneiro que esses homens se arrogaram com o sinal de sua condição superior dentro da cidade. Aristocratas muito cultos patrocinam as medonhas carnificinas das lutas de gladiadores nas cidades gregas da época antonina. E a ascensão do cristianismo não muda muito esse aspecto de sua vida pública. Se um leitor contemporâneo se lembra do imperador Justiniano, possivelmente é por causa da descrição que Procópio faz da carreira juvenil de sua esposa, Teodora, uma dançarina de striptease do teatro público de Constantinopla, onde os gansos iam comer grãos em suas partes íntimas diante de milhares de cidadãos. É importante reter na mente a precisão venenosa desse detalhe: trata-se de uma mulher do povo, e as restrições morais dos códigos das classes superiores simplesmente não lhe dizem respeito. Sob todos os aspectos, Teodora é a antítese das respeitáveis mulheres casadas da classe superior, que, nessa época, se velam sobriamente e vivem reclusas em Constantinopla. Não obstante, como notáveis, os maridos dessas damas respeitáveis durante séculos financiaram tal gênero de exibições para a glória eterna de sua pessoa e de sua cidade. Também não deve nos surpreender a longa sobrevivência da indiferença com relação à nudez na vida pública romana. Essa sociedade não está presa à generalização implícita da vergonha sexual. A nudez do atleta continua sendo um indício de posição para os “bem-nascidos”. O papel essencial dos banhos públicos como pontos de reunião da vida cívica faz da nudez entre os pares e diante dos inferiores uma experiência cotidiana inevitável. Como vimos, os códigos de comportamento também concernem ao corpo; por isso as roupas das classes superiores na época antonina, embora caras, não têm a magnificência cerimonial daquelas dos períodos ulteriores. A postura de um homem, nu ou vestido, é a verdadeira marca de sua condição, uma marca tanto mais convincente quanto minimizada. Para as mulheres, a vergonha social que haveria em se exibir de modo inconveniente constitui uma preocupação, não o simples fato de se mostrar nua: a nudez diante dos escravos é moralmente tão insignificante quanto a nudez diante dos animais; e a exibição física das mulheres das classes inferiores constitui outro sinal de sua desregrada inferioridade em relação aos poderosos.

Nas cidades da época dos Antoninos, as realidades do poder pesam como uma atmosfera carregada ainda que impalpável sobre os súditos da classe superior de um império mundial. Por íntima que seja a vida de uma cidade média, Roma é um império fundado na violência e protegido pela violência. A crueldade dos combates de gladiadores é exibida como parte da celebração oficial do imperador em todas as grandes cidades do Mediterrâneo. Esses espetáculos fazem compreender a vontade sanguinária de governar da elite italiana. Mesmo os jogos a que se dedicam os humildes quando lançam dados nos recantos do foro são jogos guerreiros; os lances significam: “Os partos estão mortos; os bretões estão conquistados; os romanos podem jogar”. Não se dissimula o fato de que a política das cidades pequenas, que continuam sendo a principal escola do caráter dos notáveis em todas as regiões, desenrola-se doravante “sob vigilância”: está submetida à constante intervenção do governador romano ladeado por sua guarda de honra militar, que empunha o gládio e o dardo do legionário. Para que a vida das cidades continue, a disciplina e a solidariedade das elites locais e sua capacidade de controlar seus administrados devem ser mobilizadas ainda com mais consciência do que antes. Um sentimento de disciplina pública é levado a penetrar mais profundamente nas vidas privadas dos notáveis: é o preço a pagar para manter o status quo da ordem imperial. Daí a profunda mudança da atitude com relação aos cônjuges no decorrer do século II.”

 

 

UMA IGREJA RICA E MARGINAL

Na nova cena urbana o bispo cristão e sua Igreja não passam de um elemento. Agora pode-se construir numerosas e magníficas igrejas graças às doações imperiais e segundo o novo modelo imperial, a basílica, edifício muito semelhante à “sala de audiência” do imperador e ao trono do juízo de Deus, o imperador invisível da cidade. O clero pode se beneficiar com exonerações e alocações de alimento a título de privilégio. O bispo tem acesso aos governadores e aos potentes; intervém sobretudo em favor dos pobres e oprimidos. Agostinho nota, porém, que muitas vezes o fazem esperar na antecâmara dos grandes e que gente mais importante entra antes dele. Por impressionante que pareça, a Igreja do século IV continua marginal em relação ao saeculum, a um “mundo” cujas estruturas principais evoluem sob as fortes pressões do poder e da necessidade de segurança e hierarquia. O cristianismo é periférico a esse saeculum, mesmo que agora seja a fé nominal dos poderosos.

A comunidade cristã permanece unida através de uma miragem muito particular: a da solidariedade, que doravante pode exprimir-se abertamente no decorrer de cerimônias na basílica do bispo. Assim, conquanto não constitua realmente uma “assembleia dos santos”, a basílica cristã é um lugar do qual estão francamente ausentes as estruturas do saeculum. A hierarquia do século é menos nítida na basílica do que nas ruas da cidade. Apesar da nova importância do clero, apesar da cuidadosa segregação de homens e mulheres — o mais das vezes apartados de um lado e outro das grandes naves da basílica —, apesar da consumada habilidade dos poderosos para se destacarem da massa obscura dos inferiores com suas espetaculares vestes domingueiras bordadas com cenas dos Evangelhos, as basílicas cristãs permanecem uma reunião de homens e mulheres e pessoas de todas as classes, igualmente expostos, sob a tribuna do bispo na abside, ao olhar inquisidor de Deus. Sabemos que João Crisóstomo, quando estava em Constantinopla, se tornou deliciosamente impopular graças a seu hábito de acompanhar com os olhos cada um dos grandes proprietários de terras e os cortesãos que deambulavam dentro e fora da basílica durante os sermões; seu olhar penetrante os designava publicamente como os autores dos pecados e das injustiças sociais que ele denunciava do alto de sua tribuna. E a velha “liberdade de expressão” do filósofo, crítico dos grandes, que doravante pesa sobre toda uma comunidade urbana, reunida por seu clero na “sala de audiência” de Deus. Uma comunidade conduzida dessa maneira e por tais pessoas não podia deixar de tentar transformar a cidade antiga numa comunidade moldada segundo uma imagem, insólita, que lhe fosse própria.

Ao olhar de seus dirigentes, a igreja é uma nova comunidade pública unida pela extraordinária importância atribuída a três temas, delimitados com uma acuidade até então inexistente no mundo antigo: o pecado, a pobreza, a morte. Esses três sombrios conceitos, aparentemente abstratos e estreitamente interligados, habitam o horizonte do cristão da Antiguidade tardia. Apenas afrontando-os de maneira definida já sem equívocos pelo clero é que o homem e a mulher comuns poderão ganhar a “cidade de Deus”, cujas delícias e prazeres francamente sensuais os mosaicos cristãos da Antiguidade tardia evocam. Neles os cristãos dessa época contemplam o rosto eternamente belo e tranquilo dos santos, dos homens e mulheres agradáveis a Deus, que os colocou não no “além” asséptico e etéreo, nascido da imaginação moderna, mas no antigo “paraíso das delícias”, “um lugar fertilizado pelas águas refrescantes e de onde desapareceram a dor, o sofrimento e as lágrimas”.

 

O PECADO

A basílica cristã abriga uma assembleia de pecadores iguais em sua necessidade da misericórdia de Deus. As fronteiras mais firmes no interior do grupo são aquelas que o pecado traça. Não se deve subestimar o elemento de novidade de tal definição da comunidade. Questões tão profundamente íntimas como os mores [costumes] sexuais ou as opiniões pessoais sobre o dogma cristão podem ser julgadas pelos membros do clero e justificar um ato público e vibrante de exclusão da Igreja cristã. Um sistema inteiramente público de penitência impera nesse período. A excomunhão acarreta a exclusão pública da eucaristia, e seus efeitos só podem ser revogados por um ato igualmente público de reconciliação com o bispo. Assim, na basílica do século IV, a solidariedade pública está normalmente ligada à consequência do pecado e ao “crime por pensamento” de heresia, com uma nitidez que desaparecerá nas épocas posteriores. O acesso à eucaristia implica uma série de atos plenamente visíveis de separação e adesão. O rebanho dos catecúmenos é expulso do edifício ao iniciar-se a liturgia principal da eucaristia. A cerimônia começa pelo movimento dos crentes que colocam suas oferendas no altar. Por ocasião da solene subida dos fiéis para participarem do “alimento místico”, evidencia-se a hierarquia estabelecida no grupo cristão: os bispos e o clero são os primeiros a se adiantar, seguidos pelos fiéis castos dos dois sexos; os últimos de todos são os leigos casados. Num espaço especialmente designado no fundo da basílica, muito longe da abside, ficam os “penitentes”, cujos pecados os excluíram dos atos de participação tão concretos. Moralmente humilhados, vestidos com mais simplicidade do que sua posição autoriza e com a barba por fazer, esperam, sob o olhar da assistência, o gesto público de reconciliação de seu bispo. Às vezes a hierarquia do saeculum e a igualdade perante o pecado se chocam, e as consequências são memoráveis: em Cesareia, Basílio recusa as oferendas do imperador herético Valente; em Milão, Ambrósio coloca o imperador Teodósio no meio dos penitentes — o senhor do mundo despojado de seu manto e do diadema — por haver ordenado o massacre da população de Tessalônica.

 

A POBREZA

Os pobres também chamam a atenção. Estropiados, indigentes, vagabundos e imigrantes de campos muitas vezes assolados, aglomeram-se às portas da basílica e dormem sob os pórticos que rodeiam seus pátios internos. Sempre se fala dos pobres no plural, em termos que não têm mais relação nenhuma com a classificação “cívica” precedente da sociedade dividida em cidadãos e não-cidadãos. São o anônimo rebotalho humano da economia antiga. Tal anonimato precisamente os transforma em remédio para os pecados dos membros mais afortunados da comunidade cristã. Pois a esmola aos pobres constitui uma parte essencial da longa reparação dos penitentes e o remédio normal para os pecados “veniais”, como a preguiça e os pensamentos impuros e fúteis, que não demandam penitência pública.

A condição miserável dos pobres recebe pesada carga de significados religiosos. Eles representam o estado do pecador que diariamente precisa do perdão de Deus. A equação simbólica entre o pobre e o pecador miserável e abandonado por Deus retorna com insistência na linguagem dos Salmos, que formam a coluna vertebral da literatura da Igreja e especialmente das cerimônias penitenciais. Tal simbolismo era indispensável para despertar a empatia graças à qual o citadino, habituado a ver essas desagradáveis ruínas humanas como exceções ameaçadoras para a regra da antiga comunidade cívica de cidadãos, concede ao pobre a privilegiada posição de símbolo da miserável condição da humanidade da qual participa seu eu que é pecador. A esmola torna-se uma analogia poderosa da relação de Deus com o homem pecador. Os gemidos que os mendigos dirigem aos fiéis que entram na basílica para rezar preludiam os apelos desesperados dos fiéis à misericórdia divina. “Quando estiveres cansado de rezar e não receber”, diz João Crisóstomo, “pensa no número de vezes em que escutaste um pobre pedir e não lhe deste ouvidos.” “Não é erguendo as mãos [na atitude de rezar do orans suplicante] que serás ouvido. Estende a mão não para o Céu, mas para o pobre.”

O anonimato do pobre efetivamente ajuda a manter o sentimento da solidariedade indiferenciada dos pecadores na Igreja. O ideal cívico, segundo o qual os grandes são obrigados a dar generosamente, desempenha um papel atuante na Igreja cristã, pois implica também que as prodigalidades estabeleçam a evidência do direito dos poderosos de controlarem sua comunidade. Afinal, poucas basílicas teriam sido construídas sem tal retorno. As mais espetaculares são oferecidas pelo imperador ou pelos dirigentes do clero; são os atos de homens muito desejosos de provar à maneira antiga que têm o direito de “alimentar” e portanto de controlar as congregações cristãs que ali se reúnem. Os nomes dos que levam as oferendas ao altar são lidos em voz alta durante as orações solenes que precedem a eucaristia e muitas vezes aclamados, como na bela época da munificência cívica. Graças à noção de pecado, pode-se esperar reduzir essa audaciosa pirâmide de patronato e dependência. Os bispos, portanto, insistem no fato de que cada membro da comunidade cristã, homem ou mulher, é pecador e que toda esmola, por modesta que seja, é bem-vinda para os verdadeiros pobres. Por conseguinte, o aspecto ostensivo do patronato dos grandes, que se expressa em pedras, mosaicos, tapeçarias de seda e candelabros reluzentes, de cima para baixo à maneira da antiga munificência cívica, é velado pela garoa leve mas persistente das esmolas cotidianas do cristão pecador aos desgraçados anônimos.

 

AS MULHERES RICAS

Com efeito, a miséria real dos pobres os torna clientes ideais para um grupo desejoso de evitar as tensões causadas por relações de patronato com uma verdadeira clientela. De todas as formas de patronato às quais o clero notoriamente foi exposto durante muito tempo, a mais perigosa e aviltante aos olhos dos pagãos é a estreita dependência com relação a mulheres ricas. Desde Cipriano, a pobreza e o papel das mulheres influentes na Igreja são preocupações estreitamente ligadas. A fortuna de numerosas virgens, viúvas e diaconisas cria laços de patronato e de obrigação humilhante entre o clero e as mulheres que, no final do século IV, são membros dirigentes da aristocracia senatorial. Tal riqueza e o patronato que lhe é associado tocarão de modo muito mais certo os pobres, que, como todos sabem, não podem retribuir prestando serviço, e sua clientela não vale nada. Ademais, códigos estritos de segregação entre os sexos vetaram o acesso das mulheres ao poder público dentro da Igreja. Toda infração a esses códigos provoca um escândalo que se procura alimentar desde que desponte a ameaça de mulheres virem a exercer influência na Igreja graças a sua fortuna, cultura ou coragem superior. Esses tabus, no entanto, não se aplicam ao papel público de uma mulher que socorre pobres farrapos humanos. Como protetoras dos pobres, através da esmola e dos cuidados com os doentes e os estrangeiros nos hospitais, as mulheres abastadas desfrutam de uma verdadeira posição pública nas cidades da região mediterrânea, posição excessivamente rara nos outros aspectos da vida pública dos poderosos sob o Império tardio, vida hierarquizada e dominada pelos homens.

 

O BISPO

Patrono dos pobres e protetor das mulheres influentes, cujas energias e fortuna coloca a serviço da Igreja, diretor espiritual de vastos grupos de viúvas e virgens, o bispo adquire importância na cidade do século IV; deliberadamente se associa em público a essas categorias de pessoas cuja existência fora ignorada pelo antigo modelo “cívico” dos notáveis urbanos. Segundo os termos dos Cânones de santo Atanásio: “Um bispo que ama os pobres é rico, e a cidade e sua circunscrição o honrarão”. Dificilmente se podia desejar um contraste mais agudo com a imagem “cívica” que os notáveis ostentavam dois séculos antes.

A comunidade cristã que cresce paralela à cidade antiga, onde está longe de ser dominante no século IV, criou, todavia, através de suas cerimônias públicas, seu tipo pessoal de uma nova forma de espaço público, dominado com segurança por um novo tipo de personagem público: apoiados com firmeza por mulheres celibatárias, os bispos celibatários fundamentam seu prestígio sobre sua capacidade de “alimentar” uma nova categoria de pessoas, a categoria anônima e profundamente anticívica dos pobres sem raízes e abandonados. No século V, as cidades do Mediterrâneo passam por novas crises. As gerações que precedem e seguem imediatamente o ano 400 conhecem importantes catástrofes urbanas, como o saque de Roma pelos visigodos em 410 e o surgimento de bispos influentes: Ambrósio em Milão, Agostinho em Hipona, o papa Leão em Roma, João Crisóstomo em Constantinopla e o implacável Teófilo em Alexandria. A questão que se coloca para tais gerações é saber como a fachada restaurada da antiga cidade romana corre o risco de desmoronar, deixando o bispo cristão, munido por sua própria definição “não cívica” da comunidade, livre para intervir como o único ator representativo da vida urbana nas margens do Mediterrâneo.

 

A MORTE

No exterior das cidades estende-se a solidariedade mais tranquila e definitiva dos túmulos cristãos. Em qualquer museu moderno, passar das salas pagãs às cristãs equivale a penetrar num mundo de claros significados gerais. A diversidade pouco clara dos sarcófagos da classe social superior dos séculos II e III — os eruditos não acabaram de interrogá-los — deixa lugar a um repertório de cenas facilmente reconhecíveis, inscritas, com poucas variações, em todas as tumbas cristãs. A surpreendente variedade de inscrições funerárias pagãs e da arte funerária pagã testemunha uma sociedade pouco rica em opiniões comuns referentes à morte e ao além. A tumba era então um lugar privado porém privilegiado. A pessoa morta, sustentada por seus grupos tradicionais — a família, os pares, os associados funerários e, no caso dos grandes, a própria cidade —, devia, em sua linguagem peculiar, explicar aos vivos o sentido de sua morte. Daí a extraordinária proliferação de associações funerárias entre os humildes, o papel crucial do mausoléu de família entre os abastados e a bizarra diversidade das declarações do defunto ou a propósito do defunto. Pensamos num notável grego, Opramoas, que cobriu seu túmulo com cartas de governadores romanos elogiando-lhe as generosidades cívicas, e na mensagem de um humilde pedreiro que pede desculpa pela qualidade dos versos de seu epitáfio! Esses túmulos constituem a alegria dos leitores de epitáfios gregos e romanos, mas o desespero do historiador das religiões que gostaria de retirar deles uma doutrina coerente sobre o além. No mundo pagão dos séculos II e III nenhuma comunidade religiosa amplamente difundida interferiu para sufocar tantas vozes privadas, e tão diferentes, surgidas do além-túmulo.

Com a ascensão da cristandade, a Igreja se introduz entre o indivíduo, a família e a cidade. O clero afirma ser o grupo mais capaz de preservar a memória dos mortos. Uma sólida doutrina cristã sobre o além, pregada pelo clero, esclarece os vivos sobre o sentido da morte do defunto. As celebrações tradicionais no cemitério permanecem habituais, porém já não bastam. Oferendas, no momento da eucaristia, garantem que durante as orações o nome dos mortos será lembrado em toda a comunidade cristã, apresentada como a mais vasta parentela artificial do crente. Festas anuais em memória dos mortos e em benefício de suas almas — oferecidas, como sempre, em favor dos pobres (esse eterno pretexto) — desenrolam-se nos átrios das basílicas e mesmo em seu interior. Pois a Igreja, e não mais a cidade, celebra a glória dos desaparecidos. E, uma vez introduzida no recinto da basílica, a democracia do pecado estende-se para além do túmulo de modo inconcebível para os pagãos. O clero pode recusar as oferendas feitas em nome de membros não convertidos da família, de pecadores não arrependidos e de suicidas.

 

A TUMBA

Uma nova acepção da expressão “terra consagrada” persistentemente atrai os mortos à sombra das basílicas. Grandes cemitérios cristãos, administrados pelo clero, existiram em Roma desde o início do século III. Comportavam galerias subterrâneas cuidadosamente construídas e concebidas de tal modo que grande número de pobres encontrava sepultura. Talhados em nichos superpostos nas catacumbas, tais túmulos constituem ainda hoje os testemunhos silenciosos da determinação do clero de agir como patrono dos pobres. Até na morte os pobres são mobilizados: as fileiras de túmulos humildes situadas a uma distância decente do mausoléu dos ricos testemunham a solicitude e a solidariedade da comunidade cristã.

No final do século IV, a difusão da prática do depositio ad sanctos — o privilégio de ser enterrado perto do túmulo dos mártires — garante que, se a comunidade cristã exigia uma hierarquia de estima entre seus membros, o clero, que controlava o acesso a esses lugares consagrados, erigia-se em árbitro de tal hierarquia. Virgens, monges e membros do clero são agrupados mais perto de numerosas tumbas de mártires nos cemitérios de Roma, Milão e outros lugares. Essas novas elites da Igreja urbana são seguidas de leigos humildes, admitidos ali em recompensa de sua boa conduta cristã. “Probiliano […] a Hilaritas, uma mulher cuja castidade e bondade natural eram conhecidas de todos os vizinhos […], Em minha ausência ela permaneceu casta durante oito anos; por isso repousa neste lugar santo.”

Integrados de modo bem visível nas Igrejas cristãs, os mortos são imperceptivelmente retirados de sua cidade. A fim de assegurar o repouso e a permanente reputação de seus defuntos, a família cristã doravante trata apenas com o clero. As formas cívicas de testemunho passam a segundo plano. É só nas pequenas cidades italianas tradicionais que o aniversário de um personagem público ainda constitui ocasião para um grande banquete cívico para os notáveis e seus concidadãos. No século IV a corte imperial celebra publicamente o luto do “primeiro cidadão”, Petrônio Probo, o maior dos potentes de Roma. Mas, em seguida, sua memória é confiada à tumba de são Pedro. Um esplêndido sarcófago de mármore proclama a certeza da nova intimidade de Probo com Cristo na corte celeste. O grande homem repousou a alguns metros de são Pedro até que, no século XV, alguns operários encontram seu sarcófago cheio dos fios de ouro com os quais fora tecida sua veste derradeira. Quanto ao clero e aos cristãos mortos santamente, os mosaicos os mostram longe da cidade antiga, caminhando sobre a relva verde do paraíso de Deus, sob as palmeiras orientais, cercados de um grupo de pares de modo nenhum clássico:

E agora [ele vive] entre os patriarcas,

entre os profetas que claramente veem o futuro,

na companhia dos apóstolos

e dos mártires, homens de grande poder.

 

 

XXXXXXXXXXXXXXXX

 

3. Vida privada e arquitetura doméstica na África romanaYvon Thébert

 

“Na cidade grega clássica, a arquitetura e a decoração das residências privadas confinam-se estreitamente em limites modestos: o majestoso e o luxuoso só convêm ao setor público, à cidade que repousa na fusão do indivíduo com a comunidade, na adequação do privado e do público. Nesse quadro, o indivíduo deve tudo — inclusive sua condição de súdito dotado de uma vida privada — ao fato de pertencer à comunidade política. Na época helenística, a crise da cidade clássica sublinha uma mudança em que é fácil ler uma evolução que se pode resumir numa extensão notável da esfera privada à custa do público.”

 

 

“Cabe-nos, pois, abordar um problema teórico da mesma natureza que aquele encontrado a propósito dos trabalhos efetuados pelos proprietários. Que papel o comanditário desempenhava na concepção do programa decorativo? Devemos realmente aceitar o termo “programa” para qualificar os temas que adornam uma residência? As duas perguntas estão ligadas, e atualmente tendem a prevalecer respostas que resultam de uma mesma atitude negativa: o proprietário participa bem pouco da escolha dos motivos, os mosaicistas impõem seu repertório; tal repertório é quase nada carregado de valores simbólicos e sobretudo não se deve “superinterpretar” os temas, querer lhes dar um significado mais profundo que uma vaga referência a uma herança cultural que constitui o quinhão comum de todos e não envolve ninguém.

Tal procedimento se opõe com razão às especulações, tão abusivas quanto engenhosas, suscitadas por algumas pavimentações particularmente excitantes para a imaginação. Mas também parece excessivo. Com efeito, atribui ao artesão-artista da Antiguidade um papel que não lhe cabe: em sua relação com o comanditário, é este último que desempenha o papel determinante: está em posição de impor os temas que lhe interessam — ou até a maneira de tratá-los. Para nos convencermos disso, basta verificar como a evolução do estilo e dos motivos corresponde perfeitamente à evolução de toda a sociedade e de modo mais preciso às novas necessidades das classes dirigentes do Baixo Império. Ademais, nada permite rejeitar a priori o que aparece como uma evidência de bom senso, a saber, que um assunto figurado possui um sentido e não é escolhido sem razão.

O problema se coloca claramente quando a decoração compreende cenas da mitologia pagã. Tornou-se de bom-tom considerar que estas não traduzem em nada as tendências religiosas dos proprietários: seriam apenas as sequelas assépticas de uma cultura, no sentido menos significativo do termo. Tal abordagem antecipa em alguns séculos uma situação cultural em que o cristianismo dominante poderá com efeito retomar por sua conta, sem risco excessivo, os farrapos de uma cultura antiga desmembrada porém prestigiosa. Em compensação, ela não corresponde à situação política, cultural e religiosa do Baixo Império. Primeiro é preciso observar que, se muitas vezes se nega a mosaicos claramente pagãos uma dimensão religiosa, não ocorre a ninguém agir da mesma forma com relação aos pavimentos de motivos cristãos. O procedimento é curioso e só se justificaria caso se pudesse afirmar o desaparecimento no Império tardio de toda religião além do cristianismo. Da mesma forma, frequentemente se afirma que a justaposição de mosaicos cristãos e pagãos demonstra que estes últimos não possuem significado preciso. Tal raciocínio não permite explicar casos em que se verifica uma destruição voluntária desses motivos: numa residência recentemente escavada em Mactar, no coração da Tunísia, um mosaico de um tanque com cena marinha e o de uma fonte com uma Vênus foram escondidos sob uma camada de cimento, operação que tudo leva a crer ter sido obra de cristãos.{21} Surpreender-se com tais justaposições equivale a desconhecer a maneira como a religião cristã se difundiu no mundo romano. Essa difusão não é a fonte de uma mudança radical da sociedade e das pessoas: não passa de um dos aspectos de uma evolução geral que promove o cristianismo bem mais do que este a promove. Em tais condições, exceto para uma minoria entre a qual essa conversão corresponde a uma revolução espiritual e a uma subversão das práticas, as novas crenças se acrescentam às antigas bem mais do que as substituem. Nesse contexto devemos compreender a reunião de mosaicos de temas díspares, e não é por acaso se o espaço privado constitui um lugar que se presta à leitura de tais atitudes cumulativas. Seus proprietários com efeito são mais livres para desenvolver suas concepções pessoais: Agostinho condena com violência a opinião dominante segundo a qual o homem é inteiramente senhor do que se passa em sua casa (Sermões, 224, 3). Ora, sejam quais forem suas opiniões religiosas, todos os homens dessa época pensam que o mundo é presa de demônios maléficos: se a defesa do espaço coletivo compete à cidade, cada um deve proteger a própria morada. Nessas condições, nada tem de surpreendente o fato de acrescentar-se aos penates e a outras divindades pagãs que residem na casa e a protegem os símbolos de uma religião que, apoiada em milagres, passa o tempo a proclamar sua eficácia protetora. Seria muito mais surpreendente se o responsável pela família renunciasse deliberada e bruscamente a uma dessas garantias. Uma pessoa não muda sua visão de mundo porque se torna cristã, mas é o contrário que ocorre: a fase de transição só pode ser muito longa.”

{21} G. Picard, “La maison de Vénus”, Recbercbes archéologiques franco-tunisiennes à Mactar, I, Roma, 1977, pp. 18, 20.

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