Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-100-0
Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: Em
tempos de reflexão minimalista, István Mészáros é um pensador fundamental. Em
seu livro O desafio e o fardo do tempo histórico, o filósofo húngaro
destrincha o caráter imperativo e destrutivo das positivações atuais do capital
e aprofunda a análise do significado histórico de sua crise estrutural à luz de
manifestações cada vez mais irracionais e perigosas para o futuro da
humanidade. É a partir da análise de como a ‘ordem estabelecida’ do capital
produz destruição – do tempo livre, da educação, das pessoas, da cultura, da
natureza, da vida – que Mészáros reafirma a necessidade do socialismo no século
XXI.
Dotado de erudição rara, István Mészáros domina
filosofia, economia política e teoria social como poucos. Seus textos dialogam
criticamente com os principais pensadores deste século e navegam dos clássicos
aos contemporâneos, sempre com rigor e criatividade. Sua obra enfrenta com
determinação os desafios e as dificuldades para a superação da vida regulada
pelo capital, em direção a uma existência humana verdadeira e fundada na
igualdade substantiva.
Na contracorrente dos niilistas e dos acomodados à ordem,
que proclamam não existir alternativa para o sistema de domínio social do
capital, esse filósofo que não se furta ao embate ideológico vaticina que não
há arremedo capaz de mitigar a gravidade extrema de suas contradições,
permanentemente criadas e insolventes.
A ‘não alternativa’ ao capital, denuncia, significa a ‘não
alternativa’ para a sobrevivência da própria humanidade. Sendo assim, a disputa
no planeta hoje não se daria mais entre socialismo ou barbárie, mas entre
socialismo ou extinção.
“É preciso ter uma grande dose de humanidade,
uma grande dose de sentido de justiça e verdade para não cair em dogmatismos
extremos, em escolasticismos frios, no isolamento das massas. É preciso
lutar todos os dias para que esse amor à humanidade viva se transforme em fatos
concretos, em atos que sirvam de exemplo de mobilização.” (Che Guevara)
“A aniquilação da
história é o único curso de ação plausível, inseparável da cegueira do capital
ao futuro dolorosamente tangível que deve ser enfrentado. Eis porque o capital
não tem alternativa ao abuso do tempo histórico. Sua máxima impiedosa segundo a
qual não há alternativa é somente uma variante propagandística da negação geral
da história correspondente à natureza recôndita do capital no estágio atual de
nosso desenvolvimento histórico. Essa determinação do capital nem sempre se
verificou, mas se tornou inalteravelmente presente. Assim, a única maneira de o
capital se relacionar com a história em nosso tempo é abusar violentamente
dela. Temos aqui uma combinação óbvia de contingência histórica e necessidade
estrutural. Se a humanidade tinha a sua disposição uma “infinidade de tempo”.
então não se poderia falar de “abuso do tempo pelo capital”. A infinidade de
tempo não pode ser abusada por nenhuma força historicamente dada. Sob tais
circunstâncias, a contínua expansão do capital seria um conceito quantitativo
inofensivo, sem fim à vista. Mas a humanidade não tem a sua disposição uma
infinidade de coisa alguma, como as personificações complacentes do capital
absurdamente presumem, e certamente não a tem de tempo. Ademais, falar de uma
infinidade de tempo histórico seria uma grotesca contradição nos termos.
Só a força mais insensível, desprovida de toda consideração humana,
poderia ignorar as limitações do tempo. É isso que testemunhamos hoje de um
modo característico. Nossa contingência histórica dada é o que ativa os limites
estruturais insuperáveis – absolutos – do capital. São limites estruturais
absolutos do sistema do capital que se tornam determinações destrutivas
inclinadas a obstruir o futuro da humanidade. Nessa conjuntura da história, o
capital não pode, sob nenhum aspecto, ser diferente do que efetivamente é. Eis
como a necessidade estrutural do capital se torna fundida de modo devastador
com sua contingência histórica brutalmente – mas totalmente em vão – ignorada.
Isso ocorre precisamente porque o capital não tem, e não pode ter, a
consciência do tempo histórico. Apenas aos sistemas sociorreprodutivos
estruturalmente ilimitados é possível tê-la. Consequentemente, não pode haver
saída dessa armadilha destrutiva da humanidade sem erradicar o sistema do
capital de seu controle há muito resguardado do processo sociometabólico.”
“Seria
extremamente ingênuo imaginar que a passagem da ordem sociometabólica de
reprodução do capital a uma alternativa historicamente viável poderia ter lugar
sem dolorosas contradições, e mesmo reincidências. Pois nenhuma transformação social
em todo o curso da história humana exigiu uma mudança qualitativa nem mesmo
remotamente comparável. Isso ocorre não apenas em virtude da escala quase
impeditiva e da magnitude da tarefa, que envolve uma grande variedade de grupos
nacionais interrelacionados – com sua longa história e suas tradições
profundamente arraigadas, bem como interesses diversos – em um cenário
verdadeiramente global. O que, além disso, é radicalmente diferente de
todas as mudanças historicamente testemunhadas de uma formação social para
outra – isto é, o componente “não negociável” da exigida transformação socialista – é a absoluta necessidade de
superar permanentemente todas as formas de dominação e subordinação estrutural, e não apenas a sua variedade
capitalista. Em nosso tempo, nenhuma “mudança de pessoal”, por mais
bem-intencionada no início, poderia sequer começar a cumprir a tarefa. Em
outras palavras, a relação conflitual/adversa* entre os seres humanos –que
foi demasiado óbvia em toda a história conhecida – é o que deve ser positivamente
suplantada pela criação e consolidação firmemente assegurada da
nova ordem social. Do contrário, as contradições e antagonismos incontroláveis começarão mais cedo ou mais tarde a
se avolumar rapidamente sobre os novos fundamentos estabelecidos, como
realmente ocorreu nas sociedades de tipo soviético, minando-os e destruindo-os
ao final.
Somente um engajamento crítico – e autocrítico – genuíno no curso
da transformação histórica socialista pode produzir o resultado sustentável,
proporcionando os corretivos necessários conforme as condições se modificarem e
demandarem a resolução de seu desafio. Marx o evidenciou com ampla clareza desde
o início quando insistiu que as revoluções socialistas não deviam esquivar-se
de criticar a si mesmas “com impiedosa consciência”11 para que
fossem capazes de alcançar seus objetivos emancipatórios vitais.
O século XX transformou significativamente a maneira como se deve
apreender a advertência de Marx. Pois à luz de sete décadas de experiência
prática extremamente custosa, o aviso marxiano original quanto à necessária
crítica prática da própria ação – uma advertência que não poderia, em meados do século XIX, ser mais do que uma
exortação muito geral – adquiriu uma urgência
inevitável no movimento socialista. Pois, por um lado, dada a crise estrutural
cada vez mais profunda de nossa ordem sociometabólica estabelecida, a
instituição bem fundada da alternativa socialista é mais urgente hoje do que
nunca, a despeito do ataque propagandístico autocomplacente da ideologia
dominante, visível por toda parte. Mas, ao mesmo tempo, por outro lado, devido
à pesada evidência histórica do desenvolvimento de tipo soviético, e dos
imensos sacrifícios que se tiveram de suportar em suas longas décadas, ninguém
pode negar hoje a necessidade de confrontar “com impiedosa consciência” os
problemas que tendem a aparecer. Pois apenas pelo reexame socialista plenamente
consciente e autocriticamente comprometido dos passos tomados com intenção
emancipatória – tanto no passado como no presente – será
possível tornar os fundamentos do
socialismo no século XXI mais seguros do que se verificaram
no século XX.”
11: Ver Karl Marx, “O dezoito de Brumário de Luís Bonaparte“, em Karl Marx e Friedrich
Engels, Obras escolhidas (São Paulo, Alfa-Ômega, s. d., v. 1), p. 206.
“Nenhum
resultado duradouro pode ser construído sobre a capitulação. Como os anais
da história social, política e militar provam abundantemente, a capitulação
jamais pode ser a base do desenvolvimento histórico sustentável. Só pode
proporcionar um ganho unilateral e o correspondente intervalo temporário até
que a próxima rodada de antagonismos irrompa no palco histórico, em uma escala
crescente e afirmando-se com intensidade cada vez maior como uma regra. Uma vez
que podia ser racionalmente mantida – na formulação do general Carl von Clausewitz –
essa
guerra era “a continuação da política por outros meios”. Mas o
outro lado da mesma equação – concernente à reciprocidade fatídica da política
e da guerra – jamais foi explicitada no passado, porque suas penosas
implicações para a destruição total da humanidade não eram claramente visíveis.
A saber: que a política (baseada no antagonismo) era o arauto da guerra
necessária, porque – em vista da natureza irresoluta dos próprios
antagonismos – ela tinha de terminar na capitulação de um lado e em
última instância na instabilidade explosiva do intervalo resultante.
Apenas uma racionalidade substancialmente fundada – em contraste
com os “compromissos” efêmeros adquiridos em nome de “atos equilibrantes”
violentamente impostos ou taticamente racionalizados – poderia indicar a saída
desse círculo vicioso, pela eliminação permanente de todas as formas de conflitualidade/adversidade
antagônica. O grande desafio e fardo do tempo histórico é que a
conflitualidade/adversidade antagônica deve ser permanentemente consignada ao
passado, a fim de deixar para trás, e para sempre também, o círculo vicioso
fatídico – em nosso tempo inevitavelmente fatal –
da guerra
e da política, como é conhecido por nós até o presente. Isso significa a
refundação radical da política sobre as bases de uma racionalidade
substantiva e historicamente sustentável, para ser capaz de administrar conscientemente
todos os assuntos humanos na escala global exigida. Eis porque a
instituição viável do socialismo baseado no “tudo ou nada” do século XXI
apareceu na agenda histórica com grande urgência, impondo a necessidade de
confrontar os fracassos do passado “com impiedosa consciência”, bem como
explorar todas as vias de cooperação positiva sobre a única base plausível da igualdade
substantiva.
Nada se resolveu de maneira durável pela implosão do sistema de tipo
soviético, tampouco, de fato, pelo colapso dos maiores e mais antigos partidos
comunistas em todos os lugares do mundo. A tentação do trabalho de seguir a linha
de menor resistência, favorecendo a ordem estabelecida do capital, sem
dúvida desempenhou e continua a desempenhar um importante papel nesses
desenvolvimentos. Isso ocorre porque o estabelecimento da ordem reprodutiva
socialista, como uma alternativa viável à ordem existente, é um empreendimento
histórico imenso. Mas a linha de menor resistência não assegurará o futuro do
capital. Pois essa linha é incapaz de gerar algo que não sejam retornos cada
vez mais exíguos ao trabalho, sob as circunstâncias presentes de nossa
crise histórica cada vez mais profunda, e em última instância absolutamente
nenhum retorno, conforme o componente destrutivo da ordem reprodutiva do
capital se inclina a escapar do controle.
Quanto aos sucessos falsamente alegados do próprio capital em sua fase
histórica de crise estrutural, vemos na realidade seus países dominantes
engajados em guerras genocidas, enquanto pregam cinicamente a democracia e a
liberdade. Com efeito, o que testemunhamos no Oriente Médio e em outros lugares
são conflagrações em uma escala cada vez mais destrutiva, em lugar de soluções
duráveis aos graves problemas internos e internacionais da ordem
sóciometabólica de controle do capital.
Muitas das realizações fundamentalmente autodestrutivas do imperialismo
foram construídas no passado com base no genocídio na América do Norte e
Latina. Hoje, a situação é ainda mais grave pois o imperialismo hegemônico
global está conduzindo a humanidade ao extermínio. Tem de haver outro caminho.
Os exemplos implacáveis de Gramsci, József e Che nos mostram esse caminho.”
“A emancipação humana é plausível apenas com
base em uma concepção histórica que rejeita não apenas a ideia do determinismo
materialista mecânico, mas também o tipo de desfecho da história
filosófico idealista que encontramos na monumental visão hegeliana do mundo.
Pois, quando Hegel declara em um tom de resignação consentida que “o que é
racional é real e o que é real é racional” (como vimos acima), para justificar
sua aceitação da necessária reconciliação com o presente, identificando
ao mesmo tempo a alegada “realidade racional” do existente com a positividade,
ele conduz a própria dinâmica histórica a um desfecho arbitrário no presente
eterno aprioristicamente antecipado de seu sistema especulativo,
afastando-se portanto também de sua busca emancipatória original concebida no
espirito do Iluminismo.
Em contraste tanto com o determinismo
mecanicista quanto com o idealismo especulativo, a defesa socialista de
emancipação real não faria sentido algum sem a afirmação do caráter
radicalmente ilimitado da história. Pois qual seria o sentido de enfatizar
o potencial emancipatório positivo do tempo livre produtivamente
desenvolvido da humanidade, uma vez submetido ao uso criativo pelos indivíduos
sociais no curso do desenvolvimento histórico, se o processo geral de
transformação histórica estivesse fatalmente predeterminado pelos estreitos
limites do determinismo mecanicista (ou determinismo naturalista), ou
ainda, o que daria no mesmo, pelas grandiloquentes projeções a priori do
“autorrealizado Espírito do Mundo”?
Eis porque Marx insiste, em sua concepção dialética
do caráter radicalmente ilimitado da história, formulada contra toda
forma de desfecho ideológico determinista, que todo processo e estágio
específico levado a cabo pela determinação histórica é apenas
histórico e, portanto, deve dar lugar no devido tempo a um estágio de
desenvolvimento mais avançado – e, para os indivíduos, também potencialmente
mais enriquecedor e realizador cada vez mais em sintonia com a emancipação
produtivamente sustentada da humanidade. Assim, ao contrário das deturpações
tendenciosas das visões Marx – falsamente condenadas por conta de seu pretenso “determinismo
econômico”, que vem a ser de fato a abordagem teórica dos economistas políticos
severamente criticados por Marx – quando sublinha o poder subjugador da base
material, ele o faz com qualificações muito claras. Pois salienta que a base
material da transformação social atinge seu domínio paradoxal sob as condições
históricas determinadas da ordem social do capital, quando – graças ao
desenvolvimento produtivo da humanidade – surgem no horizonte algumas
potencialidades emancipatórias fundamentais, ainda que sejam frustradas e
minadas pelos antagonismos internos destrutivos do capital. E, precisamente com
o objetivo de libertar essas potencialidades produtivas positivas, Marx
contrapõe às determinações estruturais antagônicas do capital a emancipatória
alternativa socialista como um modo de controle sociometabólico voltado não
apenas à substituição consciente do poder da base material
historicamente específica do capital, articulada na forma das determinações
universalmente reificadoras da sociedade de mercadorias, mas também à superação
da antiquíssima preponderância da base material em geral. Eis o significado do
discurso marxiano sobre a história real da humanidade e seu “reino da
liberdade” em oposição ao “reino da necessidade” esmagadoramente dominante no
que ele chama de pré-história da humanidade.
A tirania do imperativo do tempo do
capital encontra sua completude apropriada com respeito à escala
oniabrangente de desenvolvimento no arbitrário “fim da história”. Assim, não há
como romper com o imperativo do tempo do capital sem obrigatoriamente asseverar
– não apenas em concepções teóricas alternativas, mas sobretudo pela estratégia
prática abrangente de transformação revolucionária – o caráter radicalmente
ilimitado da história, desafiando conscientemente a conformação hierárquica
estabelecida das relações sociais estruturalmente predeterminadas e arraigadas.
Nesse sentido, a tirania do imperativo do tempo do capital, imposta
praticamente no processo de reprodução societária por meio da alienante contabilidade
do tempo do sistema, e a tirania do desfecho histórico do
capital logram ou malogram juntas.
O caráter radicalmente ilimitado da história
historicamente criada é inseparável da condição única de automediação da
humanidade com a natureza ao longo da história. Isso é muito verdadeiro no
sentido de que não há como predeterminar permanentemente as formas e as
modalidades da automediação humana, precisamente porque ela é
automediação. As complexas condições dialéticas dessa automediação pela
atividade produtiva só podem satisfazer-se – uma vez que são constantemente
criadas e recriadas – no curso dessa própria automediação. É por isso que todas
as tentativas de produzir sistemas de explicação histórica nitidamente
encerrados em si mesmos e convenientemente fechados resultam ou em alguma
redução arbitrária da complexidade das ações humanas a simplicidade crua das
determinações mecânicas ou na sobreposição idealista de um ou outro tipo de transcendentalismo
a priori à imanência do desenvolvimento humano.”
“A “tendência universal do capital”, que
transfere as condições objetivas de produção ao plano dos intercâmbios globais,
no interior da estrutura de divisão internacional do trabalho e do mercado
mundial, distingue o sistema do capital de todos os estágios de produção anteriores”19.
No entanto, uma vez que as condições de produção como um resultado encontram-se
fora das empresas industriais particulares – fora até mesmo das corporações
transnacionais e monopólios estatais mais gigantescos – a “tendência
universalizante” do capital acaba sendo de fato uma dádiva muito defeituosa.
Pois, enquanto por um lado ela cria a genuína potencialidade de emancipação
humana, por outro representa a maior de todas as complicações possíveis – já
que implica até mesmo o perigo de conflitos totalmente destrutivos – no sentido
de que as condições necessárias de produção e controle se encontram fora
e, por conseguinte, em todos os lugares e em lugar nenhum, como em um
pesadelo. Em vista disso, o pior pesadelo seria esperar que a “mão invisível”
solucionasse todas as contradições caoticamente engrenadas e os antagonismos
destrutivos do sistema do capital globalmente entrelaçado, quando já não
fez o que supostamente deveria fazer, a despeito da ilimitada confiança que lhe
conferiram Adam Smith, Kant, Hegel e muitos outros, em uma escala bem mais
modesta, nos séculos passados.
A sóbria verdade é que a tendência
universalizante do capital jamais pode chegar à fruição no interior de
sua própria estrutura. Pois o capital deve decretar que as barreiras que não
pode transcender – a saber, suas limitações estruturais recônditas – são
limites intransponíveis de toda produção em geral. Ao mesmo tempo, o que se
deve de fato reconhecer e respeitar como um limite inviolável e uma condição
vital do desenvolvimento contínuo – isto é, a natureza em toda a sua
complexidade como o fundamento da própria existência humana – é integralmente
desconsiderado na sistemática subjugação, degradação e destruição última da
natureza. Isso ocorre porque os interesses fundamentalmente cegos da expansão
do capital têm de rejeitar até mesmo o fato de que as condições mais
elementares da vida humana são diretamente enraizadas na natureza. Por
conseguinte, em ambos os aspectos, isto é, tanto em relação àquilo que o
capital se recusa a reconhecer – seus próprios limites estruturais quanto no
que se refere ao seu impacto incorrigivelmente destrutivo sobre a natureza -o
substrato vital da própria vida humana -, cumpre efetivar um rompimento consciente
com as determinações autovantajosas do sistema do capital.
As mesmas considerações se aplicam à
mitologia da “globalização”, promovida com zelo missionário pelos ideólogos do
capital como uma versão mais palatável da “mão invisível” para o nosso tempo.
Quando projetam os benefícios supostamente globais e onilaterais, em conjunção
com o mundo do mercado, ignoram ou deliberadamente distorcem que aquilo que
realmente existe – e existiu durante um longo tempo – está longe de ser
universal e equitativamente benéfico, mas, ao contrário, é um mercado
mundial imperialisticamente dominado. Estabeleceu-se como um conjunto das relações
de poder mais iníquas, operando sempre em vantagem dos mais fortes e da
cruel dominação – se necessário for, mesmo do subjugo militar direto – e
exploração dos mais fracos. Uma ordem “globalizada” constituída sobre essa
base, sob a estrutura geral de comando do Estado moderno, só poderia piorar as
coisas. Eis porque, também a esse respeito, sem um rompimento consciente
com o modo de controle sociometabólico do capital o potencial emancipatório
positivo de longo alcance dos intercâmbios reprodutivos globais da
humanidade não pode chegar à sua fruição real. Somente o uso criativo do tempo
livre pelos indivíduos sociais, em busca dos objetivos livremente escolhidos
por eles, pode levar a cabo o tão necessário resultado benéfico.”
19. Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie
(Marx-Engels-Werke, Berlim, Dietz Verlag, 1983, v. 42). p. 445
“Deveria ser ainda mais óbvio hoje do que
jamais fora que o alvo da transformação socialista não pode ser somente o capitalismo,
a fim de obter um êxito duradouro: cumpre que seja o próprio sistema do
capital.
Esse sistema em todas as suas formas
capitalistas ou pós-capitalistas é (e tem de permanecer) orientado à
expansão e dirigido pela acumulação5. Naturalmente, o que
está em questão a esse respeito não é um processo designado à crescente
satisfação da necessidade humana. Antes, é a expansão do capital como um fim em
si mesmo, servindo à preservação de um sistema que não poderia sobreviver sem
afirmar constantemente seu poder como um modo ampliado de reprodução. O sistema
do capital é antagônico até o mais fundo de seu âmago, por conta da
subordinação estrutural hierárquica do trabalho ao capital, que usurpa
totalmente – e deve sempre usurpar – o poder de decisão. Esse antagonismo
estrutural predomina em todos os lugares, desde os menores “microcosmos”
constitutivos até o “macrocosmo” que abarca as mais abrangentes estruturas e
relações reprodutivas. E, precisamente porque o antagonismo é estrutural,
o sistema do capital é – e deve sempre permanecer – irreformável e incontrolável.
O fracasso histórico da socialdemocracia reformista fornece um testemunho
eloquente da irreformabilidade do sistema; e a crise estrutural cada vez mais
profunda, com seus perigos para a própria sobrevivência da humanidade, coloca
em acentuado relevo a sua incontrolabilidade. Com efeito, é inconcebível
introduzir as mudanças fundamentais exigidas para remediar a situação sem
superar o antagonismo estrutural destrutivo tanto nos “microcosmos”
reprodutivos como no “macrocosmo” do sistema do capital como um modo de
controle sociometabólico oniabrangente. E isso só se pode alcançar se for
colocada em seu lugar uma forma radicalmente diferente de reprodução
sociometabólica, orientada ao redimensionamento qualitativo e ao aumento da
satisfação da necessidade humana; um modo de intercâmbio humano controlado não
por um conjunto de determinações materiais fetichistas, mas pelos próprios
produtores associados.”
5 A crise crônica de acumulação como um grave
problema estrutural foi salientada por Paul Sweety eHam Magdoff em diversas
ocasiões.
“Onde está hoje o proletariado e que papel ele
desempenha na mudança social? Onde podemos encontrar hoje o agente?
István Mészáros: Penso que sua pergunta diz respeito
realmente à questão do agente social da transformação. Pois é isso que a
palavra “proletariado” resumo no tempo de Marx, e com esse vocábulo as pessoas
frequentemente designavam o proletariado industrial. As classes operárias
industriais constituem-se, em sua totalidade, de trabalhadores manuais, desde a
mineração até os diversos ramos da produção industrial. Restringir o agente
social da mudança aos trabalhadores manuais não é obviamente a posição do próprio
Marx. Ele estava muito longe de pensar que o conceito de “trabalhador manual”
proporcionaria uma estrutura adequada de explicação sobre aquilo que uma
mudança social radical demanda. Devemos recordar que ele está falando de como,
pela polarização da sociedade, um número cada vez maior de pessoas é
proletarizado. Assim, é o processo de proletarização inseparável do
desdobramento global do sistema do capital – que define e em última instância
estabelece o problema. Ou seja, a questão é como a maioria esmagadora dos
indivíduos cai em uma condição na qual perde todas as possibilidades de
controle sobre sua vida e, nesse sentido, torna-se proletarizada. Portanto,
novamente, tudo recai na questão de “quem detém o controle” do processo de
reprodução social quando a maioria esmagadora dos indivíduos é proletarizada e
degradada à condição de extrema impotência, assim como foram os membros mais
vis da sociedade – os proletários – em uma fase anterior de desenvolvimento.”
“Existiram todos os tipos de fantasia, especialmente
nas últimas décadas, de que a “revolução da informação” acabaria
definitivamente com o trabalho e viveríamos felizes para sempre na “sociedade
pós-industrial”. A ideia de o trabalho se tornar divertimento tem uma linhagem
respeitável e remonta a Schiller. No entanto, suas recentes renovações
apologéticas do capital constituem uma completa absurdidade. Pode-se abolir por
decreto o trabalho assalariado. Mas isso está muito longe de resolver o
problema da emancipação do trabalho, que só é concebível como a autoemancipação
dos “produtores associados”. O trabalho humano como atividade produtiva sempre
permanecerá a condição absoluta do processo de reprodução. O substrato natural da
existência dos indivíduos é a própria natureza, que deve ser controlada
racional e criativamente pela atividade produtiva – em oposição a ser dominada
irresponsável e destrutivamente pelos imperativos irracionais, desperdiçadores
e destrutivos da expansão do capital. O metabolismo social envolve o
intercâmbio necessário entre os próprios indivíduos e entre a totalidade dos
indivíduos e a natureza recalcitrante. No século XVIII, até mesmo a ideia
original, não apologética, do trabalho como divertimento era inseparável da
idealização da natureza: a ignorância ou negação de seu necessário caráter
recalcitrante. Mas as recentes réplicas de apologia ao capital são uma afronta
a toda crença, dada a esmagadora evidência da devassa destruição da natureza
pelo capital, cinicamente ignorada pelos proponentes dessas teorias.”
“Independentemente das alegações da atual “globalização”,
é impossível existir universalidade no mundo social sem igualdade
substantiva. Evidentemente, portanto, o sistema do capital, em todas as
suas formas concebíveis ou historicamente conhecidas, é totalmente incompatível
com suas próprias projeções – ainda que distorcidas e estropiadas – de
universalidade globalizante. E é enormemente mais incompatível com a única
realização significativa da universalidade viável, capaz de harmonizar o
desenvolvimento universal das forças produtivas com o desenvolvimento
abrangente das capacidades e potencialidades dos indivíduos sociais livremente
associados, baseados em suas aspirações conscientemente perseguidas.”
“O sistema do capital se articula numa rede
de contradições que só se consegue administrar medianamente, ainda assim
durante curto intervalo, mas que não se consegue superar definitivamente.
Na raiz de todas elas encontramos o antagonismo inconciliável entre capital e
trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de subordinação
estrutural e hierárquica do trabalho ao capital, não importando o grau de
elaboração e mistificação das tentativas de camuflá-la.”
“A dimensão militar de tudo isso é grave.
Portanto, não é exagero afirmar – tendo em vista também o antes inimaginável
poder destrutivo dos armamentos acumulados ao longo da segunda metade do século
XX – que entramos na fase mais perigosa do imperialismo em toda a história; pois
o que está em jogo hoje não é o controle de uma região particular do planeta,
não importando o seu tamanho, nem a sua condição desfavorável, por continuar
tolerando as ações independentes de alguns adversários, mas o controle de sua totalidade
por uma superpotência econômica e militar hegemônica, com todos os meios – incluindo
os mais extremamente autoritários e violentos meios militares – à sua
disposição. É essa a racionalidade última exigida pelo capital globalmente
desenvolvido, na tentativa vã de assumir o controle de seus antagonismos
inconciliáveis. A questão é que tal racionalidade – que se pode escrever sem
aspas, pois ela corresponde genuinamente à lógica do capital no atual estágio
histórico de desenvolvimento global – é ao mesmo tempo a forma mais extrema de
irracionalidade na história, incluindo a concepção nazista de dominação do
mundo, no que se refere às condições necessárias para a sobrevivência da
humanidade. (...)
Os que sustentam que hoje o imperialismo não
implica a ocupação militar de território não apenas subestimam os perigos que
nos esperam, mas também aceitam as aparências mais superficiais e enganadoras
como as características substantivas definidoras do imperialismo de nosso
tempo, ignorando tanto a história quanto as tendências contemporâneas de
desenvolvimento. Com suas bases militares, os Estados Unidos ocupam
militarmente o território de nada menos que 69 países: um número que
continua a crescer com a ampliação da Otan. Essas bases não existem para
benefício das pessoas – a grotesca justificativa ideológica –, mas para
benefício único do poder de ocupação, de forma a lhe dar condições de impor
políticas que melhor atendam aos seus interesses. (...)
É evidente que as forças militares têm de ser
economicamente sustentadas, o que as confina a empresas limitadas tanto no
porte das máquinas militares empregadas como no período de operações. O
registro histórico das aventuras imperialistas passadas mostra que, quando elas
se tornam muito extensivas – como foi o caso da França, primeiro sobre a
Indochina, depois sobre a Argélia, e mais tarde dos Estados Unidos sobre o
Vietnã –, é inevitável enfrentar o fracasso, ainda que às vezes seja demorada a
sua conclusão. Com relação às incontáveis operações militares imperialistas do
passado, é preciso lembrar não apenas as que ocorreram nas Filipinas ou na fracassada
guerra em grande escala de intervenção no Vietnã33, mas também as da
Guatemala, da República Dominicana, da Guiana Inglesa, de Granada, do Panamá e
do Congo, bem como outras operações militares em outros países, desde o Oriente
Médio e dos Bálcãs até várias partes da África. Uma das formas favoritas de
fazer prevalecer os interesses imperialistas dos Estados Unidos foi sempre a de
depor governos desagradáveis, impor ditadores totalmente dependentes do novo
senhor e governar os países em questão por meio desses ditadores bem
controlados. Estamos falando aqui de Marcos e Pinochet, Suharto e os generais
brasileiros, Somoza e os generais títeres dos Estados Unidos, sem esquecer os
coronéis gregos (a quem Lyndon Johnson chamou de “filhos da puta34”)
e Mobutu (chamado, num tipo esquisito de elogio, de o “nosso filho da puta35”
por um alto funcionário do Departamento de Estado). É bastante evidente o
desprezo com que membros do governo dos Estados Unidos tratavam seus serviçais
nos países sob sua dominação militar, enquanto cinicamente os apresentavam,
para consumo público, como defensores do “Mundo Livre”.”
33 Com relação ao desastroso envolvimento dos
Estados Unidos no Vietnã, ver o livro fundamental de Gabriel Kolko, Vietnam:
Anatomy of a War, 1940-1975, Londres, Allen & Unwin, 1986.
34 Andreas Papandreou me contou em 1973 como
foi libertado da prisão dos coronéis. Um antigo membro do “tanque de cérebros”
de Kennedy, John Kenneth Galbraith, numa atitude louvável, visitou o presidente
Johnson e lhe pediu que intercedesse em favor do velho amigo de Harvard.
Johnson chamou uma secretária e lhe mandou ligar para a Embaixada
norte-americana em Atenas. Isso feito, Johnson disse ao embaixador: “Mande
esses filhos da puta soltarem esse homem bom, Papandreou, imediatamente” – o
que foi feito. Pois eles sabiam muito bem quem mandava de verdade na Grécia.
35 The Economist informou poucas
semanas antes da derrubada do regime de Mobutu. A sentença completa citada pelo
Economist foi: “Sabemos que ele é um filho da puta, mas é o nosso filho
da puta”. Essa descrição de um aliado oportuno é do tempo de Roosevelt, embora
haja controvérsia se foi o próprio Roosevelt ou Cordell Hull quem usou a
expressão de Somoza.
Por conta do tamanho, foram citados apenas alguns trechos, mas faço um destaque das passagens entre as páginas 168 e 177.
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