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quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Marx, Engels, Lenin: a história em processo (Parte I) — Florestan Fernandes

Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-203-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Os dois textos reunidos nesse oportuno, e desde já, indispensável livro evidenciam o inteiro domínio de Florestan Fernandes no trato das obras seminais daqueles clássicos e explicitam sua opção de classe e seu compromisso político com “os de baixo”.
O leitor verá aqui preciosas análises teóricas sobre decisivos componentes históricos de ruptura societária nos quais concorrem temas próprios ao processo revolucionário: a consciência de classe, a relação vanguarda (partido)/massa, a questão da transição e a problemática do sujeito da revolução proletária. Encontrará também brilhantes reflexões que dão conta de eventos revolucionários tratados como história em (permanente) processo, apreendida como realidade concreta, “como totalidade histórica na qual se fundem o que parece ser superficial e o que é tido como profundo”.
Tanto o texto sobre Marx-Engels quanto o ensaio sobre Lenin são atualíssimos e extremamente úteis àqueles que buscam se aprofundar no conhecimento da obra desses clássicos. Os escritos de Florestan Fernandes coligidos neste volume são uma preciosa arma para a crítica teórica que fará todo o sentido para estudantes, pesquisadores e militantes sociais se eles atribuírem à leitura o que mais desejariam Marx, Engels, Lenin e Florestan: a translação do pensamento para a ação política revolucionária.


“Sem dúvida, a “posição radical” de Marx e Engels oferece um bom ângulo para avaliar o modo rápido, coerente e íntegro segundo o qual eles se confrontaram com a verdade histórica de sua consciência, do mundo em que viviam e de sua época. No entanto, a revolução de que se tornaram porta-vozes e militantes não brotou das formas intelectuais da consciência — ela emergiu do próprio curso da história. Se o radicalismo de ambos lhes permitia compreender essa revolução no seu íntimo e incorporá-la a seu modo profundo de ser, de pensar e de agir, eles não a inventaram nem a criaram. Como eles testemunham de maneira eloquente, serviram-na. Serviram-na com todo o ardor e sem desfalecimentos — mesmo e principalmente quando a sorte se mostrou por demais severa e os fatos pareciam contrariar todas as esperanças revolucionárias.
Nesse caso, é óbvio, eles refletiam, no plano intelectual, político e ideológico, o que ocorria na sociedade real. Só que eles refletiam sem deformações, de forma direta, consciente e livre. A evolução psicológica, intelectual, moral e política, que vai dos anos de aprendizagem até o célebre encontro dos dois em Paris (na primavera de 1844), preparou-os e armou-os para fazer face às tarefas teóricas e práticas que deveriam realizar, para suplantarem em um ápice o extremismo burguês, o “humanismo realista” e o materialismo filosófico; para fundirem ciência, dialética materialista e comunismo de uma perspectiva proletária; e para se identificarem, objetiva e subjetivamente — o que envolvia tanto a proletarização de sua consciência pessoal, quanto a proletarização da relação de ambos com o mundo — com a situação de classe, as lutas sociais e as aspirações políticas do proletariado. De fato, uma situação histórica revolucionária engendrou formas de consciência de classe revolucionárias. K. Marx e F. Engels captaram o processo em sua manifestação “decisiva” e “mais avançada” exatamente porque tiveram perspicácia, coragem e sabedoria suficientes para se alinharem entre os proletários, se engajarem em suas organizações de luta de classe e fomentarem o internacionalismo proletário. Vista deste ângulo, a ciência social histórica, que nasce em conexão com o polo operário da luta de classes/e com a revolução social, não se mascara nem se mistifica. Ela se abre para o cotidiano da vida operária e para as grandes transformações da sociedade burguesa, como teoria e como prática, fundadas na fusão da ciência rigorosa e incorruptível com a ação radicalmente inconformista do proletariado. Por isso, tal ciência é, de um lado, dialética e materialista, e, de outro, comunista (só que esta polarização é explícita — o que a economia política, por exemplo, não o fazia com o liberalismo, que ficava submerso no “ponto de vista científico”).
Se se parte da “Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1844) e se chega ao prefácio da Contribuição à crítica da Economia Política (1859), passando-se pelo Manifesto do Partido Comunista (1848), verifica-se objetivamente como se constitui e se desenvolve essa ciência social histórica, que não é um “epifenômeno da revolução burguesa]”, mas uma manifestação viva e instrumental da revolução proletária em gestação histórica.
Sem dúvida, a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, a força material não pode ser abatida senão pela força material, mas a teoria, desde que ela se apodere das massas, também se torna uma força material. A teoria é capaz de se apoderar das massas desde que ela demonstre ad hominem, e ela demonstra ad hominem desde que ela se torne radical. Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, a raiz, para o homem, é o próprio homem. (...) Ao anunciar a dissolução da ordem anterior do mundo, o proletariado não faz mais que enunciar o segredo de sua própria existência, pois ele é a dissolução de fato dessa ordem. (...) A filosofia encontra no proletariado suas armas materiais assim como o proletariado encontra na filosofia suas armas intelectuais, e desde que o raio do pensamento tenha atingido até a medula esse solo popular virgem se fará a emancipação que converterá em homens os alemães (...) A filosofia não pode se realizar sem abolir o proletariado, o proletariado não pode se abolir sem realizar a filosofia9.
Ora, atrás do Manifesto do Partido Comunista o que se descobre é o inverso. É a apropriação do intelectual revolucionário e do pensamento revolucionário pelo proletariado. Ao servir, o intelectual incorpora-se à vanguarda da classe e não fala em nome dela. Ao contrário, é ela quem fala através de seus intelectuais de vanguarda, que enunciam, pela ótica do comunismo, as condições objetivas da formação e evolução da classe, as quais são, por sua vez, as condições objetivas da revolução proletária (isto é, da dissolução da sociedade burguesa e da instauração de uma sociedade nova). Essa relação aparece de modo mais acabado e perfeito no prefácio da Contribuição à crítica da Economia Política. Pois o cientista que se coloca fora da ordem estabelecida por causa de sua vinculação com o proletariado também fica acima das deformações que ela impõe à pesquisa científica. O polo proletário não é, portanto, só uma opção, uma via de inspiração, de defesa e de auto-afirmação do intelectual revolucionário. Ele é, por sua própria existência, uma garantia de que o curso das coisas não pode ser alterado, e, por sua atividade inquebrantável, a segurança de que os progressos do capitalismo desembocam em uma crise social insuperável e em uma nova época histórica. Marx não se exprime nesse prefácio como um “filho do Povo”. A sua linguagem é serena, sintética e severa. Tal como convinha a alguém que enunciava a teoria da revolução social inerente à consciência de classe e ao futuro político do proletariado, dos quais participava intimamente — como militante proletário, como cientista social e como estrategista do movimento socialista revolucionário. O que interessa, aqui, é que o centro de gravidade de uma posição de classe, por ser a posição de uma classe revolucionária em ascensão histórica, assegurava ao cientista social uma extrema autonomia. Ele não precisava curvar-se às deformações ideológicas impostas pela ordem. Tampouco estava sujeito a novas deformações, porque uma classe social revolucionária não pode travar e vencer seus combates freando a contribuição da ciência ao alargamento e ao aprofundamento de sua consciência histórica e de sua capacidade de ação coletiva histórica.”
8: Ver adiante, parte IV, tópico 4, carta reproduzida sob o título “O que é novo no materialismo histórico”.
9 Ver Marx, K. Contribution à la critique de la Philosophie du Droit de Hegel. In: Critique du Droit Politique hégélien, p. 205 e 211-2. Contribuição à crítica da filosofia do direito — introdução.


No conjunto, sobressaem três elementos em interação: situação histórica do proletariado; consciência de classe revolucionária; e ciência da história. Ao constituir-se como ciência, a história tinha de sair de sua pele (o envoltório burguês), destruir o seu pesado lastro filosófico-especulativo e empirista-abstrato, armar-se com recursos apropriados à pesquisa empírica rigorosa, à reconstrução histórica objetiva, e à explicação causal de totalidades históricas (isto é, totalidades que pressupõem ação histórica dos homens e que envolvem processos que se repetem e variam, que parecem uma coisa e são outra, que são parcialmente conscientes e amplamente inconscientes, que se elevam à consciência de forma ilusória e deformada, ou seja, ideológica, etc.). A consciência histórica burguesa podia contentar-se com uma história ao nível da superfície, pulverizadora e mistificadora, porque a burguesia como classe só instrumentalizou revolucionariamente a liberdade da existência das classes e sua própria hegemonia.
A consciência histórica proletária requer uma história científica, que investigue as “relações reais”, a partir das “relações históricas primárias” e dos fatores materiais do “desenvolvimento histórico”, isto é, uma história em profundidade, totalizadora e desmistificadora. O proletariado como classe defronta-se com a tarefa histórica de extinguir a divisão do trabalho social, a dominação de classe, o “estranhamento” ou a alienação do trabalho, a propriedade privada, o capital e o regime de classes. A sua história desencava todas as relações que encadeiam o homem e a sociedade à natureza, todas as relações que ligam a formação e a transformação dos modos de produção à constituição e transformação das formações sociais, da consciência social, do Estado e das formas ideológicas correspondentes. Ela põe no centro das investigações a sociedade civil, o comércio e a indústria e encara a sociedade civil como a “verdadeira fonte e teatro de toda a história”.”


Deixando de lado a maestria de Marx e Engels, que projetaram o debate sobre a situação histórica global (perspectivas de alianças do proletariado com vários estratos de classes), pelo menos três pontos devem ser postos em destaque.
Primeiro, os riscos de uma aliança entre oprimidos “desiguais”, em um país com desenvolvimento industrial atrasado, como a Alemanha na época. Os estratos pequeno-burgueses estavam fortemente empenhados em abolir traços do passado feudal e em implantar inovações que interessavam diretamente às classes operárias. No entanto, alertam Marx e Engels com vigor, os proletários não deveriam deixar-se corromper “com esmolas mais ou menos veladas” e tampouco deveriam trocar uma “melhoria temporária de sua situação” pela debilitação de sua própria força revolucionária. A questão que sobe à tona é a das duas revoluções em presença. A pequena-burguesia tentava fortalecer e acelerar uma débil revolução democrático-burguesa. O proletariado constituía a única classe que poderia ser portadora de uma nova revolução social. Nesse contexto histórico, o que era um fim, para a pequena-burguesia, não passava de um meio para o proletariado. Assim se coloca o tema da revolução permanente: os benefícios da revolução democrático-burguesa não deviam desviar os proletários de sua própria revolução. Aí está a parte mais forte e de raro poder expressivo do texto. Os pequeno-burgueses queriam
concluir a revolução o mais rapidamente possível, depois de terem obtido, no máximo, os reclamos supramencionados. Os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente, até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o poder do Estado – etc. (...) Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova.*
*: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas.


O título história em processo evoca uma maneira de apanhar a história em seu movimento de vir-a-ser cotidiano (ou seja, como ela brota aos “nossos olhos”; ou se desenrolou em um presente vivido e em um passado que possa ser descrito “dinamicamente”). A história em processo é a história dos homens, o modo como eles produzem socialmente a sua vida, ligando-se ou opondo-se uns aos outros, de acordo com sua posição nas relações de produção, na sociedade e no Estado, gerando, assim, os eventos e processos históricos que evidenciam como a produção, a sociedade e o Estado se preservam ou se alteram ao longo do tempo.”


A história da vida cotidiana e do presente em processo, encarada da perspectiva do materialismo histórico, propõe-se lidar, simultaneamente, com os fatos históricos que permitem descrever tanto o “superficial”, quanto o “profundo” na cena histórica. No plano descritivo, ela busca a reconstrução da situação histórica total; no plano interpretativo, ela se obriga a descobrir a rede (ou as redes) da causação histórica, associando reciprocamente as transformações das relações de produção às transformações da sociedade e das superestruturas políticas, jurídicas, artísticas, científicas, religiosas, etc.”


“A descrição histórica praticada por Marx era despojada, sincera, direta, em cima dos fatos, mas pegava-os através de seu caráter essencial no encadeamento que os ligava entre si em termos de relações de sucessão. A descrição histórica marxista combina, magistralmente, a consciência histórica concreta dos fatos (através de agentes privilegiados das várias classes e frações de classes), o seu desmascaramento por uma análise raramente explicitada e o curso histórico límpido, que o investigador pode introduzir porque considera ocorrências e processos históricos ex eventu. O que quer dizer que Marx explora três planos simultâneos de observação da realidade (e, por vezes, deixa-os evidentes na exposição). O que apresenta, como “produto final”, não é uma reconstrução histórica que reproduza “fielmente” a realidade no plano empírico. Por encarar o concreto como totalidade, a reconstrução histórica é um passo preliminar, uma técnica ou processo de trabalho, que o investigador não pode evitar. Os elementos essenciais do quadro histórico total são retirados daí (ou por esse meio) e submetidos a uma representação sinótica. Contudo, a exposição só é atingida depois de concluído outro levantamento mais importante: a determinação das várias séries ou cadeias de fatos essenciais, relacionados entre si por conexões causais conhecidas e comprovadas (relações de causa e efeito interdependentes e em ação recíproca). Esta etapa da observação (de análise e de interpretação) era a que recebia maior cuidado da parte de Marx.”



“As estruturas econômicas e sociais não “se refletem”, apenas, elas também se objetivam e materializam ao nível dos acontecimentos e dos agentes do drama histórico (as funções de uma Assembléia Nacional Constituinte ou de um presidente e do seu ministério, etc., na descrição de Marx).
Do mesmo modo, os acontecimentos e os agentes do drama histórico não são, apenas, “determinados pela base econômica e social” (pois esta não é um engenho autossuficiente), eles concentram e desencadeiam forças que preservam ou alteram aquela “base”. O esquema interpretativo materialista e dialético não só permitia passar de um nível a outro: ele exigia uma representação do processo histórico como realidade concreta, isto é, como totalidade histórica, na qual se fundem o que parece ser superficial e o que é tido como profundo.
Tomando a luta de classes como elemento dinâmico central da realidade e como uma posição estratégica de observação, Marx descobria na forma de manifestação objetiva das contradições econômicas, sociais e políticas na luta de classes as indicações de que precisava para compor sua visão da situação histórica como totalidade. Essas indicações permitiam conhecer: 1.°) quais eram as forças dinâmicas, que procediam do estado de equilíbrio ou de desequilíbrio das relações sociais de produção, e como essas forças irrompiam na cena histórica, convertendo-se em acontecimentos, ações de personagens históricos, atividades das instituições e da própria ordem existente, ou outros processos histórico-sociais; 2.°) se essas forças dinâmicas podiam ser canalizadas pelos meios institucionais de controle, devido a uma baixa ativação da luta de classes ou ao seu amortecimento por vias normais e excepcionais; 3.°) ou se tais forças dinâmicas caíam em um campo de fermentação incontrolável e crescente, devido a uma forte ativação da luta de classes (entre frações das classes dominantes e, principalmente, do proletariado e outros estratos das classes subalternas com as classes dominantes), provocando o aumento do volume daquelas forças dinâmicas, bem como o aparecimento de outras novas, e liberando, assim, pressões específicas, originadas na sociedade civil e na esfera política, sobre a alteração das relações de produção (ou em um limite extremo sobre a sua dissolução).
Marx podia, pois, superar os diversos dilemas da antiga filosofia da história e dos historiadores empiristas e unificar a descrição histórica (em termos da interpretação e, naturalmente, da exposição dos resultados). Acresce que, no plano expositivo, ele tinha toda a liberdade de omitir (ou não) determinações da situação econômica conhecidas, que só sobrecarregariam a descrição e dificultariam o entendimento do leitor. O conhecimento das determinações preenchia a função de  conferir segurança ao expositor (se uma periodização, que parecia “bater com os fatos”, tinha ou não sentido, quando levados em conta os fatores de larga duração, etc.). Além disso, nem sempre é necessário passar das relações das classes para as determinações do desenvolvimento econômico. Essa é uma ideia ingênua e que, se fosse posta em prática obstinadamente, obrigaria cada investigador a começar de novo o estudo da gênese do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa.
Certas determinações econômicas e sociais são bem estabelecidas e só interessa aprofundar a investigação da “base material das relações sociais de produção” se as alterações em processo afetarem essas relações. Por isso, Marx se ateve, com frequência, à caracterização das relações e dos conflitos entre as classes, que pressupunham um certo estágio do desenvolvimento da referida “base material” (mas não tornavam necessário o seu estudo independente). Daí o fato aparentem ente singular: ele procede como historiador, introduzindo os resultados das sondagens econômicas somente em certos momentos da exposição, nos quais eles eram indispensáveis.”


A análise histórica corrente lida com acontecimentos ou com processos históricos produzidos. Fala-se em história de “fatos mortos” e em história de “fatos vivos”. Mas, na verdade, concede-se pouca (ou nenhuma) atenção às condições de produção dos acontecimentos e processos históricos, como se a história fosse, sempre, algo dado. Marx vai em direção oposta: faz de sua reflexão um expediente para remontar à história viva do passado (ou de vários passados), apanhando nas malhas da indagação as condições de produção dos acontecimentos e processos históricos.”


“A teoria do materialismo histórico esclarece esses processos através de sua base econômica (a produção e a reprodução das relações de produção capitalista implicam produção e reprodução da sociedade burguesa, e, portanto, da “civilização industrial moderna”). Sem reduzir esta civilização a certas estruturas e dinamismos econômicos e sociais fundamentais, pois ela entra na teia tecnológica das relações de produção e de organização da sociedade de classes e aparece como um elemento unificador e dinâmico na esfera das superestruturas políticas, ideológicas, religiosas, artísticas, científicas, etc., é óbvio que sua persistência, a sua transformação e o seu desaparecimento dependem diretamente do que ocorre na “produção e reprodução material” da vida humana. K. Marx não se voltou para esses aspectos: ele estava empenhado em explicar o modo especial de produção capitalista. No entanto, seu esquema de interpretação geral e os resultados teóricos de suas investigações histórico-sociológicas lançam luz sobre os processos mencionados e permitem entender como economia, sociedade e civilização se relacionam reciprocamente sob a existência e o desenvolvimento do modo de produção capitalista. De outro lado, agregando-se a civilização ao quadro geral das relações entre forças produtivas, relações de produção e superestruturas, obtém-se uma visão mais completa da situação histórica total. Em particular, pode-se observar melhor como estas últimas são ativadas normalmente, como influências condicionadoras e, mesmo, determinantes (elas fazem parte de redes articuladas de efeitos: em termos de leis derivadas, atuam como fatores dinâmicos funcionais, que reproduzem o sistema capitalista parcialmente ou como um todo; em termos de causalidade, é evidente que diversos elementos das superestruturas se convertem de efeitos em causas, por fazerem parte de uniformidades de sequência dotadas de maior ou menor autonomia relativa). Em suma, existem várias razões para que se examinem as contribuições da teoria do materialismo histórico de uma perspectiva mais ampla, e um livro como O capital acaba sendo mais importante, nesse sentido, do que os especialistas costumam imaginar. Em uma sociedade de forma antagônica extrema, como a sociedade burguesa, a virulência e as consequências revolucionárias e contrarrevolucionárias dos antagonismos e das lutas de classes acabam conferindo à civilização vigente uma soma de influências históricas (funcionais umas e causais outras), que não podem ser ignoradas ou subestimadas e, principalmente, que só podem ser mantidas distantes da explicação materialista e dialética em detrimento da teoria (e da prática correspondente).
O primeiro excerto incide diretamente no que interessa:
Nenhuma sociedade pode produzir constantemente, isto é, reproduzir, transformar constantemente de novo uma parte dos seus produtos em meios de produção ou elementos de nova produção. — Em resumo — todo processo social é, portanto, ao mesmo tempo processo de reprodução.95
É lógico que pelo menos duas coisas precisam ficar claras. De um lado, que à forma capitalista de produção corresponde uma forma capitalista de reprodução. Graças ao trabalho assalariado, ao dissociar o trabalhador dos meios de produção, o capitalista se apropria de mais-valia, de trabalho não pago. O trabalho não pago gera valor, que não fica com o produtor, mas com o capitalista. Na reprodução, o que se reproduz é o valor antecipado com o capital, o que quer dizer que “o valor se valoriza”, isto é, ele cresce através da apropriação da mais-valia. De outro lado, a reprodução simples é caracterizada como “a simples continuidade da produção capitalista” (o capital pode realizar, em um determinado período de tempo, às custas do trabalho não pago, o seu equivalente em valor). Isso significa que a reprodução simples é um processo pelo qual todo capital se transforma em “capital acumulado ou mais-valia capitalizada” (ou seja, no fim do referido período de tempo, o trabalhador nada obteve para si, senão a sua subsistência; mas o capitalista viu a sua riqueza material convertida em capital, desfrutou a vida e pôde contar com a continuidade do processo). O que interessa, à investigação histórica, é o procedimento empregado por K. Marx para chegar ao fundo das coisas. Ele não está preocupado, aí, com a origem pretérita da acumulação capitalista. É o processo mesmo que ele observa e caracteriza. Os atores — o trabalhador e o capitalista; a relação — trabalho assalariado e capital; o produto econômico direto — salário, mais-valia e mais-valia capitalizada; o produto social — a base material das relações entre capital e trabalho assalariado como o núcleo da existência e reprodução da sociedade capitalista e de sua civilização. Este último tema pode ser inferido do texto selecionado. Porém, K. Marx o formula explicitamente, em passagem que não foi transcrita:
As coisas mudam de aspecto assim que, em lugar do capitalista e do operário isolado, consideramos a classe capitalista e a classe operária; em lugar do processo de produção de uma mercadoria, o processo de produção capitalista em seu curso e em sua extensão social. Quando o capitalista inverte em força de trabalho uma parte de seu capital, valoriza todo o seu capital. Com um tiro mata dois passarinhos. Aproveita não só o que recebe do operário, mas também o que dá a este. O capital alienado em troca de força de trabalho é transformado em meios de subsistência, cujo consumo serve para reproduzir a substância muscular, nervosa, óssea e cerebral dos operários existentes e para engendrar novos operários. Dentro dos limites do absolutamente necessário, o consumo individual da classe trabalhadora é, pois, a transformação dos meios de subsistência alienados pelo capital em troca de força de trabalho por nova força de trabalho explorável pelo capital. É a produção e a reprodução do meio de produção mais indispensável para o capitalista, o próprio operário.96
Essa é a dialética do capitalista e do trabalhador assalariado. A produção e a reprodução criam e recriam o operário e a classe operária. Essa descrição límpida não é histórica? Trata-se de uma relação elementar e repetitiva (pelo menos onde e enquanto existir o modo de produção capitalista). Contudo, ela é mais explicativa, historicamente falando, que os acontecimentos ou processos que aparecem à superfície da cena histórica. Pois estes — será preciso dizer? — dificilmente podem ser objetivamente descritos e explicados sem aquela relação elementar (embora a reprodução simples esteja, como forma histórica do desenvolvimento capitalista, em certos países da Europa, no umbral da história moderna).”
95 MARX, K., O Capital: crítica da economia política, 2011, p. 661.
96 MARX, K., El Capital, vol. II, p. 72, (ed. cit. p. 667).

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