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domingo, 5 de janeiro de 2020

Evidências do real: os Estados Unidos pós-11 de setembro – Susan Willis

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-110-9
Tradução: Marcos Fabris e Marcos Soares
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 128
Sinopse: Evidências do real não é apenas mais um livro sobre os Estados Unidos pós-11 de Setembro. Trata-se de um estudo das relações entre a história, a realidade norte-americana atual e a produção cultural que eclodiu, tendo como objetivo conter a crise deflagrada pelos atentados terroristas.
A obra fura o bloqueio da censura imposta pelo governo Bush a todos que pretenderam emitir críticas ou opiniões contrárias ao conjunto de medidas tomadas após os atentados, medidas essas já amplamente analisadas por intelectuais de outros países. Evidências do real traz o olhar de Susan Willis, estudiosa norte-americana de cultura popular, diretamente do olho do furacão.
O cotidiano da população dos Estados Unidos, segundo a autora, está relacionado a uma série de ficções culturais populares, veiculadas pelos meios de comunicação de massa e engolidas sem maiores reflexões. Exemplos como a produção do baralho “Ases do mal”, com as figuras dos “terroristas mais procurados”, e programas governamentais que pretendem transformar cidadãos comuns em espiões de vizinhos dizem muito sobre a conjuntura do país. Mais ainda quando a análise aproveita os mesmos elementos utilizados nessas construções. O livro, segundo Willis, “desmonta a cultura com as armas da cultura”.
Os ensaios que compõem esta obra preservam uma linguagem que procura capturar a forma de expressão norte-americana. Tomam como ponto de partida, eventos ou fenômenos que tenham sido tratados de modo trivial ou reducionista. Abordam temas como patriotismo de massa, o fenômeno do antraz no contexto do consumo de massa, canção popular, governo paralelo, estatuto do risco e violência.
Willis demonstra que, por mais banais e aleatórios que pareçam, esses elementos são evidências da realidade histórica norte americana. Nas palavras da autora, “o livro é uma cartilha sobre os modos de ler tais evidências como indicadores da nossa realidade”


“Logo após a queda do World Trade Center, com os números dos investimentos comerciais em profunda desordem e a economia caminhando rumo a uma recessão que ninguém até então queria admitir, mandaram que fôssemos às compras. Comprar para mostrar que somos norte-americanos patriotas. Comprar para mostrar nosso caráter resiliente à morte e à destruição. Comprar porque na sociedade capitalista essa é a única forma de participação. Contrariamente aos apelos presidenciais para consumirmos, muitos norte-americanos escolheram doar sangue como forma de laço eucarístico de nossa vida e corpo com os atingidos e mutilados. O desejo de estabelecer contato físico com os outros, de descrever a comunidade na troca e circulação de sangue, contrasta com o modelo consumista da sociedade, no qual as pessoas se articulam como consumidores individuais ao invés de membros de uma coletividade. Ao mesmo tempo que esse modelo de comunidade aponta contrastes, ele já está sendo reciclado no consumismo: um grande número de escritores distópicos (Leslie Marmon Silko, por exemplo) começou a imaginar um mundo no qual os pobres são cultivados pelos seus órgãos, uma situação que se tornou realidade na China, onde compradores ricos podem dar lances em leilões de órgãos de prisioneiros sentenciados à morte que aguardam a execução da sentença.”


“Com bandeiras em nossas camisetas, expressamos o sincero desejo de adicionar nossa confiança individual ao empenho coletivo mesmo quando reconhecemos que o esforço norte-americano se resume ao consumo de mercadorias e à garantia de sua distribuição mundial. Imediatamente após os ataques de 11 de Setembro, muitos anúncios de camisetas enfatizavam que elas eram made in America. Faria alguma diferença se nossas camisetas com bandeiras fossem feitas em sweatshops do Haiti, já que muitos dos produtos “oficiais” da Disney vêm de tais lugares, onde por vezes são feitos por crianças da mesma idade de crianças norte-americanas que consomem essa parafernália? Por sua trivialidade, a bandeira na camiseta materializa a circulação global da mercadoria. É o emblema mundano da aliança entre o mercado e o império. Finalmente, por toda a parte do mundo podemos comprar a América, mesmo que rapidamente se aproxime o dia no qual nada mais será made in America. Não importa; todos os cidadãos do planeta poderão comercializar nossas logomarcas. Nossos amigos e aliados podem achar cool vestir nossa bandeira, enquanto nossos inimigos a encontrarão no lixo das zonas de guerra de seus países, estampada nos fragmentos de minas, bombas e granadas – sinal de que a retribuição também é made in America.”


(Posteriormente aos ataques terroristas por antraz, inúmeros trotes de novos ataques com esta substância alarmaram os EUA)
“Como criptograma da nossa própria indústria bioterrorista e metáfora da poluição industrial asfixiante, o antraz é os Estados Unidos, nosso logo mais apropriado. Poderia ainda ser a marca de uma mercadoria mais conhecida do que a banda de heavy metal Anthrax. No mundo do capitalismo da mercadoria, em que grande parte da vida diária é encenada num fluxo de imagens, a definição de espetáculo de Guy Debord é um truísmo. No contexto de uma sociedade embasbacada diante do seu próprio espetáculo, o trote funciona contra-intuitivamente como a verdade que desmascara a mentira por nós considerada realidade. Divergindo dramaticamente de John Ashcroft, para quem as falsas ameaças de antraz levaram a um “alarme ilegítimo”, o golpe pode ser um dos poucos incidentes capazes de suscitar sentimentos verdadeiros em uma cultura que vive a pseudo-realidade da mercadoria. Mesmo a destruição das Torres Gêmeas foi rebaixada a um espetáculo, cuja réplica é exibida e transformada em memorial para ser difundida novamente pelos meios de comunicação em todas as ocasiões possíveis. Num excesso de realidade transformada em imagem, o trote enquanto mentira rompe com a complacência da vida diária. Ele nos arranca da nossa anomia e pede que indaguemos por que tantos cidadãos cumpridores da lei decidiram quebrá-la.
Não é possível que estejamos insatisfeitos! Não somos a nação dos bem abastecidos e tão distantes da necessidade que, em breve, morreremos de obesidade? Não somos a nação cujo contentamento se manifestou logo após 0 11 de Setembro com um índice de 90% de aprovação presidencial? Será possível que os golpes envolvendo o antraz estariam mascarando um descontentamento latente, o reprimido humor negro da insatisfação?
Assim como admitimos a satisfação vazia da mercadoria — quão desbotada ela parece uma vez que a levamos para casa e a desembrulhamos — talvez pudéssemos reconhecer a natureza opaca do nosso presidente, legitimado por ordem da Corte Suprema. Assim como a fraude da mercadoria, poderíamos ver nosso presidente preparando seu próprio roteiro, junto com seu governo de sombras, numa refilmagem do Dr. Fantástico. Comentando a “fraude da satisfação16, Debord aponta para um infindável ciclo de consumo, com cada nova mercadoria criada com o intuito de superar a insatisfação da anteri0r. De modo semelhante, olhamos para um novo ciclo eleitoral, tentando ludibriar nosso desespero com a recém-aprovada reforma das finanças eleitorais. Na economia política da insatisfação do consumidor, o trote funciona como uma negação. Ele intervém em um ciclo de desejos abastecidos pela mercadoria cuja penetração do político se revela nas pesquisas de popularidade do nosso presidente e suas fotografias tiradas em escolas primárias. Ele é o incidente negativo que interrompe a dinâmica usual dos negócios. O trote não pode imaginar uma nova ordem política, mas ele emperra aquela que já existe.
O trote é uma manobra simbólica que mira o espetacular. É o irreal que evoca o real. Ele dá aos indivíduos descontentes um poder tremendo sobre outros indivíduos igualmente descontentes. De modo dramático, ele convoca a polícia, especialistas, toneladas de equipamento, os meios de comunicação; e lança todos para além de uma situação de normalidade, para uma nova, dura e cortante realidade de vida e morte. Ele fratura o tempo, rompe com a monótona linearidade temporal do trabalho ou da escola, todas aquelas horas que somamos e traduzimos em contracheques e impostos – o que Debord chama de a “infinita acumulação de intervalos equivalentes”17. Como uma ferramenta enfiada entre os dentes da engrenagem da opressão diária, o trote rompe com o tempo transformado em mercadoria. Seu produto é o não-produto do atraso. Tempo é dinheiro, seja no trabalho ou nas férias. Ganhamos e gastamos. O trote enfatiza a temporalidade negativa do tempo perdido. Cria um hiato, um oásis de antitemporalidade na tirania do tempo linear. É de admirar que muitos juízes tenham multado os golpistas do antraz na quantia monetária equivalente ao tempo perdido em virtude de sua brincadeira? Tais regras sugerem que nosso sistema não suporta a ausência de produção e tem de utilizar as multas como renda compensatória.
MAS ISSO TUDO É UMA BRINCADEIRA, um evento coreografado. Como espetáculo, o trote traduz nossa experiência real em hiper-real. Segundo Jean Baudrillard, a simulação existe para criar a veracidade do real18. Para ele, a Disneylândia existe somente para que o resto de Los Angeles possa parecer a sua verdade antitética. No entanto, a sutileza da simulação é como Los Angeles, a volátil terra natal do sofrimento amoroso e da ilusão; nem a Disneylândia, o parque de diversões dos desejos transformados em temas, é real. Do mesmo modo, o antraz real e o falso dão sentido um ao outro. A fraude é produzida como se fosse real, e o real é produzido como espetáculo pelos meios de comunicação. Na verdade, os meios de comunicação exigem a diferença — ainda que indistinguível, exceto em seus resultados — entre o real retratado como espetáculo e a farsa vivida como real — ambos presos na réplica espectral que mina a realidade dos dois termos. É significativo que na longa lista dos golpistas do antraz não haja apresentadores de noticiários de TV ou rádio. Sua ausência responde pela fusão da indústria do entretenimento e das notícias, união banalizada a partir da assimilação das redes de comunicação pelos gigantes da indústria do lazer como a Disney. A decisão governamental de cancelar seus planos para um “Gabinete de Informação Estratégica”, com o intuito de disseminar várias camadas de falsidade em todo lugar, menos nos EUA, simplesmente elimina uma redundância. Em uma sociedade que não distingue entre a informação equivocada e a real, a farsa serve como álibi para aquilo que tomamos como real.
O que há de mais real sobre os golpes do antraz é o fato de que a vasta maioria dos norte-americanos não os percebeu como brincadeiras. Sob o manto do terror, suprimimos a comédia. Minutos antes dos ataques, ríamos com Molly Ivins sobre as impropriedades verbais do nosso presidente. Segundos mais tarde, nos tornamos sérios. Perdidos ficaram a sátira, a estratégia central das críticas liberais e de esquerda; a ironia, lugar-comum da condição pós-moderna; e até mesmo o sarcasmo, a amarga pílula da geração pós-punk. No lugar deles, o trauma, intensificado e perpetuado por meios de comunicação chorando suas lamúrias de forma obsessiva; e o fundamentalismo, uma adesão culturalmente redutora à interpretação mais literal de todas as coisas. O patriotismo se tornou a cura dos traumas e a demonstração do fundamentalismo. Como pacientes da ala psiquiátrica, fomos totalmente envolvidos e amarrados por um patriotismo tão onipresente que beirou o fascismo. Instruídos a controlar nossa língua, pensamentos e atos, abraçamos o bombardeamento militar do Afeganistão e a criação do novo Gabinete de Segurança.
Foi essa atmosfera que gerou os trotes do antraz. Com todos os caminhos para o humor bloqueados, o horrível e inocente pó branco começou a aparecer sobre escrivaninhas e em maçanetas. Um rumor, um murmúrio, uma dúvida, ele se espalhava por nossa correspondência enquanto agitávamos entusiasticamente nossas bandeiras. Em uma atmosfera de fundamentalismo na qual a crítica equivale ao terrorismo e todas as formas de terror são igualmente absolutas, fracassamos na interpretação dos trotes como atos simbólicos. Deixamos de ver nessa experiência a expressão de toda a profunda e comezinha insatisfação da vida diária. Pouca atenção foi dada aos caminhos intuitivos que os trotes sinalizaram, de modo a apontar abertamente os significados mais básicos da nossa cultura. No desdobramento do 11 de Setembro, perdemos a chance de interpretar os contra-significados dos trotes. Reféns do medo, optamos por não voar.”
16 Guy Debord, Society of the Spectacle (Detroit, Black and Red, 1977), tese 70.
17 Ibidem, tese 147.
18 Jean Baudrillard, Selected Writings (Cambridge, Mark Poster Polity Press, 1988), p. 172.


“Embora os EUA estejam sempre prontos para encontrar soluções militares para dilemas que, no fundo, são de natureza política e econômica, desde 0 11 de Setembro tem havido alguma discussão sobre os motivos que criam tamanha hostilidade contra os norte-americanos. É claro que George Bush insiste no fato de que os terroristas odeiam nossas liberdades – enquanto sua administração está ocupada monitorando essas liberdades por meio do Departamento de Segurança. Mas não há nada a temer, pois com canalhas como John Pointdexter e Henry Kissinger — ambos há pouco ressuscitados com fichas limpas— a liberdade há de necessariamente prevalecer.”


“Nos meses que se seguiram ao 11 de Setembro, o serviço norte-americano teve não apenas de enfrentar cartas infestadas de antraz, mas também de decidir sobre o que fazer com “pilhas de cartas endereçadas a Osama bin Laden”1. A maioria dessas cartas foi enviada para o Afeganistão até que os investigadores do Departamento de Justiça pudessem obter um mandato autorizando a apreensão do líder da Al Qaeda. Como grande parte das cartas jamais foi aberta (exceto talvez pelo próprio Osama), podemos apenas tecer especulações sobre seu conteúdo. Certamente muitas deviam trazer ameaças. Os norte-americanos, sofrendo o trauma do ataque e dispostos a tomar medidas imediatas, podem muito bem ter descarregado todo seu rancor e frustração em cartas endereçadas ao responsável pelo seu sofrimento e sua raiva. Será que existem invectivas suficientes na língua inglesa para expressar tamanho ódio? Talvez algumas das cartas estivessem contaminadas com antraz.
Entretanto, é mais provável que elas estivessem impregnadas de perfume. Não é de esperar que as diversas mulheres que contaram a seus analistas sobre o perturbador sonho de terem dormido com Bin Laden tenham aproveitado a oportunidade para escrever cartas de sedução ao terrorista? Será que o rosto sombrio e atraente de Osama arriscou um sorriso ao abrir uma carta de amor enviada por uma norte-americana? Ou será que tal carta foi o beijo da morte, uma violação ainda mais tóxica que o antraz?
Maldição ou sedução, as cartas sinalizam uma relação ingênua com o real. Numa época em que a maioria dos norte-americanos envia mensagens eletrônicas a colegas, familiares, amigos, companhias e instituições, uma folha (escrita à mão ou datilografada) dobrada e colocada num envelope, selado, endereçado e enviado representa uma ligação tangível com um real desejado. As cartas remetidas a Osama realizam um tipo de mágica amigável por meio da qual o terrorista fantasmagórico, aquele rosto terrível, visto nos vídeos transmitidos pela Al Jazira, se torna um homem de carne e osso. Do mesmo modo que milhares de crianças norte-americanas escrevem cartas ao Papai Noel e as enviam para o Polo Norte, escrevemos cartas a Osama e as enviamos para o Afeganistão. A carta da criança procura confirmar a crença. Ela corrobora a realidade do Papai Noel por meio da lógica que equaciona uma carta real com um destinatário real. Do mesmo modo, Osama, misteriosamente místico para a imaginação ocidental, e o Afeganistão, tão remoto quanto o Polo Norte, são circunscritos pelo molde do real por meio da existência das cartas. (...)
Se uma leitura reducionista de Lacan considera que o simbólico, o imaginário e o real constituem categorias distintas, as cartas a Osama manifestam uma indistinção das fronteiras na qual o simbólico se impõe sobre o imaginário para revelar a existência do real. O resultado é uma versão do real que só existe como uma ficção. Numa série de ensaios sobre o estado do real no período pós-11 de Setembro, Slavoj Žižek recomenda que “é preciso ter a capacidade de discernir, naquilo que percebemos como ficção, o núcleo duro do Real que só temos condições de suportar se o transformarmos em ficção”2. Sem dúvida, os investigadores teriam sido capazes de discernir o “núcleo do real” se tivessem tido acesso às cartas. Certamente tal núcleo teria fornecido uma base para levar os autores das cartas ao tribunal ou, numa virada para o irreal, ajudado a enviá-los ao limbo de cúmplices ilegais do terror. Infelizmente, tais núcleos teriam reduzido o real à banalidade. Muito mais interessantes são os núcleos que jamais nos serão revelados, aqueles imbricados na ficção particular do autor de cada carta.
O que persegue 0 mundo de Setembro é 0 espectro do real, o horror de que possamos um dia exceder o código amarelo e os alertas laranjas até atingir em cheio o vermelho. Só então saberemos 0 que significa uma catástrofe real. Não só esses eventos esporádicos e isolados — um World Trade Center aqui, uma carta com antraz ali — mas o estrondo final que apenas validará Bush, Cheney e Rumsfeld, mas também os aniquilará. A explosão final é tanto um fragmento da imaginação quanto a noção “do Real definitivo oculto sob camadas de véus imaginários e/ou simbólicos”3. Ao designar esta “a aparição definitiva”4, Žižek argumenta que a noção de uma definitiva e absolutamente pura “Coisa Real é um espectro fantasmagórico cuja presença garante a consistência de nosso edifício simbólico”5.
Em nenhum outro lugar a qualidade fantasmática do real fica mais aparente do que em nosso próprio governo paralelo. Ficamos atordoados — perplexos — quando descobrimos, após seis meses do ataque ao World Trade Center, que não apenas temos um governo paralelo, mas também que a sua “sede segura e secreta” serviu de esconderijo para o vice-presidente Dick Cheney logo depois do 11 de Setembro. A base do nosso governo paralelo está em quarenta abrigos subterrâneos construídos em montanhas num raio de cem milhas de Washington, nossa própria Tora Bora. A localização de alguns desses lugares não é mais “secreta”. Por exemplo, em monte Weather, Virgínia, há um esconderijo destinado ao porta-voz do Congresso, a chefes de gabinetes e oficiais da Suprema Corte. Longe de ser uma caverna no Afeganistão, o monte Weather seria um paraíso para os talibãs. Descrito como uma pequena cidade”7, o espaço inclui “vastos escritórios, espaço para abrigar os tesouros artísticos da nação, [e] acomodação para milhares de pessoas”8. O fato de que o espaço pode funcionar tanto como abrigo quanto como túmulo fica evidente por duas características: a existência de “um reservatório privado e de um crematório”9. Talvez nosso governo esteja planejando seu próprio martírio.”
1 “Osama’s Got Mail”, The Washington Post, 28/9/2002, p. C3.
2 Slavoj Žižek, Bem-vindo ao deserto do Real! (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 34.
3 Ibidem, p. 46.
4 Idem.
5 Idem.
6 “Secret of the US Nuclear Bunkers”, Guardian Unlimited, 2/3/2002.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.


“Nós, os cidadãos da superpotência mundial, nos percebemos impotentes. Em nenhum outro lugar isso é tão abjeto e evidente quanto nas filas para revista nos aeroportos. Voluntariamente despimo-nos, removemos nossos sapatos e passamos por detectores de metais como submissos penitentes. Alguns de nós até felicitam os agentes de segurança por nos julgarem culpados até que os raios x nos provem inocentes. Vivemos sob o terrível poder de ação preventiva de nossa nação com a docilidade resignada de um rebanho de gado. As insinuações e os boatos triunfam. Conversas na internet nos previnem para o fato de que nossas pontes e estações nucleares tornaram-se alvos, uma fé cabalística em numerologia é causa suficiente para o cancelamento de certos voos intercontinentais e uma piada inoportuna manda um turista francês a Rikers Island*. Dispostos a acreditar no pior e submetidos a um perpétuo estado de pânico, chegamos a conclusões precipitadas. Cada acidente aéreo, cada blecaute é imediatamente atribuído a terroristas. As forças políticas e os meios de comunicação conluiam-se numa campanha de dominação pelo medo. Nosso presidente, vestido como piloto de aviação, pousa em um porta-aviões para proclamar o fim das hostilidades no Iraque. Mas as baixas subsequentes aumentam, enquanto nossos comboios são presas fáceis dos dispositivos explosivos improvisados. A missão das Nações Unidas explode e centenas de “colaboradores” iraquianos tornam-se alvos. Nesse meio-tempo, Rumsfeld faz asneiras, Powell contradiz seu superior e o comandante-chefe bamboleia como uma marionete sob o comando de Cheney e Halliburton. São essas as imagens que nos fornecem todos os dias. É possível enxergar a vitória nessa fotografia?”
* A maior prisão da cidade de Nova York. Situa-se na ilha homônima, entre os bairros de Queens e Bronx. (N. T.)


“Em um nível mais simples e mundano, nossos heróis sinalizam realidades sobre nosso mundo as quais evitamos ou tentamos esconder. Nossa sociedade procura não reconhecer as consequências de seus atos no mundo. Reprimimos nossas verdades em um mar de esquecimentos e ansiedade paralisantes. Mas nossos esforços de autopoliciamento não são totalmente bem-sucedidos. Como o corpo de uma vítima de assassinato que emerge à superfície do lago para denunciar o crime, nossos realizadores de proeza vieram à superfície de uma banalidade sufocante. (...)
Temerosos, mas confortados por nosso superpoder nacional, imaginamos um mundo onde os traumas e as desigualdades gritantes acontecem (e são contidos) em outros lugares. Mas o mundo globalizado é contínuo e seus horrores circulam livremente. Se nossos realizadores de proeza são clones assimétricos de um outro horror, eles confirmam a influência de fatores contextuais — o privilégio e a riqueza que permitem que nossa cultura produza proezas, enquanto outros mundos geram sequestradores, pobres, imigrantes e prisioneiros políticos. Cegos diante da história e sufocados pelo entretenimento, estamos condenados a ler evidências como mero espetáculo.”

Um comentário:

  1. Acabei opinando como "bom", mas quase recebeu uma avaliação melhor. O anacronismo do qual ele não consegue escapar (cerca de duas décadas nos separam do 11 de setembro), talvez tenha influenciado.

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