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quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Marx, Engels, Lenin: a história em processo (Parte II) — Florestan Fernandes

Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-203-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Ver Parte I



“Nas outras correntes das ciências sociais, o processo de maturação científica foi mais demorado, oscilante e ambíguo (envolvendo intermitências e relações contraditórias entre gerações distintas”. De um lado, ficou quase sempre faltando uma opção clara pelo materialismo. As várias correntes positivistas e espiritualistas mantiveram dentro da ciência uma herança filosófica que ou não era repudiada, ou não era questionada até o fundo. De outro, a cientifização, nessas correntes, ficou presa ao fascínio das ciências da natureza (da física à biologia) e às suas técnicas empíricas e lógicas de observação e de interpretação. Nenhuma delas logrou combinar a universalidade lógica do raciocínio científico à compreensão dialética do movimento (na sociedade e na história). Daí resultou que somente K. Marx construiu um modelo de explicação científica que apanhava a transformação da sociedade como um processo histórico-social, isto é, em termos de tempo histórico real. Tais reflexões deixam patente que o rápido avanço do materialismo histórico repousava em dois fatores. Um era o próprio Karl Marx, cuja personalidade como investigador científico, homem de pensamento e de ação, e capacidade inventiva devem ficar fora de discussão. O outro era o ponto de partida específico, no qual, pela primeira vez na história da ciência moderna, a afirmação mais pura do raciocínio científico não excluía o aproveitamento de uma rica herança filosófica, escoimada de seus “vícios de origem”. No texto transcrito, F. Engels detém-se tão-somente no significado imediato daquele ponto de partida, no qual ele incluía a refutação do antigo materialismo (naturalista e mecanicista) e da filosofia (idealista) da história. O primeiro confundia “as forças motrizes ideais” com “as causas últimas”, permanecendo no nível das aparências e deixando de indagar quais seriam “as forças motrizes das forças motrizes”. A segunda ia além desse circuito limitado, principalmente graças a Hegel, penetrando nas forças realmente determinantes. No entanto, ela negligenciava a própria história, porque preteria os fatos pelas ideias. Ao pôr de lado o antigo materialismo e a filosofia da história, K. Marx não se propunha realizar uma “síntese de perspectivas”, como diria K. Mannheim, extraindo o que havia de “bom “em um e na outra, mediante uma posição interpretativa eclética. Ao contrário, ele estabelecia um ponto de partida novo, que negava as duas concepções da história e da sociedade, ultrapassando-as através de um “materialismo consequente”, que oferecia à ciência a possibilidade de romper com todos os idola, ou seja, de realizar-se plenamente, com toda a objetividade e independência que lhe devem ser intrínsecas.
É assim que se desenharia a concepção materialista da história. Ela busca descobrir as “forças motrizes da história” (ou melhor, as “forças motrizes das forças motrizes”). Estas surgem na superfície da cena histórica e parecem conscientes. Porém, são na maioria das vezes predominantemente inconscientes e não se confundem com os motivos mais visíveis e transparentes da “ação dos homens na história”. Seguindo a ótica aberta por A sagrada família e por A ideologia alemã: o que possui importância decisiva são os motivos que transcendem e sublimam socialmente o querer individual, que “põem em movimento as grandes massas, povos inteiros, classes inteiras da população”; motivos “que os impulsionam não como fogo de palha que se extingue rapidamente, mas como ação durável visando a uma grande transformação histórica”. Portanto, o materialismo histórico propõe-se investigar as “forças motrizes que se refletem aqui no espírito das massas em ação e dos seus chefes — aqueles que se chamam ordinariamente grandes homens”. Como nas ciências da natureza, a investigação pretende descobrir as leis que “dominam a história universal e a história das diferentes épocas e dos diferentes países”. Em suma, o caos aparente da história oculta, nas situações históricas mais lábeis — similares ou contrastantes — a manifestação ordenada e a transformação determinada da existência humana em sociedade, ambas regidas por “leis gerais” de natureza histórica.”


“Na natureza operam fatores inconscientes e cegos. Na “história da sociedade, ao revés, prevalece o fim consciente, refletido e desejado”. “Homens dotados de consciência, agindo com reflexão ou paixão e visando a fins determinados.” No entanto, como na ciência da natureza, cabe ao investigador da “história da sociedade” submeter à observação as relações reais e “descobrir as leis gerais do desenvolvimento da sociedade”. Na aparência, a vida em sociedade é um caos, como se a indeterminação imperasse sobre as ações e as relações sociais dos indivíduos. Na realidade, o desenvolvimento da sociedade é regulado por “leis gerais internas”, o que quer dizer que a sociedade, como a natureza, está submetida à determinação. O acaso reina na superfície. Acima dos motivos pessoais e ideais, que aparentemente dirigem as ações dos homens e sua história, ficam as causas históricas, mais ou menos ocultas e mais ou menos inconscientes, que se transformam naqueles motivos “no cérebro dos homens que agem”. Por conseguinte, as “forças motrizes” da história refletem dois tipos de componentes dinâmicos. Os motivos pessoais e ideais, que parecem ser decisivos, apenas “possuem uma importância secundária para o resultado final”, qualquer que seja a importância deles para o estudo histórico. As causas materiais, que se ocultam por trás daqueles motivos, é que são verdadeiramente “forças determinantes” e permitem explicar, através das ações e das relações dos homens entre si, os acontecimentos e o curso dos processos históricos.”


O modo de produção capitalista engendra uma estratificação em classes da sociedade, que torna tudo claramente perceptível. Ao contrário de outras formas antagônicas de sociedade, a sociedade burguesa não esconde a sua essência pela aparência. Essa simplificação facilita a pesquisa das “causas motrizes” da história e resolve o enigma de todas as sociedades antagônicas. Tornam-se evidentes, também, quais são as três grandes classes dessa sociedade, o antagonismo de seus interesses e a luta que elas travam entre si. Engels afirma, mesmo, que seria “preciso fechar os olhos propositadamente para não ver a força motriz da história moderna”.”


“Sem subestimar a contribuição teórica de Lenin (crucial em vários pontos para o enriquecimento e o aprofundamento do marxismo, como no estudo da penetração do capitalismo na agricultura, das condições e efeitos do desenvolvimento desigual ou do imperialismo, na explicação da guerra e da revolução, na sistematização das explicações marxistas do Estado e da própria utopia marxista, tão mal representada e conhecida antes dele etc.), é no terreno da prática que se acha o eixo da transmutação leninista do marxismo. Isto não quer dizer que esta prática estivesse desligada da teoria — pois nunca esteve ou poderia estar no pensamento dialético-materialista — nem tampouco que Marx, Engels e os seus seguidores tivessem negligenciado, na teoria e na ação, as várias dimensões da prática (especialmente a política). Mas significa, isso sim, que Lenin se impôs como tarefa de sua vida a adequação instrumental, institucional e política do marxismo à concretização da revolução proletária. O marxismo, depois de Lenin, não é mais a mesma coisa, porque ele incorporou um “modelo” de como passar da ditadura burguesa à ditadura do proletariado.
Esse modelo desloca o âmago do marxismo para a reflexão política, ou seja, para as condições concretas da ação política e da transformação política, quando se focalizam dialeticamente as relações de classes como relações de poder (a luta de classes como um processo que conduz à formação e ao controle do Estado que mantém a ordem, ou à constituição de um Estado que a destrói e instaura a transição para o socialismo), Antes de Lenin, semelhante elemento político estava incluído no marxismo como uma previsão e, também, como um momento da vontade política. Com Lenin, esse elemento converte-se no ponto central da indagação marxista e do próprio marxismo como movimento político. Sob as condições mais ou menos paralisadoras da democracia burguesa, como dar ao proletariado — classe que pode arrastar atrás de si a massa não possuidora e constituir-se em núcleo hegemônico de uma maioria atuante — a capacidade de converter seu poder potencial em poder real? Absorveu-se, assim, no problema político da sociedade de classes; e, como marxista, não apenas para explicar como a minoria pode suplantar a maioria e submetê-la, mesmo sob o “capitalismo agonizante”, mas também para descobrir como transformar o inócuo poder potencial da maioria em poder especificamente político, concentrado e disciplinado de forma revolucionária.
Atento às estruturas de poder e aos efeitos da dominação de classe inerentes à democracia burguesa, Lenin chegou rapidamente à conclusão de que a revolução proletária possui um padrão histórico. Em contraste com a revolução burguesa, ela não pode iniciar-se antes da tomada do poder pelo proletariado e da dominação pela maioria. Por isso, o problema estratégico da luta pelo poder tinha de ser proposto em termos do uso revolucionário do espaço político que a classe operária pode conquistar e manejar com relativa autonomia, ilegal e legalmente, no seio da sociedade de classes. Como a dominação burguesa também implica socialização ideológica e política do resto da sociedade pela burguesia, tal uso do espaço político impunha, naturalmente, certas condições básicas: 1) formação de uma minoria contestadora fortemente organizada, capaz de atuar legal e ilegalmente, sem vacilações, como vanguarda revolucionária da classe operária; 2) a ruptura com todas as formas diretas ou indiretas e visíveis ou invisíveis de acomodação à ordem democrática burguesa; 3) a educação política do proletariado e, na medida do possível das massas pobres e da pequena burguesia, através de situação e de reivindicações concretas, do desenvolvimento da consciência de classe e da agudização (nos níveis econômico, sociocultural e político) dos conflitos de classe. Isso punha em primeiro plano a questão da organização do partido revolucionário do proletariado e de sua orientação política. E, de outro lado, exigia uma nova mentalidade e uma nova prática política nas relações do partido com sua base e com a massa.
Com referência à organização do partido, Lenin fixou normas de racionalização que deviam ser iguais ou superiores às que têm vigência na grande empresa capitalista, no exército moderno ou no Estado democrático burguês. Em consequência, as tarefas de agitação e de propaganda podiam irradiar-se por toda a sociedade, embora concentrando-se com maior intensidade na classe operária; e as tarefas políticas, imediatas e de largos prazos, podiam ser definidas segundo critérios específicos de flexibilidade e de eficácia. A ideia básica consistia em que a revolução não nasce pronta e acabada — o partido revolucionário do proletariado deveria travar suas batalhas, clandestina ou abertamente, tendo em vista as combinações que poderiam favorecer, em determinado momento, ou o fortalecimento da democracia burguesa, ou o deslocamento desta no sentido de uma democracia operária, ou a tomada pura e simples do poder.
Todas essas estratégias foram exploradas, com as táticas correspondentes, e Lenin foi o mestre das principais diretrizes (embora a sua produção intelectual e política, nessa direção, aguarde estudo sistemático). Por sua vez, para cumprir essa missão era indispensável interromper a infiltração ou a corrupção burguesa, impedindo as soluções de compromisso ou de aparente “revolução dentro da ordem” (ambas de exclusivo interesse para a dominação burguesa e a consolidação do status quo). Daí a necessidade imperiosa de combater sem tréguas o oportunismo, o reformismo e o ultraesquerdismo, por vários motivos dissolventes do espírito revolucionário, da atuação revolucionária racional e da solidariedade política do proletariado. Por fim, uma vanguarda revolucionária do proletariado não podia nem devia representar-se e comportar-se como uma elite e segundo valores elitistas. Se ela devia contribuir para a expansão da consciência de classe do proletariado de “fora para dentro” (isto é, imprimindo às suas tarefas políticas um teor pedagógico), ela nunca foi concebida por Lenin, em si mesma, como o polo decisivo. Este tinha de ser, naturalmente, o proletariado, como sujeito da ação revolucionária em escala coletiva, já que de sua impulsão dependeria a vitória da revolução proletária ou da contrarrevolução. Por conseguinte, as relações do partido revolucionário do proletariado com sua base e com a massa eram definidas segundo um esquema dialético: para dirigir o processo político, aquele partido teria de sintonizar-se com a classe operária e com as massas, acompanhando as evoluções de sua aprendizagem e de sua socialização política através das flutuações da luta de classes.”


“Como Marx, Lenin assimila a formação social (ou “a formação econômica da sociedade”) “à marcha da natureza e à sua história”.13 Mas repudia, por igual, as concepções naturalista e subjetivista da sociologia, defendidas por autores como “Spencer e consortes”, que discutem a “sociedade em geral, o fim e a essência da sociedade em geral etc.” Prefere, antes, indagar por que Marx fala da sociedade “moderna” (enquanto os economistas e sociólogos que o precederam falavam da sociedade em geral); em que sentido Marx emprega a palavra “moderno”; em virtude de que critérios comprova essa modernidade; ou em que sentido fala da lei econômica da sociedade, que chama alhures de lei da natureza. O que está em jogo, portanto, é a concepção materialista da sociologia, que situa o homem e a sociedade na natureza, mas os compreende como uma realidade específica e de uma perspectiva histórica, dialético-causal. Retomando um largo excerto de A crítica da Economia Política, procede à caracterização da sociologia assim concebida, a qual envolve, de um lado, o estudo científico das formações sociais concretas, consideradas nas condições de sua constituição e evolução,14 e, de outro, o estudo meticuloso dos fatos correspondentes.15 Esse estudo requer um tratamento analítico especial (no nível da técnica de observação experimental dos fenômenos), que permitiu a Marx chegar à sua ideia fundamental de que “o desenvolvimento das formações econômicas da sociedade é um processo de história natural” e abrange dois movimentos da inteligência-inquiridora: “Estudando à parte, entre as diversas esferas da vida social, a esfera econômica; estudando parte, entre todas as relações sociais, as relações de produção, consideradas fundamentais, primordiais, e determinando todas as outras relações”16. A reelaboração de ideias e pontos de vista de Marx revela a própria posição central de Lenin em face da ciência social. Por isso, é essencial ler-se atentamente o longo excerto seguinte, transcrito do ensaio em questão:17
(...) Essa ideia do materialismo em sociologia, já é, por si mesma. uma ideia genial. Ela não era ainda, naturalmente, mais que uma hipótese, porém uma hipótese que, pela primeira vez, permitia abordar problemas históricos e sociais de um ponto de vista estritamente científico. Incapazes então de descer ao conhecimento de fatos tão simples e primordiais, como são as relações de produção, os sociólogos procediam diretamente à análise e ao estudo das formas políticas e jurídicas. Eles enfrentavam uma realidade na qual essas formas surgiam de tais ou tais ideias da humanidade, em uma época dada e não iam além disso. Assim, as relações sociais teriam sido estabelecidas conscientemente pelos homens. Mas essa dedução, que encontrou sua plena expressão na ideia de contrato social (cujos traços são muito visíveis em todos os sistemas do socialismo utópico), estava em completa contradição com todas as observações históricas. Nunca, tanto no passado quanto atualmente, os membros da sociedade representaram o conjunto das relações sociais no meio das quais vivessem, como um todo bem definido, inspirado em um princípio fundamental; ao contrário, a massa se adapta inconscientemente a essas relações, e ela está tão longe de concebê-las como relações históricas particulares que, por exemplo, a explicação das relações de troca, as quais presidiram a vida dos homens durante séculos, não foi formulada senão nos últimos tempos. O materialismo suprimiu essa contradição, estendendo a análise mais ao fundo, até a própria origem das ideias sociais do homem; e sua conclusão, segundo a qual o curso das ideias depende do curso das coisas, é a única compatível com a psicologia científica. De outro lado, essa hipótese elevou a sociologia, pela primeira vez, à posição de uma ciência. Até então, os sociólogos mal conseguiam distinguir, na complexa rede dos fenômenos sociais, os que eram importantes e os que não eram (aí está a raiz do subjetivismo em sociologia); eles não podiam fundamentar essa distinção sobre um critério objetivo. O materialismo forneceu um critério perfeitamente objetivo, isolando as “relações de produção” como estrutura da sociedade e abrindo a possibilidade de aplicar a essas relações o critério científico geral da repetição, que os subjetivistas consideravam inaplicável à sociologia. Enquanto se restringiam às relações sociais ideológicas (ou seja, às relações que, antes de se constituírem, passam pela consciência18 dos homens), eles não podiam descobrir a repetição e a regularidade nos fenômenos sociais de diferentes países, e sua ciência não era, no melhor dos casos, mais do que uma descrição desses fenômenos, que uma acumulação de dados brutos. A análise das relações sociais materiais (quer dizer, daquelas que se constituem sem passar pela consciência dos homens: ao trocarem produtos, os homens entram nas relações de produção sem mesmo tomar conhecimento que aí se trata de relações de produção sociais), a análise, portanto, das relações sociais materiais, permite constatar, de imediato, a repetição e a generalidade, e generalizar os sistemas dos diversos países para chegar a uma só concepção fundamental, a de formação social. Só essa generalização permitiu passar da descrição dos fenômenos sociais (e de sua apreciação de um ponto de vista ideal) à sua análise estritamente científica, a qual põe em evidência, por exemplo; o que distingue um país capitalista de outro e estuda o que é comum a todos. (...) Em terceiro lugar, por fim, uma outra razão pela qual essa hipótese tornou possível, pela primeira vez, uma sociologia científica: reduzindo-se as relações sociais às relações de produção e estas últimas ao nível das forças produtivas, descobriu-se a única base sólida que permite estudar o desenvolvimento das formações sociais como um processo de história natural. É evidente que, se não se toma esse ponto de vista, é impossível uma ciência da sociedade. (Os subjetivistas, por exemplo, embora admitissem que os fenômenos históricos se conformam a leis, eram não obstante incapazes de considerar sua evolução como um processo de história natural, e isso precisamente porque se limitavam às ideias e aos fins sociais dos homens, sem saber reduzir essas ideias e esses fins às relações sociais materiais).
Segundo Lenin, esse é 0 esqueleto de O capital. Todavia, Marx não se limitou a esse esqueleto, já que ultrapassou a “teoria econômica” em seu sentido ordinário. Ao explicar “a estrutura e o desenvolvimento da formação social considerada exclusivamente pelas relações de produção”, ele sempre “analisou as superestruturas correspondentes a essas relações de produção, e revestiu o esqueleto de carne e de sangue”. Por conseguinte, O capital revela a
formação social capitalista como uma coisa viva, com os fatos da vida corrente, com as manifestações sociais concretas do antagonismo das classes inerentes às relações de produção, com a superestrutura política burguesa que protege a dominação da classe dos capitalistas, com as ideias burguesas de liberdade, igualdade etc., com as relações de família burguesa.
Em suma, Marx pôs fim
à concepção segundo a qual a sociedade era um agregado mecânico de indivíduos que sofrem todas as espécies de transformações à mercê das autoridades (ou, o que dá no mesmo, mercê da sociedade e do governo), que nasce e se transforma ao acaso. Ele foi o primeiro a fundar a sociologia sobre uma base científica, analisando a noção de formação econômica da sociedade como um conjunto de relações dadas, e estabelecendo que o desenvolvimento dessas relações é um processo de história natural.
Atualmente — depois do aparecimento de O capital — a concepção materialista da história não é mais uma hipótese, porém uma doutrina cientificamente demonstrada. E enquanto não tivermos outra tentativa de explicar cientificamente o funcionamento e a evolução de uma formação social, precisamente, e não dos usos e costumes de um país ou de um povo, ou mesmo de uma classe — uma outra tentativa que, como o materialismo, seja capaz de colocar a ordem nos “fatos correspondentes”, de traçar um quadro vivo de uma formação fornecendo uma explicação estritamente científica —, a concepção materialista da história será sinônimo de ciência da sociedade. O materialismo não é “por excelência uma concepção científica da história”, como acredita o senhor Mikhailovski, mas é a única concepção científica.”
13 LENIN, V., “Ce que sont les ‘amis du peuple’ et comment ils luttent contre les social-democrates”. (In: Oeuvres. 4 ed. Paris/Moscou: Éditions Sociales/Editions en Langues Étrangères, 1958. v. 1, p. 150). Obra escrita e publicada em 1894. Relembramos que usamos a 4ed, de suas Obras Completas. (Lenin transcreve um trecho do prefácio à 1ª ed. de O capital).
14 “Marx apenas fala de uma só formação econômica da sociedade, a formação capitalista”, e somente afirma “ter analisado a lei de evolução dessa formação” (cf. LENIN, V., op. cit., p. 150)
15 LENIN, V., op. cit., p. 150-151.
16 Ibid., p. 162.
17 Ibid., p. 153-155. (textos transcritos como no original).


“Para explicar, do “ponto de vista dialético, é preciso não só apanhar o que é essencial na manifestação do fenômeno, mas ainda fazê-lo de maneira a compreender o essencial” em termos de sua estrutura interna, do seu funcionamento e da sua evolução. Isso significa que, para Lenin, as “estruturas” não podem ser tomadas em si e por si mesmas, o mesmo sucedendo com os “dinamismos” da vida social. “Estruturas” e “dinamismos” são interdependentes e se dão simultaneamente in concreto, sendo preciso reconstruí-los, empírica e analiticamente, nessa condição.
É a partir dessa matéria-prima que se procede à observação e à descrição das causas, através da interpretação dialética. Pois, como escreve, “a dialética exige que um fenômeno social seja estudado sob todos os ângulos, e que a aparência, o aspecto exterior seja reduzido às forças motrizes capitais, ao desenvolvimento das forças produtivas e à luta de classes”.22 Ou, ainda, como afirma em outra passagem mais elaborada:
A lógica dialética exige que cheguemos mais longe. Para conhecer realmente um objeto, é preciso apanhar e estudar todos os seus aspectos, todas as suas ligações e “mediações”. Nós não o conseguimos jamais completamente, mas a necessidade de considerar todos os aspectos nos protege de erros e de lapsos. Eis um primeiro ponto. Segundo: a lógica dialética exige que se considere um objeto em seu desenvolvimento, seu “movimento próprio” (como o diz às vezes Hegel), sua transformação. (...) Terceiro: toda a prática do homem deve entrar na “definição” completa do objeto, a um tempo como critério da verdade e como determinante prático da ligação do objeto com o que é necessário ao homem. Quarto: a lógica dialética ensina que “não há verdade abstrata”, que “a verdade é sempre concreta”, como gostava de dizer, seguindo Hegel, o falecido Plekhanov.23
22 LENIN, V. Oeuvres. v, 21 (agosto de 1914/dezembro de 1915), p. 221.
23 Ibid. v. 32 (dezembro de 1920/agosto de 1921), p. 94.

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