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sábado, 26 de outubro de 2019

As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (Parte IV) – Michael Löwy

Editora: Cortez

ISBN: 978-85-249-1513-0

Tradução: Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy

Páginas: 272

Opinião: ★★★☆☆

Sinopse: Ver Parte I



“Realmente, existe uma diferença qualitativa quanto ao papel, a importância e a significação das visões de mundo nas ciências humanas e nas ciências naturais. O positivismo insiste em negar esta diferença, identificando as leis sociais e as leis da natureza, e dissolvendo as ciências sociais e naturais no meio homogêneo de um só método científico e de um só e único modelo de objetividade. O historicismo procurou fundamentar a especificidade metodológica das Geisteswissenschaften sobre seu caráter necessariamente compreensivo (Verstehend), em contraste com a démarchè puramente explicativa das Naturwissenschaften; sem negar o interesse desta discussão, parece-nos que esta especificidade obedece a duas causas mais profundas:

1) O caráter histórico dos fenômenos sociais e culturais, produzidos, reproduzidos e transformados pela ação dos homens (contrariamente, é claro, às leis da natureza). Esta ideia fundamental do historicismo já havia sido esboçada por Vico, em uma fórmula que Marx citaria em O capital: a principal diferença entre a natureza e a história é que fizemos a segunda e não a primeira.

2) A identidade parcial (a nuance é de Lucien Goldmann) entre o sujeito e o objeto do conhecimento, enquanto “seres sociais”. O observador é, de uma maneira ou de outra, parte da, ou implicado pela realidade social que ele estuda, e não tem, portanto, esta distância, esta separação que caracteriza a relação de objetividade do cientista natural com o mundo “exterior”.

3) Os problemas sociais são o palco de objetivos antagônicos das diferentes classes e grupos sociais. Cada classe considera e interpreta o passado e o presente, as relações de produção e as instituições políticas, os conflitos socioeconômicos e as crises culturais em função de sua experiência, de sua vivência, de sua situação social, de seus interesses, aspirações, temores e desejos.

4) O conhecimento da verdade pode ter consequências profundas (diretas ou indiretas) sobre o comportamento das classes sociais, sobre a sua relação de força, e, portanto, sobre o resultado de seus confrontos. Revelar ou ocultar a realidade objetiva é uma arma poderosa no campo da luta de classes.

5) Os cientistas — como os intelectuais em geral — tendem inevitavelmente, qualquer que seja sua autonomia relativa ou sua “flutuação”, a se vincular a uma das visões sociais de mundo em que se reparte o universo cultural de uma época determinada (ou a uma mistura eclética destas visões, seguindo a tendência característica da pequena burguesia).

Estas razões (estreitamente relacionadas entre si) fazem com que o método das ciências sociais se distinga do método das ciências naturais, não somente ao nível dos modelos teóricos (compreensão ou explicação), técnicas de pesquisa (experimentação ou observação) ou procedimentos de análise, mas também e sobretudo no domínio da relação com as classes sociais. As visões sociais de mundo, as ideologias e as utopias das classes sociais conformam de maneira decisiva — direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente — o processo de conhecimento da sociedade, constituindo assim o problema de sua objetividade em termos radicalmente distintos dos termos das ciências da natureza.

A realidade social, como toda realidade, é infinita. Toda ciência implica opção. Como o reconhecia Max Weber, esta opção é nas ciências sociais e históricas ligada a certos valores, pontos de vista preliminares e pressuposições axiológicas, que determinam, em ampla medida, as questões que se colocam em relação à realidade social, à problemática da pesquisa. Entretanto, como procuramos demonstrar, as visões sociais de mundo e os valores (que fazem parte dela) intervém também na análise empírica da causalidade, na determinação científica dos fatos e de suas conexões, assim como na última etapa da pesquisa: a interpretação geral e a construção das teorias. Em outras palavras: é o conjunto do processo de conhecimento científico-social desde a formulação das hipóteses até a conclusão teórica, passando pela observação, seleção e estudo dos fatos, que é atravessado, impregnado, “colorido” por valores, opções ideológicas (ou utópicas) e visões sociais de mundo.

Querer, nestas condições, aplicar ao domínio das ciências humanas o modelo de objetividade científico-natural advém de uma ilusão ou de uma mistificação; esta consiste, de uma forma ou de outra, em apelar ao cientista para que ele abandone seus valores, seus “preconceitos” ou sua ideologia, isto é, que ele aja segundo o “princípio do Barão de Münchhausen” (como vimos, a objetividade “institucional” exaltada por Popper não é senão uma variante desta démarchè). É, portanto, inteiramente em outra direção que é necessário se orientar para explicar as condições de possibilidade de um conhecimento objetivo dos fatos sociais, históricos e culturais.6

Esta direção é a de uma sociologia crítica do conhecimento, que possa explicar as relações entre as classes ou categorias sociais e as ciências da sociedade.”

6. A ciência seria como escreveu o pensador marxista Rigoberto Lanz, “a expressão suprema do modo burguês de produção do conhecimento”. R. Lanz, Marxismo y Sociologia para una crítica de la sociologia marxista, Ed. Fontamara, 1981, p. 161.

 

 

O momento relativista da sociologia do conhecimento

O impasse ao qual conduz o mito positivista de uma ciência da sociedade livre de julgamentos de valor e ideologicamente neutra mostra a necessidade de procurar outra noção para a construção de um modelo de objetividade científico-social. Em nossa opinião, isto não é possível, senão partindo de certas ideias do historicismo e do marxismo (historicista), e especialmente integrando nele o momento relativista (histórico e social) da sociologia do conhecimento como etapa dialética necessária para uma nova concepção do conhecimento objetivo.

O “momento relativista” significa que todo conhecimento da sociedade, da economia, da história, da cultura é relativo a uma certa perspectiva, orientada para uma certa visão social de mundo, vinculada ao ponto de vista de uma classe social em um momento histórico determinado (Standortgebundenheit). Esta tese (negada tanto pelo positivismo como pelo “marxismo positivista”) leva necessariamente ao abismo do relativismo absoluto? Conduz ela necessariamente ao ceticismo, isto é, à negação radical de toda a possibilidade de conhecimento social objetivo? Em seu livro Histoire et Verité, Adam Schaff mostra de forma muito esclarecedora como cada classe ou fração de classe interpreta, em função de sua visão social de mundo e sua ideologia (ou utopia) política, a história da Revolução Francesa. Isso significa que todas estas diferentes interpretações são igualmente válidas (ou igualmente falsas)? As historiografias contrarrevolucionária, liberal, jacobina e socialista são idênticas do ponto de vista de seu valor cognitivo? A de Joseph de Maistre, explicando 1789 como um castigo divino aos franceses culpados de pecados abomináveis, seria tão boa (ou tão ruim) como a de Jaurès, interpretando os acontecimentos em termos de luta de classes?

Levado até o fim, o relativismo absoluto se revela absurdo: é forçoso reconhecer que certos pontos de vista são relativamente mais favoráveis à verdade objetiva que outros, que certas perspectivas de classe permitem um grau relativamente superior de conhecimento que outras. Não se trata de opor de forma mecânica e maniqueísta a verdade e o erro (ou “a ciência” e “a ideologia”), mas estabelecer uma hierarquia entre os diferentes pontos de vista, uma sociologia diferencial do conhecimento.”

 

 

“Em nossa opinião — partindo de certas sugestões de Lukács, Gramsci, Lucien Goldmann e Ernst Bloch — esta especificidade consiste nos seguintes elementos:

1. A burguesia revolucionária tinha interesses particulares a defender, diferentes dos interesses gerais das massas populares; ela lutava ao mesmo tempo contra o feudalismo e para instaurar uma nova dominação de classe, o que implicava a ocultação ideológica (consciente ou não) de seus verdadeiros objetivos e do verdadeiro sentido do processo histórico.

O proletariado, pelo contrário, classe universal cujo interesse coincide com o da grande maioria da humanidade e cujo objetivo é a abolição de toda dominação de classe, não é obrigado a ocultar o conteúdo histórico de sua luta. (Resta, entretanto, um ponto de interrogação sobre a questão feminina: a abolição da dominação de classe gera a abolição da opressão sexual? Como se articulam o combate proletário e o combate feminista? Questões semelhantes para as quais não temos ainda resposta satisfatória.) Ele é, por consequência, a primeira classe revolucionária cuja visão social de mundo (utópica) tem a possibilidade objetiva de ser transparente.12

Não é, portanto, absolutamente por acaso se o proletariado — ao contrário da burguesia revolucionária — propõe como objetivo à sua revolução, não a defesa dos pretensos “Princípios Eternos da Liberdade e da Justiça” ou os “Interesses Supremos da Pátria”, mas a realização de seus interesses de classe. Uma comparação entre o Manifesto Comunista e a Declaração de Independência dos Estados Unidos é altamente instrutiva a este respeito... É o que Ernst Bloch chama, em uma bela imagem, a parcialidade vermelha do marxismo: “Contrariamente a todas as classes que o precederam, o proletariado revolucionário não tem nenhum interesse em camuflar seus interesses de classe — isto é, em produzir ideologias. Ele quer antes suprimir todas as classes e, finalmente, suprimir a si próprio enquanto classe; assim não tem ele necessidade, diferentemente das classes anteriores, de uma ideologia que embeleze, mas, ao contrário, do olhar penetrante de um detetive. (...) O marxismo, por sua vez, alcançou um ponto de vista livre de ilusões por uma reflexão particularmente intensa da parcialidade que carrega o interesse à emancipação e que apenas esta parcialidade vermelha lhe permite se liberar de todo obscurecimento por causa de preconceitos”.13

2. A burguesia pode chegar ao poder e instaurar seu reino sem uma compreensão clara do processo histórico, sem uma consciência lúcida dos acontecimentos, favorecida pela “astúcia da razão” do desenvolvimento econômico-social, pela dinâmica própria ao capitalismo. O conhecimento científico do movimento social não era absolutamente uma condição de seu triunfo, e a automistificação ideológica frequentemente caracterizou seu comportamento enquanto classe revolucionária.

O proletariado, pelo contrário, não pode tomar o poder, transformar a sociedade e construir o socialismo senão por uma série de ações deliberadas e conscientes. O conhecimento objetivo da realidade, da estrutura econômica e social, da relação de forças e da conjuntura política é, portanto, uma condição necessária de sua prática revolucionária; em outras palavras: a verdade é uma arma de seu combate, que corresponde a seu interesse de classe e sem a qual ele não pode prosseguir. Como escrevia Gramsci no lema de seu jornal Ordine Nuovo, “somente a verdade é revolucionária”.14

Consequentemente, a superioridade epistemológica da perspectiva proletária não é somente a das classes revolucionárias em geral, mas tem um caráter particular, qualitativamente diferente das classes do passado, específica ao proletariado enquanto última classe revolucionária e enquanto classe cuja revolução inaugura o “reino da liberdade”, isto é, a dominação consciente e racional dos homens sobre sua vida social. Neste sentido, a ciência ligada à visão proletária de mundo (por exemplo, o marxismo) é uma forma de transição para a ciência da sociedade sem classes, que poderá atingir um grau muito mais elevado de objetividade, porque o conhecimento da sociedade deixará de ser o palco de uma luta política e social entre classes antagônicas. As limitações que existem do ponto de vista do proletariado e no marxismo não se tornarão visíveis senão neste momento; todas as tentativas para “superá-lo” antes deste período, antes da emergência da sociedade mundial sem classes, não podem conduzir senão a recaídas, recuos, para o ponto de vista de outras classes mais limitadas que o proletariado. Neste sentido, parafraseando Sartre, o ponto de vista do proletariado é o horizonte científico de nossa época.”

14: GUTIÉRREZ G. Dios o el oro en las indias (Siglo XVI). Lima, Instituto Bartolomé de Las Casas, 1989.

 

 

“Que significa mais precisamente “ponto de vista do proletariado”? Não se trata necessariamente do estado de espírito empiricamente verificável no seio da massa dos trabalhadores em um momento determinado. Como, portanto, identificá-lo? Entre as diferentes correntes políticas, teóricas e científicas que o reivindicam, qual seria a expressão mais autêntica do ponto de vista da classe? Evidentemente, a resposta a estas questões contém uma dimensão inevitável de subjetividade. Em nossa opinião, as divergências entre pensadores ou forças que reivindicam o proletariado e seu ponto de vista advêm de cinco tipos diferentes de problemas:

1) A influência das ideologias burguesas ou pequeno-burguesas no seio da classe e do movimento operário, que se manifestam nas diferentes combinações ecléticas entre a visão proletária de mundo e a visão das outras classes (marxismo positivista, socialismo nacional, socialdemocracia etc.); 2) a existência, no seio do movimento operário e dos Estados pós-capitalistas provenientes de seu seio, de uma burocracia com interesses próprios e uma ideologia particular (o estalinismo); 3) As divergências que resultam da diferença dos sexos; 4) Aquelas que decorrem da diversidade de experiências históricas de cada país ou região do mundo; 5) Os desacordos que resultam do debate inevitável na busca da verdade e que fazem parte do processo normal de conhecimento objetivo da realidade.

Em outras palavras: o ponto de vista do proletariado não é o monopólio exclusivo de um único grupo ou corrente, mas representa, em cada momento histórico, o horizonte comum a um conjunto de forças políticas e intelectuais, sociais e culturais que reivindicam a visão proletária — isto é, de sua utopia revolucionária. Seria tanto mais “autêntico” na medida em que soubesse escapar à influência mistificadora das ideologias conservadoras (burguesas, patriarcais ou burocráticas) e unificar dialeticamente (sob o ponto de vista da totalidade), em seu nível superior, a multiplicidade das experiências da classe.

Resta definir o sentido e o valor do conceito de superioridade epistemológica do ponto de vista proletário): é necessário deduzir daí que a verdade está ausente da ciência situada em uma perspectiva burguesa ou que o erro seria impossível para quem está vinculado à visão proletária de mundo? Inútil insistir sobre o caráter redutor, falso e no limite absurdo de uma tal conclusão. Vimos que para Marx o ponto de vista de classe e a visão social de mundo correspondente determinam um horizonte intelectual, os limites estruturais intransponíveis do campo de visibilidade cognitiva, o máximo de conhecimento possível a partir desta perspectiva. Não se trata de uma distinção entre “verdade” e “erro” (ou “ciência” e “ideologia”), mas entre horizontes científicos mais ou menos vastos, entre limites mais estreitos ou mais amplos da paisagem cognitiva percebida. No interior dos limites impostos por sua ideologia de classe, Ricardo, A. Smith ou Sismondi são perfeitamente capazes de produzir conhecimentos científicos do maior valor. De outro lado, a proposição segundo a qual o ponto de vista do proletariado é o que oferece a melhor possibilidade objetiva de um conhecimento da verdade não significa absolutamente que é suficiente se situar deste ponto de vista para obter resultados científicos relativamente mais verdadeiros ou mais objetivos.”

 

 

“Comparamos várias vezes o cientista social ao pintor de uma paisagem. Ora, esta pintura depende em primeiro lugar do que o artista pode ver, isto é, do observatório de onde ele se acha situado. A metáfora topológica (que se encontra em Rosa Luxemburgo e em certas passagens de Mannheim) nos parece a mais apta para dar conta do alcance da Standortgebundenheit e seus limites. Mais um “mirante” ou “observatório” (isto é, um ponto de vista de classe) é elevado, mais ele permite ampliar o horizonte e perceber a paisagem em toda sua extensão; as cadeias de montanhas, os vales, os rios não conhecidos dos observatórios inferiores não se tornam visíveis senão do cume. Evidentemente, nos limites determinados por seu horizonte de visibilidade, os mirantes mais baixos permitem também ver uma parte da paisagem. Em nossa hipótese, o observatório mais alto é o ponto de vista do proletariado (pelas razões expostas no capítulo precedente); os mirantes situados em níveis inferiores correspondem aos pontos de vista das outras classes ou frações de classe, que se distinguem não somente pelas diferenças de altura mas também às vezes pelas diversidades de posições sobre uma mesma plataforma: a mesma paisagem pode ser assim percebida sob ângulos distintos e complementares (é por exemplo o caso de Ricardo e Sismondi que examinamos antes). Existe, enfim, uma parte da paisagem que é visível de todas as alturas: é a “zona de consenso” entre os diversos pontos de vista, geralmente limitado ao nível mais imediato, mais “terra-a-terra” do conhecimento (a Bastilha caiu no dia 14 de julho de 1789) etc. Esta metáfora nos parece particularmente operatória, porque ela permite também “mostrar” (de forma imaginária) que: a) não existe visão de paisagem que não esteja situada em um observatório determinado; b) a síntese ou a média exata entre os níveis superiores e inferiores não representa em nada um ponto de vista privilegiado; c) os limites estruturais do horizonte não dependem da boa ou má vontade do observador, mas da altura e da posição em que ele se encontra; d) o pintor pode passar de um mirante a outro (“livre flutuação”), mas seu horizonte de visibilidade dependerá sempre da posição em que ele se encontra em tal ou qual momento; e) o observador situado no nível superior pode dar conta tanto dos limites como das visões verdadeiras dos níveis inferiores; f) o mirante não oferece senão a possibilidade objetiva de uma visão determinada da paisagem.

Esta última precisão é capital. É evidente — para ficar no quadro de nossa “alegoria do mirante” — que a paisagem como painel não depende somente do observatório mas também do próprio pintor, de sua forma de olhar e de sua arte de pintar.

A “forma de olhar”: o pintor — isto é, o cientista social — é condicionado não somente por sua posição de classe, mas também por outras determinações, por outras pertinências sociais não-classistas relativamente autônomas com relação às classes sociais: nacionalidade, geração, religião, cultura, sexo. Sua visão é desviada também por sua vinculação a certas categorias sociais (burocracia, estudantes, intelectuais etc.) ou a certas organizações (partidos, seitas, igrejas, círculos, confrarias, cenáculos). Mannheim teve o mérito de atrair a atenção sobre este tipo de determinantes sociais do conhecimento, apesar de não ter sabido articulá-los de forma precisa e coerente com o ponto de vista de classe. Esta contribuição permite enriquecer a sociologia crítica do conhecimento, fornecendo-lhe uma dimensão essencial e irredutível às categorias classistas habituais. Estes fatores podem tanto estimular como desviar as visões do pintor em relação a certos aspectos da paisagem que se oferece a seus olhos. Assim, uma mulher situada em um ponto de vista de classe determinado perceberá dimensões da realidade que a visão masculina, situada na mesma classe, tende a evitar (isso vale inclusive para o ponto de vista do proletariado).

O exemplo “negativo” mais surpreendente do papel destes fatores não-classistas é o da burocracia estalinista: o pintor formado neste contexto está no cume da montanha, mas provido de viseiras e de um par de binóculos deformantes que às vezes impedem toda visibilidade... Isso permite compreender o paradoxo (do ponto de vista marxista “vulgar”) de uma ciência social de inspiração “marxista-leninista” cujos resultados têm em certos casos um valor de conhecimento bem inferior ao produzido por cientistas situados em uma perspectiva burguesa. (...)

Sua “arte de pintar”: a ciência (como a pintura, ou toda atividade cultural) tem sua autonomia, no sentido etimológico grego da palavra (autônomos: sua própria lei), isto é, seus princípios próprios de atividade, sua disciplina constrangedora, sua lógica interna, sua especificidade enquanto prática que visa descobrir a verdade. Alguns destes princípios — estes sobre os quais insistem os positivistas — são comuns a todas as ciências, especialmente: 1) a intenção-de-verdade, a busca do conhecimento como objetivo em si, a recusa de substituir este objetivo por finalidades extracientíficas. Um pintor que é contratado e pago para retratar uma paisagem em rosa não poderá, se ele aceita estas condições, pintar as verdadeiras cores que ele observa de seu mirante... Como enfatizamos antes, este princípio é em certa medida tautológico, mas isso não significa que ele seja sempre respeitado. Sua infração produziu uma figura muito especial do mundo científico (ou antes pseudocientífico) que Marx designava pelo termo infamante de sicofanta. É verdade que certas condições históricas e sociais favorecem a emergência de sicofantas, cujo pensamento estipendiado manifesta a mais soberba indiferença para com a busca da verdade objetiva. 2) A liberdade de discussão e de crítica, a confrontação permanente e pública das teses e interpretações científicas. Como já escrevemos, sem esta condição, a ciência está condenada ao obscurantismo ou à unidimensionalidade (é suficiente pensar na ciência social soviética e norte-americana dos anos da guerra fria).

Outros princípios são próprios de cada ciência; eles estabelecem, com relação a um objeto determinado, os procedimentos que permitem a reunião, o controle, a análise e a interpretação dos dados empíricos. Estes princípios são objetivos e devem ser respeitados por todos os cientistas, qualquer que seja a sua visão social de mundo. Independentemente de seu ponto de vista de classe, o historiador sabe que ele deve poder provar suas afirmações por um certo tipo de documentos, que um testemunho isolado é insuficiente e deve ser confrontado com outros, que deve respeitar a cronologia no estudo da causalidade etc. (...)

A isso se acrescenta um último determinante da autonomia relativa: as qualidades individuais do “pintor”, sua criatividade, imaginação, rigor, inteligência ou sensibilidade. Para um Max Weber, quantos espíritos medíocres, limitados, sem envergadura e sem lucidez, na sociologia burguesa? E na perspectiva aberta pela visão de mundo proletária não termos apenas Marx, mas também Jules Guesde, Turati, Hundmann etc.

A autonomia relativa da ciência social significa, portanto, isto: no interior dos limites determinados pela Standort social — isto é, a partir do ponto de vista de classe e a partir de uma das visões sociais de mundo que lhe corresponde (muitas visões de mundo são possíveis a partir de um mesmo ponto de vista de classe) — o valor científico de uma pesquisa pode variar consideravelmente em função de variáveis múltiplas que são independentes com relação às classes sociais. O mirante não faz senão definir uma possibilidade objetiva de visibilidade: a visão efetiva e a pintura de uma paisagem não dependem mais dele. Mas trata-se de uma autonomia relativa e não de uma independência total (como o pretende o positivismo) na medida em que o papel do horizonte de visibilidade é decisivo para a própria constituição do campo cognitivo.”

 

 

“Do ponto de vista de uma sociologia crítica do conhecimento, a formulação que nos parece mais interessante entre os sociólogos franceses contemporâneos é (no domínio que nos ocupa) a de Pierre Bourdieu, segundo o qual as chances de contribuir na produção da verdade dependem de dois fatores principais: “o interesse que se tem em saber e em fazer saber a verdade (ou inversamente, em ocultá-la ou ocultá-la de si) e a capacidade que se tem de produzi-la”. Em outros termos: “o sociólogo está tanto mais armado para descobrir o oculto quanto mais armado cientificamente, quando ele utiliza melhor o capital de conceitos, de métodos, de técnicas acumulado por seus predecessores, Marx, Durkheim, Weber, e como outros, é quando é mais ‘crítico’, quando a intenção consciente ou inconsciente que o anima é mais subversiva, quando tem mais interesse em desvendar o que é censurado, contido, no mundo social”.18

Quanto a nós, pensamos que o ponto de vista potencialmente mais crítico e mais subversivo é o da última classe revolucionária, o proletariado. Mas não há dúvida de que o ponto de vista proletário não é de forma alguma uma garantia suficiente do conhecimento da verdade social: é somente o que oferece a maior possibilidade objetiva de acesso à verdade. E isso porque a verdade é para o proletariado uma arma indispensável à sua autoemancipação. As classes dominantes, a burguesia (e também a burocracia, em um outro contexto) têm necessidade de mentiras e ilusões para manter seu poder. Ele, o proletariado, tem necessidade de verdade...”

18. P. Bourdieu, Questions de sociologie, p. 22.

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