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terça-feira, 20 de agosto de 2019

Dialética do Concreto (Parte III) – Karel Kosík

Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-442-7
Tradução: Célia Neves e Alderico Toríbio
Opinião: ★★★★★
Páginas: 230
Sinopse: Ver Parte I

“É verdade que Hegel construiu um palácio para as ideias, mas deixou as pessoas em casebres.”


“Marx e Hegel, na construção das suas obras, partem de um motivo simbólico intelectual comum, difuso na atmosfera cultural do seu tempo. Este motivo próprio da época da obra literária, filosófica e científica é a “odisseia”. O sujeito (o indivíduo, a consciência individual, o espírito, a coletividade) deve andar em peregrinação pelo mundo e conhecer o mundo para conhecer a si mesmo. O conhecimento do sujeito só é possível na base da atividade do próprio sujeito sobre o mundo; o sujeito só conhece o mundo na proporção em que nele intervém ativamente, e só conhece a si mesmo mediante uma ativa transformação do mundo. O conhecimento de quem é o sujeito significa conhecimento da atividade do próprio sujeito no mundo. Todavia, o sujeito que retorna a si mesmo depois de ter andado em peregrinação pelo mundo é diferente do sujeito que empreendera a peregrinação. O mundo percorrido pelo sujeito é diferente, é um mundo mudado, pois a simples peregrinação do sujeito pelo mundo modificou o próprio mundo, nele deixou as suas marcas. Ao regressar, porém, o mundo ao seu redor se manifesta ao sujeito de modo diferente de como se manifestara no início da peregrinação, porque a experiência obtida modificou a sua visão do mundo e de certo modo reflete a sua posição para com o mundo, nas suas variações de conquista do mundo ou resignação no mundo.”


“Não é justo afirmar que cada categoria econômica de “O Capital” de Marx é ao mesmo tempo uma categoria filosófica (H. Marcuse), mas é verdade que uma análise filosófica que ultrapasse o âmbito da ciência especializada e revele o que é a realidade e como se forma a realidade humano-social, permite compreender a essência das categorias econômicas, dando-nos a chave para a sua análise crítica. As categorias econômicas não dizem por si mesmas o que são. Na vida social dão antes a impressão de misteriosos hieróglifos. Portanto, até a afirmação de que o ser social é constituído de juros, salário, dinheiro, renda, capital e mais-valia, suscita uma justificada impressão de arbítrio e absurdo. Enquanto a ciência econômica observou o movimento das categorias econômicas, ela jamais colocou o problema do que são essas categorias, nem mesmo lhe ocorreu procurar uma conexão interna entre as categorias econômicas e o ser social. Por outro lado, para que se pudesse descobrir tal conexão, tinha de haver uma concepção da realidade diferente daquela que a economia clássica pressupunha. A análise de uma determinada realidade – no caso, da economia do capitalismo – é matéria que diz respeito à ciência, à economia política. Para que tal ciência seja ciência autêntica e não fique à margem da ciência como o filosofar sobre fenômenos econômicos (Moses Hess) ou corno a sistematização doutrinária das representações da realidade econômica (economia vulgar) , ela deve derivar de um correto conceito da realidade social, que não é e não pode ser matéria de uma ciência especial.
Do mesmo modo as categorias econômicas não são categorias filosóficas; mas a descoberta do que são as categorias econômicas e, portanto, a sua análise crítica deriva necessariamente de uma concepção filosófica da realidade, da ciência e do método. A análise crítica – que demonstra que as categorias econômicas não são aquilo que aparentam nem aquilo que nos é impingido pela consciência acrítica, e nelas revela o oculto núcleo interno – deve ao mesmo tempo demonstrar, se quiser permanecer ao nível da ciência, que a sua aparência categorial é uma manifestação necessária da essência interna. Este procedimento – em que a pseudoconcreticidade é liquidada para ser demonstrada como forma fenomênica necessária – não ultrapassa ainda, de modo algum, o âmbito da filosofia (isto é, de Hegel). Só a demonstração de que as categorias econômicas são formas históricas da objetivação do homem, e que, como produtos da práxis histórica, só podem ser superadas por uma atividade prática, indica os limites da filosofia e o ponto em que tem início a atividade revolucionária. (Se Marx segue as pegadas da ciência clássica e refuta os romantismos, ainda que à primeira vista fosse mais lógico o contrário, tal acontece porque a ciência clássica ofereceu uma análise do mundo tornado objetual, enquanto os romantismos são apenas um protesto contra a desumanidade daquele mundo, e neste sentido são ao mesmo tempo um produto seu, e, portanto, algo derivado e secundário). A análise das categorias econômicas não é destituída de pressupostos: o seu pressuposto é a concepção da realidade como processo prático de produção e reprodução do homem social. Uma análise assim conduzida revela nas categorias econômicas as formas fundamentais ou elementares da objetivação, e, por conseguinte, a existência objetiva do homem como ser social.:E: evidentemente exato – e até este ponto a economia clássica tem razão contra todos os protestos românticos – que a economia como sistema ou totalidade exige e cria o homem do ponto de vista do próprio sistema; quer dizer, acolhe o homem no sistema na medida em que o homem apresenta determinadas características, vale dizer enquanto é reduzido ao “homem econômico”. Mas justamente porque a economia é a forma elementar da objetivação, é unidade objetivada e realizada de sujeito e objeto, é atividade prática objetivada do homem, justamente por isto em tal relação não se desenvolve apenas a riqueza social objetiva, mas ao mesmo tempo também as qualidades e faculdades subjetivas dos homens. “No ato mesmo da reprodução não se modificam apenas as condições objetivas – por exemplo, uma vila torna-se uma cidade, um deserto toma-se terra cultivável; modificam-se os próprios produtores, enquanto extraem novas qualidades de si mesmos, desenvolvem-se na produção e se transformam, criam novas forças e novas representações, novos modos de relações, novas exigências e uma nova linguagem.”29
As categorias econômicas exprimem as “formas do ser” ou as “determinações existenciais” do sujeito social apenas na totalidade, que não é um aglomerado de todas as categorias mas dá lugar a uma determinada estrutura dialética, constituída do “poder que tudo domina” e, portanto, daquilo que cria o “éter do ser”, como se exprime Marx. Todas as outras categorias – consideradas isoladamente em si mesmas – exprimem apenas facetas e aspectos parciais, isolados. Portanto, só se as categorias são desenvolvidas dialeticamente e a sua estrutura oferece a articulação interna da estrutura econômica de uma determinada sociedade, só em tal caso cada uma das categorias econômicas consegue o seu autêntico significado, ou seja, toma-se uma categoria concretamente histórica. Em cada uma de tais categorias é então possível descobrir, seja de modo essencial (quando se trata das categorias econômicas fundamentais), seja sob um aspecto determinado (quando se trata das categorias secundárias):
1) uma determinada forma da objetivação histórico-social do homem, visto que a produção – como observa Marx – é por sua essência objetivação do indivíduo;30
2) um determinado grau, concretamente histórico, da relação sujeito-objeto;
3) a dialética do histórico e do meta-histórico, isto é, a unidade das determinações ontológicas e existenciais.
Se na base da nova concepção da realidade (descobrimento da práxis e da práxis revolucionária) se revela o caráter das categorias econômicas e se processa a sua análise, reciprocamente se pode, partindo destas categorias, realizar a edificação do ser social. No sistema das categorias econômicas se reproduz espiritualmente a estrutura econômica da sociedade. Em seguida também é possível descobrir o que é na realidade a economia, e distinguir entre aparências reificadas e mistificadas ou necessárias manifestações exteriores da economia, e aquilo que é economia no sentido próprio da palavra. A economia não é apenas produção dos bens materiais: é a totalidade do processo de produção e reprodução do homem como ser humano-social. A economia não é apenas produção de bens materiais; é ao mesmo tempo produção das relações sociais dentro das quais esta produção se realiza.31
O que a crítica burguesa e reformista considera como a parte “especulativa”, “messiânica” ou “hegelianizante” de “O Capital” é apenas a expressão exterior do fato de que Marx, sob o mundo dos objetos, sob o movimento dos preços, das mercadorias, das várias formas de capital – cujas leis ele exprime em fórmulas exatas – descobre o mundo objetivo das relações sociais, ou seja, a dialética sujeito-objeto. A economia é o mundo objetivo dos homens e dos seus produtos sociais, e não o mundo objetivado do movimento social das coisas. O movimento social das coisas, que mascara as relações sociais dos homens e dos seus produtos, é uma determinada forma de economia, historicamente transitória. Enquanto existe tal forma histórica da economia, ou seja, enquanto a forma social do trabalho cria o valor de troca, existe também a mistificação real, prosaica, pela qual determinadas relações – nas quais entram os indivíduos no curso do processo produtivo da sua vida social – se mostram sob um aspecto subvertido, como qualidades sociais das coisas.32
Em todas estas manifestações a economia no seu conjunto e as suas categorias econômicas singulares se mostram como dialética particular da pessoa e das coisas. As categorias econômicas, que num dos seus aspectos são a fixação das relações sociais das coisas, contêm em si os homens como portadores das relações econômicas. A análise das categorias econômicas é uma crítica de duplo gênero: em primeiro lugar demonstra a insuficiência das análises feitas até então pela economia clássica, no tocante à adequada expressão do movimento social mesmo, e neste sentido a análise crítica é uma continuação da economia clássica: elimina as discordâncias e os defeitos da economia clássica e apresenta análises mais profundas e universais. Em segundo lugar – e sob este aspecto o marxismo é uma crítica da economia no sentido próprio do termo – o movimento real das categorias econômicas mostra-se como forma reificada do movimento social dos homens. Em tal crítica se descobre que as categorias do movimento social das coisas são formas existenciais – necessárias e historicamente transitórias – do movimento social dos homens. A economia marxista surge, portanto, como uma dupla crítica das categorias econômicas, ou melhor – para lhe dar uma expressão positiva – como análise da dialética histórica dos homens e das coisas na produção, a qual é concebida como produção histórico-social da riqueza objetiva e das relações sociais objetivas.
Na economia capitalista verifica-se o recíproco intercâmbio de pessoas e coisas, a personificação das coisas e a coisificação das pessoas. Às coisas se atribuem vontade e consciência, e por conseguinte o seu movimento se realiza consciente e voluntariamente; e os homens se transformam em portadores ou executores do movimento das coisas. A vontade e a consciência dos homens são determinadas pelo movimento objetivo das coisas: o movimento das coisas se realiza através da mediação da vontade e da consciência dos homens, como mediação de um elemento mediador próprio.
A lei interna das coisas, que deriva do seu movimento social, é transposta para a consciência humana como intenção e escopo; o fim subjetivo se objetiva e, independentemente da consciência individual, dá a impressão de ser uma tendência ou missão da coisa. Aquilo que, para o valor e a produção de mercadorias é a sua “missão, instinto interno e tendência”, se manifesta na consciência do capitalista – com a mediação de quem tal missão se realiza - como propósito consciente e escopo.33
Examinando-se e formalizando-se a lei interna do movimento social – da qual o homem (homo oeconomicus) é apenas o portador ou uma máscara característica – constata-se imediatamente que tal realidade é apenas uma aparência real. À primeira vista a pessoa (o homem) se mostra, na relação econômico-produtiva, apenas como personificação do movimento social das coisas, e a consciência se revela o executor (o agente) do movimento em si,34 mas logo em seguida uma análise ulterior dissolve esta aparência positiva e demonstra que o movimento real das coisas é forma histórica da relação entre os homens; e a consciência coisificada é apenas uma forma histórica da consciência humana.
As categorias econômicas, na base das quais se opera a edificação do ser social e que são formas existenciais do sujeito social, não são, portanto, expressões do movimento das coisas ou das relações sociais humanas, destacadas dos próprios homens e da sua consciência. Nas categorias econômicas fixam­se as relações produtivas sociais que passam através da consciência humana, mas são independentes da própria consciência, e, portanto, se servem da consciência individual como de uma forma da própria existência e do próprio movimento. O capitalista é uma relação social dotada de vontade e de consciência, mediatizada pelas coisas, que se manifesta no movimento das próprias coisas.35
O ser social determina a consciência dos homens, mas disto não resulta que o ser social se revele adequadamente na consciência dos homens. Na práxis utilitária do dia-a-dia os homens mais facilmente tomam consciência do ser social sob cada um dos aspectos isolados ou sob aparências feitichizadas. Como se revela o ser social do homem nas categorias econômicas? Porventura enquanto se traduz na categoria econômica correspondente, como o capital, a propriedade territorial, a pequena indústria, os monopólios, isto é, numa faticidade histórico-econômica de condições e de dados? Nesta transposição, o ser social é substituído pelas suas aparências reificadas ou momentos isolados, razão por que o acréscimo de formas culturais a um ser entendido de tal modo não pode abandonar a esfera da vulgarização, mesmo que se confirmasse milhares de vezes, sob juramento, a asserção de que a conexão entre “economia” e cultura é concebida “mediatamente” e “dialeticamente”. A atitude vulgarizante não consiste na falta de mediação, mas na concepção mesma do ser social. O ser social não é uma substância rígida ou dinâmica, ou uma entidade transcendente que exista independente da práxis objetiva: é o processo de produção e reprodução da realidade social, vale dizer, é “práxishistórica da humanidade e das formas da sua objetivação. Se de um lado a economia e as categorias econômicas são incompreensíveis sem a práxis objetiva e sem a solução do problema de como é constituída a realidade social, de outro lado, porém, as categorias econômicas – como formas fundamentais e elementares da objetivação social do homem – são os elementos constitutivos na base dos quais se realiza a edificação do ser social. “Se examinamos a sociedade burguesa no seu conjunto – assim sintetiza Marx a conexão entre ser social, práxis e economia – o que se apresenta sempre, como resultado último do processo social de produção, é a própria sociedade. Vale dizer, o próprio homem nas suas relações sociais. Tudo aquilo que tem uma forma sólida, como um produto etc., se manifesta apenas como um momento, um momento transitório daquele movimento. Até o imediato processo produtivo aqui se mostra apenas como momento. As condições e objetivações do processo são também elas, ao mesmo tempo, momentos seus, e como sujeitos do processo se mostram apenas os indivíduos, mas os indivíduos ligados por relações recíprocas que justamente eles reproduzem ou produzem ex novo. É próprio deles o incessante processo do movimento no qual justamente eles se renovam tanto quanto o mundo da riqueza, que eles mesmos criam.36 Nas categorias econômicas e na sua articulação dialética o ser social não está tanto “contido” mas, melhor dito, fixado. Portanto, a análise teórica descobre o ser social no sistema das categorias econômicas apenas quando ela “dissolve” a fixidez destas e as compreende como expressões da atividade objetiva dos homens e da conexão das suas relações sociais em determinadas etapas históricas do desenvolvimento.”
29. Marx, Grundrisse, pág. 394. Na década de 30 a publicação dos primeiros '“Manuscritos Econômico-Filosóficos”' de Marx provocou viva sensação e deu origem a uma vasta literatura, enquanto a publicação dos “Grundrisse”, que são trabalhos preparatórios para “O Capital”, do Marx da época madura, da década de 50, e constituem um elo extraordinariamente importante entre os “Manuscritos” e “O Capital”, quase não mereceu atenção. É difícil exagerar o significado dos “Grundrisse”. Demonstram eles, antes de tudo, que Marx nunca abandonou a problemática filosófica, e que especialmente os conceitos de “alienação”, “reificação”, “totalidade”, relação de sujeito e objeto, que alguns canhestros marxólogos proclamariam prazerosamente como o pecado de juventude de Marx, continuam sendo, ao contrário, o constante equipamento conceitual da teoria de Marx. Sem eles “O Capital” é incompreensível.
30. “Jede Produktion ist eine Vergegenständlichung des Individuums”. Marx, Grundrisse, pág. 137. (Toda produção é uma objetivação do indivíduo).
31. “A economia burguesa, porém, vê como se produz por dentro das relações de produção capitalistas, mas não vê como se produzem essas relações mesmas”. Marx. “Archiv”, vol. II, Moscou, 1933, pág. 1 76.
33. Marx, “Archiv”, pág. 6.
34. “As funções desempenhadas pelo capitalista são apenas funções do próprio capital desempenhadas com a consciência e a vontade do valor que se valoriza graças à absorção do trabalho vivo. O capitalista funciona somente como capital personificado, assim como o operário funciona como trabalho personificado.” Marx, “Archiv”, pág. 32.
35. “No conceito do capital está contido o capitalista”. Marx, Grundrisse, pág. 412.


“O trabalho, na sua essência e generalidade, não é atividade laborativa ou emprego que o homem desempenha e que, de retorno, exerce uma influência sobre a sua psique, o seu habitus e o seu pensamento, isto é, sobre esferas parciais do ser humano. O trabalho é um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade. Só o pensamento que revelou que no trabalho algo de essencial acontece para o homem e o seu ser, que descobriu a íntima, necessária conexão entre os problemas “o que é o trabalho” e “quem é o homem”, pôde também iniciar a investigação científica do trabalho em todas as suas formas e manifestações.”


“Esclarece-se a especificidade do ser humano opondo-a ao ser dos animais e ao ser das coisas. Em que um homem difere de uma pedra, de uma lagartixa e de uma máquina? Hegel, como dialético, situa a distinção entre o homem e o animal justamente no ponto em que o homem e o animal se encontram essencialmente: no campo da animalidade. O domínio do desejo animal bruto45 e a inserção – entre este e a sua satisfação – de um termo mediador, que é o trabalho, não é apenas um processo no curso do qual o desejo animal se transforma em desejo humano46 e no qual se opera a gênese do homem; é ao mesmo tempo um modelo elementar da própria dialética. A transformação do desejo animal em desejo humano, a humanização do desejo sobre a base e no processo do trabalho, é apenas um dos aspectos do processo que se opera no trabalho. Em outras palavras: o modo de abordar o processo do trabalho, que fomos buscar na distinção entre desejo animal e humano, nos conduzirá à compreensão do próprio processo, sob a condição de que nele não se observe apenas a esporádica ou isolada metamorfose da animalidade em humanidade, mas se descubra a metamorfose em geral. O trabalho é um processo no qual se opera uma metamorfose ou mediação dialética. Na mediação dialética deste processo não se estabeleceu um equilíbrio entre as contradições, nem se formam contradições antinômicas, mas sim a unidade das contradições se estabelece como processo ou no processo de transformação. A mediação dialética é uma metamorfose na qual se cria o novo, é gênese do qualitativamente novo. No ato mesmo da mediação – no qual da animalidade nasce o humano e o desejo animal se transforma em desejo humanizado, desejo do desejo, isto é, reconhecimento – se forma também a tridimensionalidade do tempo humano: só um ser que no trabalho supere o niilismo do desejo animal descobre o futuro como dimensão do próprio ser, no próprio ato em que se domina e se contém. No trabalho e por meio do trabalho o homem domina o tempo (enquanto o animal é dominado pelo tempo), pois um ser que é capaz de resistir a uma imediata satisfação do desejo e a contê-lo “ativamente” faz do presente uma função do futuro e se serve do passado, isto é, descobre no seu agir a tridimensionalidade do tempo como dimensão do seu ser.47
O trabalho, que superou o nível da atividade instintiva e é agir exclusivamente humano, transforma aquilo que é dado natural, inumano e o adapta às exigências humanas; ao mesmo tempo realiza os fins humanos naquilo que é natural e no material da natureza. Assim, em sua relação com o homem, a natureza se manifesta sob um duplo aspecto: por um aspecto se apresenta como potência e objetividade que tem de ser respeitada, cujas leis o homem precisa conhecer a fim de que possa delas se servir em benefício próprio; por um outro aspecto, se rebaixa a mero material no qual se realizam os fins humanos. Num caso o homem deixa que as forças materiais, que existem independentemente dele, atuem em seu benefício e para as suas exigências; no outro, ele se objetiva na natureza e nos materiais da natureza, e com isto degrada a natureza a simples material das próprias intenções. O trabalho é ora transformação da natureza, ora realização dos desígnios humanos na natureza. O trabalho é procedimento ou ação em que de certo modo se constitui a unidade do homem e da natureza na base da sua recíproca transformação: o homem se objetiva no trabalho, e o objeto, arrancado do contexto natural original, é modificado e elaborado. O homem alcança no trabalho a objetivação, e o objeto é humanizado. Na humanização da natureza e na objetivação (realização) dos significados, o homem constitui o mundo humano. O homem vive no mundo (das próprias criações e significados), enquanto o animal é atado às condições naturais.
O elemento constitutivo do trabalho é a objetividade. A objetividade do trabalho significa em primeiro lugar que o resultado do trabalho é um produto que tem uma duração, que o trabalho só tem um sentido no caso em que passe “incessantemente da forma da operosidade (Unruhe) à forma do ser, da forma do movimento à forma da objetividade (Gegenständlichkeit),48 e portanto só no caso em que ele se manifeste como circulação de atividade e duração, de movimento e objetividade. Ao conduzir-se o processo do trabalho, o produto do trabalho no sentido amplo da palavra se apresenta como seu desfecho e encarnação. Aquilo que no processo do trabalho se manifestou como progressão temporal no produto do trabalho se manifesta, ao contrário, como condensação, como eliminação da sucessão temporal, como calma e duração. No processo do trabalho, são transformados, no presente, os resultados do trabalho passado e se realizam os desígnios do trabalho futuro. A tridimensionalidade do tempo humano como dimensão constitutiva do ser do homem baseia-se no trabalho como ação objetiva do homem. A tridimensionalidade do tempo e a temporalidade do homem são baseadas na objetivação. Sem a objetivação não se dá suspensão temporal.49 O trabalho como ação objetiva é um modo particular de unidade de tempo (temporalização) e de espaço (função extensiva) como dimensões essenciais da existência humana, isto é, formas específicas do movimento do homem no mundo.
Em segundo lugar, o caráter objetivo do trabalho é expressão do homem como ser prático, vale dizer, como sujeito objetivo. No trabalho o homem deixa algo permanente, que existe independentemente da consciência individual. A existência de criações objetivadas é pressuposto da história, isto é, da continuidade da existência humana. Neste contexto se torna claro por que uma visão profunda e realista da realidade humano-social coloca o instrumento acima das intenções, e confirma o seu significado central mediante a concepção de que o instrumento é a “mediação racional” entre o homem e o objeto. Na história do pensamento essa linha é representada pelos filósofos que afirmam o significado da mão do homem e a sua conexão com a racionalidade humana. Anaxágoras diz que “o homem é o mais racional de todos os viventes porque tem as mãos”. Aristóteles, e depois dele Giordano Bruno, chamam a mão “o instrumento dos instrumentos”. Hegel leva a termo tal linha. Ao contrário, a filosofia idealista do século XX (Bergson, Jaspers, Scheler, Heidegger) exprime o desprezo pela técnica e pelos instrumentos, e condena romanticamente o mundo, no qual “o homem se perde entre os instrumentos”.
A difundida opinião de que o homem é o único ser que se sabe porque só a ele se descortina o futuro, ao termo do qual ele avista a morte, é idealisticamente deturpada na interpretação existencialista, porquanto, com base na limitação da existência humana, a objetivação é considerada como uma das formas da fuga à autenticidade, que é ao contrário o ser­para-a-morte. Mas o homem só sabe que é mortal na medida em que ele distribui o tempo à base do trabalho como ação objetiva e criação da realidade humano-social. Sem a ação objetiva, na qual o tempo se divide em futuro, presente e passado, o homem não poderia saber que é mortal.”
45. Neste sentido o animal e o homem são “por natureza” seres práticos. A propósito ver a polêmica de Marx com Wagner, em que ele afirma que o homem “não está” na realidade: ele age praticamente na realidade, para satisfazer as próprias exigências.
46. A distinção entre desejo animal e desejo humano nos parece linguisticamente mais apropriada do que a tradução literal dos termos hegelianos “'Begierde” e “Trieb” (“desejo físico” e “impulso instintivo”).
47. “L’animal n’existe que dans le moment, il ne voit rien au delà: l’homme vit dans le passé, le présent et l’avenir.” Diderot, Oeuvres, XVIII, edição Assézat, pág. 179. Ver Poulet, op. cit., pág. 179.
48. Marx, O Capital, vol. I, parte II, cap. V.
49. Neste ponto fundamental, em que a problemática do tempo humano é associada à atividade objetiva do homem, a filosofia materialista se diferencia essencialmente da concepção existencialista da temporalidade.


“As análises desenvolvidas até hoje procuraram descrever o trabalho servindo-se de pares dialéticos como a causalidade e a finalidade, a animalidade e a humanidade, o sujeito e o objeto etc., enquanto o trabalho mesmo era apresentado como “centro ativo” no qual atua a unidade dialética de tais pares. Desta maneira foram traçadas as características essenciais do trabalho, mas ainda não fora captada a sua especificidade. As características descobertas até hoje compreendem o operar humano em geral, mas nele não distinguem os vários gêneros particulares.
A um soberano da Idade Média nem lhe passaria pela cabeça que reinar é um trabalho ou que, tomando decisões políticas, estivesse trabalhando. Tanto César quanto Aristóteles – observa Marx – teriam considerado ofensivo o próprio epíteto de “trabalhador”. Significa isto, então, que a ação política, a ciência e a arte não são trabalho? Uma resposta sumariamente negativa seria tão inexata quanto a afirmação oposta, que considera a ciência, a política e a arte como trabalho.50 Onde está, então, a linha de separação ou o critério de distinção? Ou os citados modos de agir humano são trabalho em certas condições, ao passo que em outras não o são?
A arte sempre foi considerada como a atividade humana e o agir humano par excelence e, como livre criação, considerada distinta do trabalho. Hegel substitui a criação artística de Schelling pelo trabalho efetivo como único gênero de práxis, o que significa tanto uma democratização como um aprofundamento da visão da realidade humana; tal diferenciação, contudo, não deve ocultar o outro aspecto do problema. Para Schelling, assim como para Augustin Smetana e Edward Dembowsky, a criação artística é “práxis” livre, isto é, um gênero de agir humano que não se submete a uma necessidade exterior e se caracteriza expressamente pela “independência de finalidades exteriores”. O agir humano resulta, pois, dividido em dois campos: num campo ele atua sob a pressão da necessidade e se chama trabalho, enquanto no outro se realiza como livre criação e se chama arte.51 Esta distinção é justa porquanto torna possível captar a especificidade do trabalho como um agir objetivo do homem, tal como suscitado e determinado constitutivamente por um fim exterior, cuja consecução se chama necessidade natural ou obrigação social. O trabalho é um agir humano que se move na esfera da necessidade. O homem trabalha enquanto o seu agir é suscitado e determinado pela pressão da necessidade exterior, cuja satisfação assegura a existência do indivíduo. Uma mesma atividade é ou não é trabalho, dependendo de que seja ou não exercida como uma necessidade natural, isto é, como um pressuposto necessário à existência. Aristóteles não trabalhava. Um professor de filosofia, porém, trabalha porque as suas traduções e interpretações da “Metafísica” de Aristóteles são um emprego, isto é, uma necessidade, socialmente condicionada, de procurar os meios materiais de sustento e de existência.
A divisão do agir humano em trabalho (esfera da necessidade) e arte (esfera da liberdade) capta a problemática do trabalho e do não-trabalho apenas aproximadamente e apenas sob certos aspectos. Esta distinção parte de uma determinada forma histórica do trabalho como de um pressuposto não analisado e, portanto, aceito acriticamente, sobre cujo fundamento se petrificou a divisão do trabalho surgida historicamente, em trabalho físico-material e trabalho espiritual. Nessa distinção fica oculta uma ulterior característica essencial da especificidade do trabalho como um agir humano que não abandona a esfera da necessidade mas ao mesmo tempo a supera e cria nela os reais pressupostos da liberdade humana.52
A liberdade não se revela ao homem além das fronteiras da necessidade, como um campo autônomo independente em face do trabalho; surge do trabalho como de um pressuposto necessário. O agir humano não está dividido em dois campos autônomos, um independente do outro e reciprocamente indiferentes, um que é a encarnação da liberdade e outro que é o campo de ação da necessidade. A filosofia do trabalho como agir humano objetivo, no qual em processo necessário são criados os reais pressupostos da liberdade, é, assim, ao mesmo tempo, também uma filosofia do não-trabalho. O agir humano objetivo que transforma a natureza e nela inscreve significados, é um processo único, cumprido por necessidade e sob a pressão de uma finalidade exterior, mas que ao mesmo tempo realiza os pressupostos da liberdade e da livre criação. A divisão deste processo único em duas esferas, aparentemente independentes uma da outra, não decorre da “natureza das coisas”; é um produto historicamente transitório. Enquanto a consciência é prisioneira desta divisão, isto é, enquanto não lhe percebe o caráter histórico, ela opõe o trabalho à liberdade, a atividade objetiva à imaginação, a técnica à poesia, como dois modos independentes de satisfazer as aspirações humanas.53
Por outro lado, é natural que a romântica absolutização dos sonhos, da imaginação e da poesia acompanhe como uma sombra fiel todo “fanatismo do trabalho”, e, por conseguinte, todas as formas históricas da produção nas quais a unidade da necessidade e da liberdade se realiza como separação entre o trabalho e o prazer (alegria, regozijo, felicidade) ou como unidade das contradições que tomam corpo no antagonismo dos grupos sociais.54 A ação humana que é determinada apenas por uma finalidade interior e não depende de uma necessidade natural ou de uma obrigação social não é um trabalho; é uma livre criação, qualquer que seja o campo em que se realize. O autêntico reino da liberdade começa, portanto, além das fronteiras do trabalho, se bem que justamente o trabalho é que constitui a sua base histórica necessária: “O reino da liberdade só tem início efetivamente no ponto em que se para de trabalhar sob a pressão da necessidade e da finalidade exterior; segundo a natureza da coisa, ele se acha, assim, fora da esfera própria da produção material”.55
As considerações feitas até hoje divulgam a aparência de que o trabalho por si mesmo pertence à economia ou que pela sua própria natureza é um conceito econômico “natural”. Até agora, no trabalho, não encontramos nada de econômico. No entanto, chegamos ao ponto em que se revela tanto a conexão interna entre economia e trabalho, quanto a natureza da economia. A economia não é exclusivamente a esfera da necessidade nem a esfera da liberdade; ela constitui um campo da realidade humana em que se cria historicamente a unidade da necessidade e da liberdade, da animalidade e da humanidade. A economia é a esfera da necessidade (do agir objetivo laborioso) na qual são criados os pressupostos históricos da liberdade humana. À base da análise do trabalho, chegamos a duas importantes noções referentes à economia. A primeira se refere ao nascimento da economia. Como empreendemos a investigação da economia partindo da análise do trabalho, a própria economia se nos manifestou originariamente não como uma estrutura econômica da sociedade, já pronta e acabada, como uma plataforma histórica já formada ou como unidade das forças produtivas e das relações de produção; manifestou-se como realidade humano-social que se vai formando e constituindo, realidade fundada sobre o agir objetivamente prático do homem. Em segundo lugar verificamos o posto que a economia ocupa na realidade humano-social: a economia ocupa o lugar central na realidade humano-social porque ela constitui a esfera da metamorfose histórica de que se cria o homem como ser racional e criatura social, a esfera onde ocorre a humanização do homem. A economia está situada no ponto em que a animalidade se humaniza, e em que se realiza a unidade de necessidade e liberdade. Neste sentido, a economia se manifesta como modo das relações humanas e fonte da realidade humana.
Duas opiniões extremas exemplificam a incompreensão do que a economia ocupa no sistema da realidade humana, que sempre buscou por trás dos fenômenos empíricos uma “necessidade superior” e a “autêntica realidade”, ficou tão perturbado pela hegemonia do “interesse econômico” no seu tempo que não pôde libertar-se da prisão desta empiricidade reificada, e por isso não procura a sua “autêntica realidade”. O que é a economia? – se interroga Schelling. Um negócio, uma beterraba, uma cervejaria, uma criação de gado?56 O outro extremo é constituído pela opinião que coloca a economia na periferia da realidade humana, considerando-a como uma zona que se refere exclusivamente às exigências físicas. A economia é a esfera da satisfação das exigências elementares do homem como ser fisiológico, biológico e animal. Ela, portanto, desempenha uma função decisiva apenas nas situações ínfimas, quando todos os interesses humanos se retiram e fica apenas a urgente necessidade de comer, agasalhar-se e vestir-se. A economia toma-se um fator determinante quando há fome, guerra e calamidades elementares. Quando é que o homem vive da economia e é determinado economia? Quando não tem o que comer e quando sente frio, responde o nosso autor.57
Enquanto indagamos a relação entre o trabalho e a criação da realidade humano-social, não descobrimos no trabalho nada de econômico. O trabalho como agir objetivo do homem, no qual se cria a realidade humano-social, é o trabalho no sentido filosófico. Ao contrário, o trabalho em sentido econômico é o criador da forma específica, histórica e social da riqueza. Do ponto de vista da economia o trabalho se manifesta como regulador e como estrutura ativa das relações sociais na produção. O trabalho como categoria econômica é a atividade produtiva social, que cria a forma específica da riqueza social.58
O trabalho em geral é o pressuposto do trabalho em sentido econômico, mas não coincide com este. O trabalho que forma a riqueza da sociedade capitalista não é o trabalho em geral; é um determinado trabalho, o trabalho abstrato-concreto ou um trabalho dotado de dupla natureza, e apenas nesta forma pertence à economia.”
50. Ver H. Marcuse, no estudo citado, pág. 273.
51. A propósito devemos advertir que Smetana, diferentemente de Schelling, não considera a arte como a única ocupação do gênio, mas, no espírito da época, democratiza fortemente toda a concepção da criação artística e concebe a arte no sentido amplo e revolucionariamente antecipador de livre criação das condições humanas. Ver Aug. Smetana, Sebr. spisy [Obras Completas] , I, Praga, 1960, págs. 186- 187.
52: A relação entre necessidade e liberdade é uma relação historicamente condicionada e historicamente variável. É portanto perfeitamente coerente, do ponto de vista materialista, que Marx reduza o problema da liberdade à redução do tempo de trabalho, isto é, à criação de tempo livre, e neste sentido traduza a problemática de necessidade e liberdade na história em relação de tempo de trabalho e tempo livre. “... O tempo livre, o tempo que está à nossa disposição, é a própria riqueza – [ destinada ] em parte à fruição do produto, em parte à livre manifestação de uma atividade que não é, como o trabalho, determinada pela coação de uma finalidade exterior, que deve ser cumprida e cujo cumprimento é uma necessidade natural ou um dever social, como se queira.” Marx, Theorien über den Mehrwert, Vol. III, pág. 305. A representação do tempo livre como férias organizadas é absolutamente estranha a Marx. É claro que a criação de um tempo livre como dimensão qualitativamente nova da vida humana se conjuga com a criação de uma sociedade livre.
53: Este é o caso do romantismo e do surrealismo. A sua apologética conduz: a conclusões imprevistas, como demonstra o seguinte trecho: “Le príncipe de la démarche surréaliste n’est pas la raison hégélienne ou le travail marxiste: c’est la liberté.” (O princípio da abordagem surrealista não é a razão hegeliana ou a obra marxista: é a liberdade) Ferd. Alquié, Philosophie du surréalisme, Paris, 1915, pág. 115.
54. “Não corresponde absolutamente ao processo de desenvolvimento da sociedade que um indivíduo, tendo satisfeito a própria necessidade, crie, a partir deste momento, o próprio excedente; pelo contrário, pelo fato de um indivíduo ou classe de indivíduos ser forçado a trabalhar mais do que o necessário à satisfação das suas próprias necessidades, o surplus de trabalho acaba, de um lado, enquanto o surplus de riqueza sobra, do outro. Na realidade, o desenvolvimento da riqueza só existe dentro destas contradições. No plano das possibilidades, exatamente o seu desenvolvimento representa a possibilidade de superar estas contradições”. Marx, Grundrisse, pág. 305
55. Marx, O Capital, III, 2, cap. XLVIII, parte 3. Ver também Grundrisse, págs. 599, 505.
56. Schelling, Werke, II, pág. 622.
57. (...) R. Caillois, Le monde vécu et l’histoire. L’homme, le monde, l’histoire, Paris-Grenoble, 1948, pág. 74.

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