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quarta-feira, 27 de março de 2019

A ilusão neoliberal (Parte I), de René Passet

Editora: Record

ISBN: 978-85-0106-107-2

Tradução: Clóvis Marques

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 370

Sinopse: Em A ilusão neoliberal, o economista francês René Passet analisa questões centrais de nosso tempo e mostra que é possível a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. René Passet pergunta e responde por que é urgente inverter a tendência liberal vigente e recolocar o homem no centro de toda atividade econômica. Segundo Passet, a partir do momento em que a informação assumiu o papel de energia como combustível do desenvolvimento, um novo tipo de economia surgiu, modificando nossas relações com o tempo, com o espaço e com a sociedade. Apesar das mudanças, muita coisa continuou igual. As ditas “novas” ideias e responsabilidades políticas continuaram relacionadas a conceitos antigos, persistindo em crenças de um sistema que se pretende liberal.

Em A ilusão neoliberal Passet alerta que tanto a direita quanto a esquerda apelam para as mesmas fórmulas. Ambas abrigam receitas de desregulamentação, submissão às leis de mercado e produtividade desenfreada para compor realidades ilusórias com bolsas em alta, crescimento repartido, regressão de desemprego, etc. René Passet mostra como esse falso sistema de desenvolvimento produz efeitos terríveis em uma sociedade – cada vez mais a humanidade está dividida por desigualdades crescentes. Até mesmo a vida se inscreve no campo do mercantilismo, o que o autor chama de marchandization. Um livro essencial para compreender e combater os novos tempos e que demonstra como a ação possibilita a construção de uma outra sociedade. Passet indaga por que nós devemos pensar e agir de outra forma, e analisa em que sentido o computador e a informática constituem uma revolução cultural ainda mais importante que a da máquina a vapor. A ilusão neoliberal ilumina questões centrais das transformações do nosso tempo, conectando-as às suas ramificações econômicas, sociais, ambientais e humanas.

Economista especializado em desenvolvimento, René Passet é professor na Universidade Paris-1-Panthéon-Sorbonne e presidente do Conselho Científico da ATTAC (Association pour une Taxation des Transactions Financières pour l”“Aide aux Citoyen). Publicou, entre outras obras, L’économique et le vivant, premiada pela Académie des Sciences Morales et Politiques, e Une économie de rêve.

A ilusão neoliberal mostra que a ação pública é possível, que a economia pode estar a serviço da vida, dos seres humanos.” - Le Monde Diplomatique.

“A melhor síntese da doutrina antiglobalização produzida na língua francesa.” – Libération.


 

“Há dez mil anos, quando nossos ancestrais iam progressivamente deixando sua existência nômade de coletores-caçadores-pescadores para se sedentarizar, realizavam um ato de cujo alcance não suspeitavam: inauguravam uma fase da existência humana baseada na domesticação das energias. O terreno que delimitavam para nele cultivar a planta ou alimentar o animal passaria a ser sistematicamente usado como receptor e conversor de energia solar. A partir deste ato fundador, todas as grandes revoluções da humanidade – moinho de vento, moinho d’água, arado, energias fósseis ou nucleares – teriam fundamentos energéticos.2 Até a conquista do carvão, a partir do século XVIII, a radiação solar repetida ao longo dos dias e das estações o fluxo – é que vai regular as atividades humanas.

A passagem para as energias fósseis representa uma primeira ruptura: o deslocamento do fluxo para a estocagem. O carvão continua sendo energia solar, mas estocada nos vegetais das eras geológicas. Está aí, disponível, e podemos usufruir dele em função das necessidades. É uma forma de libertação: as atividades humanas libertam-se dos ritmos da natureza para obedecer apenas a si mesmas. E também uma limitação – que demorará a ser percebida, pois as reservas pareciam imensas –, já que o estoque existe em quantidade finita e não se renova; é, portanto, esgotável. A libertação dos ritmos, por outro lado, cria novos problemas de assimilação dos dejetos, que não existiam na época em que os movimentos da natureza determinavam os das atividades humanas.

A passagem para o nuclear reforça esta ruptura, pondo à disposição dos homens uma fonte de energia ligada à liberação das forças que cimentam a matéria e que não é mais de origem solar.

A virada que estamos enfrentando anuncia-se ainda mais decisiva: com o computador; a informação, a humanidade sai dessa fase de seu desenvolvimento baseada na energia para engajar-se numa outra, dominada pelas forças do imaterial. Não surpreende que o navio sacoleje e sejamos obrigados por vezes a nos agarrar ao mastro.

Estamos exatamente no meio do caminho, como ilustra a anedota contada por Michel Richonnier:3 “Ilha de Terceira, Arquipélago dos Açores. Um encontro inesperado entre Georges Pompidou e Richard Nixon. Este atravessou o Atlântico a bordo do avião presidencial Spirit of 76, modesto quadrimotor subsônico. Georges Pompidou, por sua vez, fretou o protótipo 001 do Concorde. Diante do mundo inteiro, o magnífico pássaro anglo-francês relega ao segundo plano a águia americana... Ao despedir-se de seu interlocutor, no fim do encontro dos Açores, Richard Nixon lançou a Georges Pompidou um lacônico ‘I saw your Concorde!’. E o que foi tomado então como um cumprimento certamente ocultava uma feroz ironia... Meses antes, a empresa Intel desenvolvera o primeiro microprocessador da história, verdadeiro cérebro de computador do tamanho de uma unha, componente mais espetacular de uma nova revolução tecnológica.

Este encontro ilustra a sobreposição de duas fases da evolução humana: de um lado, o apogeu – vale dizer, ao mesmo tempo, o esboço do declínio – de um crescimento de base energética, inaugurado pela máquina a vapor, prolongado pela eletricidade, o petróleo, e hoje simbolizado pela central nuclear; de outro, a emergência de uma fase dominada pelo imaterial.”

2: Em duas ocasiões, contudo, em sociedades dependentes dos fluxos energéticos, a informação revelou seu poder de transformação do mundo: em 700 antes de Jesus Cristo, na Grécia, após três mil anos de tradição oral, o surgimento do primeiro alfabeto efetivamente utilizado dava à linguagem escrita sua autonomia, possibilitando o discurso conceitual graças ao qual o pensamento humano alcançaria, na Grécia antiga, o desabrochar que conhecemos; no século XV, a impressão gráfica facultaria uma difusão do saber que constituiria outra virada da história humana.

A diferença em relação à mutação contemporânea está no fato de a humanidade sair hoje de sua fase de desenvolvimento energético, e de estarmos assistindo a uma autêntica passagem de bastão da energia para a informação como motor da evolução social.

3: Michel Richonnier. Les Métatnorphoses de l’Europe, Flammarion, Paris, 1985. Este livro, escrito para durar, ainda é atual.

 

 

“Tentando fazer-se passar por um pensamento, o que se impõe é uma ideologia. A ortodoxia do sistema exprime-se através do “pensamento único”, para retomar a expressão de Ignacio Ramonet:19 “Este moderno dogmatismo” constitui “a tradução, em termos ideológicos de pretensão universal, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, especialmente as do capital internacional20”, servidas por escribas cuja importância provém das forças ante as quais se curvam.

Periodicamente, os quinhentos iniciados da “seita” fundada por Friedrich von Hayek, um dos aiatolás do liberalismo contemporâneo, reúnem-se no monte Peregrino em meio a uma aura de mistério. Em Davos, sacerdotes e fiéis celebram seu ofício, explicam com segurança o porquê dos acontecimentos – como a crise do Sudeste asiático – que não haviam sido capazes de prever no ano anterior e definem as estratégias para os anos vindouros. Por algum estranho decreto da Providência, nenhum deles carece de dinheiro para fazê-lo. Em ambos os casos, a escolha da Suíça como sede do encontro – país das contas numeradas e paraíso dos capitais de todas as procedências – parece altamente simbólica.

O dogma não está inscrito em nenhum código. Não corresponde exatamente a nenhuma escola acadêmica de pensamento, embora se defina por um liberalismo duvidoso. Flutua no espírito do tempo sob a forma de afirmações constantemente reiteradas e marteladas. Esse permanente martelar faz as vezes de demonstração, tão grande é a força de afirmações que se pretendem evidentes. De tudo isto ressaltam certos temas que exprimem a ideologia das forças dominantes: “A economia leva a melhor sobre a política [...] a economia situa-se [portanto] no posto de comando, uma economia livre, naturalmente, do obstáculo do social; o mercado, ídolo cuja mão invisível corrige as arestas e as disfunções do capitalismo, e especialmente os mercados financeiros, cujos sinais orientam e determinam o movimento geral da economia; a concorrência e a competitividade que estimulam e dinamizam as empresas, levando-as a uma permanente e benéfica modernização; a livre troca sem limites, fator de desenvolvimento ininterrupto do comércio e, portanto, das sociedades; a globalização tanto da produção manufaturada quanto dos fluxos financeiros; a divisão internacional do trabalho, que modera as reivindicações sindicais e reduz os custos salariais; a moeda forte, fator de estabilização; a desregulamentação; a privatização; a liberalização etc. Cada vez menos Estado, uma arbitragem constante em favor dos rendimentos do capital em detrimento daqueles do trabalho. E uma indiferença em relação ao custo ecológico.21

Livre de qualquer intervenção perturbadora, deixando que as coisas fluam espontaneamente, quaisquer que sejam as consequências – entre elas o esmagamento do fraco pelo forte – esta economia exprimiria espontaneamente as leis da natureza:22 “Não se pode fazer nada, meu amigo, e deves submeter-te.” Os sacrifícios que eles impõem e dos quais se eximem não se devem, portanto, à malícia dos homens nem aos vícios do sistema, mas à natureza das coisas. A evidência de seu “bom senso” é esmagadora: como qualquer dona-de-casa, um país não pode viver por muito tempo além de seus recursos (ninguém os ouviu jamais queixar-se de que ele viva “aquém”, o que no entanto acontece quando seu comércio exterior é superavitário), os encargos sociais e os salários pagos pelas empresas prejudicam a competitividade, e logo, também, o nível de emprego; pois é para seu próprio bem que se pede a cada um que reduza seu padrão de vida e seus “benefícios” – como dizem eles – sociais. Nada disto lhes diz respeito. Não lhes ocorreria, por exemplo, que, reduzindo em apenas 10% sua renda, aqueles dentre eles que ganham mil vezes o salário médio de seus operários financiariam a criação de cem empregos sem aumentar a massa salarial. Assim, simplesmente pelo gesto magnânimo. Em compensação, vejam como exultam quando apertam o torniquete sobre os mais humildes, em geral depois de providenciarem generosos aumentos para si próprios: é tão bom poder exibir tanto poder. “A infelicidade particular”, já dizia Pangloss, o filósofo de Voltaire, no século XVIII, “faz a felicidade geral, de modo que quanto mais infelicidades particulares houver, melhor estarão as coisas.23” Todos os Pangloss de nosso tempo o proclamam: a miséria dos humildes é o preço da prosperidade geral, e isto é muito bom. Não é culpa deles se a infelicidade particular cabe a você e a felicidade geral, a eles. As coisas são assim, e você simplesmente tirou o número errado.

Eles se dizem liberais, pois precisam de uma bandeira e de uma razão social, mas continuam nos enganando. Que “liberalismo” é este no qual uma centena de novos “senhores do mundo”, grandes capitães de transnacionais, dominam o planeta?24 Que concepção é esta segundo a qual os Estados25 devem entregar às empresas as chaves do setor público e da proteção social, acompanhadas – certamente em nome do risco inerente a toda concorrência – de garantias de lucros, sob pena de serem levados aos tribunais? Não é o liberalismo dos pais da pátria: em 1776, Adam Smith denunciava sem meias palavras a exploração do fraco pelo poderoso: “Os rendimentos e o lucro devoram os salários, e as classes superiores da nação oprimem a inferior26”; não parece Marx?”

19: Ignacio Ramonet, “La pensée unique”, Le Monde diplomatique, janeiro de 1995.

20: Suas fontes principais”, acrescenta Ignacio Ramonet. “são as grandes instituições econômicas e monetárias – Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, Acordo Geral de Tarifas e Comércio, Comissão Europeia, Banco da França etc. – que através de seu financiamento, arregimentam a serviço de suas ideias em todo o planeta numerosos centros de pesquisa, universidades, fundações, que por sua vez apuram e disseminam a boa palavra. Esse discurso anônimo é retomado e reproduzido pelos principais órgãos de informação econômica – The Wall Street Jornal, Financial Times, The Economist, Far Eastern Economic Review, Les Échos, Agência Reuters etc. – não raro de propriedade de grandes grupos industriais ou financeiros. Por toda parte, faculdades de ciências econômicas, jornalistas, articulistas e políticos reiteram os principais mandamentos dessas novas tábuas da lei”.]

21: Ignacio Ramonet, “La pensée unique”, art. cit.

22: Cette nouvelle loi de la gravitation, le marché”: Alain Minc, La Mondialisation heureuse, Plon, Paris, 1997.

23: Voltaire, Candide ou I’optimisme, cap. IV.

24: Ver o relatório sobre investimentos internacionais em 1998 publicado pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (CNUCED), 27 de setembro de 1999.

25: Era o que constava do projeto de Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) sorrateiramente negociado à sombra da OCDE, e também o que se tramava nos bastidores da “rodada do milênio” que naufragou em Seattle.

26: Adam Smith, Richesse des nations, 1776.

 

 

“Toda interpretação da economia repousa necessariamente numa concepção do mundo, do homem e da sociedade. A ciência econômica nunca foi tão grande quanto no momento em que soube associar em um mesmo pensamento uma filosofia do mundo, uma sociologia e – naturalmente – um olhar sobre as coisas que lhe são próprias. É o caso dos fisiocratas do século XVIII, com sua concepção da ordem natural, dos primeiros clássicos – Smith, Stuart Mill, como se sabe, eram tanto filósofos quanto economistas, e o primeiro chegou a escrever uma obra de astronomia –, de Marx, cuja economia repousa inteira sobre uma filosofia dialética associada a uma permanente atenção aos avanços científicos de sua época; é também o caso dos maiores neoclássicos – um Walras, por exemplo, que claramente baseia sua concepção da economia “pura” na mecânica newtoniana. Só os ruminadores medíocres são capazes de considerar suficientes os pequenos mecanismos cujas engrenagens empenham-se incansavelmente em descrever.”

 

 

“Existem apenas, portanto, percepções subjetivas do mundo; tantas percepções quantos são os indivíduos. E a ciência consiste em fazer com que tudo isto dialogue. Para isto, ela se dota de regras, ou, se preferirem, de precauções, permitindo definir o campo de um discurso no qual é possível entrar em acordo sobre determinadas coisas, ou então opor-se... falando a mesma língua. Neste sentido, o principal critério – proposto em 1959 pelo filósofo austríaco Karl Popper2 – é o do discurso exposto à refutação. Refutação, e não verificação, pois uma afirmação como “Sendo todas as condições iguais, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos” não pode ser verificada (seria necessária uma infinidade de experiências), mas se for falsa, é possível criar um protocolo que a conteste; em compensação, a declaração de que o vermelho é mais (ou menos) belo que o azul, assim como tudo mais que é afeto a valores socioculturais, depende do julgamento de cada um, escapando portanto a este critério. Este é apenas, diz-nos Popper, um “critério de demarcação” – e nada mais: significa que a hipótese não verificada não é verdade científica, mas pertence ao campo do discurso científico, pois é refutável.

Munidos, portanto, de nossos pífios instrumentos, partimos à conquista de um mundo que em todos os sentidos ultrapassa nossas pobres capacidades mentais. Para interpretá-lo, criamos convenções simplificadoras que em grande parte determinam as conclusões a que chegaremos; elaboramos conceitos que são apenas representações, e não as coisas em si mesmas (“o conceito de cão não late...”). Reivindicar o monopólio da ciência significa ignorar isto, e transformar uma busca que se nutre da diversidade num confronto de verdades definitivas que se anulam reciprocamente; significa situar-se fora do campo científico.

É natural, portanto, que o olhar lançado à economia dependa de nossa concepção do mundo. Nossas convenções, nossas representações apoiam-se necessariamente na experiência vivida quotidianamente de nossa relação com o universo que nos cerca; elas expressam a representação que temos dele e nossa visão dos diferentes campos que o constituem. A teoria econômica, como qualquer outra, é o reflexo de uma época e de um meio cujo conhecimento permite compreender e ao mesmo tempo relativizar o alcance das construções intelectuais deles derivados. E é sem dúvida isto que incomoda os arautos de um dogma universalmente e atemporalmente verdadeiro. Adotando este ponto de vista, eles teriam de reconhecer que sua economia permanece aferrada a uma concepção mecanicista do mundo, hoje amplamente superada.

Para avaliar o desempenho, eles observam a máquina – o equilíbrio orçamentário, a estabilidade dos preços, a taxa de crescimento do PIB, o saldo da balança comercial, tudo aquilo que chamam de “fundamentos essenciais” – e não o grau de realização dos objetivos humanos para os quais ela deveria funcionar. Quando o sábio aponta o dedo para o céu, o néscio olha para o dedo, diz o provérbio chinês. (...)

Atividade calculada de transformação da natureza, tendo como objetivo a satisfação das necessidades humanas, (a economia) significa antes de mais nada ação. Constituem-na três esferas: uma esfera natural que transformamos, uma esfera econômica na qual se efetua esta transformação e uma esfera humana para a qual ela se efetua.

A natureza não se apresenta nas formas que permitiriam satisfazer diretamente as necessidades dos homens. Seus recursos, dizia Henri Guitton, “são demasiadamente numerosos ou insuficientemente numerosos; não se encontram no lugar ideal nem no tempo ideal, no momento desejado; não têm a forma desejada [ ...l. A atividade econômica é, assim, a forma da atividade humana através da qual os homens lutam para reduzir a inadaptação da natureza a suas necessidades4.” Mais lacônico, Henri Laborit5 gostava de observar que não basta, para nos alimentarmos, abrir a boca na direção dos fótons solares, dos quais entretanto nos vêm, em última análise, todo alimento. “Só podemos mandar na natureza obedecendo a ela”, dizia Francis Bacon em 1620.6 Entretanto, em sentido inverso, obedecendo a ela é que podemos adaptá-la a nossas finalidades: é usando as leis da gravidade e da resistência do ar que conseguimos voar; da obediência às leis naturais à resignação social que nos pretendem impingir há todo um mundo.”

2: Karl Popper. The Logic of Scientific Discovery, Hutchinson, Londres, 1959; tradução francesa, La Logique de la découverte, Payot, Paris, 1973, prefácio de Jacques Monod. Este critério não está muito distante do que foi preconizado por Descartes, segundo quem só são aceitáveis as hipóteses que, tendo superado o teste da dúvida sistemática, podem ser consideradas indubitáveis.

4: Henri Guitton, Économie politique, t. I, Dalloz. Paris, 1961.

5: Henri Laborit, La Nouvelle Grille, Laffont, Paris, 1974.

6: Francis Bacon, Novum Organum, 1620.

 

 

“A eficácia, por definição, é “o que produz o efeito esperado” (Larousse)? O desempenho de um sistema só pode ser definido, portanto, pelo grau de realização da finalidade a que deve servir. Que pode significar então a medida do desempenho econômico independentemente de suas finalidades humanas?”

 

 

“Thomas Kuhn32 tinha razão: a ciência não avança por acúmulo de conhecimentos, mas por transformação do olhar que se lança às coisas; os mesmos cientistas, observando o mesmo céu com os mesmos instrumentos, não veem os mesmos fenômenos antes e depois de Copérnico. Desgraçados aqueles que não sabem questionar-se.”

32: Thomas Kuhn, La structure des révolutions scientifiques, Flammarion, col. “Champs”, Paris, 1983.

 

 

“Os especialistas encontram dificuldade para definir o critério a partir do qual poderíamos afirmar que surgiu o primeiro homem. A linguagem? Mas várias espécies animais trocam informações às vezes bastante diversificadas. A ferramenta? Mas numerosos animais utilizam – e às vezes fabricam – instrumentos para alcançar, remexer, quebrar, superar obstáculos. Em compensação, todos os cientistas reconhecem que a criatura que enterra seus mortos, homenageia-os, cercando-os de alimentos e objetos familiares e ornamentando as paredes das grutas com representações, aquela mesma que busca em sua vida algo que esteja além de si mesma, esta é uma criatura autenticamente humana. Sem dúvida alguma, em meio a tudo que vive e respira neste planeta, o homem caracteriza-se pela necessidade de sentido.”

 

 

“Na dialética marxista, o que é inelutável é que do conflito entre o capitalismo e sua contradição – que ele próprio produz – surgirá a síntese, que não será a simples vitória do proletariado sobre o capitalismo que o engendra, mas a superação de ambos na sociedade comunista. Submetido ao sentido da história, o homem nem por isto deixa de ser um ator dela. É certo que não pode tudo: “Os homens fazem sua própria história, mas sobre a base de condições dadas”; mas “a doutrina materialista segundo a qual os homens são produtos das circunstâncias e da educação esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias.57” Sem esta importante margem de liberdade individual, as teorias marxistas da “praxis” (atividade em vista de um resultado) e da luta de classes seriam incompreensíveis. Este homem não é talvez um ator da história, mas certamente é um ator na história. Paradoxalmente, Marx e Engels são nitidamente menos materialistas e deterministas que os “liberais” que lhes aplicam estes dois qualificativos.”

57: Karl Marx, Thèses sur Feuerbach, 1845.

 

 

“Quando surge nos anos 50 o fenômeno da automação, a questão da evolução do computador para o gigantismo ou a miniaturização logo é colocada, com as consequências socioeconômicas decorrentes: de um lado, Big Brother e a concentração; de outro, milhares de centros de decisão e a sobrevivência das pequenas ou médias estruturas. Os argumentos técnicos a favor de uma ou outra evolução são igualmente convincentes. Pelo fim dos anos 60, a empresa IBM, que domina o mercado e parece ter as chaves do futuro, dá preferência aos equipamentos mais portentosos. Ninguém podia então prever que quatro engenheiros dissidentes da ATT se associariam para criar uma pequena empresa de onze pessoas, Intel, da qual sairia o microprocessador, que revolucionaria o mundo.

Chamamos de ponto crítico o ponto de equilíbrio de forças a partir do qual um fenômeno menor e rigorosamente imprevisível mudará o rumo da história em direção a um ramo da bifurcação dos possíveis, e não em direção a outro. “Só existe ciência do geral”, dizia Aristóteles; mas eis que com o ponto crítico o singular entra no campo científico.

Esta concepção está carregada de consequências. Para começar, a todo momento, o futuro é feito de vários possíveis, sendo impossível dizer a priori qual prevalecerá. Quando uma situação se realiza, é em seguida a uma série de acontecimentos nos quais imprevisto e inelutável se combinam: a virada da história em cada ponto crítico se faz de maneira aleatória, mas cada orientação abre um encadeamento de consequências que se desenrolam necessariamente; Braudel, por exemplo, mostra como a adoção – provavelmente por um pequeno número de homens – do arroz no Extremo Oriente e do trigo no Ocidente teve consequências enormes e duradouras para a utilização dos solos, a possibilidade de praticar a criação de gado e portanto para o desenvolvimento dessas duas regiões. Nesses encadeamentos, o tempo é irreversível, pois o acaso não desfaz em sentido inverso o que fez. A história factual não está em absoluto fadada a desaparecer: só podemos nos dar conta do surgimento de uma situação analisando a sucessão de acontecimentos aleatórios e de consequências necessárias que a ela conduziram.

Esta articulação de indeterminismos e determinismos constitui a própria condição de toda liberdade humana. Os primeiros condicionam a possibilidade de escolha, e os segundos, a existência de um objeto da escolha: como dizia ironicamente Henri Laborit, para saltar livremente de paraquedas, é preciso primeiro ser capaz de optar por não saltar; mas também é necessário que existam leis da queda dos corpos e da resistência do ar, caso contrário a aventura só pode acabar mal.

Nesta concepção, o homem é plenamente ator da história, e em dois níveis:

– no ponto crítico, para começar, onde a ação de alguns, e às vezes de um só, pode mudar o curso dos acontecimentos; é este o papel das minorias que estão na origem das revoluções, dos profetas, dos grandes cientistas, de alguns políticos (para o melhor e para o pior...); os economistas reconhecerão aqui o empreendedor de Schumpeter, cuja inovação, tendo rompido o circuito da repetição rotineira, desencadeia um fenômeno de imitação em blocos agregados do qual surgirá um novo equilíbrio, até que uma nova ordem inovadora... Encarada neste nível, a possibilidade de uma ação do homem sobre a história tem algo de estimulante, mas também de desesperador, na medida em que afeta apenas um número muito restrito de atores; nem todo mundo, com efeito, está em condições de candidatar-se ao papel do herói de Carlyle...

– em compensação, todos têm a possibilidade – logo, a responsabilidade – de agir sobre o meio de propagação sem o qual a ruptura no ponto crítico não surtiria efeito; sem um meio transmissor, a invenção mais genial não se torna inovação: existem no palácio dos doges em Veneza antepassados de nossas metralhadoras modernas, ainda reluzentes embora fabricadas no Renascimento, pois nunca chegaram a ser usadas num meio mais receptivo ao veneno individual (encantos do “pequeno artesanato”) do que aos massacres em série dos quais não se privaria o futuro; e de dois indivíduos efetuando tentativas comparáveis: um, Krutchev, enfrentando ausência de resposta do meio, logo se vê descartado, absorvido, digerido, sem conseguir alterar duradouramente o curso das coisas, ao passo que o outro, Gorbachev, desencadeia – sem dúvida muito além de suas expectativas – um movimento irreversível que varre o sistema e também a ele próprio; acontece que a ação sobre o meio de propagação está ao alcance de todos, são a ação quotidiana, a repetição, a defesa incansável dos valores que transformam o meio; neste sentido, “os pequenos, os obscuros, os sem graduação” identificados por Edmond Rostand são autênticos atores da história; qual a importância, face a esta, do vistoso cavaleiro medieval, em comparação com o mongezinho anônimo que, na penumbra de sua cela, arranhando incansavelmente seu pergaminho, transmitia a mensagem antiga?

Somos todos, portanto, atores da história; atores, entretanto, como nos ensinam os sistemas sensíveis a suas condições iniciais, de uma história suscetível de ganhar impulso e escapar a todo controle: “Os homens”, dizia ainda Braudel, “fazem a história e a história os arrasta.” E com efeito, no mundo contemporâneo, no qual o desenvolvimento dos meios de comunicação apaga o tempo e a distância, o menor acontecimento é vivido em tempo real em todos os pontos do planeta. Este mundo torna-se uma gigantesca caixa de ressonância. À possibilidade de agir associa-se um imperativo de vigilância.”

50: Albert Jacquard, Inventer l’homme, Complexe, Bruxelas, 1985.

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