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quarta-feira, 27 de março de 2019

A ilusão neoliberal (Parte II), de René Passet

Editora: Record

ISBN: 978-85-0106-107-2

Tradução: Clóvis Marques

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 370

Sinopse: Ver Parte I



“““Nunca somos completamente contemporâneos de nosso presente”, frisa Régis Debray, “a história avança mascarada, entra em cena com a máscara da cena anterior e nós já não entendemos mais nada na peça”.”

 

 

““Uma economia global”, diz com elegância Manuel Castells, “é uma economia capaz de funcionar como unidade, em tempo real, em escala planetária.22” Todos os produtos estão no mundo: em qualquer época do ano, as produções agrícolas e industriais são encontradas no conjunto dos mercados; e o mundo está em todos os produtos: o Ford Escort montado na Europa é constituído de peças provenientes de quinze países diferentes;23 os Ford Probe fabricados pela empresa japonesa Mazda em sua fábrica de Michigan são parcialmente vendidos no Japão com a marca Ford, enquanto um veículo utilitário Mazda fabricado na fábrica Ford de Kentucky é em seguida vendido nas lojas Mazda nos Estados Unidos, ao passo que a Nissan lança um novo caminhão leve na Califórnia, montado numa fábrica Ford de Ohio com peças fabricadas no Tennessee, para ser em seguida comercializado pela Ford e a Nissan nos Estados Unidos e no Japão.24 E o mais modesto tomate doméstico foi produzido com pesticidas, adubos e equipamentos vindos do mundo inteiro.

A eliminação das fronteiras aduaneiras, o reforço das interdependências, a mobilidade dos indivíduos, dos capitais, dos conhecimentos e das mercadorias, a informação em tempo real parecem efetivamente indícios de uma unificação. E se a fluidez da mão-de-obra continua sendo inferior à dos outros fatores, as empresas é que vão ao seu encontro, transferindo internacionalmente suas unidades de produção ou terceirizando suas atividades.”

22: Manuel Castells, La Société em réseaux, op. cit-

23: Michel Beaud, L’Éonomie mondiale dans les années 80, La Découverte, Paris, 1989.

24: Este exemplo é de Robert Reich, secretário do Trabalho no primeiro governo Clinton, citado por Ignacio Ramonet, Géopolitique du chaos, Galilée, Paris, 1997.

 

 

“O investimento intelectual33, que desempenha um papel determinante nos sistemas produtivos da era da informática, é fruto de um patrimônio universal nascido do esforço de gerações passadas e presentes: “O saber”, dizia Louis Pasteur, “é um patrimônio da humanidade.” Este saber apresenta uma característica que o torna um autêntico bem coletivo: todo indivíduo pode desfrutar dele sem dele privar os outros; melhor ainda, ele se multiplica através das trocas: se a troca de uma pêra por uma maçã traduz-se numa simples mudança de proprietários, deixando inalterada a quantidade de peras e maçãs em circulação no planeta, a troca de informações entre dois indivíduos permite que cada um detenha uma informação nova sem ver-se privado daquela que possuía inicialmente; a troca teve um efeito multiplicador. Quanto mais a informação circula, mais se transforma num bem comum.”

33: Cabe consultar, de Patrick Épingard, L’Investissement immatériel, coeur d’une économie fondée sur le savoir, prefácio de Jacques de Bandt, CNRS Éditions, Paris, 1999.

 

 

“Mas os mercadores de fórmulas pré-fabricadas ainda não entenderam: “A partir do momento”, diz-nos um deles, “em que aceitamos modificar o que resulta das atividades individuais, estamos atentando contra o que é sua própria fonte, ou seja, os direitos individuais. Uma política de transferências forçadas, a pretexto de equalizar os resultados da atividade humana, consiste em tomar recursos pela força aos que os criaram para dá-los aos que não os criaram [...] e para tomar um exemplo simples, quem ousaria sustentar que é moralmente justificado tomar a um homem que trabalha corajosamente para dar a um preguiçoso? [...] Numa sociedade baseada na livre troca, o que possui é o que criou mais valor para outrem.” Pretendendo reformar esta ordem idílica das coisas, estaríamos entrando “numa sociedade baseada na violência” que “desembocaria naturalmente no totalitarismo”.35 A opção, portanto é simples: de um lado, uma sociedade em que cada um só recebe o que criou... “para outrem”, naturalmente, uma sociedade na qual a renda não passa da justa retribuição daquele “que trabalha corajosamente” e o pobre é necessariamente “um preguiçoso”; do outro, a tirania da violência. Escolham.

Se efetivamente é assim, devemos concluir que entre as grandes fortunas do mundo, anualmente compiladas por Fortune, e o trabalhador que ganha salário mínimo, é a livre iniciativa que realiza a igualdade de direitos e a intervenção que falseia as regras (em detrimento dos mais “merecedores”, é claro); que cada um, herdeiro rico ou filho de pobre, aborda a vida com igualdade de oportunidades; que quando um homem, como frisa o CNUCED, ganha treze mil vezes o salário médio de um operário, é porque é treze mil vezes mais produtivo (por que não trabalha sozinho, por si mesmo e para si mesmo?); que os lucros especulativos têm como contrapartida a criação de riquezas reais, e que todos os pobres são inúteis e ociosos. Pois não é fato que cada um tem o destino que merece? George Gilder, um dos gurus americanos da escola da oferta, não hesita em diagnosticar: “Os pobres sabem [...] que em grande medida escolheram sua situação, e só podem responsabilizar a si mesmos.”36 Em que planeta vivem essas pessoas?”

35: Pascal Salin, “Vive l’inégalité!”, Le Monde, 10 de julho de 1990.

36: George Gilder, Richesse et pauvreté, op. cit.

 

 

“Para dizer a verdade, o mercado tem duas virtudes essenciais de que nenhuma sociedade pode privar-se impunemente.

Liberador e catalisador extraordinário de iniciativas individuais, de inovação e energias, ele confere à economia um dinamismo e uma inventividade de que nenhuma outra forma de organização jamais se aproximou; assim se explica o notável desempenho do sistema capitalista em matéria de inovação e produção; em sentido inverso, embora o sistema centralizado soviético tenha conseguido resultados espetaculares (a conquista espacial...) concentrando seus esforços em alguns setores-chave (em geral submetidos a uma organização de tipo militar), passou totalmente à margem da revolução da informática38, e sua lentidão burocrática e seu peso acabaram por levar a melhor.

Favorecendo a infinita proliferação dos centros decisórios, ele confere ao sistema uma flexibilidade e uma capacidade de adaptação às quais deve sua longa sobrevivência: sem voltarmos às origens, o capitalismo do início do século XIX – empreendedores capitalistas individuais, concorrência entre microunidades – ... não tem muita coisa a ver com o sistema concentrado do último quarto do século, tal como descrito por Marx, e menos ainda com o capitalismo financeiro, mundializado e em rede de hoje; ao longo das mudanças tecnológicas e das crises, o sistema adaptou-se, transformou-se, já não é o mesmo, e no entanto, em sua essência – a busca do lucro, a acumulação... –, continua a ser ele mesmo; a razão disto é evidente: quando se manifestam a mudança, a crise ou o obstáculo, inúmeros centros de decisão reagem, cada um por sua conta; o obstáculo é contornado, superado, digerido... O sistema sai – às vezes a altíssimo custo – modificado, mas adaptado, vivo e definitivamente enriquecido; o que é preciso entender é que este sistema não se desenvolve “apesar dos obstáculos”, mas “pelos obstáculos”, que vive deles e deles tira a substância de seu dinamismo; em sentido inverso, os sistemas monolíticos centralizados, como o gigante, progridem derrubando tudo a sua passagem; só sabem esmagar os obstáculos, mas quando se veem defrontados com uma dificuldade mais grave não encontram neles próprios qualquer capacidade de adaptação e desmoronam maciçamente, de um só golpe; a teoria do caos ilustra bem este fenômeno: um sistema policêntrico compensa as defasagens; um sistema monocêntrico as agrava e revela-se muito mais “sensível a suas condições iniciais”; é aparentemente esta a razão profunda pela qual o sistema capitalista decididamente triunfou sobre seu adversário centralizado.

Este dinamismo, esta capacidade de adaptação são armas preciosas das quais seria absurdo privar-se.”

38: Por motivos essencialmente doutrinários, pois, segundo a evolução descrita por Marx no século XIX, imbecilmente transformada em dogma por seus “herdeiros”, o desenvolvimento deveria efetuar-se prioritariamente nas indústrias pesadas.

 

 

“É preciso muito fôlego para invocar a própria liberdade para justificar uma política de absorções e fusões que destrói o próprio princípio dessa liberdade, no momento em que algumas empresas transnacionais exercem sobre a economia mundial uma pressão que verga os mercados e os Estados. A tal ponto, por exemplo, que cinco empresas de biotecnologia controlam 95% das patentes no mundo. Numa situação como esta, os propagandistas de carteirinha do sistema continuam a nos oferecer o refrão de um capitalismo que teria preservado suas virtudes originais, das quais a primeira metade do século XIX talvez se tenha aproximado um pouco – a grande custo humano –, mas que nada mais tem a ver com as realidades de hoje. Que é feito das vantagens coletivas da “liberdade dada a cada um”, glorificada pelo nosso caro Hayek41, quando ela permite a alguns sufocar a dos outros?”

41: Friedrich von Hayek, “The Use of Knowledge in Society”, op. cit.

 

 

“O jogo da economia desenrola-se num teatro mundial cujos atores encarnam os grandes interesses privados. As instituições políticas nacionais reduzidas à função de agentes executores incumbidos de garantir a rentabilidade do capital internacional e de cobrir-lhe os riscos – é bem este o sonho das potências financeiras. É este sonho que elas realizam ao se tornarem hoje os novos árbitros cuja lógica determina os ajustes em todos os níveis do sistema econômico.”

 

 

““Desta oposição entre a esfera da economia e a da finança”, acrescentava Jean Peyrelevade em 1987, “surge uma instabilidade fundamental, que, se não lhe dermos atenção, pode arrastar a todos nós.” O que se seguiria prova que ele não estava errado.

A lógica que inspira esses movimentos nada tem a ver com o que Friedman denomina as “bases sólidas” da economia.

Não se trata de uma lógica do real. “A política da França”, dizia o general de Gaulle, “não se decide no pregão.” Durante os “Trinta Gloriosos”, com efeito, o Planejamento determinava os objetivos prioritários da economia real, e o setor monetário é que se adaptava: o nível dos preços decorria do confronto entre a oferta e a procura de bens; a taxa de juros exprimia a distância entre a poupança disponível e a necessidade de investimentos. Já agora a situação inverte-se: é a estabilidade da moeda que é prioritária, e a realidade que se adapte: o equilíbrio do orçamento tem primazia sobre o crescimento; a estabilidade dos preços é assegurada, em detrimento deste; as taxas de juros não decorrem de dados reais, mas de previsões do mercado monetário e dos imperativos de estabilidade dos bancos centrais; é, então, o investimento que reage às flutuações dos juros a longo prazo. E quando estes são por demais elevados, vemos às vezes os governos implorando – não raro sem sucesso – que os bancos centrais se disponham a abaixá-los, para tornar menos onerosos os empréstimos necessários aos investimentos das empresas.

Por trás da “criação de valor” pela qual as empresas gigantescas – cuja gestão, como veremos, está amplamente submetida ao império da finança – tentam justificar a corrida planetária às fusões-aquisições dissimula-se na realidade uma dupla operação:

– de “confisco exclusivo pelos acionistas do valor criado por outros: nas próprias empresas, pelas diferentes categorias de assalariados, e, fora da empresa, pelo conjunto do meio socioeconômico e pelos serviços públicos, particularmente no serviço público e nos dispositivos de pesquisa”;52

– de destruição de riquezas reais: quatro quintos do trilhão de dólares de IDE (investimentos diretos no exterior) realizados em 1995, 1996 e 1997 destinaram-se a fusões e compras de empresas existentes, levando à destruição de empresas locais por concentração do mercado e à destruição de riquezas humanas pela supressão de empregos.

Não se trata de uma lógica de crescimento. Em relação a esta, a desconexão é espetacular: de 1961 a 1983-1984, as oscilações da Bolsa nos Estados Unidos vão no mesmo sentido que a evolução do PIB, mas em seguida a Bolsa dispara, sem que o crescimento tenha mudado de ritmo; em outubro-novembro de 1994, é inclusive o crescimento que perturba a especulação, que teme as tensões inflacionárias que poderiam levar à elevação das taxas de juros; exatamente o mesmo temor é expresso mais uma vez, da mesma forma, em janeiro de 2000; melhor que qualquer discurso, esta aversão era simbolizada pelo homenzinho do caricaturista Plantu que se atirava do alto do telhado da Bolsa ante o anúncio – destinado a tranquilizá-lo – da retomada do crescimento americano; em 1993, as cotações de bolsa sabem 45% na Alemanha e 22% na França, embora estes dois países estivessem mergulhados na recessão mais grave por que haviam passado desde a Segunda Guerra Mundial; desde a disseminação da crise surgida no Sudeste asiático, as cotações oscilam ao sabor dos ventos – e das travessuras “lewinskianas” de um presidente americano – sem que isto tenha alguma coisa a ver com o crescimento.

Não se trata de uma lógica de valorização dos territórios. Sempre que considera do seu interesse, a empresa Hoover não hesita em transferir um de seus estabelecimentos de Dijon para Cambusland, na Escócia, sem se preocupar com as consequências humanas e regionais de sua decisão; quando a Renault fecha sua fábrica de Vilvorde, a Bolsa já no dia seguinte saúda o fato valorizando em 13% suas ações; quando a Moulinex fecha duas fábricas na França e elimina 1.800 empregos na Normandia, suas ações instantaneamente valorizam-se 21%; quando a Michelin anuncia em setembro de 1999 ao mesmo tempo lucros substanciais e a aplicação de um plano de enxugamento, a Bolsa saúda o feito.

Não se trata de uma lógica do homem. André Orléan mostra como o surgimento de uma economia de mercado financeiro é acompanhada da emergência de um novo pacto social baseado numa concepção completamente financeira dos direitos individuais: “Nela o indivíduo é definido como uma carteira de direitos de crédito cujo valor deve ser defendido. “53 Tudo que se opõe aos rendimentos dessa carteira é portanto questionado: a proteção social, os impostos (logo, a função política do Estado); em suas formas tradicionais, a moeda vem a ser contestada na medida em que “apreende o indivíduo e sua integração à comunidade mercante na globalidade de suas determinações, ou seja, sob o duplo registro de suas dívidas econômicas, na medida em que ele é um agente econômico inserido na divisão mercantil do trabalho, e de suas dívidas sociais, na medida em que é um cidadão, detentor de direitos sociais constituídos historicamente”.54 Não é para a consagração da pessoa que caminhamos, mas para um fortalecimento do reducionismo que já estava contido no conceito de indivíduo caro ao pensamento liberal.

Trata-se de uma lógica de frutificação rápida de um patrimônio financeiro. O acionista médio, teoricamente coproprietário da empresa, é na realidade alguém que vive de suas rendas e administra seu patrimônio, aplica-o – e o desaplica – segundo considerações de rendimento a curto prazo; a fortiori, o financista institucional cuja atividade consiste em fazer frutificar seu capital. É preciso reagir com a máxima rapidez, à menor diferenciação das cotações: a rigor, os computadores são programados para isto, e é sob o efeito de seu automatismo que em 1987 o mundo fica à beira do abismo. “O meu longo prazo”, costumava dizer um operador citado pelo Prêmio Nobel de Economia James Tobin, “são os próximos dez minutos.”55 Nos principais países industrializados – a França, os Estados Unidos, a Alemanha, o Reino Unido ou o Japão –, o mercado de ações “primário” dedicado ao financiamento de atividades novas, criadoras de riquezas, envolve uma proporção menor (da ordem de 5 a 10%) do volume das trocas de títulos; o mercado especulativo “de ocasião” representa portanto 90 a 95% dessas trocas. A “teoria da carteira”, consagrada em 1990 pelo Prêmio Nobel dado a Harry Markowitz, afirma que a escolha de um título deve depender menos da análise fundamental das empresas que o emitem do que da composição da carteira do eventual comprador. Só depois de ter sido previamente resolvida a questão da diversificação destinada a reduzir o risco é que entram em cena as considerações propriamente relativas ao título: a finança se basta.

Como na comparação de Keynes sobre um “concurso de beleza” no qual os leitores de uma revista têm de adivinhar qual a beldade que a maioria escolherá, o que cada um pensa em matéria de aplicações financeiras é menos importante do que o que pensa que os outros pensam. Pois é a avaliação comum que determina em termos imediatos o valor das coisas. Encontramo-nos então numa situação dita “caótica”, exposta às reações irrefletidas das multidões. O terreno financeiro nos é apresentado como o vigia que anuncia o futuro, mas não passa do macaquinho de imitação.56 Assim como os investimentos no exterior, os movimentos especulativos funcionam em ondas que crescem e esvaziam por si mesmas. Como o afluxo parece confirmar a oportunidade dos investimentos, os capitais atraem os capitais. A bolha aumenta, até o dia em que a saturação produz as inevitáveis quedas de rendimento. Quando as primeiras dúvidas provocam os primeiros repatriamentos, sucedendo-se o pânico à euforia, o movimento inverte-se e os vampiros fogem com a mesma rapidez com que haviam chegado. Desse modo, entre o início de 1986 e o fim de 1989, o índice Nikkei da Bolsa de Tóquio elevava-se de 12.000 a 40.000 pontos (+ 233%); todos continuavam a investir – simplesmente porque era o que os outros faziam – no setor imobiliário, que todos sabiam (exceto aqueles cuja profissão era saber) estar em crise. Bastava ler os jornais. Na década de 1990, no México, na América Latina, na Rússia, no Sudeste asiático “milagre” dos países emergentes os investimentos afluem para em seguida fugir da mesma forma, provocando de 1994 a 1998 uma cascata de crises graves: na Indonésia, na Coréia, na Malásia, na Tailândia, nas Filipinas, o afluxo de capitais passa de 40,5 bilhões de dólares em 1994 para 93 bilhões em 1996; e de repente, em 1997, o fluxo se inverte e 12,1 bilhões de dólares vão embora, representando, em relação ao fluxo de entrada do ano anterior, uma diferença brutal de 105 bilhões, equivalente a 11% do PIB da região; e no entanto, situando-se os índices de crescimento desses países entre 5 e 6%, nada em suas economias reais justificava esta situação. Em que transformações rápidas da distribuição internacional de recursos baseiam-se tais movimentos?... No início de 2000, a moda é das empresas do setor eletrônico, cujo valor acionário – autêntica aposta no futuro – incha desmedidamente, embora todas sejam deficitárias e algumas sequer tenham resolvido seus problemas concretos de instalação. Nem é necessário continuar dando exemplos: “Longe de serem incidentes isolados”, constata o relatório do PNUD em 1999, “as crises financeiras tornam-se cada vez mais frequentes, à medida que os fluxos de capitais disseminam-se e aumentam em escala planetária.” Onde ficaram os princípios “fundamentais” de Milton Friedman?”

52: Frédéric F. Clairmont, “Fusions d’entreprises, festins de prédateurs”, Le Monde diplomatique, setembro de 1999.

53: André Orléan, “La monnaie provatisée”, Alternatives économiques, nº 37, 3º trimestre de 1998; ver também, do mesmo autor, Le Pouvoir de la finance, Odile Jacob, Paris, 1999.

54: André Orléan, “La monnaie privatisée”, art. cit.

55: Ibrahim Warde, “Le projet de taxe Tobin, bête noire des spéculateurs”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 1997.

56: Cada um observa os outros, em busca de um comportamento que revele uma informação de que não dispõe. Quando o primeiro macaquinho pula a cerca, há sempre um segundo que pensa que ele deve ter bons motivos para isto e portanto dispõe-se a saltar atrás dele; logo um terceiro, vendo dois macaquinhos na água, conclui que está diante de um fato social do qual não pode ficar excluído, e logo um quarto... e o “fato social” se amplia... A isto se dá o nome de “profecias auto-realizadoras”.

 

 

“O Estado, cujas intervenções são tão atacadas quando se trata da proteção dos homens, recupera seu caráter “providencial” tão apreciado quando se trata dos interesses da finança. As grandes instituições “guardiãs do templo”, prontas a transformar o jogo da especulação em uma aposta sem risco, não hesitam em trair o próprio espírito do sistema em cujo nome afirmam agir. É com um enorme volume de capitais (180 bilhões de novos créditos) que a comunidade financeira internacional, impulsionada pelo FMI, intervém cinco vezes em dezoito meses na Tailândia, na Indonésia, na Coréia do Sul, na Rússia e no Brasil, para salvar as instituições capitalistas em má situação. Quando o rublo se vê em maus lençóis em 1998, o fundo especulativo americano LTCM (Long Term Capital Management) prevê que já em agosto o FMI irá socorrê-lo. Toma então emprestados dezenas de bilhões de dólares, para dotar-se maciçamente e a baixo preço de uma divisa cuja quotação espera ver em breve aumentada. A aposta dá errado. Vencido o prazo, a LTCM é incapaz de cumprir seus compromissos. Vê-se então ameaçada a solvência dos grandes bancos – sobretudo suíços e americanos – que favoreceram a operação. Para evitar a propagação em cadeia, 4 bilhões de dólares são reunidos por iniciativa do Federal Reserve americano, o FED, para salvar o fundo especulativo.

Em todas essas operações de salvamento, já não é o sistema bancário internacional que vem a ser convocado, mas o dinheiro público dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial, bancos regionais de desenvolvimento) ou dos Estados industrializados. A lógica liberal reza que, esgotando-se o “milagre” do país no qual se investiu e aumentando os seus preços mais rapidamente que os do exterior, a desvalorização restabelece a competitividade. Mas isto implicaria reduzir igualmente o valor internacional dos ativos, objetos de especulação, ou em arruinar os residentes que tomaram emprestado em moedas estrangeiras para investir. A ajuda que evita a desvalorização do câmbio constitui na verdade, para os especuladores, o indício de que chegou o momento de recuperar seus lucros e pagar suas dívidas em divisas. Ela introduz uma garantia pública de ganhos em mercados em princípio especulativos. À socialização das perdas que as populações locais suportam ao custo de muita austeridade monetária e orçamentária, de desemprego, responde já agora a privatização dos lucros especulativos. A coletividade paga. Mas um mercado que só funciona no sentido das vantagens e não da sanção perde seu caráter regulador. Será possível recomeçar, multiplicando audácias que deixaram de sê-lo, até o dia em que as catástrofes superarão a capacidade digestiva do sistema.

Com o projeto de Acordo Multilateral de Investimento (AMI), vimos delinear-se a imagem do mundo que o universo transnacional dos negócios pretende impor-nos: um mundo retalhado para saques espoliativos, totalmente voltado para a frutificação do capital financeiro, um planeta enfeixado na rede tentacular de interesses que só têm direitos, impondo sua lei aos Estados e exigindo-lhes que prestem contas, cobrando a indenização das perdas ligadas à proteção social, à defesa do meio ambiente, da cultura e de tudo que faz a identidade de uma nação. O dinheiro como valor supremo, e os homens para servi-lo.

 

Quando a atração do lucro se afirma como finalidade primeira, tudo se torna mercantilizável: “O dinheiro, as drogas, as armas, os seres humanos, as obras de arte, etc., tudo que se compra e se vende irá para quem oferecer mais e atravessará as fronteiras sem maior preocupação com controles”, escreve Jean de Maillard.72 Nos anos 90, a produção de ópio no mundo mais que triplicou, e a de cocaína mais que dobrou; em 1995, o tráfico de drogas representava 400 bilhões de dólares, o equivalente a 8% das trocas mundiais, comparável aos têxteis (7,6%) e ao petróleo e ao gás (8,6%). O volume de negócios bruto da criminalidade atingia 1,5 trilhão de dólares em 1995, poder de fogo comparável ao das multinacionais, afirma o PNUD. Não surpreende que as coisas acabem se tornando pouco nítidas, a começar pela distinção entre atividades legais e economia do crime. Da comissão suspeita à corrupção, à arte de “fechar os olhos” e à cumplicidade, a transição é progressiva. A lavagem de dinheiro sujo não pode ser feita sem a ajuda das estruturas legais: empresas de fachada sob controle mafioso, mas também empresas e instituições bem reais dirigidas por pessoas respeitadas, ainda que não respeitáveis. Os contatos políticos, os advogados e assessores jurídicos da economia oculta têm banca na praça, e se o banqueiro “honesto” não fechasse os olhos para a procedência dos fundos que lava, o traficante não poderia reciclar seu dinheiro: “Dos 400 bilhões de dólares do volume de negócios da droga, pode-se estimar que 180 bilhões se destinam a remunerar globalmente os traficantes e os profissionais de empresas legais que colaboram com as organizações criminosas; ‘somente’ 120 bilhões retornam diretamente às organizações criminosas e podem vir a ser lavados na economia legal.”73

Reciprocamente, só vamos encontrar no alto da hierarquia do crime personalidades altamente respeitadas, que precisam manter as aparências legais para promover o tráfico. E toda esta fauna converge para uma aspiração comum: “A finança moderna e a criminalidade organizada se fortalecem mutuamente. Ambas precisam, para desenvolver-se, da abolição das regulamentações e dos controles estatais.” Não vamos tapar o sol com a peneira: a criminalidade financeira é o filho “natural” do laisser-faire e da desregulamentação; ela sempre existiu, mas se não tomarmos cuidado passaremos progressivamente de uma economia com criminalidade a uma economia de criminalidade.

As próprias instituições internacionais – e ao mesmo tempo os governos nacionais nelas representados – se comportam como cúmplices, senão intencionais, objetivos, da canalha internacional: o relatório sobre a utilização de empréstimos do FMI a Moscou, feito pelo escritório internacional Pricewaterhouse Coopers e divulgado no dia 3 de agosto de 1999 pelo diário russo Kommersant, informava-nos que o dinheiro do FMI, teoricamente destinado a sustentar o rublo, servira apenas, graças a uma montagem jurídica engenhosa transitando pelo paraíso fiscal de Jersey, para engordar a nomenklatura mafiosa que loteia o país. O que não impediu o FMI, no exato momento em que vinha à tona o escândalo, de confirmar um novo empréstimo de 4,5 bilhões de dólares, que obviamente iria engordar as mesmas carteiras, e sem que qualquer governo protestasse. Quando então poderá o tribunal penal internacional – cuja criação foi decidida em 1998 por 120 países – julgar uns por desvio de fundos da comunidade mundial e outros por cumplicidade?

Assim é que uma lógica radicalmente alheia aos imperativos da economia real vem a perverter suas mais belas promessas...”

72: Sobre todas essas questões, recomenda-se a leitura do admirável livro do juiz Jean de Maillar, Um monde sans loi, Stock, Paris, 1998, do qual são extraídas as informações e citações que se seguem; ver também o levantamento sobre “Les paradis fiscaux” publicado por Christian Chavagneux em Alternatives économiques, no 169, abril de 1999.

73: Jean de Maillard, Un monde sans loi, op. cit.

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