Editora: Ruptura
ISBN: 978-65-981805-2-2
978-85-60281-49-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 304
Sinopse: Ver Parte
I
“A tática de ação da burguesia e de seus intelectuais é bem simples:
potencializar todos os erros e todas as contradições, superdimensionando-os, abstraindo-os
de sua historicidade concreta e pautando uma abordagem moralista e
demonizadora; aliado a isso, sempre ocultar ou embelezar a situação pré-revolucionária
e o mundo capitalista hodierno que cerca o país socialista. Um exemplo
clássico: a fome na China socialista. A China foi um país destruído por 100
anos de colonialismo, ao longo dos quais mais de 80 milhões de pessoas foram
mortas em decorrência das ações das potências liberal-imperialistas.
Os comunistas, sem experiência na gestão de uma economia nacional, num
país destruído pela guerra e pelo colonialismo, cercado, isolado e atacado,
precisam construir o socialismo, garantir a autonomia produtiva e melhorar a
qualidade de vida do povo trabalhador. Além disso, sofrem bloqueios econômicos,
sabotagens e agressões múltiplas. Numa situação de perigo constante, buscam
medidas para acelerar o desenvolvimento das forças produtivas, ficando menos
vulneráveis ao imperialismo. Essas medidas na China, por uma série de fatores,
abarcam equívocos e provocam fome. A partir desse momento, desaparece toda
história, política, geopolítica e pressões imperialistas, e a fome é exibida
como fruto de um elemento intrínseco da ideologia ou uma simples perversão
patológica do líder totalitário34.
Nesse quadro, a ideologia dominante cria uma pressão permanente em duas
frentes: uma contra o marxismo e o socialismo no geral e outra contra qualquer
simpatia ou apoio a cada experiência socialista concreta – em nosso exemplo, a
China maoísta. O intelectual ou organização socialista terão que responder
constantemente às caricaturas, calúnias e narrativas simplificadoras do
anticomunismo. No entanto, aquele marxista que diz “olha, sou marxista, mas não
tenho nada a ver com isso” passa a receber mais espaço, atenção pública e conquista
a medalha de honra de “marxista, porém respeitável”.
Cria-se assim um marxismo que apoia todas as revoluções, menos as
vitoriosas; defende todos os revolucionários, menos os que exerceram o poder.”
34 Para um balanço desse mecanismo ideológico da classe dominante na
apresentação dos problemas e contradições do socialismo, conferir o livro de
Domenico Losurdo, Fuga da história? A revolução russa e a revolução chinesa
vistas de hoje. Editora Revan, 2009.
“Se tudo deu errado no século XX, se todas as experiências socialistas
se resumem a reinos de terror e à ausência de democracia socialista, não
precisamos aprender nada com a história, mas “voltar a Marx”, recuperar a
pureza da proposta marxista dada de uma vez para sempre nos escritos e, no
máximo, aprender com os marxistas que nunca exerceram o poder e morreram no
martírio. Podemos ler e reivindicar Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Mariátegui
e, até certo ponto, “Che” Guevara, mas não podemos fazer o mesmo com Mao
Zedong, Ho Chi Minh, Fidel Castro, Thomas Sankara, Kim Il Sung, Josip Broz Tito
etc.
Os que exerceram o poder são considerados bárbaros, dogmáticos, pouco
dialéticos, sem refinamento teórico e filosófico. Já outros, respeitados em
universidades e até citados positivamente nos aparelhos ideológicos da classe
dominante – como é o caso de Antônio Gramsci –, são tomados como uma espécie de
antítese total de um passado que deve ser superado. Nessa chave de leitura,
Rosa Luxemburgo é apresentada como a negação de tudo que deu errado, um novo
começo, o início de um “socialismo democrático”.”
“Na modernidade burguesa, antes da era do imperialismo, a única
tendência teórico-política no “Ocidente”, o centro dinâmico da economia
mundial, que tentou negar radicalmente o colonialismo e suas formas ideológicas
de justificação – no plano teórico desde seu surgimento, e no plano político
imediato no processo de amadurecimento –, foi o materialismo histórico. (...)
Vamos trabalhar a nossa tese em três pontos. Primeiro, Marx e Engels,
ao contrário de toda tradição dominante de sua época, negaram qualquer
paradigma naturalista e racialista na construção de sua crítica da economia
política e teoria social centrada no conflito de classes. A análise
marxiana é radicalmente histórica. Quando Marx diz em Trabalho Assalariado e
Capital, por exemplo, que um negro é apenas um negro e que ele só se torna
escravo em condições históricas determinadas, a afirmação é não uma
coisificação do negro, mas uma negação radical de qualquer “racismo científico”63
(ou naturalização racialista da escravidão), chamando atenção para as condições
histórico-concretas do desenvolvimento do tráfico de seres humanos escravizados
na lógica mercantil64 – Marx e Engels também combateram as
explicações psicopatológicas dos processos sociais, tendência em voga nos
pensadores do século XIX para “explicar” os processos revolucionários.
Hoje, foi quase banido da história um dado básico da cultura ocidental
hegemônica até a primeira metade do século XX. Qual dado? A leitura racial da
sociedade não era privilégio da Alemanha Nazista (nunca é demais lembrar que o
regime de segregação racial nos Estados Unidos durou oficialmente até 1965), mas
sim uma corrente de muita força no “Ocidente”, tendo inclusive servido de
espelho para as classes dominantes locais de toda periferia, a ponto de
existirem, nos quatro cantos do mundo, regimes de supremacia racial ou Estados
com políticas eugenistas. A própria palavra “racismo” não tinha uma conotação
negativa: significava a “justa” e “necessária” separação entre as raças para
evitar a degradação da “raça branca”, “ariana” etc. Quando, em 1936, a União
Soviética criminalizou o racismo e reforçou a política cultural, educacional e
científica de igualdade racial, ela estava isolada.
O termo “racismo” só passou a ter uma conotação universalmente negativa
ao final da Segunda Guerra Mundial, depois da vitória da União Soviética sobre
o nazismo e o início da revolução anticolonial no mundo – acontecimento que
também marcou o abandono das teorias sociais chave explicitamente racistas. O
materialismo histórico, na época de Marx e Engels, não combatia apenas o idealismo
e outras formas filosóficas burguesas. Batia de frente com as teorias racistas.
Este trecho clássico de Marx, se lido no seu contexto histórico, revela uma
revolução teórico-política:
O resultado geral a
que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode
ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência,
os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua
vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da
vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual
(MARX, Contribuição
à crítica da economia política, 2008 [1859], p. 47.
Note a ausência de qualquer paradigma de determinismo racial, climático
ou psicopatologizante. Hoje é normal e trivial explicar as relações sociais a
partir do estudo de relações sociais construídas historicamente, porém não era
no período de Marx e Engels. O materialismo, expresso no trecho anterior, não é
apenas o sintoma de uma luta contra o idealismo, mas também contra paradigmas
racializantes, como o de um dos pensadores mais prestigiados da Europa no
século XIX, o liberal Herbert Spencer (contemporâneo de Marx e Engels e famoso
pelo chamado “darwinismo social”).
O segundo aspecto é que Marx e Engels são críticos do colonialismo.
Essa crítica ao colonialismo opera em duas dimensões. Eles foram defensores da
emancipação nacional da Irlanda e Polônia, os dois principais símbolos europeus
da política colonial (importante destacar que, mesmo “brancos” – numa
perspectiva biológica –, esses povos eram racializados e tratados como não
brancos pelo colonialismo do período). Essa defesa da Polônia e da Irlanda,
inclusive, é feita contra membros da Internacional dos Trabalhadores que
consideravam, assim como alguns “marxistas” posteriores, que essas lutas
nacionais eram desvios da luta de classes.”
63. “Em 1883, o mesmo ano da morte de Marx, vê
a luz na Áustria um livro de Ludwig Gumplowicz que, já pelo título (Der Rassenkampf,
“A luta de raças”), se contrapõe à tese da luta de classes como chave de
leitura da história. Três décadas antes de Gumplowicz, na França, Arthur
Gobineau publicou seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, uma obra
cujo título também fala por si só. E, nesse mesmo período, na Inglaterra,
Benjamin Disraeli argumenta de modo análogo, enunciando a tese de que a raça “a
chave da história” e que “tudo é raça e não há outra verdade”, e “é somente uma
coisa, o sangue que define e constitui uma raça. O ciclo histórico inteiro, que
vai desde a conquista da América até as guerras do ópio e a ascensão e o
triunfo do Império Britânico” (LOSURDO, A luta de classes, 2015, p. 45).
64. Ver MARX, Para
a crítica da economia política, 1982.
“O que a África é hoje, como tudo na história, é fruto da luta de
classes. O neocolonialismo, aliado das burguesias locais, venceu a luta contra
os projetos revolucionários liderados por comunistas e as plataformas
nacionalistas que buscavam, ainda que de forma limitada, controlar as riquezas
nacionais e combater o “atraso” e a miséria criados e reproduzidos pelo
imperialismo. O fato de vários ex-revolucionários terem assumido o papel de
gestores da barbárie neocolonial não mostra a incapacidade do socialismo
africano, mas o nível de vitória que o capitalismo conseguiu.
Nesse ponto, como antes, preciso perguntar: Você já ouviu falar da
história de Thomas Sankara e da Revolução em Burkina Faso ou mesmo do líder de
Gana, Kwame Nkrumah, citado anteriormente? Um famoso pensador, muitos anos
atrás, escreveu um livro de título chamativo: Como a Europa subdesenvolveu a
África? O autor dessa obra, Walter Rodney, provavelmente não discordaria de
uma continuidade das suas reflexões que levasse o título “Como o
neocolonialismo mantém o subdesenvolvimento na África?”
A narrativa anticomunista que apresenta os revolucionários como
assassinos, obcecados pelo poder, seres antiéticos e desumanos visa esconder
que, na maioria dos países, especialmente na periferia do sistema capitalista, os
comunistas lutaram para tornar realidade os mais elementares princípios da
dignidade humana. Na luta pela paz, independência nacional, direitos
trabalhistas, democracia política, saúde, educação, igualdade para mulheres,
reforma agrária, soberania nacional, combate à fome, uso das riquezas naturais
em benefício do povo, defesa do meio ambiente e afins, lá estavam os
comunistas.
O que é comunismo? É também um projeto político que atuou como agente
democrático e tentou garantir a milhões de seres humanos o direito de desfrutar
das melhores conquistas da humanidade. Só com o comunismo é que milhões puderam
ter acesso à escola pública, estado laico, igualdade jurídica, fim da escravidão
e servidão, reconhecimento como cidadão, emprego, comida etc.
O tempo histórico não é homogêneo e uniforme. Em 1930, em Paris, o
movimento operário fazia a crítica do direito burguês, mostrando que a
igualdade de todos perante a lei significa legitimar e ocultar as desigualdades
socioeconômicas do capitalismo. No Vietnã colonizado pela França, os camponeses
não tinham igualdade perante a lei, não tinham Estado de direito e não eram
considerados seres humanos. Das selvas e centros urbanos do Vietnã, liderados
pelos comunistas, esses camponeses gritavam: queremos ser seres humanos,
queremos ser cidadãos, queremos conquistar nossa pátria.
A modernidade, a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos,
em suma, as bandeiras da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e
fraternidade nunca foram universais. Nunca foram para todos os povos e regiões
do globo. O capitalismo, sem desconsiderar toda sua complexidade, sempre teve
dois polos centrais: o mundo formado por países coloniais, semicoloniais e
dependentes e os países centrais do sistema burguês.
E no primeiro polo do capitalismo, no século XX, os comunistas tiveram
um papel democrático, civilizatório, humanista e modernizador fundamental. Quem
conta a história dos direitos humanos e da democracia “esquecendo” desse fato
está mentindo.”
“O mito da democracia e da liberdade estadunidense é tão forte que é
imune aos fatos. Em novembro de 2019, o site G1⁷⁹, da Rede Globo, noticiou um
relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) apontando que os Estados
Unidos têm mais de 100 mil crianças presas em campos para imigrantes. O mundo
tem 330 mil crianças detidas por razões de imigração, estando quase um terço
delas, portanto, nos Estados Unidos. Ainda segundo a matéria do G1, esse
país é o único do mundo a não ratificar a Convenção dos Direitos da Criança;
para completar o quadro, Stephen Miller, assessor sênior da Casa Branca e
responsável pela política de imigração do governo Trump, teve e-mails vazados
pelo jornal The Guardian80 expondo todo seu racismo e
supremacismo branco.
Recapitulando: 100 mil crianças presas em campos para imigrantes em
situação degradante, acumulando várias denún- cias, inclusive da ONU, de abusos
sexuais, maus-tratos e ausência de condições básicas de higiene, resultado de
uma política co- mandada por um notório racista e supremacista branco de um
país que é o único do mundo a não assinar a Convenção dos Direitos da Criança.
Já pensou se fosse Cuba, Venezuela, China ou Coreia do Norte a fazer o mesmo?”
79. Mais de 100 mil crianças estão retidas pela imigração dos Estados
Unidos, diz estudo da ONU, G1, [S.I.], 18 nov. 2019, Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/18/mais-de-100-mil-criancas-estao-retidas-pela-imigracao-dos-estados-unidos-diz-estudo-da-onu.ghtml>.
Acesso em 30 dez. 2023.
80. MUDDE, Cas. “Stephen Miller is no outlier. White supremacy rules
the Republican party”. The Guardian, [S. I.], 16 nov. 2019.
Disponível em: <https://www.theguardian.com/us-news/2019/nov/22/stephen-miller-bannon-interview-immigration-america>.
“A realidade, porém, é bem eloquente: estamos diante de um genocídio,
um extermínio que, embora bem mais dilatado no tempo, foi mais sanguinário que
a Solução Final de Adolf Hitler para os judeus. Estamos trabalhando com o “dado”
de quase 18 milhões de pessoas exterminadas.
O terrível desse
genocídio se vê nos números. Em 1620, a população nativa era de 18 milhões, foi
reduzida a 600 mil em 1800 e chegou a 250 mil em 1900. Em 2008, o censo demográfico
dos Estados Unidos mostrou uma população de aproximadamente 325 milhões de
habitantes. Entre esses, 75,1% brancos, oriundos de imigrações europeias, enquanto
os nativos representavam 0,13% da população, algo como 2,5 milhões, quando no
início do século XVII eram 18 milhões. Os dados revelam tudo, diz o livro sobre
o maior genocídio (FILHO, Maior
genocídio da Humanidade foi feito por europeus nas Américas, 2019).
Uma gigantesca parcela da população estadunidense não vivia,
concretamente, sob um regime constitucional de democracia burguesa, mas sim sob
um Estado de exceção permanente, com objetivos e práticas genocidas
concretizadas com sucesso. Não se trata apenas de apontar que a população
indígena era privada dos direitos políticos, como votar e ser eleito, e dos direitos
civis; estamos falando de algo mais grave: eles não eram sequer considerados
seres humanos pelo Estado criado pelos pais fundadores.85
Nos Estados Unidos,
os peles-vermelhas eram retratados de forma cada vez mais repugnante à medida
que o processo de sua aniquilação da face da Terra avançava com maior
impiedade. A guerra discriminatória e de aniquilação das populações coloniais,
externas ou internas às metrópoles, é justificada com o recurso à sua
desumanização (LOSURDO, Revolução
de outubro e democracia no mundo**, 2017).
Alguém pode argumentar que esse desejo de extermínio é algo
pré-moderno, vigente em todo mundo na época, apelando a um suposto “contexto
histórico”. Porém, a ideologia de extermínio dos indígenas é algo de antes da
nossa era contemporânea? Theodore Roosevelt, 26º presidente dos Estados Unidos,
afirmava que “não chego ao ponto de dizer que índio bom é índio morto, mas
creio que seja o caso de nove em cada dez. E não gostaria de indagar muito a
fundo sobre o décimo” (LOSURDO, 2017).
Essas palavras foram proferidas por Roosevelt em 1886 e, ainda que
tenhamos indícios de uma mudança de posição posterior, são significativas.
Thomas Jefferson, o terceiro presidente, falava em “eliminar” os indígenas.
Jefferson também catalogava os povos originários dessa forma: “estes selvagens
sem piedade, cujo modo bem conhecido de fazer a guerra é massacrar tudo, sem
distinção de idade, de sexo, nem de condição” (DUCLOS, O
império da cultura do ódio e dos delírios paranoicos, 2003). O general
Philip Sheridan, um dos mais famosos da história dos Estados Unidos, defendia,
na metade do século XIX, a “aniquilação, obliteração e completa destruição” dos
indígenas (ROSS, How
American Racism Influenced Hitler, 2018).
O nível de brutalidade na política de extermínio foi tanto que um
famoso personagem da história do século XX tomava o extermínio estadunidense
como grande exemplo para seu projeto. Esse líder era Adolf Hitler. (...)
O Estado racial estadunidense, como se sabe, não se restringiu a
práticas de domínio total contra os indígenas. É fundamental sempre lembrar que
existe uma lenda muito popular de que o liberalismo, no Brasil, seria mais
autoritário e antidemocrático do que o “verdadeiro liberalismo”, o da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos. Os que divulgam essa visão, cobrando um “verdadeiro
liberalismo” no Brasil ou uma imitação do liberalismo dos países imperialistas,
parecem esquecer, ou ignorar propositalmente, que a escravidão não foi extinta
com a Revolução Americana. A Constituição Americana sanciona a escravidão, e o
regime presidencialista do país esteve organicamente ligado a essa instituição
de máxima opressão e exploração: depois da fundação da República estadunidense,
por 32 anos, a presidência foi ocupada por proprietários de escravos.
O sentido intrínseco da ligação entre fundação da república,
liberalismo e escravidão é bem colocado por Losurdo:
A escravidão não é
algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao
contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desde sucesso: ‘o
total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330 mil no ano
de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de
mais de 6 milhões nos anos 50 do século XIX’. O que contribui de forma decisiva
para o crescimento desse instituto sinônimo do poder absoluto do homem sobre o
homem é o mundo liberal (LOSURDO, Contra-história
do liberalismo, 2006, p. 47).
Grandes pensadores liberais e admiradores da República americana, como
o francês Alexis de Tocqueville, no seu clássico livro A democracia na
América, não só legitimavam o extermínio dos indígenas87 como
consideravam, sem problemas, a República como democrática, a despeito da escravidão.
Tocqueville registra que existe igualdade e liberdade no âmbito da comunidade branca,
mas muitos imigrantes, indígenas e negros não desfrutavam dessa liberdade.
Emerge como claro: a democracia estadunidense é um regime de base racial, uma
democracia para o povo dos senhores, como diria Domenico Losurdo.
Registrar a convivência da democracia burguesa nos Estados Unidos com a
escravidão é pouco. É necessário destacar ainda que, no plano das relações
internacionais, o império do Norte atuava como uma força de contrarrevolução no
nível do continente americano, buscando manter ou restabelecer a escravidão. Em
meados do século XIX, a escravidão foi restabelecida no Texas, depois do
território ser roubado do México pelos Estados Unidos.88
A antiga colônia francesa de São Domingos, o Haiti, conseguiu realizar
sua revolução, acabar com a escravidão, o domínio dos proprietários de escravo
e libertar-se do colonialismo francês. O pequeno país proclamou que, a partir
daquele momento, todos os seres humanos seriam iguais e ninguém poderia ser
propriedade de outrem. Desafiado pela Revolução Haitiana, foi por esse motivo
que, em 28 de fevereiro de 1806, o presidente estadunidense Thomas Jefferson
proibiu todo e qualquer comércio com o Haiti. A intenção era suprimir essa
república de negros livres.89
A escravidão só foi extinta com a guerra civil Americana, conhecida
como Guerra de Secessão de 1861-1865. Durante a guerra, o governo de Abraham
Lincoln, representando os interesses da burguesia industrial nortista e
valendo-se de expedientes de Estado de exceção contra os proprietários de escravos
do Sul, proclamou a abolição da escravidão. No período, como mostra Domenico
Losurdo90, muitos liberais apoiaram os Confederados do Sul, vendo
neles os verdadeiros representantes do liberalismo, da defesa da propriedade
privada, contra o “jacobinismo” de Lincoln. Enquanto isso, Marx e Engels se
colocaram como firmes apoiadores da luta contra a escravidão e apontavam as
vacilações da União na luta contra os latifundiários escravagistas:
Colocando-se
abertamente a favor da emancipação dos escravos, Marx e Engels não se eximiram
de criticar, através da imprensa, as tendências conciliadoras e tendentes à capitulação
existente no próprio campo republicano nortista. Em artigos como ‘A destituição
de Frémont’, ‘Crítica dos assuntos americanos’ e ‘Crise na questão escravista’,
‘Tratado contra o comércio de escravos’ e ‘Manifestações abolicionistas na
América’, Marx condenava de forma contundente a indecisão e as vacilações dos
círculos moderados do Partido Republicano do Norte dos Estados Unidos, sua inclinação
para estabelecer compromissos com a oligarquia escravista do Sul e seu Partido
Democrata. Subjaz nesses escritos o reconhecimento das limitações
sócio-históricas da burguesia estadunidense, que a tornavam incapaz de realizar
a ‘democracia americana’ em sua plenitude – decantada anos antes por liberais
europeus da estirpe de Alexis de Tocqueville –, concorrendo para a manutenção
de uma ‘república contaminada’ (defiled republic) na sociedade e no
sistema político estadunidense pela vigência da 'instituição nefanda'. Para
Marx e Engels, a maneira consequente e radical de travar a guerra era através
da proclamação de seu caráter abolicionista, emancipador e antioligárquico, de
modo a mobilizar as massas de condição livre e aqueles que ainda permaneciam
escravos para o desenvolvimento de uma guerra popular e revolucionária (FERREIRA,
Crítica Marxista, 2017, p. 121).
Durante a Guerra de Secessão, a guarda civil, formada também por
pessoas negras, ex-escravos, apoiada pela ditadura “jacobina” do Norte,
conseguiu criar um clima de liberdade para a população negra como nunca antes
visto. Pela primeira vez na história, os negros e negras dos Estados Unidos
passaram a desfrutar de algo próximo de um Estado de direito e direitos civis.91
Com a vitória da União, ocorreu, afinal, a conciliação com os Confederados do
Sul. A despeito do caráter de mobilização popular do exército antiescravista, a
guerra buscava, essencialmente, dobrar as resistências do latifúndio e afirmar
a hegemonia do capital industrial e bancário nortista. Garantida essa
hegemonia, a burguesia nortista permitiu o estabelecimento de uma nova forma de
domínio sobre a população negra.
Quando termina o período da reconstrução americana e as tropas
nortistas deixam totalmente os estados do Sul, em 1877, os proprietários
brancos recuperaram seu poder político e acabaram com o pouco de liberdade
política até então desfrutada pelos negros. Rapidamente, uma série de leis
segregacionistas começaram a tomar corpo entre 1890 e 1910 – inicialmente no Norte
e não no Sul –, configurando o regime de segregação racial Jim Crow.92
Esse sistema de apartheid, oficialmente, durou até 1965. Proibia não só
direito de votar e ser eleito aos negros em vários estados, como criava um
regime de desumanização total e alijamento de direitos básicos, como educação,
saúde, transporte e emprego.
É importante destacar que o regime de segregação racial não era apenas
uma política estatal. A mitologia liberal gosta de imaginar regimes de exceção
como um Estado total, o “Grande Irmão” de George Orwell, que controla toda uma
sociedade indefesa; em suma, a velha e gasta oposição liberal entre Estado versus
indivíduo ou sociedade. A dominação racial-classista nos Estados Unidos se
configura como um complexo orgânico e dinâmico de brutalidade, violência e
desumanização que articula Estado e sociedade civil com fronteiras sempre mais
turvas, com a interação entre as formas legais e ilegais de opressão, de acordo
com a conjuntura histórica. Vejamos alguns aspectos dessa dominação:
Por mais brutais e
sangrentos que fossem os distúrbios raciais, ficavam atrás dos linchamentos e
das mortes por fogo. Em 1918, 64 negros foram linchados; em 1919, o número
subiu para 83. Talvez o ato mais brutal tenha sido o ocorrido em Valdosta, no
estado da Geórgia, em 1918. Mary Turner, uma mulher negra grávida, foi
enforcada numa árvore, embebida com gasolina e queimada. Quando se balançava na
corda, um homem da multidão puxou uma faca e abriu seu ventre. Seu filho caiu.
Deu dois gemidos fracos – e recebeu como resposta um pontapé de um valentão, no
momento em que a vida era triturada nessa forma tão minúscula (JONES, Racismo
e preconceito, 1973, p. 15).
E:
Notícias dos
linchamentos eram publicadas em folhetos locais e vagões suplementares eram
acrescentados aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenientes de
localidades a quilômetros de distância. Para assistir ao linchamento, as
crianças das escolas podiam ter seu dia livre. O espetáculo podia incluir castração,
o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os tiros de arma de fogo. As
lembranças a serem adquiridas podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os
dentes, os ossos e até as genitálias das vítimas, bem como cartões ilustrados
do evento (WOODWARD, 2010, p. 317).
Note, os linchamentos eram públicos, anunciados como eventos sociais de
fundamental importância, com o conhecimento e a aprovação, oficial ou oficiosa,
das autoridades do poder público. Nos Estados Unidos, um negro não deveria
apenas temer a polícia, a força repressiva do Estado, mas todo e qualquer
branco: o branco podia estuprar uma mulher negra e nada iria acontecer;
espancar um negro e nada iria acontecer; matar e torturar com requintes de
crueldade um negro e nada iria acontecer. Em caso de reação, em legítima
defesa, o negro poderia esperar a prisão, pena de morte ou a morte pura e
simples por linchamento. A situação da população negra, em vários estados do
Sul e com formas diferentes e um pouco menos brutais no Norte, expressa-se
objetivamente como a negação total da condição de ser humano, sujeito de
direito e portador de direitos civis.”
84. Domenico Losurdo, Guerra e Revolução, 2017, p. 59.
85. Designação conferida a John e Samuel Adams, George Washington,
Thomas Jefferson, George Clymer, Benjamin Franklin, George Tylor e George Rea,
signatários da Declaração de Independência ou redatores da Constituição dos
Estados Unidos, onze anos mais tarde.
86. “A interpretação hitlerista da Revolução Bolchevique como projeto
judaico não era nada exótica. Winston Churchill e Woodrow Wilson entendiam-na
da mesma forma, pelo menos no início. O correspondente do Times de Londres via
nos judeus a força principal da conspiração bolchevique mundial. Pouco habitual
era a conclusão insistente e sistemática de Hitler, segundo o qual a Alemanha
poderia ganhar poder global eliminando os judeus da Europa Oriental e
derrubando sua suposta fortaleza soviética. [...] Uma segunda América seria
criada na Europa, depois que os alemães aprendessem a ver os outros europeus
como viam os nativos americanos e os africanos, e a considerar o maior país da
Europa como uma frágil colônia judaica” (ibidem, p. 36).
87 “Muito embora o vasto país que acabamos de descrever fosse habitado
por numerosas tribos indígenas, podemos dizer com justiça que, na época do
descobrimento, ainda não constituía mais que um deserto. Os índios ocupavam-no,
mas não o possuíam. É pela agricultura que o homem se apropria do solo, e os
primeiros habitantes da América do Norte viviam do produto da caça. Seus
preconceitos implacáveis, suas indômitas paixões, seus vícios e, mais ainda
talvez, suas virtudes selvagens entregavam-nos a uma destruição inevitável. A
ruína desses povos começou no dia em que os europeus abordaram em suas costas;
sempre continuou desde então; acaba de se consumar em nossos dias. A
Providência, colocando-os no meio das riquezas do novo mundo, parecia ter-lhes
concedido destas apenas um curto usufruto; de certa forma, eles só estavam ali
entrementes. Aquelas costas, tão bem-preparadas para o comércio e para a
indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississippi,
aquele continente inteiro aparecia então como o berço ainda vazio de uma grande
nação” (Alexis de Tocqueville, A democracia na América. Livro I: leis e
costumes, p. 33).
88 Domenico Losurdo (entrevista), “A
luta para romper o monopólio da tecnologia é revolucionária“, Revista
Opera, 28 jun. 2019.
89 Vijay Prashad, Estrela vermelha sobre o terceiro mundo, p.
29.
90 Losurdo, Contra-história
do liberalismo, p. 107-33.
91. Cabe destacar, contudo, que Lincoln, pessoalmente, estava longe de
uma posição antirracista ou algo similar a isso. Sua declaração é reveladora: “não
sou, nem nunca fui favorável a algo que pudesse provocar, de qualquer forma, a
igualdade social e política entre as raças branca e a negra; não sou, nem nunca
fui favorável à transformação de negros em eleitores ou jurados, ou à sua aceitação
para cargos públicos [...]. A isso acrescentarei que existe uma diferença
física entre a raça negra e a branca que, segundo creio, para sempre impedirá
que as duas raças vivam em condições de igualdade social e política” (Lincoln apud
James M. Jones, Racismo e preconceito, p. 4).
92 “As Leis de Jim Crow foram criadas no Norte, não no Sul. Portanto, a
atitude ambivalente dos nortistas com relação aos negros tem sido um pouco obscurecida
pela comparação evidentemente favorável com as atitudes sulistas diante dos
negros. No entanto, como hoje se vê claramente, os negros do Norte nunca foram
admitidos na corrente principal da vida norte-americana” (JONES, 1973, p. 9). O
termo tem origem na personagem satírica do ator Thomas Rice, “Jim Crow”, que
ridicularizava o povo negro por meio de estereótipos. A expressão tornou-se uma
forma pejorativa de se referir às pessoas negras. No final do século XIX,
quando os estados do Sul dos Estados Unidos aprovaram leis de segregação
racial, estas ficaram conhecidas como Leis Jim Crow.
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