Editora: Companhia
das Letras / Penguin Classics
ISBN: 978-85-63560-28-5
Organização e introdução: Alfredo Bosi
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Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 760
Sinopse: Ver Parte
I
“Aprendamos
do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras?
Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser
o estilo da pregação, muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça
o estilo baixo; as estrelas são muito distintas, e muito claras e altíssimas. O
estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem,
e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos
nas estrelas para a sua lavoura, e o mareante para a sua navegação, e o matemático
para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante,
que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas, e o matemático que tem lido
quantos escreveram não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão:
estrelas, que todos as veem, e muito poucos as medem.”
(Sermão
da Sexagésima)
“Armas
alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória.”
(Sermão
da Sexagésima)
“As
palavras de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavra de Deus;
mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavra de Deus, antes podem ser
palavra do demônio. Tentou o demônio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe
o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore
Dei.44 Esta sentença era tirada do capítulo oitavo
do Deuteronômio. Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura,
leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo 90, diz-lhe desta maneira: Mitte
te deorsum; scriptum est enim, quia angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant
te in omnibus viis tuis.45 Deita-te daí abaixo,
porque prometido está nas Sagradas Escrituras, que os anjos te tomarão nos braços
para que te não faças mal. De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura,
e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus;
pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura
para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em
seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio
e torcido: e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras
de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que tomadas
no sentido em que Deus as disse são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não
disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo,
e com que hoje Lhe faz a mesma guerra do pináculo do Templo. O pináculo do Templo
é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto,
tentou-O no monte, tentou-O no Templo: no deserto tentou-O com a gula, no monte
tentou-O com a ambição, no Templo tentou-O com as Escrituras mal interpretadas,
e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem
derrubado dela, se não a Cristo, a sua fé.”
44 Mt 4,4 [(...) “Não só de pão vive o homem, mas de
toda palavra que sai da boca de Deus.”].
45 Sl 90,11-12 [“pois ele ordenou aos seus anjos que guardem
você em seus caminhos. Eles o levarão nas mãos, para que seu pé não tropece
numa pedra]. cf. Mt 4,5-6 [“Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o na
parte mais alta do Templo. E lhe disse: “Se tu és Filho de Deus, joga-te para
baixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, e
eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra”.”] e Lc 4,9-11
[“Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do
Templo. E lhe disse: «Se tu és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Porque
a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem
com cuidado’. E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em
nenhuma pedra’.”].
(Sermão
da Sexagésima)
“Unidas
as almas aos corpos e restituídos os homens à sua antiga inteireza, os bem ressuscitados
alegres, os mal ressuscitados tristes, começarão a caminhar todos para o lugar do
Juízo. Será aquela a vez primeira em que o gênero humano se verá a si mesmo, porque
se ajuntarão ali os que são, os que foram, os que hão de ser, e todos pararão no
vale de Josafá. Se o dia não fora de tanto cuidado, muito seria para ver os homens
grandes de todas as idades juntos. Mas vejo que me estão perguntando como é possível
que uma multidão tão excessiva como a de todo o gênero humano, os homens que se
continuaram desde o princípio até agora, e os que se irão multiplicando sucessivamente
até ao fim do mundo: como é possível que aquele número inumerável, aquela multidão
quase infinita de homens caiba em um vale? A dúvida é boa, queira Deus que o seja
a resposta. Primeiramente digo que nisto de lugares há grande engano, cabe muito
mais nos lugares do que nós cuidamos. No primeiro dia da criação criou Deus o Céu
e a Terra e os elementos, e é certo em boa filosofia que não ficou nenhum vácuo
no mundo, tudo estava cheio. Com isto ser assim, e parecer que não havia já lugar
para caber mais nada, ao terceiro dia vieram as ervas, as plantas, e as árvores;
e com serem tantas em número e tão grandes, couberam todas. Ao quarto dia veio o
Sol, e sendo aquele imenso planeta cento e sessenta e seis vezes maior que a Terra,
coube também o Sol: vieram no mesmo dia as estrelas tantas mil, e cada uma de tantas
mil léguas, e couberam as estrelas. Ao quinto dia vieram as aves ao ar, e couberam
as aves: vieram os peixes ao mar, e com haver neles tantos monstros de disforme
grandeza couberam os peixes. No sexto dia vieram os animais tantos e tão grandes
à Terra, e couberam os animais: finalmente veio o homem, e foi o homem o primeiro
que começou a não caber; mas se não coube no Paraíso, coube fora dele.”
(Sermão
da primeira dominga do Advento)
“Demais
desta razão geral, que há da parte do lugar, há outras duas da parte das pessoas;
uma da parte dos bons, outra da parte dos maus. Os bons poderão caber ali em muito
pouco lugar, porque terão o dote da sutileza. Entre os quatro dotes gloriosos há
um que se chama sutileza, o qual comunica tal propriedade aos corpos dos bem-aventurados,
que todos quantos se hão de achar no Dia do Juízo podem caber neste lugar onde eu
estou, sem me tirarem dele. Cá no mundo também há este dote da sutileza, mas com
mui diferentes propriedades. A sutileza do Céu introduz a um sem afastar a outro;
as sutilezas do mundo todo seu cuidado é afastar aos outros para se introduzir a
si. Por isso não há lugar que dure, nem lugar que baste. Muito é que Jacó e Esaú
não coubessem em uma casa; mais é que Lot e Abraão não coubessem em uma cidade;
muito mais é que Saul e Davi não coubessem em um reino: mas o que excede toda a
admiração é que Caim e Abel não coubessem em todo o mundo. E por que não cabiam
dous homens em tão imenso lugar? Pior é a causa que o caso. Caim não cabia com Abel,
porque Abel cabia com Deus. Em um homem cabendo com seu senhor, logo os outros não
cabem com ele. Alguma vez será isto soberba dos Abéis, mas ordinariamente é inveja
dos Cains. Se é certo que com a morte se acaba a inveja, facilmente caberemos todos
no Dia do Juízo. Quereis caber todos? Não acrescenteis lugares, diminuí invejas.
Este é o dote da sutileza dos bons.”
(Sermão
da primeira dominga do Advento)
“O Dia
do Juízo mostrará que a santidade não consiste no nome senão nas obras.”
(Sermão
da primeira dominga do Advento)
“Sabei
cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos há de pedir estreita conta
do que fizestes; mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram,
se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos. As culpas por que se condenam
os reis são as que se contêm nos relatórios das sentenças: lede, agora, o relatório
da sentença do Dia do Juízo e notai o que diz: Discedite a me, maledicti, in
ignem aeternum:16 Ide, malditos, ao fogo eterno.
E por quê? Non dedistis mihi manducare, non dedistis mihi potum, non collegistis
me, non cooperuistis me, non visitastis me.17
Cinco cargos, e todos omissões: porque não destes de comer, porque não destes de
beber, porque não recolhestes, porque não visitastes, porque não vestistes. Em suma,
que os pecados que ultimamente hão de levar os condenados ao Inferno, são os pecados
de omissão. Não se espantem os doutos de uma proposição tão universal como esta;
porque assim é verdadeira em todo o rigor da teologia. O último pecado e a última
disposição por que se hão de condenar os precitos, é a impenitência final; e a impenitência
final é pecado de omissão. Vede que cousas são omissões, e não vos espantareis do
que digo. Por uma omissão perde-se uma inspiração, por uma inspiração perde-se um
auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição, por uma contrição perde-se uma alma;
dai conta a Deus de uma alma, por uma omissão.
Desçamos
a exemplos mais públicos. Por uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se
uma viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um Estado:
dai conta a Deus de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por
uma omissão perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião, por uma ocasião
perde-se um negócio, por um negócio perde-se um reino: dai conta a Deus de tantas
casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai
conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh que
arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros! Está o príncipe, está o ministro
divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento:
e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos,
maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos
anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro
com uma omissão, matam de um golpe uma monarquia. Estes são os escrúpulos de que
se não faz nenhum escrúpulo; por isso mesmo são as omissões os mais perigosos de
todos os pecados.
A omissão
é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece;
e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda.
A omissão é um pecado que se faz não fazendo: e pecado que nunca é má obra, e algumas
vezes pode ser obra boa; ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este
pecado. (...)
Mas
por que se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes são
os menos maus: os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores:
por omissões, por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos,
por vagares, por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem
escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles
embora, já que assim o querem: o mal é que se perdem a si e perdem a todos; mas
de todos hão de dar conta a Deus. Uma das cousas de que se devem acusar e fazer
grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que
vem o que se havia de fazer o passado: porque fizeram amanhã o que se havia de fazer
hoje: porque fizeram depois o que se havia de fazer agora: porque fizeram logo o
que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão de ser as consciências dos
que governam, em matérias de momentos. O ministro que não faz grande escrúpulo de
momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir, a fama, ainda que
mal, também se restitui; o tempo não tem restituição alguma.”
(Sermão
da primeira dominga do Advento)
16 Mt 25,41 [(...) “Afastem-se de mim, malditos.
Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.”].
17 Mt 25,42-3 [“Porque eu estava com fome, e
vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu
era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não
me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar”].
“Todos
ou quase todos os que governam, são causas gravemente culpáveis de graves danos,
e nenhum ou quase nenhum restitui o que pode: logo nenhum ou quase nenhum dos que
governam, se pode salvar. Colhe bem a consequência? Pois ainda mal, porque a segunda
premissa, de que só se podia duvidar, está tão provada na experiência. Eu vi governar
muitos, e vi morrer muitos: nenhum vi governar que não fosse causa culpável de muitos
danos, nenhum vi morrer que restituísse o que podia: Sou obrigado, secundam praesentem
justitiam, a crer que todos estão no Inferno. Assim o creio dos mortos, assim
o temo dos vivos.”
(Sermão
da primeira dominga do Advento)
“Quando
iam saber do Batista, quem era, perguntam-lhe: Vós quem sois, e vós quem dizeis
que sois; porque os homens quando testemunham de si mesmos, uma cousa é o que são,
e outra cousa é o que dizem. Ninguém há neste mundo que se descreva com a sua definição:
todos se enganam no gênero e também nas diferenças. Que diferentes cousas são ordinariamente
o que dizeis de vós, e o que sois? E o pior é que muitas vezes não são cousas diferentes:
porque o que sois é nenhuma cousa, e o que dizeis são infinitas cousas. Nesta matéria
de vós quem sois, todo homem mente duas vezes; uma vez mente-se a si, e outra
vez mente-nos a nós: mente-se a si, porque sempre cuida mais do que é; e mente-nos
a nós, porque sempre diz mais do que cuida. Bem distinguiram logo os embaixadores
o Tu quis es do Quid dicis de te ipso; e quando iam perguntar ao Batista
o que era, perguntaram o que era, e o que dizia; porque ninguém há tão reto juiz
de si mesmo que ou diga o que é, ou seja o que diz.”
(Sermão
da terceira dominga do Advento)
“Os
ditames práticos devem-se mudar todas as vezes que se mudam as circunstâncias.”
(Sermão
da terceira dominga do Advento)
“Conhecem-se
os verdadeiros profetas pelos olhos, porque o ver é o fundamento de profetizar.
Os profetas na Escritura chamam-se videntes: os que veem. Só os que veem são profetas.
Assim como a mais nobre profecia sobrenatural consiste na visão, assim a mais certa
profecia natural consiste na vista. Só quem viu pode profetizar naturalmente com
certeza. E a razão é muito clara. A profecia humana consiste no verdadeiro discurso;
o discurso verdadeiro não se pode fazer sem todas as notícias; e todas as notícias
só as pode ter quem viu com os olhos. Nenhuma cousa houve mais assentada na Antiguidade
que ser inabitável a zona tórrida; e as razões com que os filósofos o provavam,
eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse. Descobriram, finalmente,
os pilotos e marinheiros portugueses as costas da África e da América, e souberam
mais e filosofaram melhor sobre um só dia de vista que todos os sábios e filósofos
do mundo em cinco mil anos de especulação. Os discursos de quem não viu são discursos;
os discursos de quem viu são profecias.”
(Sermão
da terceira dominga do Advento)
“Cansados,
finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batista que não era Messias, nem
Elias, nem profeta; pediram-lhe, finalmente, que pois eles não acertavam a perguntar,
lhes dissesse ele quem era. A esta instância não pôde deixar de deferir o Batista.
E que vos parece que responderia? Ego sum vox clamantis in deserto:50 Eu sou uma voz que clama no deserto. Verdadeiramente
não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao Batista o que fazia,
então estava bem respondido com a voz que clamava no deserto, porque o que o Batista
fazia no deserto, era dar vozes e clamar; mas se os embaixadores perguntavam ao
Batista quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu discretissimamente.
Quando lhe perguntavam quem era, respondeu o que fazia; porque cada um é o que faz,
e não é outra cousa. As cousas definem-se pela essência: o Batista definiu-se pelas
ações; porque as ações de cada um são a sua essência. Definiu-se pelo que fazia
para declarar o que era.
Daqui
se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de ponderar. O Batista perguntado
se era Elias respondeu que não era Elias: Non sum. E Cristo no capítulo onze
de São Mateus disse, que o Batista era Elias: Joannes Baptista ipse est Elias.51 Pois se Cristo diz que o Batista era Elias, como diz
o mesmo Batista que não era Elias! Nem o Batista podia enganar, nem Cristo podia
enganar-Se: como se hão de concordar logo estes textos? Muito facilmente. O Batista
era Elias, e não era Elias; não era Elias, porque as pessoas de Elias e do Batista
eram diversas; era Elias, porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas.
A modéstia do Batista disse que não era Elias, pela diversidade das pessoas; a verdade
de Cristo afirmou que era Elias, pela uniformidade das ações. Era Elias, porque
fazia ações de Elias. Quem faz ações de Elias, é Elias; quem fizer ações de Batista,
será Batista; e quem as fizer de Judas, será Judas. Cada um é as suas ações, e não
é outra cousa. Oh que grande doutrina esta para o lugar em que estamos! Quando vos
perguntarem quem sois, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a
matrícula de vossas ações. O que fazeis, isso sois, nada mais.”
50 Jo 1,23.
51 Mt 11,14.
(Sermão
da terceira dominga do Advento)
“Onde
há bons e maus, há que louvar e que repreender.”
(Sermão
de Santo Antônio aos peixes)
“A vaidade
entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana os homens.”
(Sermão
de Santo Antônio aos peixes)
“Quem
quer mais do que lhe convém, perde o que quer, e o que tem.”
(Sermão
de Santo Antônio aos peixes)
“Ouvi
uma verdade de Sêneca, que por ser de um gentio folgo de a repetir muitas vezes.
Nihil est homini se ipso vilius: Não há cousa para conosco mais vil que nós mesmos.”
(Sermão
da primeira domingo da Quaresma)
“O texto
de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos em que são ordinárias semelhantes
opressões e injustiças, e diz: que entre os tais reinos e as covas dos ladrões (a
que o santo chama latrocínios) só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são
latrocínios ou ladroeiras grandes, e os latrocínios ou ladroeiras são reinos pequenos:
Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia
quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno.
Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia;
e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores,
repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele que não era medroso
nem lerdo, respondeu assim: “Basta, Senhor, que eu porque roubo em uma barca sou
ladrão, e vós porque roubais em uma armada, sois imperador?”. Assim é. O roubar
pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas,
o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades,
e interpretar as significações, a uns e outros, definiu com o mesmo nome: Eodem
loco pone latronem, et piratam, quo regem animum latronis, et piratae habentem.
Se o rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o
ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Quando
li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estoico se atrevesse
a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou e
quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos em tempo de príncipes
católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma
doutrina. Saibam estes eloquentes mudos, que mais ofendem os reis com o que calam
que com o que disserem; porque a confiança com que isto se diz, é sinal que lhes
não toca, e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala, é argumento de
que se ofenderão, porque lhe pode tocar. (...)
Não
são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar,
para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este
título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo
das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força,
roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades
e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os
outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via
com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros
de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá vão os ladrões
grandes enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas
as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes
se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia
ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província! E quantos
ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um chamado Seronato
disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Non cessat simul furta, vel
punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas cousas: em castigar
furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar
os ladrões do mundo, para roubar ele só.”
(Sermão
do bom ladrão)
“Por
mar padecem os moradores das Conquistas a pirataria dos corsários estrangeiros,
que é contingente; na terra suportam a dos naturais, que é certa e infalível. E
se alguém duvida qual seja maior, note a diferença de uns a outros. O pirata do
mar não rouba aos da sua república; os da terra roubam os vassalos do mesmo rei,
em cujas mãos juraram homenagem: do corsário do mar posso-me defender; aos da terra
não posso resistir: do corsário do mar posso fugir; dos da terra não me posso esconder:
o corsário do mar depende dos ventos; os da terra sempre têm por si a monção: enfim
o corsário do mar pode o que pode, os da terra podem o que querem, e por isso nenhuma
presa lhes escapa. Se houvesse um ladrão onipotente, que vos parece que faria a
cobiça junta com a onipotência? Pois é o que fazem estes corsários.”
(Sermão
do bom ladrão)
“Ora
suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse: perguntar-me-eis,
e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são
pó, nós também somos pó; em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos
os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado,
os mortos são pó caído; os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic
jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó: dá um pé de vento, levanta-se
o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem
pode estar quedo; anda, corre, voa; entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante,
já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo toma,
tudo cega, tudo penetra; em tudo e por tudo se mete, sem aquietar nem sossegar um
momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento: cai o pó, e onde o vento parou,
ali fica; ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou
no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento
é este? O pó somos nós: Qui pulvis es: o vento é a nossa vida: Quia ventus est vita
mea.5 Deu o vento, levantou-se o pó: parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó
levantado; estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído; estes são os mortos.
Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó
com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta
é a distinção, e não há outra.”
(Sermão
da Quarta-feira de cinzas)
“Não
há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria
para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com
a eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus que criou
estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para
dous infernos um nesta vida, outro na outra.”
(Sermão
vigésimo sétimo do Rosário)
“Um
pigmeu sobre um gigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos reconhecemos em comparação
daqueles gigantes que olharam antes de nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós
viram muito mais do que nós pudéramos ver sem eles; mas nós, como viemos depois
deles, e sobre eles por benefício do tempo, vemos hoje o que eles viram, e um pouco
mais. O último degrau da escada não é maior que os outros, antes pode ser menor;
mas basta ser o último, e estar em cima dos demais, para que dele se possa alcançar
o que dos outros se não alcançava.”
(Resposta
a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador das profecias é o tempo)
“E
que faz Deus, ou pode fazer, para que umas palavras tão expressas e uma
profecia tão clara possa parecer escura? Atravessa uma nuvem (como dizíamos)
entre a profecia e os olhos, e com este véu, ou sobre os olhos ou sobre a
profecia, o claro, por claríssimo que seja, fica escuro.
Quando
queremos encarecer uma cousa de muito clara, dizemos que é clara como água,
porque não há cousa mais clara; e contudo essa mesma água (como discretamente
advertiu Davi), com uma nuvem diante, é escura: tenebrosa aqua in nubibus
aeris. Em havendo nuvem em meio, até a água é escura, e tais são as
profecias, por claras e claríssimas que sejam. Por isso pedia o mesmo Davi a
Deus que lhe tirasse o véu dos olhos, para que pudesse conhecer as maravilhas
de seus mistérios: Revela oculos meos, et considerabo mirabilia de lege tua.
Oh quantas profecias muito claras se não entendem, ou se não querem entender,
porque as queremos ver por entre nuvens e com véu sobre os olhos! Peço e
protesto a todos os que lerem esta História, ou que tirem primeiro o véu
de sobre os olhos, ou que a não leiam. (...)
Descobrimos
hoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor, porque vemos
mais de perto; e que trabalhamos menos, porque achamos os impedimentos tirados.
Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passados; vemos de mais perto, porque
estamos mais chegados aos futuros; e achamos os impedimentos tirados, porque todos
os que cavaram neste tesouro e varreram esta casa, foram tirando impedimentos à
vista, e tudo isto por benefício do tempo, ou, para o dizer melhor, por providência
do Senhor dos tempos.”
(Resposta
a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador das profecias é o tempo)
“Na
verdade, o que é o mundo, senão adorar a sério as coisas vãs e as verdadeiras e
celestes ridicularizar?”
(A
chave dos profetas)
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