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sábado, 25 de junho de 2022

Introdução ao fascismo (Parte II), de Leandro Konder

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-118-2

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 184

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Sinopse: Ver Parte I


 

“O fascismo é uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração do capital; é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro.”

 

 

“Renunciando a essas genealogias que nos levam longe demais e são pouco compensadoras para o esclarecimento da natureza do fascismo, como fenômeno especificamente moderno, nos limitaremos a endossar aqui o ponto de vista de Lukács, segundo o qual o fascismo aproveitou elementos das mais variadas linhas de pensamento reacionárias, reunindo-os de maneira eclética e em função de um uso muito claramente pragmático (cf. Die Zerstorung der Vernunft).

Exatamente por seu espírito radicalmente pragmático, o fascismo nunca se empenhou seriamente em desenvolver com rigor e coerência uma determinada linha de reflexão filosófica. Todos os pensadores do século 19 a que se poderia atribuir a paternidade do monstro teriam, por isso, bons argumentos para negá-la. Mas a pouca seriedade teórica dos fascistas não significa que não tenham antepassados no plano intelectual: em diferentes níveis e de diferentes modos, eles buscaram e encontraram armas ideológicas em algumas figuras ilustres da cultura oitocentista e novecentista, e seria inútil (e suspeito) tentar negar todo e qualquer comprometimento no crime por parte de tais figuras.

O fascismo italiano de Mussolini extraiu de Sorel muitos aspectos de sua concepção da violência, muito do seu entusiasmo pelos “remédios heroicos”; extraiu de Nietzsche sua ética aristocrática, seu culto do “super-homem”. O fascismo alemão de Hitler também aproveitou algo de Nietzsche e se apoiou decisivamente nas ideias racistas de Eugen Dühring (aquele professor cego de Berlim contra quem Friedrich Engels polemizou), de Paul Bötticher e sobretudo de Houston Stewart Chamberlain. Na França, o fascismo de Charles Maurras e Leon Daudet foi precedido pelo racismo de Arthur de Gobineau (o amigo do imperador Pedro II), de Vacher de Lapouge e de Gustave Le Bon, além de ter encontrado importantes pontos de apoio nos escritos de Joseph de Maistre, de René de La Tour du Pin e de Maurice Barrès. De maneira geral, todo o pensamento de direita que, ao longo do século 19, se empenhou na “demonização” da esquerda, desempenhou um papel significativo na preparação das condições em que o fascismo pôde, mais tarde, irromper.12 A “demonização” do adversário facilitaria à direita fascistizante libertar-se em face dele de alguns escrúpulos mantidos pela postura “aristocrática” do conservadorismo tradicional: quem não é implacável na luta direta contra Satanás torna-se pecador infame e perde sua alma.

Não é casual, aliás, que o primeiro movimento político fascista significativo (que não surgiu na Itália e nem na Alemanha, e sim na França, conforme observação do alemão Ernst Nolte13), a Action Française, tenha manifestado um pathos tão fanaticamente religioso.”

12 Antes de se empenhar na “demonização” do socialismo, a direita se empenhou em “demonizar” a Revolução Francesa de 1789. Joseph de Maistre, por exemplo, via nela um “caractère satanique” (Considérations sur la France, capítulo V).

13 Der Faschismus in seiner Epoche, vol. 1.

 

 

“Quando a Itália, depois de alguma hesitação, entrou finalmente na guerra, Mussolini se alistou e, em combate com as tropas da Alemanha e do Império Austro-Húngaro, deu mostras de coragem militar e veio a ser ferido. Terminado o conflito, já recuperado, percebeu o imenso potencial político constituído pela massa dos ex-combatentes, que regressavam de uma guerra na qual a Itália tinha ficado do lado das nações vitoriosas, mas o triunfo não resolvera nenhum de seus problemas internos. A guerra tinha acentuado o processo de concentração na indústria italiana, proporcionando grandes lucros à siderurgia, à indústria automobilística, à indústria química. A Fiat decuplicara seu capital. Os grupos maiores – Ilva e Ansaldo – cresceram enormemente. O setor agrário entrou em crise, a produção agrícola baixou, os capitais se deslocavam para a indústria, em busca dos superlucros. O processo de concentração por sua vez, liquidava muitas pequenas empresas e ameaçava a pequena burguesia com a proletarização. A inflação pesava sobre a massa trabalhadora e sobre as chamadas classes médias, acentuando o descontentamento e a insegurança (De 1914 a 1920, a moeda italiana perdeu 80% de seu valor.) Acrescente-se a isso o fato de que os trabalhadores rurais e pequenos proprietários agrícolas tinham sido retirados pela própria guerra do isolamento e da marginalização secular em que se achavam em face da vida política do país, e passaram a se agitar, a protestar confusa mas apaixonadamente contra a miséria crescente que os envolvia. Os combatentes desmobilizados (600 mil italianos tinham morrido nos campos de batalha, 500 mil tinham sido feridos e voltavam mutilados para casa) não foram unanimemente acolhidos como heróis pela população irritada; e compreenderam logo que não ia ser fácil, para eles, reintegrarem-se na vida civil, nas condições sociais com que se depararam.

Mussolini decidiu se apoiar na massa dos ex-combatentes. Até então, seu jornal, o Popolo d’Italia, ainda tinha o subtítulo de “Giornale socialista”; ao terminar a guerra, o subtítulo passou a ser “organo dei combattenti e produttori” (órgão dos combatentes e produtores). E começou uma luta inclemente contra os grandes responsáveis pela crise italiana, contra os inimigos da vocação da Itália para a grandeza: a democracia e o socialismo. O agitado e vaidoso poeta D’Annunzio lhe fornece uma das palavras de ordem para o seu combate: a “vitória mutilada”. A Itália se batera com imenso sacrifício e dedicação, conseguira afinal uma vitória heroica, mas os fracos dirigentes da liberal-democracia tinham cedido às pressões imperialistas de outros governos: em lugar de defenderem com firmeza os legítimos interesses nacionais (por exemplo, a posse de Fiume), permitiram covardemente que a vitória da Itália na guerra fosse “mutilada”. Mussolini e D’Annunzio se aliam para denunciar a “traição”. E o Partido Socialista Italiano, fomentando greves, observando com simpatia a revolução russa de Lenin, passa a ser sistematicamente denunciado por Mussolini como uma força antinacional, uma organização comprometida com os inimigos da Itália no confronto geral “entre a nação e a antinação” (Opera Omnia, vol. XIV, p. 172). Numa época em que a esquerda, dentro do Partido Socialista, já se preparava para constituir o Partido Comunista, acusando os socialistas de serem incuravelmente “reformistas” e de não terem sabido assimilar o leninismo, Mussolini escrevia: “o Partido Socialista é um exército russo acampado na Itália” (Opera Omnia, vol. XVI, p. 25).16

16 Com sua linguagem jornalística moderna, irônica e agressiva, Mussolini põe no Partido Socialista, do qual era renegado, o apelido de “partidão” (il Partitone) (Cf. Opera Omnia, vol. XIV, p. 233).

 

 

“Os novos fasci di combattimento não tinham programa: limitavam-se a vomitar impropérios pretensamente patrióticos contra os inimigos e, quando passavam à ação, praticavam aquilo que o fascista espanhol José Antonio Primo de Rivera, mais tarde, chamaria de “dialética dos punhos e dos revólveres”.17 Em 15 de abril de 1919, os fascistas invadiram e depredaram a redação do jornal socialista de Milão, o Avanti!. Mussolini se orgulhava da truculência do movimento e incentivava os seus ímpetos violentos: “a violência é imoral quando é fria e calculada – explicava ele – mas não quando é instintiva e impulsiva” (Opera Omnia, vol. XII, p. 7). Depois, o movimento fascista cresceu, ampliou-se, recrutou adeptos nas áreas mais variadas da população e, para manter-lhe a unidade, o Duce tratou de organizá-lo, esforçando-se inclusive por “canalizar” em termos políticos mais consequentes a violência, que deixa de ser “instintiva” e passa a ser calculada: “A violência fascista deve ser pensante, racional, cirúrgica” (Opera Omnia, vol. XVI, p. 271). (...)

A rarefação ideológica do fascismo e a agilidade de sua liderança política provocam perplexidade em amplos círculos; a rapidez de sua expansão impressiona. O conservadorismo tradicional deixa-se fascinar por ele, salvo raras exceções. O governo de Nitti ainda se opunha aos seus avanços, mas os de Bonomi e Facta dispõem-se a fazer-lhe concessões cada vez maiores, pensando acalmá-lo, mas na verdade alimentando-o e contribuindo para que se fortalecesse. Mussolini, por seu lado, mistura habilmente a agressividade com a discrição. Às vésperas da tomada do poder, respondendo a todos os que desejam saber qual é o programa do seu movimento (já então transformado em partido), ele esclarece, singelamente: “o nosso programa é simples: queremos governar a Itália” [Opera Omnia, vol. XVIII, p. 416].”

 

 

“Os artistas e intelectuais têm uma situação delicada e complexa em sua relação com a sociedade capitalista, seu Estado e seu mercado. Eles têm uma função social específica, que é a de elaborar representações ou interpretações capazes de enriquecer a autoconsciência da humanidade em cada época, em cada país, possibilitando aos homens reconhecerem melhor, sensível e/ou intelectualmente, a sua própria realidade. Mas as condições de vida e de trabalho não lhes facilitam o exercício da função que lhes cabe. Salvo algumas exceções, nem sempre significativas, os intelectuais e os artistas não são beneficiários diretos, em escala apreciável, das vantagens econômicas decorrentes da propriedade capitalista; por isso, não se inclinam necessariamente pela defesa do regime. Muitas vezes, são assalariados; e essa condição os aproxima da classe operária. Mas não se acham unidos pela consciência de terem uma missão histórica em comum. E as classes dominantes se encarregam de aprofundar-lhes as contradições internas, através das pressões econômicas, das intrigas e das lisonjas. Mais: o próprio acervo da cultura passada, que a intelectualidade recebe como herança e toma como base para a sua produção, serve para confundi-la, serve – em alguns casos – para impedi-la de ter pleno acesso ao reconhecimento da verdade da história (pois se trata de um acervo no qual, misturados às mais preciosas conquistas da evolução cultural dos homens, estão sutis preconceitos cristalizados da dominação classista).

Em face desse acervo da cultura passada, a prática mostra que são tão ingênuos os propósitos da “vanguarda” artística extremada (“inovação” radical, rompimento absoluto com tudo que veio antes) como os propósitos do academicismo (canonização do já feito): para produzir, os artistas e os intelectuais são obrigados a atender às exigências novas do presente, através da reelaboração – inevitavelmente crítica – do material ideológico legado pelas gerações precedentes. Essa reelaboração exige um difícil e acidentado trabalho, um doloroso aprendizado, uma luta constante contra a autocomplacência do particularismo ideológico, uma resistência teimosa contra as tendências dissolutoras do desespero.”

 

 

“Em discurso pronunciado em 2 de agosto de 1935, no 7º Congresso da Terceira Internacional, Dimitrov sancionou a definição que se tornou famosa: o fascismo é “a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro”.41

41 Antes da definição ter sido sancionada por Dimitrov, foi formulada por Stalin mesmo, no 13º “executivo ampliado” da direção da Internacional. Mas Stalin não se empenhou na defesa da fórmula como Dimitrov, mostrando-se inclusive discreto no seu emprego.

 

 

“Outro apoio com que pôde contar a teoria do “totalitarismo” lhe veio das diversas biografias de Hitler e Mussolini que exageram o papel desses dois líderes e das peculiaridades psicológicas de um e do outro no processo histórico da Itália e da Alemanha. Não estamos formulando uma censura a todas as biografias de Hitler e de Mussolini, evidentemente, e nem consideramos inútil ou prejudicial a reconstituição da trajetória pessoal de duas personalidades cuja influência na história do século 20 é óbvia. Mas é preciso dizer claramente que os biógrafos de Hitler e Mussolini, em sua maioria, têm trabalhado com base em uma concepção idealista da história, que atribui ao arbítrio, a caprichos ou intuições inexplicáveis de alguns “chefes” determinadas decisões ou manobras políticas que só poderiam ser efetivamente entendidas como respostas às questões apresentadas num dado momento, de forma bem concreta, pelas condições de luta, à organização específica em que o chefe se apoia.

No caso do fascismo “clássico” de Mussolini e de Hitler, aliás, havia um empenho propagandístico das organizações a que eles serviam (e que se serviam deles) no sentido de usá-los como símbolos, apresentando-os como gênios, provas vivas da autonomia criadora dos homens superiores, negações eloquentes da “mesquinha” interpretação materialista da história. Vastíssimos recursos materiais e técnicos eram empregados na manipulação da “opinião pública”, aproveitando as condições criadas pela chamada sociedade de massas de consumo dirigido. Os historiadores e biógrafos que supervalorizam a importância dos fatores pessoais na ação de Hitler e de Mussolini tombam, de certo modo, na ilusão que os aparelhos fascistas de propaganda procuravam fomentar na época em que os dois ditadores ainda viviam.78 Convém termos permanentemente em vista a advertência de Horkheimer: “Os chamados ‘grandes indivíduos’ dos nossos dias, os ídolos das massas, não são indivíduos genuínos, são meras criações de seus agentes publicitários, ampliações de suas fotografias, funções do processo social” (Eclipse of reason, 1947, IV).79

Fixando a atenção dos leitores nas pessoas dos líderes fascistas, na psicologia deles, os autores de quem estamos falando não contribuem para esclarecer melhor a complexa questão do papel real das grandes personalidades na história: limitam-se (independentemente das intenções subjetivas que os animam) a obscurecer as responsabilidades objetivas de determinadas organizações políticas e de seus financiadores.80 Em última análise, recorrendo a “explicações” baseadas na ação “casual” ou “enigmática” de determinados homens “extraordinários”, esses escritores representam apenas uma tentativa no sentido de disfarçar o fato de que os representantes da teoria do “totalitarismo”, até hoje, não conseguiram elaborar nenhuma interpretação coerente e digna de discussão das origens do fascismo.

78 Cf. Hitler. Ein bericht für junge Staatsburger, Werner Klose, ed. Heliopolis, Tubingen, 1961: “Muitas circunstâncias se conjugaram. Ninguém sabia, na época (1933), o que precisava ser salvo. Foi em última análise o fato de as pessoas terem, nessa situação tão confusa, tombado sob a dependência de um homem tão convicto de sua missão e tão monstruosamente perigoso como Adolf Hitler que decidiu tudo. Uma fatalidade” (Verghängnis p. 71). Também Adolf Hitler, Helmut Heiber, ed. Colloquium, Berlim, 1960: “O nacional-socialismo não é mais do que a projeção da vontade daquele homem, Adolf Hitler, no domínio dos pensamentos e das palavras” (p. 14). Outros exemplos poderiam ser colhidos em Adolf Hitler, de Hans Bernd Gisevius, ed. Rütten & Loening (2ª edição), Munich, 1963; e em Mussolini piccolo borghese, de P. Monelli, Milano, 1954.

79 A advertência de Horkheimer serve tanto para os que superestimam a significação das qualidades quanto para os que atribuem importância exagerada aos defeitos pessoais dos líderes. Ernest Niekisch, por exemplo, num livro escrito na década de 1930 e publicado em 1953 (Das Reich der niederen Dämonen), impressiona-se demais com a cara de gigolô de Hitler (p. 110) e com a morfinomania de Goering...

80 Um exemplo se acha na primeira biografia importante de Hitler, escrita quando o ditador ainda vivia. O biógrafo explica que Hitler não era uma criatura do grande capital (he is no creature of money) é que ele havia se achegado ao capital, mas “não como um lacaio” e sim “como um chantagista” (he did approach big capital – though as a blackmailer, not as a lackey) [Der Fuehrer. Hitler’s rise to power, Konrad Heiden, Boston, 1944, p. 264.]. Konrad Heiden não percebe que as “qualidades políticas” que levaram Hitler a liderar com êxito o Partido Nazista e a merecer o apoio maciço do grande capital excluíam a possibilidade de ele se apresentar ante os grandes capitalistas como um “lacaio”: caso lhe faltassem a audácia e o cinismo de um “chantagista”, o capital financeiro alemão deixaria de ter interesse em apoiá-lo, em servir-se dele.

 

 

“Boa parte da crítica feita ao fascismo de um ângulo mais ou menos conservador-liberal e influenciada pela doutrina do “totalitarismo” se fixa na revoltada contemplação dos “excessos”. O crítico Wolfgang Fritz Haug examinou os textos que os professores universitários alemães-ocidentais dedicaram ao tema do fascismo entre 1964 e 1966, numa série de conferências patrocinadas pelas Universidades de Berlim, Tübingen e Munique, e observou a frequência com que neles apareciam as palavras “excesso”, “exagero”, “radicalismo”, “unilateralidade” e “desmesurado”. Haug notou que a repulsa dos professores ao fascismo hitleriano se exprimia em adjetivos de forte impacto emocional, mas carecia de uma bem definida dimensão substantiva. Concentrando-se nos aspectos “desmedidos”, a crítica deixava a entender que um fascismo eventualmente “moderado” não lhe inspiraria disposições negativas... E Haug definiu com acerto o sentido político da sua retórica: “Sempre que o antifascismo se reduz a mera fraseologia, ajuda a perpetuar alguma coisa do fascismo” (“Wo der antifaschismus eine phrase ist, perpetuiert er faschistisches”).84

84 Der hilflose antifaschismus, Wolfgang Fritz Haug ed. Suhrkamp, Frankfurt/Main, 1967, p. 24.

 

 

“A morte de Stalin em 1953, a realização do 20º Congresso do PC da URSS e o tumultuado início da “desestalinização” criaram condições desfavoráveis para a difusão da teoria do “totalitarismo”. As proporções assumidas pelo conflito sino-soviético a partir de 1959, por outro lado, revelam no movimento comunista um quadro mais complexo do que aquele que a “demonização” promovida pelo anticomunismo tinha sido capaz de reconhecer.

Além disso, a equiparação do fascismo ao comunismo, que se encontrava na própria raiz da doutrina do “totalitarismo”, pressupunha no Ocidente a vigência generalizada de um capitalismo liberal, capaz de se contrapor tanto às ditaduras “totalitárias” fascistas quanto às ditaduras “totalitárias” comunistas, mas as condições sociais e políticas existentes nos países ocidentais, em sua maioria, desautorizavam claramente a contraposição.

Nos Estados Unidos, a imagem do “liberalismo” tinha perdido boa parte da sua credibilidade, no plano interno, por causa da “caça às bruxas” desencadeada pelo senador Joseph McCarthy (e, no plano internacional, por causa da política neocolonialista e intervencionista posta em prática, por exemplo, na Guatemala, em 1954, em São Domingos e no Vietnã). Na França, a imagem do “liberalismo” saíra gravemente danificada após a guerra colonialista que o governo francês travara, com imensa brutalidade, contra o povo argelino, até 1962. Em outros países da área capitalista ocidental, o prestígio dos princípios liberais achava-se ainda mais prejudicado que nos Estados Unidos ou na França. Motivo de especial constrangimento entre os defensores do capitalismo liberal na Europa era o fato de eles se verem levados a trabalhar com aliados como os regimes então vigentes em Portugal e em Espanha, sobreviventes do fascismo “clássico”.

Salazar, ministro das Finanças em 1928, primeiro-ministro em 1932, havia instituído em Portugal um regime fascista influenciado pelo “corporativismo” de Mussolini e pelo “austro-fascismo” do ditador Dolfuss (assassinado pelos hitleristas em Viena em 1934). Em 1936, quando o general Francisco Franco se insurgiu contra a República Espanhola, Salazar apoiou-o ativamente: voluntários fascistas portugueses – os “Viriatos” – lutaram na Espanha (6 mil deles morreram) ao lado dos falangistas, dos voluntários fascistas italianos e dos voluntários fascistas alemães contra os republicanos.

Franco, líder da insurreição de 1936, chegou ao poder graças a uma traição e se manteve nele graças a outra. Em 23 de junho de 1936, um mês antes de sublevar-se, Franco havia escrito ao presidente do Conselho de Ministros, Casares Quiroga, uma carta na qual proclamava sua fidelidade de soldado ao regime e assegurava: “Faltan a la verdad quienes presentan al Ejército como desafecto a la República”. Depois, acabou com a república, desencadeando uma guerra civil que afogou a Espanha em sangue (alegando: “no hay redención sin sangre”). Sem o apoio maciço que lhe deram Hitler e Mussolini, Franco não poderia ter vencido a guerra que moveu contra a república. Quando o marechal De Bono lhe entregou o colar da Ordem della Annunziata, que Mussolini lhe enviara, Franco agradecera, referindo-se a “la afinidad de nuestros credos” (outubro de 1941). E, quando, começada a guerra, Hitler o pressionara no sentido de ajudar os países do Eixo, seus protetores, Franco escreveu ao Fuehrer uma carta (26/2/1942) na qual dizia: “Estoy por completo a su lado, a su entera disposición y unido en un común destino histórico, cuya deserción significaría mi suicídio y el de la causa que he representado y conducido en España. No necesito reiterarle mi fe en el triunfo de su Causa, repitiendo que seré siempre un leal seguidor de la misma”.85 No entanto, apesar das palavras expressarem uma ardente solidariedade, o caudillo cometeu sua segunda grande traição: limitou-se a enviar um punhado de soldados espanhóis (a “Divisão Azul”) para lutarem na frente oriental, contra a União Soviética, sob o comando dos alemães. Mas se absteve, prudentemente, de entrar realmente na guerra.86

Terminada a guerra, em 1945, derrotados Hitler e Mussolini, Salazar e Franco puseram-se imediatamente a manobrar no sentido de assegurar a sobrevivência de seus respectivos regimes, aproveitando-se do fato de não se terem envolvido na guerra. Salazar rebatizou seu “Estado Novo” como “democracia orgânica”, dispôs-se a encenar a farsa de eleições políticas no seu país e conseguiu, em 1949, ingressar na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), recebendo ajuda estadunidense de mais de 50 milhões de dólares, então, através do Plano Marshall.87 Para Franco, as coisas não eram tão fáceis: por força de suas ligações com o Duce e o Fuehrer, ele se viu, no final da guerra, isolado e submetido a um bloqueio por parte da maioria dos países que integravam a ONU. Mas em outubro de 1950, os Estados Unidos conseguiram da ONU uma resolução que suspendia o bloqueio e, em setembro de 1953, firmaram com Franco um acordo que lhes permitiu construírem bases militares em território espanhol. Em abril de 1956, recebendo o ministro do Exterior da Espanha em Washington, John Foster Dulles elogiou a contribuição da Espanha para a defesa do mundo livre. Incentivado por tanta “compreensão”, Franco passou a sustentar: “En España no existe una dictadura” (entrevista com Hearst Jr., 1961). “Somos el baluarte más firme de todo Occidente” (Discurso de 28/5/1962). E: “Yo desafío a que nos presente un país tan solo en el mundo que pueda ofrecer una muestra más clara, más firme y más leal de la democracia” (Discurso de 17/9/1962).

A desenvoltura do caudillo só conseguia, porém, impressionar a extrema direita. Nos meios conservadores-liberais, ela causava certo constrangimento. E contribuía para desacreditar as abordagens do fascismo baseadas no conceito de “totalitarismo”.”

85 Citações extraídas de El pequeno libro pardo del general, ed. Ruedo Ibérico, Paris, 1972.

86 O que é interessante é ver como, depois dessas duas traições, o caudillo ainda é capaz de dizer, com absoluta tranquilidade: “todos sabéis de sobra como hevenido cumpliendo siempre mi palabra” (Discurso, 12/12/1966).

87 Em 27 de outubro de 1938, Salazar prestava homenagem ao “gênio político” de Mussolini (Discursos e notas políticas, vol. III, Coimbra Editora, p. 105). Antes disso, já havia dito às forças colonialistas portuguesas que, na África, tratassem de “organizar cada vez mais eficazmente e melhor a proteção das raças inferiores” (Discursos..., vol. I, p. 241). Durante os anos em que recebeu os dólares do Plano Marshall, foi mais discreto. Porém, mais tarde voltou a manifestar sua admiração pela obra “moralizadora” de Mussolini (Salazar, Jacques Ploncard D’Assac, ed. La Table Ronde, Paris, 1967).

 

 

“Paralelamente à interpretação do fascismo baseada na teoria do “totalitarismo”, desenvolviam-se, entre autores não marxistas, outras concepções, menos influentes, que aproveitavam, muitas vezes, velhas teses apresentadas para explicar o fascismo em sua época “clássica”. Por exemplo, Seymour Martin Lipset retoma88 de Rudolf Heberle uma visão do fascismo89 que Heberle, por sua vez, teria encontrado numa série de artigos que Paul Sering dedicara ao tema de 1935-1936,90 isto é, torna a lançar em circulação a ideia de que o fascismo (como, de maneira geral, todos os “extremismos”) seria uma expressão dos descontentes e dos psicologicamente desenraizados, das frustrações pessoais, dos seres socialmente isolados, dos economicamente inseguros, dos indivíduos incultos, estúpidos e autoritários das diversas classes e camadas da sociedade.

Entre a formulação original de Paul Sering (pseudônimo do social-democrata Richard Löwenthal) e a de Martin Lipset, entretanto, há uma diferença que não pode ser desprezada: Sering, como marxista, não viu na sua tese da “comunidade dos falidos” nenhum motivo para abandonar a discussão em torno da classe social que, em última análise, estaria por trás do fenômeno do fascismo. Em nenhum momento lhe passou pela cabeça “inocentar” o grande capital na gênese dos regimes de Hitler e de Mussolini. Martin Lipset, porém, segue outro caminho: reassume, juntamente com a ideia da “comunidade dos falidos”, a tese do caráter pequeno-burguês do fascismo. De acordo com o esquema proposto pelo sociólogo estadunidense, existiriam três tipos de movimentos extremistas de massas: o comunismo (apoiado no operariado), o autoritarismo tradicional (apoiado nas classes “altas”) e o fascismo (apoiado nas classes “médias”). O autoritarismo tradicional seria a verdadeira expressão do “extremismo de direita”: poderia ser encontrado no regime de Salazar, em Portugal, nos regimes de Horthy e Dolfuss, na Hungria e na Áustria, bem como nos movimentos monarquistas. No plano mundial, atualmente, o “extremismo de direita” não apresentaria, portanto, risco maior para a democracia representativa.

Implicitamente, Lipset propõe a mobilização dos “democratas” contra os movimentos “extremistas” das “classes médias” e do proletariado. O mínimo que se pode dizer desses valores “democráticos” é que eles são bem estranhos: representam uma “democracia” que se define numa atitude de acentuada desconfiança ante a esmagadora maioria da população (constituída pelo proletariado e pelas “classes médias”) e ignora a existência do grande capital, reduzindo a ação dos poderosos interesses conservadores atuantes em nossa sociedade à presença de uns tantos grupos passadistas insignificantes. A enfatização do “primarismo” da consciência das massas por Lipset sugere, aliás, que o sociólogo estadunidense apreciaria, mesmo, uma democracia sem povo... E esse ideal de uma democracia sem povo ainda aparece mais claramente em William Kornhauer, que combina ecleticamente a linha de Lipset, a teoria do “totalitarismo” e as velhas posições apaixonadamente antipopulares de Emil Lederer (The state of the masses, 1940), para concluir, afinal, que o fascismo, como todas as formas de “totalitarismo”, não passaria de um movimento das camadas inferiores da sociedade.91 Se as elites não se descuidassem e soubessem sempre controlar os impulsos “totalitários” vindos “de baixo”, a história não estaria pontilhada de episódios fascistas e/ou socialistas. Christian K. Werner explica a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em função da falta de energia repressiva do governo: “A República de Weimar caiu, afinal, porque era tolerante demais” (dass sie zu tolerant war).92

Ao lado do relançamento de teses como a do fascismo-comunidade-dos-falidos, ou como a do caráter pequeno-burguês do fascismo, ou como a do fascismo-insurreição-dos-plebeus ou revolta-da-classe-média, reativou-se, nos últimos tempos, o interesse por duas antigas interpretações do fascismo, desenvolvidas no final dos anos de 1920: pela tese do fascismo-militarismo e pela tese do fascismo-bonapartismo. A primeira foi formulada pela primeira vez, de maneira consequente, pelo crítico liberal M. J. Bonn, em 1928. Bonn encara o militarismo como um sistema político,93 que encarnaria, por sua própria natureza, a contraposição ao parlamentarismo,94 já que nesse último o bom funcionamento do sistema depende do debate e do confronto de posições diversas, ao passo que a disciplina essencial ao primeiro exige um rigoroso controle das controvérsias. Para Bonn, o fascismo, convencido de que a nação se acha em um período de crise aguda, exige a militarização da vida política e a supressão do parlamentarismo.

A observação é inegavelmente correta e ajuda a explicar um aspecto essencial da forma do fascismo: o regime fascista depende de um aparelho repressivo tão amplo que pressupõe, de fato, a militarização da atividade policial, e implica uma tendência interna ao policiamento militar de todos os aspectos significativos da vida do país. Não há fascismo sem apoio militar. Mas é impossível esclarecer os problemas do conteúdo a partir da forma. Por imprescindível que seja o apoio militar a um governo, seria insensato pretender ver nas Forças Armadas o suporte social capaz de manter o sistema em funcionamento. Uma sociedade pressupõe uma determinada estrutura, um determinado modo de produzir e consumir: as Forças Armadas não podem substituir as forças produtivas, nem podem ocupar o lugar de uma classe social na transformação das relações de produção. Um processo inflacionário, uma depressão econômica, uma crise no mercado não são problemas que possam ser resolvidos por deslocamentos de tropas. Como dizia Talleyrand, é possível conseguir muitas coisas com as baionetas, mas não é possível ficar sentado em cima delas. Os limites da concepção de M. J. Bonn (e de seus simpatizantes modernos) se acham no fato de que ela ignora sistematicamente a dependência em que se encontram os militares ante as classes sociais, quando se trata de encaminhar uma solução para os problemas da produção e da economia, em geral.

88 “Der ‘Faschismus’, die Linke, die Rechte und die Mitte”, artigo publicado no Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, 1959.

89 From democracy to nazism, Louisiana State University Press, 1945.

90 Cf. final do capítulo VIII da 2ª parte do presente livro.

91 The politics of mass society, W. Kornhauer, Londres, 1960. Uma boa refutação da tese de Kornhauer se encontra em Gesellschaftlich Ursprünge des faschismus, M. Clemenz, Frankfurt, 1972.

92 Rechts-links. Bemerkungen über den politischen Radikalismus in Deutschland, Bad Godesberg, 1963, p. 6.

93 Internationaler faschismus, C. Landauer, H. Honegger e outros, ed. Braun, Karlsruhe, 1928, p. 142.

94 Internationaler faschismus, op. cit., p. 137.

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