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sábado, 27 de novembro de 2021

O homem sem qualidades (Parte IV), de Robert Musil

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-276-5

Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 1248

Sinopse: Ver Parte I



“Nada é comido tão quente quanto se cozinhou; com o tempo, os mais intensos exageros, entregues a si mesmos, produzem um novo comedimento; não poderíamos nos sentar em nenhum trem, e na rua deveríamos ter sempre na mão uma pistola carregada, se não pudéssemos confiar na lei mediana que torna improváveis as possibilidades exageradas.”

 

 

“Quem hoje se atreve a concretizar ideias políticas básicas tem de ser um pouco especulador e um pouco criminoso!”

 

 

“Mas como, em comparação com a dor atual, a dor antiga parece um velho camarada inofensivo, hoje aquilo parecia apenas uma lembrança de camaradagem e intimidade.”

 

 

“Sem dúvida era um crente, apenas não acreditava em nada: sua maior devoção à ciência jamais conseguira fazê-lo esquecer que a beleza e bondade das pessoas vinha daquilo em que acreditavam, e não daquilo que sabiam. Mas a crença sempre estivera ligada ao saber, embora apenas como um saber imaginado, desde os primeiros dias de seu mágico nascimento. E essa antiga parcela de saber há muito apodreceu e levou consigo, na mesma decomposição, a crença: portanto, hoje é preciso reconstruir essa ligação. E naturalmente não só de maneira a levar a crença “às alturas do saber”, mas de modo a fazê-la sair voando daquelas alturas. A arte de erguer-se acima do saber tem de ser novamente exercitada. E como tal não é possível a um indivíduo, todos deveriam voltar seu sentido para isso, não importa onde o tenham posto.”

 

 

“— Sem dúvida é um hábito repelente da burguesia rica ver algo de diabólico nos loucos e criminosos.”

 

 

“A exigência ideal de amar ao próximo é seguida pelas pessoas reais em duas partes, a primeira dizendo que não suportamos os outros, a segunda querendo que se mantenham relações sexuais com uma metade deles.”

 

 

“Hoje em dia as pessoas só tinham amores sexuais: não suportamos nossos semelhantes, e no entrelaçamento dos sexos as pessoas se amam com crescente revolta contra a exagerada valorização desse impulso.”

 

 

“— Uma pessoa sozinha — respondeu diante da condescendente disposição da irmã de deixar tudo como estava — pode ter uma fraqueza: ela murcha e some no meio de suas outras qualidades. Mas quando duas pessoas dividem uma fraqueza, ela assume, em comparação com as qualidades que não lhes são comuns, um peso duplo, e aproxima-se de uma confissão voluntária.”

 

 

“— Provavelmente, nos anos da puberdade nosso amor por nós mesmos se modifica — disse, sem transições. — Pois aí ceifa-se um prado de ternura em que se brincara até então, para conseguir pasto para um determinado impulso.

— Para que a vaca dê leite! — completou Ágata logo depois, malcriada mas digna, e sem abrir os olhos.

— Sim, certamente tudo isso se liga entre si — disse Ulrich, e continuou: — Portanto, há um momento em que nossa vida perde quase toda a sua ternura, esta murcha, concentra-se naquele único exercício que então fica sobrecarregado. Não lhe parece também que por toda parte no mundo reina uma secura horrível, enquanto num só lugar chove sem parar?

Ágata disse:

— A mim me parece que amei minhas bonecas de menina com uma intensidade como nunca amei homem algum: quando você foi embora, encontrei no sótão uma caixa com velhas bonecas.

— E o que fez com elas? — perguntou Ulrich. — Deu de presente?

— A quem as poderia dar? Eu as joguei no fogo — disse ela.

Ulrich retrucou, vivamente:

— Quando lembro minha infância, posso dizer que naquele tempo “dentro” e “fora” mal se distinguiam um do outro. Quando eu rastejava em direção de alguma coisa, ela vinha ao meu encontro, voando; e quando acontecia alguma coisa que nos parecia importante, ela não só nos excitava, mas as próprias coisas começavam a ferver. Não afirmo que fôssemos mais felizes do que mais tarde. Ainda não nos possuíamos a nós mesmos; na verdade, ainda nem existíamos, nossos estados pessoais ainda não estavam separados do mundo com suficiente nitidez. Parece estranho, mas é verdade quando digo que nossos sentimentos, nossas vontades, nós mesmos, ainda não estávamos inteiramente em nós. Mais estranho é que eu também poderia dizer: ainda não estavam suficientemente distanciados de nós. Pois se hoje, quando pensa possuir a si mesma inteiramente, você por exceção perguntasse quem é na verdade, faria essa descoberta. Sempre se verá de fora, como a uma coisa. Notará que numa ocasião fica irada, noutra fica triste, assim como seu casaco uma vez está molhado, outra quente. Por mais que observe, quando muito conseguirá descobrir-se, nunca entrar em si mesma. Você fica fora de si própria, não importa o que faça, exceto naqueles poucos momentos em que se poderia dizer que está fora de si. Para compensar isso, quando adultos conseguimos poder pensar em todas as ocasiões, “eu sou”, caso isso nos divirta. Você vê um carro, e de alguma forma também vê, de um modo espectral: “Estou vendo o carro.” Você ama ou está triste, e vê que está amando ou sendo triste. Mas em sentido pleno, nem o carro nem sua tristeza ou seu amor nem você mesma estão ali inteiramente. Nada está mais inteiramente como esteve uma vez, na infância. Mas tudo o que você toca está congelado, até no seu interior mais remoto, assim que você chegou a ser uma “personalidade”, e o que sobrou, envolto por um ser totalmente exterior, é como um fantasmagórico fio de névoa da autoconsciência e de um tristonho amor-próprio. O que está errado nisso? Temos a sensação de que ainda se poderia voltar atrás! Não podemos afirmar que uma criança tenha experiências totalmente diferentes das de um homem. Não sei resposta definitiva a isso, embora possa haver vários pensamentos a respeito. Mas há muito respondi a isso perdendo o amor por esse tipo de eu e de mundo.”

 

 

“O pequeno feitiço continua igual a si mesmo, não importa se vemos uma mulher nua pela primeira vez, ou se vemos pela primeira vez uma menina de vestido fechado, e as grandes paixões desenfreadas ligam-se a isso, ao fato de que o ser humano imagina que seu mais secreto eu o espreita atrás das cortinas dos olhos alheios.”

 

 

“Tudo o que Ágata até aqui sentira, no breve tempo desde sua meninice, como fracasso seu diante das exigências da vida social, fora causado porque passara aquele tempo sem viver suas tendências mais íntimas, ou até vivendo contra elas. Eram tendências para entrega e confiança, pois jamais se sentira tão à vontade na solidão quanto o irmão; mas se até ali lhe fora impossível entregar-se com toda a alma a uma pessoa ou causa, era porque ela trazia em si a possibilidade de uma entrega maior, não importava se essa estendesse os braços para o mundo ou Deus! Um conhecido caminho para entregar-se a toda a humanidade é não suportarmos nosso vizinho, e da mesma forma pode surgir um oculto e fervoroso anseio por Deus quando um tipo associal foi provido de um grande amor: nesse sentido, o criminoso religioso não é um absurdo maior do que a velhota religiosa que não encontrou marido.”

 

 

“Ágata devia ter subido e caminhado assim cerca de uma hora, quando de repente se viu diante daquele bosquezinho de que se lembrava. Rodeou uma sepultura esquecida à beira da mata, onde há quase cem anos um poeta se suicidara e, segundo sua última vontade, fora também enterrado. Ulrich dissera que não tinha sido um bom poeta, embora famoso, e a poesia um tanto míope que se expressa no pedido ser enterrado num belvedere lhe provocara duras críticas. Mas Ágata gostava da inscrição na grande lápide, desde quando, num passeio, tinham decifrado juntos suas belas letras Biedermeier lavadas e apagadas pela chuva; e curvou-se sobre as correntes negras, feitas de elos graúdos e angulosos, que rodeavam o quadrado da morte isolando-o da vida.

“Eu não vos signifiquei nada”, mandara o poeta colocar em sua tumba, e Ágata pensou que o mesmo se podia dizer dela. Esse pensamento, à beira de um bosque, sobre os verdes vinhedos e a cidade estranha e imensurável que balouçava lentamente ao sol da manhã sua cauda de fumaça, comoveu-a mais uma vez. Ajoelhou-se sem pensar e encostou a testa numa das colunas de pedra que sustentavam as correntes; a posição inusitada e o toque frio da pedra imitavam a paz hirta e abúlica da morte que esperava por ela. Tentou concentrar-se. Mas não o conseguiu logo: em seu ouvido entravam cantos de pássaros, havia tantos sons diferentes que ela se surpreendeu; galhos moviam-se, e, como ela não notasse o vento, pareceu-lhe que as próprias árvores agitavam seus ramos; ouviram-se passinhos leves no súbito silêncio; a pedra que tocava, repousando sobre ela, era tão lisa como se houvesse entre ela e sua testa um pedaço de gelo impedindo um toque completo. Só algum tempo depois entendeu que naquilo que a distraía expressava-se exatamente o que queria perceber, aquele sentimento fundamental de ser supérflua; e, se o quisermos designar da maneira mais simples, devemos dizer que a vida seria tão completa sem Ágata que ela nada tinha a fazer ou procurar ali. Esse sentimento cruel no fundo não era desesperado nem magoado, apenas um ouvir e ver, como Ágata sempre fizera, mas sem nenhum impulso ou sequer a possibilidade de participar. Havia nessa exclusão quase uma sensação de abrigo, assim como há um espanto que esquece de fazer qualquer indagação. Daria no mesmo se ela fosse embora. Para onde? Devia haver um “onde”. Ágata não era dessas pessoas nas quais também a convicção da insignificância de todas as fantasias causasse satisfação semelhante à abstinência belicosa ou astuciosa com a qual aceitamos nosso insatisfatório destino. Ela era generosa e espontânea nesses assuntos, não como Ulrich que causava as maiores dificuldades às suas emoções para proibir-se de tê-las, se não suportassem a prova. É que ela era tola! Sim, dizia isso a si mesma. Não queria refletir! Obstinada, premiu a testa baixada contra as correntes de ferro que cederam um pouco e depois resistiram, esticadas. Nas últimas semanas ela começara a acreditar novamente em Deus, de alguma forma, mas sem pensar nele. Certos estados em que o mundo sempre lhe parecera diferente do que parecia ser, como se ela não vivesse mais excluída mas mergulhada numa radiante convicção, tinham sido levados por Ulrich à beira de uma metamorfose interior e de uma transformação completa. Ela teria sido livre, disposta a imaginar um Deus que abre seu mundo como quem abre um esconderijo. Mas Ulrich dizia que não era preciso, quando muito faria mal imaginar mais do que se podia experimentar. E decidir isso era assunto para ele. Mas então, teria de guiá-la, sem a abandonar. Ele era a soleira entre duas vidas, e toda a nostalgia que ela sentia por uma delas, e toda a fuga da outra, levava primeiro a ele. Ela o amava na maneira despudorada com que se ama a vida. De manhã, ele despertava em todos os membros dela, quando abria os olhos. Também agora fitava-a do escuro espelho da sua dor: e só então Ágata lembrou outra vez que queria se matar. Tinha a sensação de ter fugido de casa por birra, em direção de Deus, quando saíra com o propósito de se matar. Mas o propósito agora devia ter-se esgotado, voltando à sua origem, que era ter sido magoada por Ulrich. Estava zangada com ele, ainda sentia isso, mas os pássaros cantavam e ela voltou a escutá-los. Estava tão confusa como antes, mas agora de uma confusão alegre. Queria fazer alguma coisa que atingisse a Ulrich, não apenas a ela. A rigidez infinita em que estivera ali ajoelhada cedeu ao calor do sangue que lhe jorrava vivo nas veias enquanto se levantava do chão.”

 

 

“O inferno não é interessante, é terrível. Quando não o humanizamos — como Dante, que o povoou com literatos e pessoas importantes, e com isso desviou a atenção das técnicas de punição —, mas tentamos dar uma visão original dele, mesmo as pessoas mais fantasiosas não conseguem superar os pueris tormentos e pobres deformações das qualidades terrestres. Mas exatamente o vazio pensamento da punição e tormento inimagináveis e por isso inevitáveis, e infinitos, a pressuposição de uma transformação, insensível a todos os esforços contrários, em direção do mal, tem a atração de um abismo. Assim são também as casas de loucos. São asilos de pobres. Têm algo da falta de imaginação do inferno. Mas muitas pessoas, que não sabem das causas das enfermidades mentais, não receiam nenhuma possibilidade tanto quanto a de perder a razão um dia, exceto a de perderem seu dinheiro; e é singular quantas pessoas sentem isso, torturadas pela ideia de um dia poderem se perder de repente. Pela supervalorização do que pensam de si mesmas segue provavelmente a supervalorização do horror que os sadios imaginam habitar os asilos dos enfermos.”

 

 

“Sua Alteza não considerava as outras pessoas tolas, embora se julgasse mais inteligente que elas.”

 

 

“O conde Leinsdorf perguntou:

— Diga, quem é afinal esse Feuermaul?

— Seu pai tem várias empresas na Hungria — respondeu Ulrich. — Acho que alguma coisa ligada a fósforo, na qual nenhum operário chega a mais de quarenta anos. Doença profissional: necrose óssea.

— Sim, mas e o rapaz? — O destino dos operários não atingia o conde.

— Ele devia ter estudado. Direito, eu acho. O pai é um self-made-man e ficou aborrecido porque o rapaz não tinha vontade de estudar.

— Por que não teve vontade de estudar? — perguntou o conde Leinsdorf, que naquele dia estava muito minucioso.

— Santo Deus — disse Ulrich dando de ombros —, provavelmente: “Pais e filhos.” Quando o pai é pobre, os filhos amam o dinheiro; quando papai tem dinheiro, os filhos voltam a amar a humanidade. Vossa Alteza ainda não ouviu falar do problema do filho em nosso tempo?

— Sim, ouvi alguma coisa. Mas por que Arnheim protege esse Feuermaul? Isso tem ligação com as jazidas de petróleo? — perguntou o conde Leinsdorf.

— Vossa Alteza sabe disso? — exclamou Ulrich.

— Claro, sei de tudo — respondeu Leinsdorf pacientemente.”

 

 

“O que distingue um homem sadio de um doente mental é exatamente que o sadio tem todas as doenças mentais, e o enfermo apenas uma!”

 

 

“É sabidamente um grande alívio, quando nos aborrecemos, aliviarmos nossa raiva em alguém, ainda que essa pessoa não tenha nenhuma culpa; só que de hábito se esquece isso quando se trata do amor. Porém é a mesma coisa, e o amor muitas vezes tem de ser aliviado em alguém que não tem culpa nenhuma, caso não encontre outra oportunidade de se expandir.”

 

 

“Desde as inspirações do homem fora do comum até o kitsch que une os povos, aquilo que Ulrich chamava fantasia moral ou simplesmente sentimento, formava uma única e secular fermentação sem escapamentos. O ser humano não consegue viver sem entusiasmo. Entusiasmo é o estado no qual todos os seus sentimentos e pensamentos têm o mesmo espírito. Você pensa, quase que pelo contrário, que o entusiasmo é o estado em que um sentimento é demasiado forte, um só, que — o arrebatamento! — arrebata os demais? Não, você não quis dizer nada a respeito? Mesmo assim, é isso. Também é isso. Mas a força desse entusiasmo é insopitável. Sentimentos e pensamentos ganham continuidade uns pelos outros, como um todo, precisam de certa forma seguir na mesma direção, arrebatar-se mutuamente. E com todos os meios, drogas, fantasias, sugestão, fé, convicção, muitas vezes apenas com ajuda do efeito simplificado da burrice, cada ser humano trata de criar um estado parecido com isso. Acredita em ideias, não porque às vezes sejam verdadeiras, mas porque precisa acreditar. Porque precisa manter seus afetos em ordem. Através de uma ilusão, deve tapar o buraco entre as paredes de sua vida, pelo qual, de outro modo, seus sentimentos voariam aos quatro ventos. O correto seria provavelmente, em vez de entregar-se a estados aparentes efêmeros, procurar pelo menos as condições de um verdadeiro entusiasmo. Mas, embora no total o número de decisões que dependem do sentimento seja infinitamente maior do que aquelas que se realizam com a pura sensatez, e todos os acontecimentos que movem a humanidade nasçam da fantasia, só as questões racionais são ordenadas de maneira suprapessoal, e para o resto nada foi feito que mereça o nome de esforço comum, ou que ao menos revele sua desesperada necessidade.”

 

 

““É preciso ser duro como um diamante e terno como uma mãe!”, pensou, evocando uma velha definição do século XVII.”

 

 

“Dedica uma parcela de tua solidão à serena reflexão sobre teu próximo, principalmente se não concordas com ele: talvez venhas então a entender e usar melhor o que te causa repulsa, e aprendas a poupá-lo na fraqueza e a encorajá-lo na virtude que possivelmente está apenas intimidada!”

 

 

“Só posso concluir que temos de ser como queremos que sejam nossos filhos!” (Matthias Claudius)

 

 

“Ele teve ocasião de falar do paradoxo melindroso e por muitos repudiado de que qualquer compreensão pressupõe uma certa superficialidade, uma tendência à superfície, que, no mais, se expressava na palavra “compreender”, pois as experiências originárias não se entendiam isoladas, mas uma pela outra, sendo, portanto, inevitável que se entrelaçassem mais na superfície que na profundidade.”

 

 

“Mudando um provérbio, talvez se possa dizer que uma consciência pesada é quase um melhor travesseiro que a tranquila, basta que seja pesada o bastante.”

 

 

“— As duas contradições estão sempre presentes e formam uma quadriga: amamos uma pessoa porque a conhecemos e porque não a conhecemos; e a conhecemos porque a amamos, e não a conhecemos porque a amamos. E isso por vezes atinge um ponto em que se torna bastante sensível. São os famosos momentos em que Vênus e Apolo veem um gancho vazio ao se fitarem, ficando profundamente admirados por terem antes visto outra coisa. Se o amor continua mais forte que o espanto, vai haver uma luta entre estes dois, e às vezes o amor sai vencedor, embora desesperado, esgotado e incuravelmente ferido. Se ele, porém, não for tão forte, haverá uma luta entre as pessoas, ofensas, para compensar ter-se bancado o bobo... haverá terríveis assaltos da realidade... desonras extremas... — Já passara por esses temporais do amor com bastante frequência para poder descrevê-los calmamente.”

 

 

“— Até no pensamento, onde tudo está num contexto lógico e objetivo — prosseguiu Ulrich —, em geral só aceitamos plenamente a convicção superior de outra pessoa quando também nos submetemos a ela de alguma forma, seja como modelo e guia, seja como amigo ou mestre. Sem esse sentimento, que não tem nada a ver com a coisa, só aceitamos a opinião alheia com a ressalva implícita de que nós mesmos seremos melhores guardiães dela que o próprio autor; isso quando não temos a intenção de mostrar ao sujeitinho a insuspeitada importância de sua ideia! E na arte, então, a maioria das pessoas sabe muito bem que seria impossível produzirmos nós mesmos aquilo que lemos, vemos e ouvimos; mas temos a consciência condescendente de que, se soubéssemos fazer, faríamos logo muito melhor! Talvez tenha de ser assim, e isso faça parte da natureza ativa do espírito, que não podemos encher como uma panela vazia — concluiu Ulrich —, mas que é atuante ao apreender, tendo deveras de a-prender.”

 

 

“O amor tem o efeito benéfico de fazer-nos cegos! — retrucou Ulrich. — O amor ofusca: essa simples frase contém a metade dos enigmas do amor ao próximo, que nos propusemos!

— Pode-se, no máximo, acrescentar ainda que o amor também faz ver o que não existe — afirmou Ágata, concluindo, pensativa: — No fundo, essas duas frases contêm tudo de que precisamos no mundo, para, apesar dele, sermos felizes!”

 

 

“Será que amamos uma coisa porque é bela, ou ela fica bela por ser amada.”

 

 

“Ulrich parecia ter se desviado, mas prosseguiu nessa direção: “Pelo visto, é essa a razão por que eu hoje tenho de anotar: a história, os acontecimentos, até a arte, surgem... de uma falta de felicidade. Mas tal falta não deriva das circunstâncias que nos impediriam de atingir a felicidade, e sim de nosso próprio sentimento. Este constitui a viga cruzada da dupla qualidade: não tolera qualquer outro a seu lado e não é ele próprio persistente. Dessa forma, tudo a que ele está ligado ganha a aparência de validade eterna, e, apesar disso, todos nós procuramos abandonar as criações de nosso sentimento e mudar as opiniões que neles se expressam. Pois um sentimento se transforma a partir do momento em que perdura; não possui constância e identidade; precisa ser consumado de novo. Sentimentos não são apenas mutáveis e inconstantes — como, aliás, são considerados —, mas tornar-se-iam cabalmente assim no momento exato em que deixassem de sê-lo. Tornam-se falsos quando duram. Precisam surgir sempre de novo, caso devam permanecer, e, mesmo assim, serão outros. Uma ira que durasse cinco dias não seria mais ira, mas perturbação mental; ela se transforma em perdão ou disposição para a vingança, e algo de semelhante acontece com todos os sentimentos.

Nosso sentimento procura esteio naquilo que configura, e por um tempo sempre o acha. Mas Ágata e eu sentimos no que nos rodeia o temor oculto, a tendência centrífuga do que se encontra junto, o desdito no dito, a peregrinação das paredes supostamente firmes; vemos e ouvimos isso de repente. Parece-nos uma aventura e duvidosa companhia viver ‘uma época’. Encontramo-nos na floresta mágica. E embora ainda não abarquemos e mal conheçamos ‘nosso’ sentimento, esse sentimento diferente, temos medo por ele e gostaríamos de retê-lo. Mas, como reter um sentimento? Como seria possível permanecer no mais alto degrau da felicidade, caso se consiga atingi-lo? No fundo, essa é a única questão que nos ocupa. Temos o pressentimento de um sentimento que escapa à efemeridade dos restantes. Encontra-se na corrente frente a nós como uma maravilhosa sombra imóvel. Mas, para perdurar, não teria de deter a marcha do mundo? Chego à conclusão de que não pode ser um sentimento no mesmo sentido dos outros.”

E, de repente, Ulrich concluía: “Volto assim à questão: o amor é um sentimento? Creio que não. O amor é um êxtase. E para amar perenemente o mundo, para poder abarcar também o passado com o amor do Deus-Artista, o próprio Deus precisaria ficar num êxtase constante. Só como tal seria concebível...””

 

 

“É própria dos sentimentos a tentativa enérgica e muitas vezes apaixonada de transformar os estímulos aos quais devem sua aparição, e de eliminá-los ou favorecê-los; e as direções principais da existência são para fora e de fora. Por isso, a ira traz em si o contra-ataque, o anseio a aproximação, e o medo a transição para fuga, paralisia ou, situado entre ambas, o grito. Mas também a reação desse comportamento ativo imprime ao sentimento boa parte das particularidades e do conteúdo que o caracterizam; a conhecida frase de um psicólogo americano, segundo a qual ‘não choramos porque estamos tristes, mas estamos tristes porque choramos’, pode ser exagerada; é certo, porém, que não apenas agimos como sentimos, mas também logo aprendemos a sentir conforme nossos atos, sejam quais forem seus motivos.

Um conhecido exemplo para esse vaivém é a briga de cães que começa como alegre brincadeira e termina num duelo sangrento, mas o mesmo pode ser igualmente observado em crianças e pessoas simples. E toda a bela teatralidade da vida não consiste afinal num grande exemplo disso, com seus gestos, meio a sério, meio vazios, de honra e honraria, de ameaça, gentileza, contenção e tudo o mais, gestos de querer representar alguma coisa e de representação, que descartam o juízo e influenciam diretamente o sentimento? Até a ‘disciplina’ faz parte disso, baseando-se no efeito de impor por longo tempo um comportamento, para que suscite afinal o sentimento que deveria originá-lo.”

“Mais importante que a repercussão dos atos é, tanto nesses como em outros exemplos, o fato de uma vivência mudar de significado quando, em seu decurso, passa, do âmbito das forças características que de início a conduziam, para o de outras ligações da alma. Pois do lado de dentro ocorre algo de semelhante ao exterior. O sentimento preme para dentro; ele ‘toma inteiramente a pessoa’, como se diz, não sem acerto; afasta o que não se conforma a ele e favorece o que pode lhe servir de alimento. Num tratado de psiquiatria, eu li estranhas denominações para isso: ‘força de comutação’ e ‘trabalho de comutação’. Ao mesmo tempo, o sentimento estimula o interior a voltar-se para ele. A disponibilidade interna, na medida em que não se exauriu no primeiro momento, preme pouco a pouco em sua direção; e assim que captura forças maiores, armazenadas em pensamentos, lembranças, princípios etc., o sentimento também é inteiramente capturado por elas, e elas o transformam de tal modo que fica difícil dizer quem se apossa de quem.

Mas, uma vez atingido seu ápice por intermédio de tais processos, são eles que vão novamente enfraquecer e diluir o sentimento. Pois outros sentimentos e vivências, que não mais se submetem integralmente a ele, irão então cruzar sua esfera e, por fim, até mesmo desalojá-lo. Na verdade, esse curso contrário, ligado à satisfação e ao desgaste, começa com a própria aparição do sentimento; pois sua expansão não significa apenas um aumento de seu poder, mas ao mesmo tempo também um arrefecimento das necessidades das quais ele se origina ou se serve.

Isso deve igualmente ser levado em conta com relação aos atos; pois o sentimento não apenas se exalta, mas também se arrefece na ação; e sua saturação, quando não é perturbada por outro sentimento, prossegue até o fastio, quer dizer, até o ponto em que surge novo sentimento.”

“É preciso mencionar especialmente uma coisa. Enquanto subjuga o interior, o sentimento entra também em contato com atividades que colaboram para a vivência e a compreensão do mundo exterior; e assim, o mundo, como nós o entendemos, acabará em parte padronizado segundo o modelo e sentido do próprio sentimento, que procura se fortalecer por intermédio desses ecos. Os exemplos são conhecidos: quando sentimos intensamente, ficamos cegos para o que pessoas imparciais percebem, e percebemos o que outros não veem. A pessoa triste vê as coisas pretas e despreza o que poderia iluminá-las; a alegre vê o mundo iluminado e é incapaz de perceber algo que perturbe esse quadro; quem ama ganha a confiança das piores pessoas; e o desconfiado não apenas vê sua desconfiança confirmada em toda parte, mas as confirmações chegam a desabar sobre ele. Dessa maneira, atingindo certa força e duração, cada sentimento constrói seu próprio mundo, um mundo selecionado e cheio de conexões, o que não é de somenos importância nas relações humanas! Nisso se incluem nossa notória inconstância e nossas arbitrariedades”.”

 

 

“Sendo fluxo constante, os sentimentos não se deixam deter; não se deixam, portanto, ‘examinar detidamente’; quer dizer, quanto mais precisamente os observamos, tanto menos sabemos o que sentimos. A atenção já é uma modificação do sentimento. Todavia, se eles fossem uma ‘mistura’, esta deveria na verdade apresentar a maior nitidez no momento de parada, embora a atenção se intrometa.”

 

 

“Nesse momento, havia algo em seu rosto que teria feito sua falecida mãe recordar o menino no qual ela toda manhã dava um grande laço bonito embaixo do queixo, antes de ele ir para a escola; poderíamos designar esse algo como falta total de brutalidade masculina. Essa lacuna torna impossível um garoto viver entre outros garotos. O corpo comprido, grande, mas sem forças, de perninhas finas, parecia uma lança com a cabeça espetada em cima, boiando sobre a arena ensurdecedora dos colegas de escola, que troçavam daquele laço dado por mão materna; e, em pesadelos, o professor Lindner ainda hoje se via por vezes nessa situação, sofrendo pelo bem, pelo belo, pelo verdadeiro. Mas, exatamente por isso, ele nunca confessava ser a brutalidade uma qualidade indispensável ao homem, comparável ao cascalho que é misturado à argamassa para dar-lhe solidez; e, principalmente depois que se transformara no homem que se orgulhava de ser, via naquela antiga lacuna uma confirmação de que nascera para melhorar o mundo, mesmo que em escala modesta. Bem, mas hoje já estamos acostumados com a explicação de que os grandes oradores surgem por problemas da fala e os heróis pela fraqueza, com outras palavras, que nossa natureza sempre precisa abrir um buraco quando quer que ergamos uma montanha acima dele; e como os semi-ignorantes e semisselvagens que, predominantemente, determinam o curso da vida quase que veem em cada gago um Demóstenes, fica mais fácil ainda considerar como sinal de bom gosto espiritual quando alguém declara que o mais importante em Demóstenes é sua gagueira inicial. Todavia, ainda não se conseguiu atribuir as façanhas de Hércules ao fato de que ele tenha sido uma criança franzina, ou os recordes em corrida e salto a um pé chato, ou ainda a coragem a um caráter medroso, sendo, portanto, necessário convir que um talento especial requer algo mais que a própria falta!”

 

 

“Um homem firme jamais fará seu próprio comportamento depender do comportamento alheio.”

 

 

“As obras do sentimento definham quando a experiência amorosa imediata não torna a revigorá-las.”

 

 

“É sobretudo a evolução em direção ao sentimento definido o que acarreta a inconstância e fragilidade da vida psíquica. Que não possamos reter o instante em que sentimos; que os sentimentos murchem, mais rápidos que as flores, ou se transformem em flores de papel quando pretendem perdurar; que a felicidade e a vontade, a arte e o ideário sejam passageiros — tudo isso decorre do caráter definido do sentimento, que lhe imprime um destino e o empurra para dentro do curso da vida, onde será dissolvido ou modificado. O sentimento que se mantém sem definições e limites é, pelo contrário, relativamente imutável. Veio-lhe uma comparação: “Um morre, como um indivíduo, o outro permanece, como uma espécie ou gênero.” Quem sabe se, de fato, mesmo que indiretamente, não se reproduz assim na disposição do sentimento numa disposição geral da vida.”

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