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sexta-feira, 14 de maio de 2021

Para entender O Capital: Livro I (Parte IV), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-322-6

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 336

Sinopse: Ver Parte I


 

Uma produtividade crescente do trabalho (um valor crescente da composição do capital) tem implicações para a demanda de trabalho.

Como a demanda de trabalho não é determinada pelo volume do capital total, mas por sua componente variável, ela decresce progressivamente com o crescimento do capital total, em vez de, como pressupomos anteriormente, crescer na mesma proporção dele. Essa demanda diminui em relação à grandeza do capital total e em progressão acelerada com o crescimento dessa grandeza. Ao aumentar o capital global, também aumenta, na verdade, sua componente variável, ou seja, a força de trabalho nele incorporada, porém em proporção cada vez menor. (704-5)

Isso significa que a acumulação capitalista “produz constantemente, e na proporção de sua energia e seu volume, uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do capital e, portanto, supérflua” (705). Ela faz isso por meio de processos que hoje chamamos downsizing. “Assim, com a acumulação do capital produzida por ela mesma, a população trabalhadora produz, em volume crescente, os meios que a tornam relativamente supranumerária. Essa lei de população é peculiar ao modo de produção capitalista” (706-7). Mais uma vez, o tema da produção das condições de nossa própria dominação surge como suprema ironia.

A menção a uma “lei da população” põe Marx contra Malthus, que, a julgar pelas notas de rodapé, está longe de ser o teórico favorito de Marx e cuja teoria universal da população e da superpopulação exigia uma refutação. “Cada modo de produção particular na história”, escreve Marx, “tem suas leis de população particulares, historicamente válidas. Uma lei abstrata de população só é válida para as plantas e os animais e, ainda assim, apenas enquanto o ser humano não interfere historicamente nesses domínios” (707). A objeção de Marx a Malthus é que este naturaliza o desemprego e a criação da pobreza, transformando-os em simples relação entre o aumento da população e a demanda de recursos. Marx não considera que o crescimento da população seja irrelevante ou mesmo um fator neutro em relação à acumulação do capital; de fato, há muitas passagens em outros lugares nas quais ele trata o forte crescimento populacional como uma precondição necessária para uma acumulação sustentada. Sua objeção fundamental é à tese de que a pobreza é produzida por uma classe trabalhadora que reproduz a si mesma em número demasiado grande (tese que culpa a vítima). A preocupação de Marx é mostrar que o capitalismo produz pobreza, independentemente do estado ou da taxa de crescimento da população. Ele prova que Mandeville estava certo quando disse que os pobres estão e sempre estarão entre nós no modo de produção capitalista, mas, contra Mandeville, mostra como e por que isso acontece.

O capitalismo produz pobreza criando um excedente relativo de trabalhadores por meio do uso de tecnologias que eliminam postos de trabalho. Uma massa permanente de trabalhadores desempregados é socialmente necessária para que a acumulação continue a se expandir.

Mas, se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. (707)

Não é, portanto, a tecnologia em si a principal alavanca da acumulação, mas a massa de trabalhadores excedentes que ela faz surgir. “Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional” (707).

Normalmente, o exército industrial de reserva é colocado na produção e, em seguida, retirado em movimentos alternados, criando um movimento cíclico no mercado de trabalho. “Por sua vez, as oscilações do ciclo industrial conduzem ao recrutamento da superpopulação e, com isso, convertem-se num dos mais enérgicos agentes de sua reprodução” (708). Marx descreve o:

simples processo que “libera” constantemente uma parte dos trabalhadores, por métodos que reduzem o número de trabalhadores ocupados em relação à produção aumentada. Toda forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada. (708)

“Uma vez consolidada esta forma, até mesmo a economia política compreende que produzir uma população excedente relativa, isto é, excedente em relação à necessidade média de valorização do capital, é uma condição vital da indústria moderna” (709). Malthus, por exemplo, “reconhece na superpopulação [...] uma necessidade da indústria moderna”, mas não vê que “à produção capitalista não basta de modo algum a quantidade de força de trabalho disponível fornecida pelo crescimento natural da população. Ela necessita, para assegurar sua liberdade de ação, de um exército industrial de reserva independente dessa barreira natural” (710).”

“O sobretrabalho da parte ocupada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de sua reserva, ao mesmo tempo que, inversamente, esta última exerce, mediante sua concorrência, uma pressão aumentada sobre a primeira, forçando-a ao sobretrabalho e à submissão aos ditames do capital.” Isso se torna um notável “meio de enriquecimento do capitalista individual” (711-2). O impacto sobre os salários é também significativo. “Grosso modo, os movimentos gerais do salário são regulados exclusivamente pela expansão e contração do exército industrial de reserva” (712). Os movimentos do salário são regidos pela acumulação do capital. Isso contradiz a visão comum de que o ritmo de acumulação do capital é regulado pelas flutuações das taxas salariais, causadas pelo aumento populacional ou, segundo a retórica contemporânea, por sindicados gananciosos. O “dogma econômico” era que “o incremento do salário estimula um aumento mais rápido da população trabalhadora, aumento que prossegue até que o mercado de trabalho esteja supersaturado, ou seja, até que o capital se torne insuficiente em relação à oferta de trabalho” (713).

O modelo de Marx sugere que, onde quer que enfrente problemas de oferta de trabalho, a acumulação do capital expulsa as pessoas de seus postos de trabalho, recorrendo a inovações tecnológicas e organizacionais, e o resultado é a queda dos salários abaixo de seu valor ou o aumento da jornada e da intensidade de trabalho para aqueles que permanecem empregados.

Nos períodos de estagnação e prosperidade média, o exército industrial de reserva pressiona o exército ativo de trabalhadores; nos períodos de superprodução e paroxismo, ele barra suas pretensões. A superpopulação relativa é, assim, o pano de fundo sobre o qual se move a lei da oferta e da demanda de trabalho. Ela reduz o campo de ação dessa lei a limites absolutamente condizentes com a avidez de exploração e a mania de dominação próprias do capital. (714-5)

Temos, assim, que “o mecanismo da produção capitalista vela para que o aumento absoluto de capital não seja acompanhado de um aumento correspondente da demanda geral de trabalho” (715). Isso provoca “proezas da apologética econômica” para justificar tais práticas quando atuam tão claramente em detrimento das classes trabalhadoras (715). A única coisa que os apologistas podem fazer é ver a “miséria”, os “sofrimentos” e a “possível morte dos trabalhadores deslocados durante o período de transição, que os expulsa para as fileiras do exército industrial de reserva”, como um sacrifício breve e necessário pelo bem maior e mais duradouro de tudo que podemos conseguir com a acumulação progressiva do capital. Mas a realidade é bem mais sinistra.

A demanda de trabalho não é idêntica ao crescimento do capital, e a oferta de trabalho não é idêntica ao crescimento da classe trabalhadora, como se fossem duas potências independentes a se influenciar mutuamente. Les dés sont pipés [os dados estão viciados]. O capital age sobre os dois lados ao mesmo tempo. (715)

Quer dizer, o capital cria a demanda para o trabalho quando reinveste, mas também pode administrar a oferta de trabalho mediante reinvestimentos em tecnologias que poupam trabalho e produzem desemprego. Essa capacidade de operar dos dois lados da equação de oferta e demanda contradiz totalmente o modo como os mercados deveriam funcionar.

Como aconteceu no caso da maquinaria, os trabalhadores logo desvendam

o mistério de como é possível que, na mesma medida em que trabalham mais, produzam mais riqueza alheia, de como a força produtiva de seu trabalho pode aumentar ao mesmo tempo que sua função como meio de valorização do capital se torna cada vez mais precária para eles; tão logo descobrem que o grau de intensidade da concorrência entre eles mesmos depende inteiramente da pressão exercida pela superpopulação relativa; tão logo, portanto, procuram organizar, mediante trades unions [surpreendentemente, esta é a única vez em que esse termo é usado n’O capital] etc., uma cooperação planificada entre os empregados e os desempregados com o objetivo de eliminar ou amenizar as consequências ruinosas que aquela lei natural da produção capitalista acarreta para sua classe, o capital e seu sicofanta, o economista político, clamam contra a violação da “eterna” e, por assim dizer, “sagrada” lei da oferta e da demanda. (715-6)

Numa situação em que as regras do mercado são subvertidas pela capacidade do capital de regular tanto a oferta quanto a demanda de força de trabalho, as tentativas dos trabalhadores de se organizar para proteger seus interesses coletivos são furiosamente condenadas por infringir as regras do mercado!”

 

 

Os capítulos 24 e 25 d’O capital apresentam uma nítida mudança de tom, conteúdo e método. Para começar, eles vão de encontro ao pressuposto central do resto do livro, estabelecido no capítulo 2, em que Marx aceita o mundo teórico de Adam Smith de trocas atomísticas realizadas no mercado; nesse mundo, a liberdade, a igualdade, a propriedade e Bentham reinam de tal modo que todas as trocas de mercadoria ocorrem num ambiente não coercitivo de instituições liberais em perfeito funcionamento. Smith sabia perfeitamente bem que esse não é o modo como o mundo realmente funciona, mas aceitou-o como uma ficção conveniente e convincente sobre a qual ele podia erigir uma teoria econômico-política normativa. Marx, como vimos, leva tudo isso em conta para desconstruir seu utopismo.

Usando desse estratagema, Marx foi capaz de mostrar, como vimos no último capítulo, que, quanto mais próximos estivermos de um regime de mercado livre, mais nos veremos confrontados com duas importantes consequências. A menor delas é que a estrutura descentralizada, fragmentada e atomística que evitaria que um poder singular dominasse e manipulasse o mercado dá lugar a um poder capitalista cada vez mais centralizado. A concorrência tende sempre a produzir monopólio e, quanto mais feroz a concorrência, mais rápida é a tendência à centralização. A maior das consequências é a produção, de um lado, de imensas concentrações de riquezas (em particular da parte dos capitalistas centralizadores) e, de outro, de uma crescente miséria, exploração e degradação da classe trabalhadora.

O projeto neoliberal dos últimos trinta anos, fundado no utopismo liberal, confirmou as duas tendências previstas por Marx. É claro que, nos detalhes, há uma grande dose de divergência, tanto geográfica quanto setorial, mas o grau de centralização do capital que ocorreu em várias esferas foi avassalador, e há um reconhecimento geral de que as imensas concentrações de riqueza que ocorreram no ponto mais alto da escala de riqueza e renda jamais foram tão grandes como agora, enquanto as condições de vida das classes trabalhadoras do mundo inteiro estagnaram ou se deterioraram. Nos Estados Unidos, por exemplo, a proporção da renda e da riqueza concentradas nas mãos do 1% mais rico da população dobrou nos últimos vinte anos, e a do 0,1% mais rico triplicou. A proporção de renda entre os diretores executivos e os trabalhadores assalariados médios, que era de 30:1 nos anos 1970, passou para mais de 350:1 em média nos últimos anos. Onde quer que a neoliberalização tenha sido desenfreada (como no México e na Índia a partir dos anos 1990), novos bilionários entraram para a lista da Forbes das pessoas mais ricas do mundo. O mexicano Carlos Slim é hoje uma das pessoas mais ricas do mundo, e ele alcançou essa posição na esteira da neoliberalização que ocorreu no México no início dos anos 1990.

Marx chegou a essas conclusões contraintuitivas desconstruindo, em seus próprios termos, as teses dos economistas políticos clássicos. Mas também usou criticamente suas poderosas abstrações para penetrar a dinâmica real do capitalismo e revelar as origens das lutas em torno da duração da jornada de trabalho, das condições de vida do exército industrial de reserva e coisas do gênero. A análise do Livro I pode ser lida como um relato sofisticado e condenatório de que “não há nada mais desigual do que tratar desiguais como iguais”. A ideologia da liberdade de troca e da liberdade de contrato nos ludibria a todos. Fundamenta a superioridade e a hegemonia moral da teoria política burguesa e sustenta sua legitimidade e seu suposto humanismo. Mas, quando as pessoas entram nesse mundo livre e igualitário das trocas mercantis com dotes e recursos diferentes, mesmo a menor desigualdade, para não falar da divisão fundamental da posição de classe, aprofunda-se e transforma-se com o tempo em enormes desigualdades de influência, riqueza e poder. E isso, quando somado a uma centralização crescente, contribui para a inversão devastadora de Marx da visão smithiana do “benefício de todos” que deriva da mão invisível do mercado. Isso esclarece o conteúdo de classe daquilo que, por exemplo, caracterizou os últimos trinta anos de globalização neoliberal. O resultado em Marx é uma crítica feroz das teses da liberdade individual que fundamentam a teoria liberal e neoliberal. Esses ideais são, na visão de Marx, tão enganadores, fictícios e fraudulentos quanto sedutores e cativantes. Os trabalhadores, como observa ele, são livres apenas no duplo sentido de ser capazes de vender sua força de trabalho para quem quiserem, ao mesmo tempo que são obrigados a vender essa força de trabalho para viver, porque foram libertados e liberados de todo e qualquer controle sobre os meios de produção!

O que os capítulos 24 e 25 d’O capital fazem é analisar como esse segundo tipo de “liberdade” foi assegurado. Somos obrigados a enfrentar o uso predatório, violento e abusivo do poder que se encontra nas origens históricas do capitalismo, quando ele liberou a força de trabalho como uma mercadoria e eliminou o modo de produção anterior. Os pressupostos que dominaram o argumento em todos os capítulos anteriores d’O capital são abandonados com consequências brutais.

O capitalismo, como vimos, depende fundamentalmente de uma mercadoria capaz de produzir mais valor do que aquele que ela tem, e essa mercadoria é a força de trabalho. Como Marx observa numa passagem d’O capital:

A pergunta sobre por que esse trabalhador livre se confronta com ele na esfera da circulação não interessa ao possuidor de dinheiro, que encontra o mercado de trabalho como uma seção particular do mercado de mercadorias. E, no presente momento, ela tampouco tem interesse para nós. Ocupamo-nos da questão teoricamente, assim como o possuidor de dinheiro ocupa-se dela praticamente. Uma coisa, no entanto, é clara. A natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação natural e tampouco uma relação social comum a todos os períodos históricos. Mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da derrocada de toda uma série de formas anteriores de produção social. (244)

A acumulação primitiva diz respeito às origens históricas desse trabalho assalariado, assim como à acumulação nas mãos do capitalista dos recursos necessários para empregá-lo.

Os capítulos 24 e 25 tratam, portanto, da questão central da transformação da força de trabalho em mercadoria (ou, de modo mais geral, da formação da classe trabalhadora). A versão burguesa dessa história, contada por Locke e Smith, é a seguinte:

Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa e, por outro, um bando de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais [...]. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza de poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (785)

Essa história descreve uma transição gradual e pacífica do feudalismo para o capitalismo. Mas “na história real”, diz Marx,

o papel principal é desempenhado pela conquista, pela subjugação, pelo assassínio para roubar, em suma, pela violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. (786)

Isso acontece porque

o processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde. (786)

Em termos factuais, os métodos da acumulação primitiva “podem ser qualquer coisa, menos idílicos [...]. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo” (786-7). (...)

Na versão de Marx da acumulação primitiva, todas as regras da troca mercantil expostas anteriormente (no capítulo 2) são abandonadas. Não há reciprocidade nem igualdade. Sim, a acumulação do dinheiro está lá, bem como os mercados, mas o processo real é diferente. Trata-se da expropriação violenta de toda uma classe de pessoas do controle sobre os meios de produção, primeiro por meio de ações ilegais e, por fim, como a lei de cercamento na Inglaterra, pela ação do Estado. Adam Smith, é claro, não queria que o Estado fosse entendido como um agente ativo na vitimação da população e, por isso, não podia contar uma história da acumulação primitiva em que o Estado desempenhasse um papel crucial. Se as origens da acumulação do capital se encontram no aparato e no poder estatal, qual é o sentido de defender políticas de laissez-faire como um meio fundamental para aumentar o bem-estar nacional e individual? Por isso, Smith, e a maioria dos economistas políticos clássicos, preferiu ignorar o papel do Estado na acumulação primitiva. Houve exceções. James Steuart, observa Marx, compreendeu que a violência estatal era absolutamente fundamental para a proletarização, mas assumiu a posição de que era um mal necessário.”

 

 

Diz Marx, em resumo:

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre. (804)

A questão sobre o que todas essas pessoas expulsas de suas terras fariam é tratada no item 3. Em geral não havia emprego para elas; então, ao menos aos olhos do Estado, tais indivíduos se tornavam vagabundos, mendigos, ladrões e assaltantes. O aparato estatal respondia de um modo que perdura até nossos dias: criminalizando e encarcerando, tratando-os como vagabundos e praticando contra eles a mais extrema violência. “Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado.” A violência da socialização dos trabalhadores ao aparato disciplinar do capital é nítida. Mas, com o passar do tempo, “a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador”. Uma vez formado o proletariado, segundo o que Marx parece dizer, a muda coerção das relações econômicas cumpre sua missão, e a violência flagrante pode passar a segundo plano, pois as pessoas foram socializadas à situação de trabalhadoras assalariadas, como portadoras da mercadoria-força-de-trabalho. Mas “a burguesia emergente” continua a necessitar do “poder do Estado” para regular os salários e evitar qualquer tipo de organização coletiva dos trabalhadores (a legislação antissindical e o que foi chamado na época de Combination Laws, leis que proibiam associações e até mesmo assembleias de trabalhadores) (808-9). Esse foi um apoio crucial, observa Marx, para a consolidação do regime liberal (fundado nos direitos de propriedade privada).

Já no início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou despojar novamente os trabalhadores de seu recém-conquistado direito de associação. O decreto de 14 de junho de 1791 declarou toda coalizão de trabalhadores um “atentado à liberdade e à Declaração dos Direitos do Homem”. (812)

A legalidade burguesa é usada desse modo muito específico para inibir os potenciais poderes coletivos do trabalho.”

 

 

“Marx nos mostra, como afirmei anteriormente, que não há nada mais desigual do que o tratamento igual de desiguais; que a igualdade pressuposta no mercado nos ilude, fazendo-nos acreditar na igualdade entre as pessoas; que as doutrinas burguesas dos direitos de propriedade privada e da taxa de lucro fazem parecer que todos temos direitos humanos; que as ilusões da liberdade pessoal e da liberdade (e como e por que agimos com base nessas ilusões, e até lutamos por elas politicamente) nascem das liberdades do mercado e do livre-comércio.”

 

 

Vejo as crises como erupções superficiais provocadas por deslocamentos tectônicos profundos na lógica espaçotemporal do capitalismo. Neste momento, as placas tectônicas estão acelerando seu deslocamento, aumentando a probabilidade de crises mais frequentes e violentas. É praticamente impossível prever a maneira, a forma, a espacialidade e o momento das erupções, mas é quase certo que ocorrerão com mais frequência e com mais força, e farão os eventos de 2008 parecerem normais, se não triviais. E, já que essas tensões são internas à dinâmica capitalista (o que não exclui um evento disruptivo aparentemente externo, como um pandemia catastrófica), que argumento melhor poderia haver, como disse Marx certa vez, para o capitalismo “se retirar e ceder espaço a um estado superior de produção social”[g]?

Mas é mais fácil dizer do que fazer. É claro que isso pressupõe a construção de um projeto político. E não podemos esperar para saber tudo o que precisamos saber, ou mesmo entender tudo o que Marx tem para dizer. No Livro I, Marx apresenta um espelho da nossa realidade, de modo a criar um imperativo para a ação, e deixa claro que a política de classe, a luta de classes, tem de ser o centro daquilo que fazemos. Em si, isso não soa particularmente revolucionário. Mas, ao longo do último quarto de século, cansamos de ouvir que as classes são irrelevantes, que a própria ideia de luta de classes é tão antiquada que não passa de pasto para dinossauros acadêmicos. Mas basta uma leitura séria d’O capital para mostrar irrefutavelmente que não chegaremos a lugar nenhum se não escrevermos “luta de classes” nas nossas bandeiras políticas e não marcharmos ao toque do seu tambor.

No entanto, precisamos definir melhor o que exatamente isso pode significar para nosso mundo e nosso tempo. Em sua época, Marx muitas vezes teve dúvidas sobre o que fazer, que tipo de aliança política seria razoável, que objetivos e reivindicações deviam ser articulados. Mas o que ele mostra também é que, mesmo entre incertezas, não podemos deixar de agir. Cínicos e críticos costumam objetar que o que se tenta fazer é reduzir questões de natureza, gênero, sexualidade, raça, religião etc. a termos de classe, e isso é inaceitável. Minha resposta é: de modo algum. Essas outras lutas são importantes e têm de ser consideradas em si mesmas. Contudo, diria eu, é raro que não tragam em si uma forte dimensão de classe, cuja solução é condição necessária, embora jamais suficiente, para, digamos, uma política antirracista ou ambientalista adequada.”

[g] Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 627. (N. E.)

 

 

Mesmo que as concepções mentais não possam mudar o mundo, as ideias são, como observou o próprio Marx, uma força material na história. Ele escreveu O capital para nos equipar melhor para travar essa luta. Mas aqui também não existe caminho fácil, tampouco uma “estrada real para a ciência”. Como Bertolt Brecht escreveu certa vez:

Muitas coisas são necessárias para mudar o mundo:

Raiva e tenacidade. Ciência e indignação,

A iniciativa rápida, a longa reflexão,

A fria paciência e a infinita perseverança,

A compreensão do caso particular e a compreensão do conjunto:

Somente as lições da realidade podem nos ensinar a transformar a realidade.”[h]

[h] Bertolt Brecht, Das Badener Lehrstück vom Einverständnis [edição inglesa: The Didactic Play of Baden: on Consent (Londres, Methuen, 1997, Collected Works), v. 3, p. 84]. (N. T.)

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