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segunda-feira, 17 de maio de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital (Parte I), de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-548-0

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 894

Sinopse: Em 2011, a Boitempo deu início a uma de suas maiores empreitadas editoriais: a tradução completa de O capital, a principal obra de maturidade de Karl Marx. Em março de 2013, em meio ao projeto MARX: a criação destruidora, um conjunto de eventos que reuniu milhares de pessoas para debater a atualidade de seu pensamento, foi lançado o primeiro livro, O processo de produção do capital, traduzido pela primeira vez a partir da edição preparada no âmbito do projeto alemão MEGA-2 (Marx-Engels Gesamtausgabe), com tradução de Rubens Enderle.

O clássico de Marx foi originalmente publicado na Alemanha em 1867 e é considerado a mais profunda investigação crítica do modo de produção capitalista. O capital, da Boitempo, é o décimo sexto volume da Coleção Marx e Engels e conta com introduções de Jacob Gorender, José Arthur Giannotti e Louis Althusser, além de texto de orelha de Francisco de Oliveira.

O capital é uma contribuição basilar ao pensamento anticapitalista, em especial a tradição marxista, que de certo modo se consolida com este livro. O objetivo de Marx era, por meio de uma crítica da economia política, compreender como o capitalismo funciona. Diante desse desafio, ele desenvolveu um aparato conceitual e metodológico para entender toda a complexidade do capitalismo, as categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa e a relação direta entre acumulação de capital e exploração da força de trabalho.

O percurso a ser seguido para entender a lógica do capital é árduo, lembra Francisco de Oliveira, no texto de orelha. Segundo ele, a leitura de O capital tem de ser feita de maneira paciente e disciplinada, tendo em vista a complexidade do objeto de análise de Marx. ‘Ele examina antes de tudo a mercadoria e sua formação, pois o capitalismo continua a ser, mesmo em sua fase amplamente financeirizada, um modo de produção de mercadorias’, explica o sociólogo.

José Arthur Giannotti realça em sua apresentação que a obra de Marx nunca perdeu seu interesse e sua relevância, a despeito das idas e vindas das modas atuais do pensar e dos novos paradigmas em que a ciência econômica se alicerça. Como explicar essa permanência? ‘Parece-me que isso ocorre porque ela é mais do que um texto científico. Ao salientar a especificidade das relações fetichizadas do capital, a análise retoma a antiga questão do ser social e de sua historicidade’, afirma o filósofo. E termina com um desafio: ‘A questão hoje em dia é mais do que teórica. A grande crise pela qual estamos passando coloca em pauta a alienação do capital, em particular do capital financeiro, e a necessidade de alguma regulamentação internacional dos mercados. No fim das contas, que futuro queremos ter? É possível pensar o futuro sem levar em conta as análises deste livro chamado O capital?’.



Todo começo é difícil, e isso vale para toda ciência.”

 

 

Perseu necessitava de um elmo de névoa para perseguir os monstros. Nós puxamos o elmo de névoa sobre nossos olhos e ouvidos para poder negar a existência dos monstros.”

 

 

“Uma nação deve e pode aprender com as outras. Ainda que uma sociedade tenha descoberto a lei natural de seu desenvolvimento – e a finalidade última desta obra é desvelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna –, ela não pode saltar suas fases naturais de desenvolvimento, nem suprimi-las por decreto. Mas pode, sim, abreviar e mitigar as dores do parto.”

 

 

“Por ser burguesa, isto é, por entender a ordem capitalista como a forma última e absoluta da produção social, em vez de um estágio historicamente transitório de desenvolvimento, a economia política só pode continuar a ser uma ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou manifestar-se apenas isoladamente.”

 

 

“Uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos. Quando é valor de uso, nela não há nada de misterioso, quer eu a considere do ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades, quer do ponto de vista de que ela só recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem, por meio de sua atividade, altera as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível-suprassensíveln. Ela não só se mantém com os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria25.

O caráter místico da mercadoria não resulta, portanto, de seu valor de uso. Tampouco resulta do conteúdo das determinações de valor, pois, em primeiro lugar, por mais distintos que possam ser os trabalhos úteis ou as atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles constituem funções do organismo humano e que cada uma dessas funções, seja qual for seu conteúdo e sua forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, nervos, músculos e órgãos sensoriais humanos etc. Em segundo lugar, no que diz respeito àquilo que se encontra na base da determinação da grandeza de valor – a duração desse dispêndio ou a quantidade do trabalho –, a quantidade é claramente diferenciável da qualidade do trabalho. Sob quaisquer condições sociais, o tempo de trabalho requerido para a produção dos meios de subsistência havia de interessar aos homens, embora não na mesma medida em diferentes estágios de desenvolvimento26. Por fim, tão logo os homens trabalham uns para os outros de algum modo, seu trabalho também assume uma forma social.

De onde surge, portanto, o caráter enigmático do produto do trabalho, assim que ele assume a forma-mercadoria? Evidentemente, ele surge dessa própria forma. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de força humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre os produtos do trabalho.

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta, pois, como um estímulo subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma objetiva de uma coisa que está fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de uma relação física entre coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a análise anterior já mostrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias.

Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total. Como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadaso entre pessoas e relações sociais entre coisas.

Somente no interior de sua troca os produtos do trabalho adquirem uma objetividade de valor socialmente igual, separada de sua objetividade de uso, sensivelmente distinta. Essa cisão do produto do trabalho em coisa útil e coisa de valor só se realiza na prática quando a troca já conquistou um alcance e uma importância suficientes para que se produzam coisas úteis destinadas à troca e, portanto, o caráter de valor das coisas passou a ser considerado no próprio ato de sua produção. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores assumem, de fato, um duplo caráter social. Por um lado, como trabalhos úteis determinados, eles têm de satisfazer uma determinada necessidade social e, desse modo, conservar a si mesmos como elos do trabalho total, do sistema natural-espontâneop da divisão social do trabalho. Por outro lado, eles só satisfazem as múltiplas necessidades de seus próprios produtores na medida em que cada trabalho privado e útil particular é permutável por qualquer outro tipo útil de trabalho privado, portanto, na medida em que um equivale ao outro. A igualdade toto coelo [plena] dos diferentes trabalhos só pode consistir numa abstração de sua desigualdade real, na redução desses trabalhos ao seu caráter comum como dispêndio de força humana de trabalho, como trabalho humano abstrato. O cérebro dos produtores privados reflete esse duplo caráter social de seus trabalhos privados apenas nas formas em que se manifestam no intercâmbio prático, na troca dos produtos: o caráter socialmente útil de seus trabalhos privados na forma de que o produto do trabalho tem de ser útil, e precisamente para outrem; o caráter social da igualdade dos trabalhos de diferentes tipos na forma do caráter de valor comum a essas coisas materialmente distintas, os produtos do trabalho.

Portanto, os homens não relacionam entre si seus produtos do trabalho como valores por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano de mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Eles não sabem disso, mas o fazem27. Por isso, na testa do valor não está escrito o que ele éq. O valor converte, antes, todo produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar o sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem. A descoberta científica tardia de que os produtos do trabalho, como valores, são meras expressões materiais do trabalho humano despendido em sua produção fez época na história do desenvolvimento da humanidade, mas de modo algum elimina a aparência objetiva do caráter social do trabalho. O que é válido apenas para essa forma particular de produção, a produção de mercadorias – isto é, o fato de que o caráter especificamente social dos trabalhos privados, independentes entre si, consiste em sua igualdade como trabalho humano e assume a forma do caráter de valor dos produtos do trabalho –, continua a aparecer, para aqueles que se encontram no interior das relações de produção das mercadorias, como algo definitivo, mesmo depois daquela descoberta, do mesmo modo como a decomposição científica do ar em seus elementos deixou intacta a forma do ar como forma física corpórea.

O que, na prática, interessa imediatamente aos agentes da troca de produtos é a questão de quantos produtos alheios eles obtêm em troca por seu próprio produto, ou seja, em que proporções os produtos são trocados. Assim que essas proporções alcançam uma certa solidez habitual, elas aparentam derivar da natureza dos produtos do trabalho, como se, por exemplo, 1 tonelada de ferro e 2 onças de ouro tivessem o mesmo valor do mesmo modo como 1 libra de ouro e 1 libra de ferro têm o mesmo peso, apesar de suas diferentes propriedades físicas e químicas. Na verdade, o caráter de valor dos produtos do trabalho se fixa apenas por meio de sua atuação como grandezas de valor. Estas variam constantemente, independentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca. Seu próprio movimento social possui, para eles, a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de eles as controlarem. É preciso que a produção de mercadorias esteja plenamente desenvolvida antes que da própria experiência emerja a noção científica de que os trabalhos privados, executados independentemente uns dos outros, porém universalmente interdependentes como elos naturais-espontâneos da divisão social do trabalho, são constantemente reduzidos à sua medida socialmente proporcional, porque, nas relações de troca contingentes e sempre oscilantes de seus produtos, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção se impõe com a força de uma lei natural reguladora, assim como a lei da gravidade se impõe quando uma casa desaba sobre a cabeça de alguém28. A determinação da grandeza de valor por meio do tempo de trabalho é, portanto, um segredo que se esconde sob os movimentos manifestos dos valores relativos das mercadorias. Sua descoberta elimina dos produtos do trabalho a aparência da determinação meramente contingente das grandezas de valor, mas não elimina em absoluto sua forma reificada [sachlich].

A reflexão sobre as formas da vida humana, e, assim, também sua análise científica, percorre um caminho contrário ao do desenvolvimento real. Ela começa post festum [muito tarde, após a festa] e, por conseguinte, com os resultados prontos do processo de desenvolvimento. As formas que rotulam os produtos do trabalho como mercadorias, e, portanto, são pressupostas à circulação das mercadorias, já possuem a solidez de formas naturais da vida social antes que os homens procurem esclarecer-se não sobre o caráter histórico dessas formas – que eles, antes, já consideram imutáveis –, mas sobre seu conteúdo. Assim, somente a análise dos preços das mercadorias conduziu à determinação da grandeza do valor, e somente a expressão monetária comum das mercadorias conduziu à fixação de seu caráter de valor. Porém, é justamente essa forma acabada – a forma-dinheiro – do mundo das mercadorias que vela materialmente [sachlich], em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores privados. Quando digo que o casaco, a bota etc. se relacionam com o linho sob a forma da incorporação geral de trabalho humano abstrato, salta aos olhos a sandice dessa expressão. Mas quando os produtores de casaco, bota etc. relacionam essas mercadorias ao linho – ou com o ouro e a prata, o que não altera em nada a questão – como equivalente universal, a relação de seus trabalhos privados com seu trabalho social total lhes aparece exatamente nessa forma insana.

Ora, são justamente essas formas que constituem as categorias da economia burguesa. Trata-se de formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade para as relações de produção desse modo social de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias. Por isso, todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção.”

n No original: “sinnlich übersinnliche”. Referência à fala de Mefistófeles em Fausto, de Goethe (primeira parte, “No jardim de Marta”): “Tu, conquistador sensível, suprassensível,/ Uma mocinha te conduz pelo nariz”. (N. E. A. MEGA)

25 Vale lembrar que a China e as mesas começaram a dançar quando todo o resto do mundo ainda parecia imóvel – para encorajar os outros [Voltaire, Cândido, ou o otimismo, c. 19. (N. T.)]. [Após as revoluções de 1848, a Europa entrou num período de reação política. Enquanto nos círculos aristocráticos e burgueses europeus surgiu um entusiasmo pelo espiritismo, particularmente por práticas com o “tabuleiro Ouija”, na China desenvolveu-se um poderoso movimento antifeudal, especialmente entre os camponeses, que ficou conhecido como Rebelião Taiping. (N. E. A. MEGA)]

26 Nota à segunda edição: Entre os antigos germanos, a grandeza de uma manhã [Morgen] de terra era medida de acordo com o trabalho de um dia e, por isso, a manhã também era chamada de Tagwerk [dia de trabalho] (também Tagwanne) (jurnale ou jurnalis, terra jurnalis, jornalis ou diurnalis), Mannwerk [trabalho de um homem], Mannskraft, Mannshauet etc. Cf. Georg Ludwig von Maurer, Einleitung zur Geschichte der Mark-, Hof- etc. Verfassung (Munique, 1854), p. 129s.

o O adjetivo/advérbio sachlich tem aqui o sentido de “relativo a coisa (Sache)”. Em outras passagens, Marx emprega a palavra dinglich com o mesmo significado. Onde não foi possível traduzi-la como “reificado(a)”, empregamos “material”, “materialmente”, sempre acompanhadas do original entre colchetes. Cf. nota *, p. 128. (N. T.)

p O adjetivo naturwüchsig, que traduzimos por “natural-espontâneo”, é empregado por Marx no sentido de “desenvolvido de modo espontâneo”. Diferentemente, portanto, de “natural” no sentido de “pertencente à natureza” ou “dado pela natureza”. (N. T.)

27 Nota à segunda edição: Por isso, quando Galiani diz “O valor é uma relação entre pessoas” (“La ricchezza è uma ragione tra due persone”), ele deveria ter acrescentado: uma relação escondida sob um invólucro material [dinglicher], Galiani, Della Moneta, em [Pietro] Custodi, Scrittori classici italiani di economia politica (Milão, 1803), t. III, parte moderna, p. 221.

q Apocalipse 14: 1-9. (N. E. A. MEGA)

28 “O que se deve pensar de uma lei que só pode se impor mediante revoluções periódicas?”, F. Engels, “Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie”, em Deutsch-Französische Jahrbücher [Anais Franco-Alemães], Karl Marx e Arnold Ruge (eds.), Paris, 1844 [ed. bras.: “Esboço de uma crítica da economia política”, em José Paulo Netto (org.), Engels, São Paulo, Ática, 1981, col. Grandes Cientistas Sociais, v. 17, série “Política”].

 

 

Para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relação social geral de produção consiste em se relacionar com seus produtos como mercadorias, ou seja, como valores, e, nessa forma reificada [sachlich], confrontar mutuamente seus trabalhos privados como trabalho humano igual, o cristianismo, com seu culto do homem abstrato, é a forma de religião mais apropriada, especialmente em seu desenvolvimento burguês, como protestantismo, deísmo etc. Nos modos de produção asiáticos, antigos etc. a transformação do produto em mercadoria e, com isso, a existência dos homens como produtores de mercadorias, desempenha um papel subordinado, que, no entanto, torna-se progressivamente mais significativo à medida que as comunidades avançam em seu processo de declínio. Povos propriamente comerciantes existem apenas nos intermúndios do mundo antigo, como os deuses de Epicurou, ou nos poros da sociedade polonesa, como os judeus. Esses antigos organismos sociais de produção são extraordinariamente mais simples e transparentes do que o organismo burguês, mas baseiam-se ou na imaturidade do homem individual, que ainda não rompeu o cordão umbilical que o prende a outrem por um vínculo natural de gênero [Gattungszusammenhangs], ou em relações diretas de dominação e servidão. Eles são condicionados por um baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho e pelas relações correspondentemente limitadas dos homens no interior de seu processo material de produção da vida, ou seja, pelas relações limitadas dos homens entre si e com a natureza.

Essa limitação real se reflete idealmente nas antigas religiões naturais e populares. O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os próprios homens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza. A figura do processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado. Para isso, requer-se uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência que, por sua vez, são elas próprias o produto natural-espontâneo de uma longa e excruciante história de desenvolvimento.

É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente31, o valor e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho?32 Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo. Por essa razão, as formas pré-burguesas do organismo social de produção são tratadas por ela mais ou menos do modo como as religiões pré-cristãs foram tratadas pelos Padres da Igrejav 33.

O quanto uma parte dos economistas é enganada pelo fetichismo que se cola ao mundo das mercadorias ou pela aparência objetiva das determinações sociais do trabalho é demonstrado, entre outros, pela fastidiosa e absurda disputa sobre o papel da natureza na formação do valor de troca. Como este último é uma maneira social determinada de expressar o trabalho realizado numa coisa, ele não pode conter mais matéria natural do que, por exemplo, a taxa de câmbio.

Como a forma-mercadoria é a forma mais geral e menos desenvolvida da produção burguesa, razão pela qual ela já aparece desde cedo, ainda que não com a predominância que lhe é característica em nossos dias, seu caráter fetichista parece ser relativamente fácil de se analisar. Em formas mais concretas, desaparece até mesmo essa aparência de simplicidade. De onde vêm as ilusões do sistema monetário? Para ele, o ouro e a prata, ao servir como dinheiro, não expressam uma relação social de produção, mas atuam na forma de coisas naturais dotadas de estranhas propriedades sociais. E quanto à teoria econômica moderna, que arrogantemente desdenha do sistema monetário, não se torna palpável seu fetichismo quando ela trata do capital? Há quanto tempo desapareceu a ilusão fisiocrata de que a renda fundiária nasce da terra, e não da sociedade?”

u Segundo Epicuro, os deuses habitam os “intramundos”, isto é, os espaços que separam os diferentes mundos uns dos outros; eles não exercem qualquer influência sobre o desenvolvimento do mundo ou sobre a vida dos homens. (N. E. A. MEGA)

31 A insuficiência da análise ricardiana da grandeza de valor – e ela é a melhor de todas – será evidenciada no terceiro e quarto livros desta obra. No que diz respeito ao valor em geral, em nenhum lugar a economia política clássica diferencia expressa e claramente o trabalho tal como ele se expressa no valor do mesmo trabalho de sua expressão no valor de uso de seu produto. De fato, ela estabelece a diferença ao considerar o trabalho ora quantitativa, ora qualitativamente. Mas não lhe ocorre que a diferença meramente quantitativa dos trabalhos pressupõe sua unidade ou igualdade qualitativa, portanto, sua redução a trabalho humano abstrato. Ricardo, por exemplo, mostra estar de acordo com Destutt de Tracy, quando este diz: “Como é certo que nossas capacidades corporais e intelectuais são nossa única riqueza originária, o uso dessas capacidades, que é certo tipo de trabalho, é nosso tesouro originário; é sempre esse uso que cria todas aquelas coisas, que chamamos de riqueza [...]. É certo também que todas aquelas coisas expressam apenas o trabalho que as criou, e se elas têm um valor, ou mesmo dois valores distintos, elas só podem tê-lo a partir do (valor) do trabalho do qual elas resultam”. Ricardo, The Principles of Pol. Econ. (3. ed., Londres, 1821), p. 334. Cabe notar apenas que Ricardo atribui a Destutt sua própria compreensão mais profunda. Na verdade, Destutt diz, por um lado, que todas as coisas que constituem a riqueza “representam o trabalho que as criou”; por outro, porém, que elas obtêm seus “dois valores distintos” (valor de uso e valor de troca) do “valor do trabalho”. Ele cai, com isso, na superficialidade da economia vulgar, que pressupõe o valor de uma mercadoria (aqui, o trabalho) como meio para determinar o valor de outras mercadorias. Ao lê-lo, Ricardo entende que o trabalho (não o valor do trabalho) se expressa tanto no valor de uso como no valor de troca. Porém, ele mesmo distingue tão pouco o duplo caráter do trabalho – que se apresenta de modo duplo – que dedica todo o capítulo “Valor e riqueza: suas propriedades distintivas” ao laborioso exame das trivialidades de um J. B. Say. E, no final, mostra-se bastante impressionado ao notar que Destutt está de acordo com sua própria ideia do trabalho como fonte de valor, mas que, por outro lado, ele se harmoniza com Say no que diz respeito ao conceito de valor.

32 Uma das insuficiências fundamentais da economia política clássica está no fato de ela nunca ter conseguido descobrir, a partir da análise da mercadoria e, mais especificamente, do valor das mercadorias, a forma do valor que o converte precisamente em valor de troca. Justamente em seus melhores representantes, como A. Smith e Ricardo, ela trata a forma de valor como algo totalmente indiferente ou exterior à natureza do próprio valor. A razão disso não está apenas em que a análise da grandeza do valor absorve inteiramente sua atenção. Ela é mais profunda. A forma de valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata mas também mais geral do modo burguês de produção, que assim se caracteriza como um tipo particular de produção social e, ao mesmo tempo, um tipo histórico. Se tal forma é tomada pela forma natural eterna da produção social, também se perde de vista necessariamente a especificidade da forma de valor, e assim também da forma-mercadoria e, num estágio mais desenvolvido, da forma-dinheiro, da forma-capital etc. Por isso, dentre os economistas que aceitam plenamente a medida da grandeza de valor pelo tempo de trabalho encontram-se as mais variegadas e contraditórias noções do dinheiro, isto é, da forma pronta do equivalente universal. Isso se manifesta de modo patente, por exemplo, no tratamento do sistema bancário, em que parece não haver limite para as definições mais triviais do dinheiro. Em contraposição a isso, surgiu um sistema mercantilista restaurado (Ganilh etc.), que vê no valor apenas a forma social ou, antes, sua aparência sem substância. – Para deixar esclarecido de uma vez por todas, entendo por economia política clássica toda teoria econômica desde W. Petty, que investiga a estrutura interna das relações burguesas de produção em contraposição à economia vulgar, que se move apenas no interior do contexto aparente e rumina constantemente o material há muito fornecido pela economia científica a fim de fornecer uma justificativa plausível dos fenômenos mais brutais e servir às necessidades domésticas da burguesia, mas que, de resto, limita-se a sistematizar as representações banais e egoístas dos agentes de produção burgueses como o melhor dos mundos, dando-lhes uma forma pedante e proclamando-as como verdades eternas.

v Padres da Igreja (também Santos Padres ou Pais da Igreja) são chamados os escritores gregos e latinos da Igreja cristã entre os séculos II e VI. O estudo dos escritos dos Padres da Igreja é denominado patrística ou patrologia. (N. T.)

33 “Os economistas procedem de um modo curioso. Para eles, há apenas dois tipos de instituições, as artificiais e as naturais. As instituições do feudalismo seriam artificiais, ao passo que as da burguesia seriam naturais. Nisso, eles são iguais aos teólogos, que também distinguem entre dois tipos de religiões. Toda religião que não a deles é uma invenção dos homens, ao passo que sua própria religião é uma revelação de Deus. – Desse modo, houve uma história, mas agora não há mais”, Karl Marx, “Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria do sr. Proudhon (1847), p. 113 [MEW, v. IV, p. 139]. Verdadeiramente patético é o sr. Bastiat, que imagina que os gregos e os romanos tenham vivido apenas do roubo. Mas para que se viva por tantos séculos com base no roubo, é preciso que haja permanentemente algo para roubar ou que o objeto do roubo se reproduza continuamente. Parece, assim, que também os gregos e os romanos possuíam um processo de produção, portanto, uma economia, que constituía a base material de seu mundo tanto quanto a economia burguesa constitui a base material do mundo atual. Ou Bastiat quer dizer que um modo de produção que se baseia no trabalho escravo é um sistema de roubo? Ele adentra, então, um terreno perigoso. Se um gigante do pensamento como Aristóteles errou em sua apreciação do trabalho escravo, por que deveria um economista nanico como Bastiat acertar em sua apreciação do trabalho assalariado? – Aproveito a ocasião para refutar brevemente uma acusação que me foi feita por um jornal teuto-americano, quando da publicação de meu escrito Contribuição à crítica da economia política (1859). Segundo esse jornal, minha afirmação de que os modos determinados de produção e as relações de produção que lhes correspondem, em suma, de que “a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas sociais de consciência”, de que “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral” – tudo isso seria correto para o mundo atual, onde dominam os interesses materiais, mas não seria válido nem para a Idade Média, onde dominava o catolicismo, nem para Atenas ou Roma, onde dominava a política. Para começar, é desconcertante que alguém possa pressupor que essas batidas fraseologias sobre a Idade Média e a Antiguidade possam ser desconhecidas de alguém. É claro que a Idade Média não podia viver do catolicismo, assim como o mundo antigo não podia viver da política. Ao contrário, é o modo como eles produziam sua vida que explica por que lá era a política, aqui o catolicismo que desempenhava o papel principal. Além do mais, não é preciso grande conhecimento, por exemplo, da história da República romana para saber que sua história secreta se encontra na história da propriedade fundiária. Por outro lado, Dom Quixote já pagou pelo erro de imaginar que a Cavalaria Andante fosse igualmente compatível com todas as formas econômicas da sociedade. [“Économistes” é o termo inicialmente usado para designar os fisiocratas. Em meados do século XIX esse conceito adquiriu um significado tão amplo que já não servia mais para caracterizar uma doutrina econômica específica. O nome “physiocrates” já havia sido formulado por François Quesnay e seu discípulo Pierre-Samuel du Pont de Nemours. (N. E. A. MEGA)]

 

 

“As mercadorias não se tornam comensuráveis por meio do dinheiro. Ao contrário, é pelo fato de todas as mercadorias, como valores, serem trabalho humano objetivado e, assim, serem, por si mesmas, comensuráveis entre si, que elas podem medir conjuntamente seus valores na mesma mercadoria específica e, desse modo, convertê-la em sua medida conjunta de valor, isto é, em dinheiro. O dinheiro, como medida de valor, é a forma necessária de manifestação da medida imanente de valor das mercadorias: o tempo de trabalho50.”

50 A questão de por que o dinheiro não representa imediatamente o próprio tempo de trabalho, de modo que, por exemplo, uma cédula de dinheiro represente x horas de trabalho, desemboca muito simplesmente na questão de por que, na base da produção de mercadorias, os produtos do trabalho têm de se expressar como mercadorias, pois a representação das mercadorias inclui sua duplicação em mercadoria e mercadoria-dinheiro. Ou na questão de por que o trabalho privado não pode ser tratado como seu contrário, como trabalho imediatamente social. Ocupei-me detalhadamente do utopismo superficial de um “dinheiro-trabalho” [Arbeitsgeld] em outro lugar (Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, cit., p. 61s). Aqui, devo apenas observar que, por exemplo, o “dinheiro-trabalho” de Owen é tão pouco “dinheiro” quanto, digamos, uma máscara de teatro. Owen pressupõe o trabalho imediatamente socializado, uma forma de produção diametralmente oposta à produção de mercadorias. O certificado de trabalho comprova apenas a parte individual do produtor no trabalho comum e seu direito individual ao consumo de uma parte determinada do produto comum. Mas não passa pela cabeça de Owen pressupor a produção de mercadorias e tentar contornar suas condições necessárias por meio de truques monetários. [Nas novas sociedades a serem fundadas, segundo Owen, seria introduzido um papel que representaria o valor do trabalho na forma de notas bancárias e serviria para a satisfação das necessidades domésticas e para o intercâmbio de bens. Tal papel seria emitido apenas na proporção dos estoques disponíveis e só poderia ser obtido na troca por produtos reais. (N. E. A. MEGA)]

 

 

“À medida que a produção de mercadorias se desenvolve, todo produtor de mercadorias tem de assegurar-se do nervus rerum, do “penhor social”88. Suas necessidades se renovam incessantemente e requerem a compra incessante de mercadorias alheias, ao passo que a produção e a venda de suas próprias mercadorias demandam tempo e dependem das circunstâncias. Para comprar sem vender, ele tem, antes, de ter vendido sem comprar. Essa operação, realizada em escala universal, parece contradizer a si mesma. Porém, em suas fontes de produção, os metais preciosos são trocados diretamente por outras mercadorias. Aqui, ocorre a venda (do lado do possuidor de mercadorias) sem a compra (do lado do possuidor de ouro e prata)89. E vendas subsequentes, sem serem seguidas por compras, têm como efeito apenas a distribuição ulterior dos metais preciosos entre todos os possuidores de mercadorias. Desse modo, em todos os pontos do intercâmbio surgem tesouros de ouro e prata, dos mais variados tamanhos. Com a possibilidade de reter a mercadoria como valor de troca ou o valor de troca como mercadoria, surge a cobiça pelo ouro. Com a expansão da circulação das mercadorias, cresce o poder do dinheiro, a forma absolutamente social da riqueza, sempre pronta para o uso.

“O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o possui é senhor de tudo o que deseja. Com o ouro pode-se até mesmo conduzir as almas ao paraíso” (Colombo, em sua carta da Jamaica, 1503).

Como no dinheiro não se pode perceber o que foi nele transformado, tudo, seja mercadoria ou não, transforma-se em dinheiro. Tudo se torna vendável e comprável. A circulação se torna a grande retorta social, na qual tudo é lançado para dela sair como cristal de dinheiro. A essa alquimia não escapam nem mesmo os ossos dos santos e, menos ainda, as mais delicadas res sacrosanctae, extra commercium hominum [coisas sagradas que não são objeto do comércio dos homens]90. Como no dinheiro está apagada toda diferença qualitativa entre as mercadorias, também ele, por sua vez, apaga, como leveller radical, todas as diferenças91. Mas o dinheiro é, ele próprio, uma mercadoria, uma coisa externa, que pode se tornar a propriedade privada de qualquer um. Assim, a potência social torna-se potência privada da pessoa privada. A sociedade antiga o denuncia, por isso, como a moeda da discórdia de sua ordem econômica e moral92. A sociedade moderna, que já na sua infância arrancou Pluto das entranhas da terra pelos cabelos93, saúda no Graal de ouro a encarnação resplandecente de seu princípio vital mais próprio.

A mercadoria, como valor de uso, satisfaz a uma necessidade particular e constitui um elemento particular da riqueza material. Todavia, o valor da mercadoria mede o grau de sua força de atração sobre todos os elementos da riqueza material e, portanto, a riqueza social de seu possuidor. (...) O impulso para o entesouramento é desmedido por natureza. Seja qualitativamente, seja segundo sua forma, o dinheiro é desprovido de limites, quer dizer, ele é o representante universal da riqueza material, pois pode ser imediatamente convertido em qualquer mercadoria. Ao mesmo tempo, porém, toda quantia efetiva de dinheiro é quantitativamente limitada, sendo, por isso, apenas um meio de compra de eficácia limitada. Tal contradição entre a limitação quantitativa e a ilimitação qualitativa do dinheiro empurra constantemente o entesourador de volta ao trabalho de Sísifo da acumulação. Com ele ocorre o mesmo que com o conquistador do mundo, que, com cada novo país, conquista apenas mais uma fronteira a ser transposta.”

88 “O dinheiro é um penhor”, John Bellers, Essays about the Poor, Manufactures, Trade, Plantations, and Immorality (Londres, 1699), p. 13.

89 A compra, em sentido categórico, pressupõe que o ouro e a prata já são a forma convertida das mercadorias, ou o produto de uma venda.

90 Henrique III, o rei mais cristão da França, roubou dos mosteiros etc. suas relíquias a fim de transformá-las em dinheiro. É sabido o papel que o roubo dos tesouros do templo de Delfos pelos fócios desempenhou na história grega. Entre os antigos, os templos serviam como morada dos deuses das mercadorias. Eles eram “bancos sagrados”. Para os fenícios, um povo comerciante por excelência, o dinheiro era a forma alienada de todas as coisas. Por isso, era normal que as virgens, que nas festas da deusa do amor se entregavam a estranhos, ofertassem à deusa o dinheiro recebido.

91 Ouro faiscante, ouro amarelo, o precioso metal. [...] Só com isto eu deixaria o negro, branco; o repelente, belo; o injusto, justo; o baixo, com nobreza; o novo, velho, e corajoso o pulha. Deuses, por que isto? Para que isto, deuses? Oh! Isto desviará de vossas aras sacerdotes e servos, da cabeça dos doentes tirará o travesseiro. Este escravo amarelo os sacrossantos votos anula e quebra, lança a bênção nos malditos, amável deixa a lepra, dá estado aos ladrões e lhes concede títulos e homenagens lado a lado dos senadores, faz que novamente se case a viúva idosa. [...] Vamos, poeira maldita, prostituta comum da humanidade”, William Shakespeare, “Timão de Atenas”, em Tragédias, trad. Carlos Alberto Nunes, Rio de Janeiro, Agir, 2008, ato IV, cena 3.

92 “Nunca entre os homens floresceu uma invenção/ pior que o ouro; até cidades ele arrasa,/ afasta os homens de seus lares, arrebata/ e impele almas honestas ao aviltamento, à impiedade em tudo”, Sófocles, ed. bras.: “Antígona”, em A trilogia tebana, trad. Mario da Gama Kury, 9. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, versos 344-50].

93 “Em consequência da avareza, que deseja arrancar o próprio Pluto das entranhas da terra”, Athen[aeus], Deipnos[ophistae] [,VI, 23].

 

 

“A função do dinheiro como meio de pagamento traz em si uma contradição direta. Na medida em que os pagamentos se compensam, ele funciona apenas idealmente, como moeda de conta [Rechengeld] ou medida dos valores. Quando se trata de fazer um pagamento efetivo, o dinheiro não se apresenta como meio de circulação, como mera forma evanescente e mediadora do metabolismo, mas como a encarnação individual do trabalho social, existência autônoma do valor de troca, mercadoria absoluta. Essa contradição emerge no momento das crises de produção e de comércio, conhecidas como crises monetárias99. Ela ocorre apenas onde a cadeia permanente de pagamentos e um sistema artificial de sua compensação encontram-se plenamente desenvolvidos. Ocorrendo perturbações gerais nesse mecanismo, venham elas de onde vierem, o dinheiro abandona repentina e imediatamente sua figura puramente ideal de moeda de conta e converte-se em dinheiro vivo. Ele não pode mais ser substituído por mercadorias profanas. O valor de uso da mercadoria se torna sem valor, e seu valor desaparece diante de sua forma de valor própria. Ainda há pouco, o burguês, com a típica arrogância pseudoesclarecida de uma prosperidade inebriante, declarava o dinheiro como uma loucura vã. Apenas a mercadoria é dinheiro. Mas agora se clama por toda parte no mercado mundial: apenas o dinheiro é mercadoria! Assim como o cervo brame por água fresca, também sua alma brame por dinheiro, a única riquezam 100. Na crise, a oposição entre a mercadoria e sua figura de valor, o dinheiro, é levada até a contradição absoluta. Por isso, a forma de manifestação do dinheiro é aqui indiferente. A fome de dinheiro é a mesma, quer se tenha de pagar em ouro, em dinheiro creditício ou em cédulas bancárias etc.101

99 Nota à terceira edição: A crise monetária, definida como fase particular de toda crise de produção e de comércio, tem de ser distinguida daquele tipo especial de crise, que, também chamada de crise monetária, pode, no entanto, emergir como um fenômeno independente, que atua apenas indiretamente sobre a indústria e o comércio. São crises cujo centro está no capital financeiro e que, por isso, têm sua esfera imediata no sistema bancário, financeiro e na bolsa de valores.

m Referência ao salmo 42:1: “Assim como o cervo brame pelas correntes das águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus”. (N. T.)

100 “Essa transformação repentina do sistema de crédito em sistema monetário adiciona o terror teórico ao pânico prático: e os agentes da circulação tremem diante do mistério insondável de suas próprias relações”, Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, cit., p. 126. “Os pobres não têm trabalho porque os ricos não têm dinheiro para empregá-los, embora eles disponham, tal como antes, das mesmas terras e da mesma mão de obra para produzir meios de existência e roupas, que são a verdadeira riqueza de uma nação, e não o dinheiro”, John Bellers, Proposals for Raising a Colledge of Industry (Londres, 1696), p. 3-4.

101 A passagem seguinte mostra como tais momentos são explorados pelos “amis du commerce” [amigos do comércio]: “Numa dada ocasião (1839), um velho banqueiro ganancioso” (da City), “em seu gabinete particular, abriu a tampa de sua escrivaninha e exibiu ao amigo rolos de notas bancárias, dizendo, com intensa satisfação, ter £600.000 delas, que haviam sido guardadas a fim de provocar a escassez de dinheiro e seriam todas postas em circulação a partir das 3 horas da tarde daquele mesmo dia”, H. Roy, The Theory of the Exchanges. The Bank Charter Act of 1844 (Londres, 1864), p. 81. O jornal semioficial The Observer continha o seguinte parágrafo em 24 de abril de 1864: “Alguns rumores muito curiosos circulam sobre os meios que foram utilizados para criar uma escassez de notas bancárias [...]. Por mais questionável que possa ser a suposição de que um truque qualquer tenha sido utilizado, a notícia sobre esse fato foi tão difundida que se faz realmente digna de menção”, The Observer, 24 abr. 1864.

 

 

“A circulação simples de mercadorias – a venda para a compra – serve de meio para uma finalidade que se encontra fora da circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital é, ao contrário, um fim em si mesmo, pois a valorização do valor existe apenas no interior desse movimento sempre renovado. O movimento do capital é, por isso, desmedido6.

Como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro. O conteúdo objetivo daquela circulação – a valorização do valor – é sua finalidade subjetiva, e é somente enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo de suas operações que ele funciona como capitalista ou capital personificado, dotado de vontade e consciência. Assim, o valor de uso jamais pode ser considerado como finalidade imediata do capitalista7. Tampouco pode sê-lo o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento do lucro8. Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça apaixonada ao valor9 é comum ao capitalista e ao entesourador, mas, enquanto o entesourador é apenas o capitalista ensandecido, o capitalista é o entesourador racional. O aumento incessante do valor, objetivo que o entesourador procura atingir conservando seu dinheiro fora da circulação10, é atingido pelo capitalista, que, mais inteligente, lança sempre o dinheiro de novo em circulação10a.

As formas independentes, as formas-dinheiro que o valor das mercadorias assume na circulação simples servem apenas de mediação para a troca de mercadorias e desaparecem no resultado do movimento. Na circulação D-M-D, ao contrário, mercadoria e dinheiro funcionam apenas como modos diversos de existência do próprio valor: o dinheiro como seu modo de existência universal, a mercadoria como seu modo de existência particular, por assim dizer, disfarçado11. O valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático do processo. Ora, se tomarmos as formas particulares de manifestação que o valor que se autovaloriza assume sucessivamente no decorrer de sua vida, chegaremos a estas duas proposições: capital é dinheiro, capital é mercadoria12. Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza e, como mais-valor, repele [abstösst] a si mesmo como valor originário valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de adicionar valor. Ele pare filhotes, ou pelo menos põe ovos de ouro.

Como sujeito usurpador de tal processo, no qual ele assume ora a forma do dinheiro, ora a forma da mercadoria, porém conservando-se e expandindo-se nessa mudança, o valor requer, sobretudo, uma forma independente por meio da qual sua identidade possa ser constatada. E tal forma ele possui apenas no dinheiro. Este constitui, por isso, o ponto de partida e de chegada de todo processo de valorização. Ele era £100 e agora é £110 etc. Mas o próprio dinheiro vale, aqui, apenas como uma das duas formas do valor. Se não assume a forma da mercadoria, o dinheiro não se torna capital. Portanto, o dinheiro não se apresenta aqui em antagonismo com a mercadoria, como ocorre no entesouramento. O capitalista sabe que toda mercadoria, por mais miserável que seja sua aparência ou por pior que seja seu cheiro, é dinheiro, não só em sua fé, mas também na realidade; que ela é, internamente, um judeu circuncidado e, além disso, um meio milagroso de se fazer mais dinheiro a partir do dinheiro.

Se na circulação simples o valor das mercadorias atinge no máximo uma forma independente em relação a seus valores de uso, aqui ele se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras formas. E mais ainda. Em vez de representar relações de mercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação privada consigo mesmo. Como valor original, ele se diferencia de si mesmo como mais-valor, tal como Deus Pai se diferencia de si mesmo como Deus Filho, sendo ambos da mesma idade e constituindo, na verdade, uma única pessoa, pois é apenas por meio do mais-valor de £10 que as £100 adiantadas se tornam capital, e, assim que isso ocorre, assim que é gerado o filho e, por meio do filho, o pai, desaparece sua diferença e eles são apenas um, £110.

O valor se torna, assim, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele sai da circulação, volta a entrar nela, conserva-se e multiplica-se em seu percurso, sai da circulação aumentado e começa o mesmo ciclo novamente13. D-D’, dinheiro que cria dinheiro – money which begets money – é a descrição do capital na boca de seus primeiros intérpretes, os mercantilistas.

Comprar para vender, ou, mais acuradamente, comprar para vender mais caro, D-M-D’, parece ser apenas um tipo de capital, a forma própria do capital comercial. Mas também o capital industrial é dinheiro que se transforma em mercadoria e, por meio da venda da mercadoria, retransforma-se em mais dinheiro. Eventos que ocorram entre a compra e a venda, fora da esfera da circulação, não alteram em nada essa forma de movimento. Por fim, no capital a juros, a circulação D-M-D’ aparece abreviada, de modo que seu resultado se apresenta sem a mediação ou, dito em estilo lapidar, como D-D’, dinheiro que é igual a mais dinheiro, ou valor que é maior do que ele mesmo.

Na verdade, portanto, D-M-D’ é a fórmula geral do capital tal como ele aparece imediatamente na esfera da circulação.”

6 Aristóteles opõe a economia à crematística, partindo da economia. Por ser a arte do ganho, ela se limita à obtenção daquilo que é necessário à vida e dos bens úteis seja à casa ou ao Estado. “A verdadeira riqueza consiste em tais valores de uso, pois a quantidade desses bens suficiente para garantir uma boa vida não é ilimitada. Existe, no entanto, uma segunda arte do ganho, que devemos chamar, de preferência e com razão, de crematística, e para esta última parece não haver qualquer limite à riqueza e às posses. O comércio de mercadorias” (d kapjlika significa, literalmente, comércio varejista, e Aristóteles toma essa forma porque nela predominam os valores de uso) “pertence por natureza não à crematística, pois aqui a troca se dá apenas em relação ao que lhes é necessário (ao comprador e ao vendedor)”, razão pela qual, continua ele, o escambo foi a forma original do comércio de mercadorias, mas com sua expansão surgiu necessariamente o dinheiro. Com a invenção do dinheiro, o escambo teve necessariamente de se desenvolver em kapjlika, em comércio de mercadorias, e este, em contradição com sua tendência original, desenvolveu-se em crematística, na arte de fazer dinheiro. Ora, a crematística se distingue da economia pelo fato de que, “para ela, a circulação é a fonte da riqueza. E ela parece girar em torno do dinheiro, pois este é o início e o fim desse tipo de troca, de modo que a riqueza, tal como a crematística se esforça por obter, é ilimitada. Assim como toda arte que não é um meio para um fim, mas um fim em si mesmo, é ilimitada em seus esforços, pois busca sempre se aproximar cada vez mais de seu objetivo último, ao passo que as artes que buscam apenas a consecução de meios para um fim não são ilimitadas, pois o próprio fim almejado impõe-lhes seus limites, assim também, para a crematística, não há qualquer limite a seu objetivo último, que é o enriquecimento absoluto. A economia, e não a crematística, tem um limite [...] a primeira tem como finalidade algo distinto do dinheiro; a segunda visa ao aumento deste último [...]. A confusão entre essas duas formas, que se sobrepõem uma à outra, faz com que alguns concebam como fim último da economia a conservação e o aumento do dinheiro ao infinito”, Aristóteles, De Rep. [Política], cit., livro I, c. 8, 9 passim.

7 “As mercadorias” (aqui, no sentido de valores de uso), “não são o fim último do capitalista comerciante [...] seu fim último é o dinheiro”], T. Chalmers, On Politic. Econ. etc. (2. ed., Glasgow, 1832), p. 165-6.

8 “O mercador quase não leva em conta o lucro já realizado, mas olha sempre para o futuro”, A. Genovesi, Lezioni di economia civile (1765), em Custodi, Collezione, t. VIII, parte moderna, p. 139.

9 “A inextinguível paixão pelo ganho, a auri sacra fames [maldita fome por ouro] sempre conduzirá o capitalista”, MacCulloch, The Principles of Polit. Econ. (Londres, 1830), p. 179. É claro que essa concepção não impede que MacCulloch e consortes, quando se encontram em dificuldades teóricas – como ao tratar da superprodução –, transformem o mesmo capitalista num bom cidadão, voltado apenas ao valor de uso e que até mesmo desenvolve uma sede insaciável por botas, chapéus, ovos, tecidos de algodão e outros tipos extremamente familiares de valores de uso.

10 “SHzein” é uma das expressões características dos gregos para o entesouramento. Igualmente, o inglês “to save” têm os mesmos dois sentidos: salvar e poupar.

10a “A infinitude que as coisas não têm ao progredir, elas têm ao circular”, Galiani, Della moneta, cit., p. 156.

11 “Não é a matéria que forma o capital, mas o valor dessas matérias”, J. B. Say, Traité d’écon. polit. (3. ed., Paris, 1817), t. II, p. 429.

12 “O meio de circulação” (!) “que é empregado na produção de artigos [...] é capital”, Macleod, The Theory and Practice of Banking (Londres, 1885), v. I, c. 1, p. 55. “Capital is commodities” [“Capital é igual a mercadorias”], James Mill, Elements of Pol. Econ. (Londres, 1821), p. 74.

13 “Capital [...] valor que multiplica a si mesmo permanentemente”, Sismondi, Nouveaux principes d’écon. polit., t. I, p. 89.

Um comentário:

  1. - Existem algumas pequenas diferenças de revisão entre a versão que li (2013) e a que encontrei para postar aqui.
    - Poliglota rematado, Marx faz citações diretas em diversos idiomas (francês, inglês, grego, italiano etc.), que cortei para diminuir o tamanho da postagem.
    - As referências que vão para as páginas como asterisco asqui vieram como letras.
    - Há uma longa história até chegar a leitura deste livro mas, em resumo, há muitos anos eu sabia que ele seria a maior postagem de todo o tempo de existência deste blog. Cortei trechos que não gostaria de ter cortado e, anda assim, excedeu em muito o máximo que me impus.
    Fica aqui meu sincero pedido de desculpas à editora por ter me excedido.
    Chego, aqui, a uma espécie de limite – justamente, na verdade por tê-lo ultrapassado.

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