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sexta-feira, 14 de maio de 2021

Para entender O Capital: Livro I (Parte I), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-322-6

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★★☆

Análise em vídeo: Clique aqui

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Páginas: 336

Sinopse: Fruto dos mais de quarenta anos de cursos sobre O capital de Marx (livro I) lecionados pelo geógrafo marxista David Harvey em universidades ao redor do mundo, Para entender O capital é uma obra ao mesmo tempo sintética e densa, uma introdução para a compreensão de O capital, que chega em momento oportuno, de uma renovação do interesse pela análise das obras de Marx, em busca de um melhor entendimento das origens da falência econômica e dos nossos problemas atuais.

Apesar de os últimos trinta anos, mais particularmente desde a queda do muro de Berlim e do fim da Guerra Fria, não terem sido um período muito favorável ou fértil para a economia política marxiana, este livro ajuda a abrir a porta para que uma geração mais jovem, pouco familiarizada com esse pensamento, explore por conta própria o legado de Marx.

‘O que vejo é que aqueles que hoje desejam ler Marx estão muito mais interessados em engajamentos práticos; isso não significa que tenham medo de abstrações, mas que consideram o academicismo tedioso e irrelevante. Há muitos estudantes e ativistas que anseiam por uma forte base teórica para melhor apreender, de modo a situar e contextualizar seus próprios interesses e seu agir político’, diz Harvey na apresentação.

O economista Marcio Pochmann acerta ao comentar o livro no texto de orelha: ‘O trabalho disciplinado, incansável e pertinente do consagrado geógrafo David Harvey sobre o primeiro volume de O capital se torna, em sua leitura fácil e esclarecedora, um guia para entender e desenvolver a necessária contribuição da economia política de Karl Marx’. Para entender O capital é para Harvey realmente um ‘guia’ (mais do que uma introdução ou interpretação), que tem a pretensão de orientar uma primeira exploração da economia política de Marx a todos que desejam trilhar esse caminho. O geógrafo britânico encoraja o encontro pessoal do leitor com o texto de Marx para que, da luta direta com ele, possa começar a formar uma compreensão própria do pensamento marxiano. Ele ainda defende que é preciso deixar de lado preconceitos e um mundo de conotações, favoráveis ou não, que acompanham termos como ‘marxismo’ e ‘marxista’, pois só assim o leitor poderá captar o que Marx realmente tem a dizer.

Harvey também aconselha àqueles que tenham lido apenas excertos ou resumos d’O capital – não importa quão estrategicamente escolhidos – ou alguma exposição teórica das crenças políticas de Marx, a ler o livro como um texto integral. ‘Lendo O capital como um todo, é quase certo que você chegará a uma concepção bastante diferente do pensamento de Marx’, afirma.

O Livro I de O capital analisa o modo de produção capitalista do ponto de vista da produção, não do mercado nem do comércio global, mas exclusivamente da produção. Na época, Marx revelou uma grande compreensão daquilo que faz o capitalismo crescer do modo como cresce. ‘Para Marx, um conhecimento novo surge do ato de tomar blocos conceituais radicalmente diferentes, friccioná-los uns contra os outros e fazer arder o fogo revolucionário. E é o que ele faz n’O capital: combina tradições intelectuais divergentes para criar uma estrutura completamente nova e revolucionária para o conhecimento’, conclui o professor.



Uma das coisas curiosas do nosso sistema de ensino, a meu ver, é que, quanto melhor for seu treinamento numa disciplina, menos habituado ao método dialético você será. De fato, as crianças pequenas são muito dialéticas, veem tudo em movimento, em contradição e transformação. Temos de fazer um esforço enorme para que elas deixem de pensar dialeticamente. O que Marx pretende é recuperar o poder intuitivo do método dialético, que permite compreender que tudo está em processo, tudo está em movimento. Ele não fala simplesmente de trabalho, mas do processo de trabalho. O capital não é uma coisa, mas um processo que só existe em movimento. Quando a circulação cessa, o valor desaparece e o sistema começa a desmoronar. Veja o que aconteceu depois do 11 de Setembro de 2001, em Nova York: tudo ficou paralisado. Os aviões pararam de voar, as pontes e estradas foram fechadas. Três dias depois, percebeu-se que o capitalismo desmoronaria se as coisas não voltassem a se movimentar. Então, de repente, o prefeito Giuliani e o presidente Bush pediram que a população sacasse seus cartões de crédito e fosse às compras, voltasse à Broadway, lotasse os restaurantes. Bush chegou a aparecer num comercial da indústria aeroviária para encorajar os norte-americanos a voltar a voar.

O capitalismo não é nada se não estiver em movimento. Marx admira muito isso e não se cansa de evocar o dinamismo transformador do capital. Por isso é tão estranho que seja caracterizado com tanta frequência como um pensador estático, que reduz o capitalismo a uma configuração estrutural. Não, o que Marx procura n’O capital é um aparato conceitual, uma estrutura profunda que explique como o movimento se desenvolve concretamente no interior de um modo de produção capitalista. Consequentemente, muitos de seus conceitos são formulados mais como relações do que como princípios isolados; eles se referem a uma atividade transformadora.

Assim, conhecer e apreciar o método dialético d’O capital é essencial para compreender Marx em seus próprios termos.”

 

 

“O valor é “trabalho humano abstrato [...] objetivado [...] ou materializado” na mercadoria. Como esse valor pode ser medido? Em primeiro lugar, isso claramente nos remete ao tempo de trabalho. Contudo, como observei ao estabelecer a diferença entre trabalho concreto e abstrato, ele não pode ser o tempo de trabalho efetivamente despendido na produção, pois, desse modo, “quanto mais preguiçoso ou inábil for um homem, tanto maior o valor de sua mercadoria”. Portanto, o “trabalho que constitui a substância dos valores é trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho humana”. Para compreender o que significa esse “dispêndio da mesma força de trabalho humana”, é preciso olhar para “a força de trabalho conjunta da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias”. (117)

Falar de “força de trabalho conjunta da sociedade” é invocar tacitamente um mercado mundial que foi introduzido pelo modo de produção capitalista. Onde começa e onde termina essa “sociedade”, isto é, o mundo da troca capitalista de mercadorias? Neste exato momento, ela está presente na China, no México, no Japão, na Rússia, na África do Sul – trata-se de um conjunto global de relações. A medida do valor é derivada desse mundo inteiro de trabalho humano. Mas isso também valia, ainda que em menor escala, para a época de Marx. No Manifesto Comunista, há uma descrição brilhante daquilo que hoje chamamos de globalização:

Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países [...] ela roubou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas – indústrias que já não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo. Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos. No lugar do antigo isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações.[a]

É nesse terreno global dinâmico de relações de troca que o valor é determinado e redeterminado continuamente. Marx escreveu num contexto histórico em que o mundo se abria muito rapidamente para o mercado global pela navegação a vapor, pelas estradas de ferro e pelo telégrafo. E ele entendeu muito bem que o valor não era determinado no nosso quintal, ou mesmo no interior de uma economia nacional, mas surgia de um mundo inteiro de troca de mercadorias. E aqui ele usa novamente o poder da abstração para chegar à ideia de unidades de trabalho homogêneo, em que cada uma “é a mesma força de trabalho humana que a outra, na medida em que possui o caráter de uma força de trabalho social média e atua como tal força de trabalho social média”, como se essa redução à forma de valor ocorresse efetivamente no comércio mundial.

Isso permite que ele formule a definição crucial do valor como “tempo de trabalho socialmente necessário”, que “é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob as condições socialmente normais existentes e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho”. E conclui: “apenas a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo socialmente necessário de trabalho para a produção de um valor de uso pode determinar a sua grandeza de valor” (117).”

[a] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, cit., p. 43. (N. E.)

 

 

O objetivo de Marx é explicar a origem da forma-dinheiro. Diz ele (mais uma vez com a maior modéstia do mundo!):

Cabe, aqui, realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênese dessa forma-dinheiro, portanto seguir de perto o desenvolvimento da expressão de valor contida na relação de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até a ofuscante forma-dinheiro. Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do dinheiro. (125)

Ele realiza essa tarefa numa série de passos desajeitados, começando com uma simples situação de escambo. Eu tenho uma mercadoria, você tem uma mercadoria. O valor relativo da minha mercadoria será expresso em termos do valor (o trabalho incorporado) da mercadoria que você possui. Assim, sua mercadoria será a medida de valor da minha mercadoria. Invertendo a relação, minha mercadoria pode ser vista como o valor equivalente da sua. Em situações simples de escambo, todo indivíduo que tenha uma mercadoria possui algo com valor relativo e está à procura de seu equivalente em outra mercadoria. Assim como existem tantas mercadorias quanto pessoas e trocas, existem tantos equivalentes quanto mercadorias e trocas. O que Marx quer mostrar é que o ato de troca tem sempre um caráter duplo – os polos das formas relativa e equivalente – no qual a mercadoria equivalente figura “como incorporação de trabalho humano abstrato” (134). A oposição entre valor de uso e valor, até aqui interiorizada na mercadoria, “é representada, assim, por meio de uma oposição externa” entre uma mercadoria que é um valor de uso e outra que representa seu valor na troca (137).

Num terreno complexo de trocas como é o mercado, minha mercadoria tem inúmeros equivalentes potenciais e, inversamente, todo mundo tem valores relativos numa relação potencial com meu equivalente singular. Uma complexidade cada vez maior entre as relações de troca produz uma “forma desdobrada” de valor que se converte numa “forma universal” de valor (§ b, 138-41, e § c, 141-5). Esta se cristaliza, por fim, num “equivalente universal”: uma mercadoria que desempenha o papel exclusivo de mercadoria-dinheiro (§ d, 145-6). A mercadoria-dinheiro surge de um sistema de trocas, e não o precede, de modo que a proliferação e a generalização das relações de troca são a condição necessária, crucial, para a cristalização da forma-dinheiro.

Na época de Marx, mercadorias como o ouro e a prata desempenhavam esse papel crucial, mas em princípio ele poderia ser desempenhado por conchas de caurim, latas de atum ou – como às vezes ocorre, em condições de guerra – cigarros, barras de chocolate etc. Um sistema de mercado requer uma mercadoria-dinheiro de algum tipo para funcionar, mas uma mercadoria-dinheiro só pode surgir com o advento da troca mercantil. O dinheiro não foi imposto de fora, tampouco foi inventado por alguém que imaginou que seria uma boa ideia ter uma forma-dinheiro. Mesmo formas simbólicas, diz Marx, têm de ser entendidas nesse contexto.”

 

 

A objetividade do valor das mercadorias é diferente de Mistress Quickly[b], na medida em que não se sabe por onde agarrá-la. Exatamente ao contrário da objetividade sensível e crua dos corpos das mercadorias, na objetividade de seu valor não está contido um único átomo de matéria natural. Por isso, pode-se virar e revirar uma mercadoria como se queira, e ela permanece inapreensível como coisa de valor [Wertding]. Lembremo-nos, todavia, de que as mercadorias possuem objetividade de valor apenas na medida em que são expressões da mesma unidade social, do trabalho humano, pois sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é evidente que ela só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias. (125)

Este é um ponto absolutamente vital, que não podemos deixar de enfatizar: o valor é imaterial, porém objetivo. Dada a suposta adesão de Marx a um materialismo rigoroso, esse argumento é surpreendente, e devemos nos deter um pouco em seu significado. O valor é uma relação social, e não podemos ver, tocar ou sentir diretamente as relações sociais; no entanto, elas têm uma presença objetiva. É preciso, portanto, examinar com cuidado essa relação social e sua expressão.

Marx propõe a seguinte ideia: os valores, sendo imateriais, não podem existir sem um meio de representação. É o advento do sistema monetário, da própria forma-dinheiro como meio tangível de expressão, que faz do valor (como tempo de trabalho socialmente necessário) o regulador das relações de troca. Mas a forma-dinheiro só se aproxima do valor expresso – passo a passo, dado o argumento lógico – à medida que as relações de troca de mercadorias se propagam. Portanto, não existe nenhuma entidade universal externa chamada “valor” que, depois de muitos anos de luta, é finalmente expressa por meio da troca monetária. O que existe é uma relação interna e recíproca entre o advento da forma-dinheiro e as formas-valores. O surgimento da troca de mercadorias faz com que o tempo de trabalho socialmente necessário se torne a força norteadora no interior do modo de produção capitalista. Desse modo, o valor como tempo de trabalho socialmente necessário é algo historicamente específico ao modo de produção capitalista. Ele surge apenas numa situação em que o mercado cumpre a tarefa que se exige dele.

Da análise de Marx resultam duas conclusões e uma questão importante. A primeira conclusão é que as relações de troca, longe de ser epifenômenos que expressam a estrutura profunda do valor, existem numa relação dialética com os valores, de modo que estes dependem daquelas, tanto quanto aquelas dependem destes. A segunda conclusão confirma o status imaterial (fantasmagórico), porém objetivo, do conceito de valor. Todas as tentativas de medir diretamente o valor estão condenadas ao fracasso. A questão diz respeito ao grau de confiabilidade e precisão da representação monetária do valor ou, em outras palavras, a como a relação entre imaterialidade (valor) e objetividade (tal como capturada pela representação monetária do valor) desdobra-se na realidade.

Marx trata desse problema numa série de passos. Comenta: “Somente a expressão de equivalência de diferentes tipos de mercadoria evidencia o caráter específico do trabalho criador de valor, ao reduzir os diversos trabalhos contidos nas diversas mercadorias àquilo que lhes é comum: o trabalho humano em geral” (65). Aqui encontramos uma resposta parcial à questão sobre como ocorre a redução de trabalho humano especializado e complexo a trabalho humano simples. Mas ele prossegue: “A força humana de trabalho em estado fluido” – e é impressionante a frequência com que Marx invoca o conceito de fluidez n’O capital – “ou trabalho humano, cria valor, mas não é, ela própria, valor. Ela se torna valor em estado cristalizado, em forma objetiva” (128). Portanto, é preciso estabelecer uma distinção entre o processo de trabalho e a coisa que é produzida. Essa ideia de uma relação entre processos e coisas, juntamente com a ideia de fluidez, é importante na análise de Marx. Quanto mais as invoca, mais se distancia da dialética como lógica formal e se aproxima de uma dialética como filosofia do processo histórico. O trabalho humano é um processo tangível, mas no fim desse processo chegamos a esta coisa – uma mercadoria – que “coagula” ou “cristaliza” valor. Embora seja o processo efetivo o que importa, a coisa é que tem valor, a coisa é que possui qualidades objetivas. Assim: “Para expressar o valor do linho como geleia de trabalho humano, ela tem de ser expressa como uma ‘objetividade’ materialmente distinta do próprio linho e simultaneamente comum ao linho e a outras mercadorias” (128).

O problema é: como é representado o valor, essa “objetividade materialmente distinta do próprio linho”? A resposta está na forma da mercadoria-dinheiro. Mas, observa ele, há algumas peculiaridades nessa relação entre o valor e sua expressão na forma-dinheiro. “A primeira peculiaridade que se sobressai na consideração da forma equivalente”, diz Marx, é que um valor de uso particular “se torna a forma de manifestação de seu contrário, do valor”, e isso “esconde em si uma relação social” (133-4).

[b] Personagem do drama histórico Henrique IV, de Shakespeare. Marx usa a forma alemã do nome, Wittib Hurtig. (N. T.)

 

 

“Considero o conceito de fetichismo fundamental tanto para a economia política como para o argumento de Marx em seu conjunto. De fato, ele se une indissoluvelmente a ambos.

A análise é feita em dois passos. Primeiro, ele identifica como o fetichismo surge e opera como um aspecto fundamental e inevitável da vida político-econômica sob o capitalismo. Em seguida, analisa como esse fetichismo é enganosamente representado no pensamento burguês, em geral, e na economia política clássica, em particular.

A mercadoria, diz ele para começar, é “plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”: “O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste [...] simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas” (146-7). O problema é que “a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais que dela resultam”. Nossa experiência sensível da mercadoria como valor de uso não tem nada a ver com seu valor. As mercadorias são, portanto, “coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais”. O resultado é que uma “relação social determinada entre os próprios homens [...] assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. E é essa condição que define o “fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias” (147-8).

Isso acontece, diz ele, porque “os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho”, de modo que “os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito” da troca mercantil. Em outras palavras, eles não sabem nem podem saber qual é o valor de sua mercadoria antes de levá-la ao mercado e efetivar sua troca. “A estes últimos [os produtores], as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são.” Note especialmente este trecho: aparecem como aquilo que elas são, “isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas” (148).

O que está em questão aqui? Digamos que você vá ao supermercado para comprar alface. Para comprá-la, tem de desembolsar certa quantia de dinheiro. A relação material entre o dinheiro e a alface expressa uma relação social, porque o preço – o “quanto” – é socialmente determinado, é uma representação monetária do valor. O que está por trás dessa troca mercantil de coisas é uma relação entre você, o consumidor, e os produtores diretos, aqueles que trabalharam para produzir a alface. Para comprar a alface, você não precisa conhecer o trabalho daqueles que incorporaram valor a ela; contudo, em sistemas altamente complexos de troca, é impossível conhecer a atividade dos trabalhadores, e é isso que torna o fetichismo inevitável no mercado mundial. O resultado é que nossa relação social com as atividades laborais dos outros é dissimulada em relações entre coisas. No supermercado, por exemplo, você não tem como saber se a alface foi produzida por trabalhadores satisfeitos, miseráveis, escravos, assalariados ou autônomos. A alface é muda, por assim dizer, no que diz respeito a como foi produzida e a quem a produziu. (...)

Esse fetichismo é uma condição inevitável do modo de produção capitalista, e tem diversas implicações. Por exemplo:

[os homens] não relacionam entre si seus produtos do trabalho como valores por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano de mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes trabalhos como trabalho humano. (149)

Vemos mais uma vez que os valores surgem de processos de troca, mesmo quando as relações de troca convergem progressivamente para expressar o valor como tempo de trabalho socialmente necessário.

[Os produtores] não sabem disso, mas o fazem. Por isso, na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar o sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem. (149)

A relação dialética entre a formação e o intercâmbio do valor e as qualidades imateriais e fantasmagóricas do valor como uma relação social não poderia ser mais bem retratada.

Mas como essa dialética pode ser reproduzida no pensamento? Segundo Marx, muitos economistas políticos entenderam (e ainda entendem) isso como errado, porque veem os preços nos supermercados e acham que isso é tudo, e que essa é a única evidência material de que precisam para construir suas teorias. Eles simplesmente examinam a relação entre oferta e demanda e as variações de preço associadas a ela. Outros, mais atentos, chegam à “descoberta científica tardia de que os produtos do trabalho, como valores, são meras expressões materiais do trabalho humano despendido em sua produção”. Isso “fez época na história do desenvolvimento da humanidade” (149). A economia política clássica convergiu pouco a pouco para uma ideia de valor por trás das flutuações do mercado (frequentemente denominadas “preços naturais”) e reconheceu que o trabalho humano tem a ver com isso.

Mas a economia política clássica não conseguiu captar o hiato entre a imaterialidade dos valores como tempo de trabalho socialmente necessário “cristalizado” e sua representação como dinheiro; portanto, também não conseguiu entender o papel que a proliferação da troca tem na consolidação da forma-valor como algo historicamente específico ao capitalismo. Supôs que os valores eram uma verdade evidente e universal e não viu que

o caráter de valor dos produtos do trabalho se fixa apenas por meio de sua atuação como grandezas de valor. Estas variam constantemente, independentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca. Seu próprio movimento social possui, para eles, a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle eles se encontram, em vez de eles as controlarem. (150)

É assim que Marx começa a atacar a concepção liberal de liberdade. A liberdade do mercado não é liberdade, é uma ilusão fetichista. No capitalismo, os indivíduos se rendem à disciplina de forças abstratas (como a mão invisível do mercado, criada em grande parte por Adam Smith), que efetivamente governam suas relações e escolhas. Posso fabricar uma coisa bonita e levá-la ao mercado, mas, se eu não conseguir trocá-la, ela não terá nenhum valor. Consequentemente, não terei dinheiro suficiente para comprar as mercadorias de que preciso para viver. As forças do mercado, que ninguém controla individualmente, regulam todos nós. E uma das coisas que Marx pretende fazer n’O capital é falar desse poder regulador que ocorre mesmo “nas relações de troca contingentes e sempre oscilantes de seus produtos”. As flutuações de oferta e demanda geram flutuações de preço em torno de uma norma, mas não podem explicar por que um par de sapatos é trocado, em média, por quatro camisas. No interior de toda a confusão do mercado, “o tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção [da mercadoria] se impõe com a força de uma lei natural reguladora, tal como a lei da gravidade se impõe quando uma casa desaba sobre a cabeça de alguém” (150). Esse paralelo entre a gravidade e o valor é interessante: ambos são relações, e não coisas, e ambos têm de ser conceituados como imateriais, porém objetivos.

Isso conduz Marx diretamente à crítica da evolução dos modos burgueses de pensamento em relação à propagação das relações de troca e do advento da forma-dinheiro:

A reflexão sobre as formas da vida humana e, assim, também sua análise científica, percorre um caminho contrário ao do desenvolvimento real. [...] Assim, somente a análise dos preços das mercadorias conduziu à determinação da grandeza do valor, e somente a expressão monetária comum das mercadorias conduziu à fixação de seu caráter de valor. Porém, é justamente essa forma acabada – a forma-dinheiro – do mundo das mercadorias que vela materialmente, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores privados. (150) (...)

Uma olhada nessa história mostra as limitações das supostas verdades universais da teoria burguesa. “Saltemos, então, da iluminada ilha de Robinson para a sombria Idade Média europeia.” Se esta é sombria, suas relações sociais são, ao contrário, bastante claras. Sob o sistema da corveia, diz Marx, “cada servo sabe que o que ele despende a serviço de seu senhor é uma quantidade determinada de sua força pessoal de trabalho”; os vassalos tinham consciência de que “as relações sociais das pessoas em seus trabalhos aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações sociais entre coisas, entre produtos de trabalho” (152). O mesmo vale para a dinâmica rural e patriarcal de uma família camponesa: as relações sociais são transparentes, e podemos ver quem está fazendo o que e para quem.

Tais comparações históricas, juntamente com a análise do fetichismo, permitem-nos vislumbrar a natureza contingente, portanto não universal, das verdades estabelecidas pela economia política burguesa. “Por isso, todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção” (151). Podemos até imaginar as relações sociais organizadas como “uma associação de homens livres”, isto é, um mundo socialista no qual “as relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos do trabalho permanecem [...] transparentemente simples, tanto na produção quanto na distribuição” (153). Ao falar da ideia de associação, Marx ecoa muito do pensamento socialista utópico francês dos anos 1830 e 1840 (em particular Proudhon, embora Marx não reconheça isso). Sua esperança é que possamos ir além do fetichismo das mercadorias e tentar estabelecer, por meio de formas associativas, um modo de relação diferente. Se isso é viável ou não é uma questão fundamental que qualquer leitor de Marx tem de considerar; mas esse é um dos raros momentos n’O capital em que temos um vislumbre da visão de Marx de um futuro socialista.”

 

 

A missão de Marx n’O capital, porém, é conceber uma ciência para além do fetichismo imediato, sem negar sua realidade. Ele lançou as bases para isso na crítica da economia política burguesa. Também mostrou a que ponto somos governados pelas forças abstratas do mercado naquilo que fazemos e como estamos constantemente ameaçados de ser governados por construtos fetichistas, que nos impedem de ver o que está acontecendo. Até que ponto você pode dizer que vive numa sociedade livre, caracterizada pela verdadeira liberdade individual? As ilusões de uma ordem liberal utópica, na visão de Marx, têm de ser desmascaradas como aquilo que são: uma réplica daquele fetichismo que perverte as relações sociais entre pessoas, transformando-as em relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas.”

 

 

“A mercadoria-dinheiro interioriza uma dualidade, pois tanto é mercadoria – no sentido ordinário de ser um produto do trabalho – quanto “adquire um valor de uso formal, que deriva de suas funções sociais específicas”. Nessa função social formal, “a forma-dinheiro é apenas o reflexo, concentrado numa única mercadoria, das relações de todas as outras mercadorias” (164).

Além disso, é perfeitamente possível substituir a mercadoria-dinheiro “por simples signos de si mesmo” para cumprir esse papel. Mas essa capacidade de substituição não causa surpresa, já que “cada mercadoria seria um signo, uma vez que, como valor, ela é tão somente um invólucro reificado do trabalho humano nela despendido” (165). Marx acena aqui com a possibilidade de incorporar diretamente em sua análise muitos aspectos daquilo que atualmente costumamos chamar de “economia simbólica”. Ele não tenta fazer isso, porque, sem dúvida, exigiria mudanças no modo de apresentação, mas é importante notar que os aspectos simbólicos do modo de funcionamento do capitalismo não são alheios a seu argumento. Aqueles que afirmam que o capitalismo é diferente hoje, devido ao grau de preponderância que o capital e a economia simbólicos passaram a exercer, e que, em consequência disso, o capitalismo teria mudado de foco, deveriam perceber que as coisas não são necessariamente assim.

O perigo está em tratar essas qualidades simbólicas – que são muito importantes – como se fossem puramente imaginárias ou como produtos arbitrários da reflexão dos homens. O que Marx sugere é que mesmo a mercadoria-dinheiro não pode realizar seu valor específico sem a troca com todas as outras mercadorias como equivalentes, ainda que, para isso, finja ser o equivalente universal de todas as outras mercadorias. “A dificuldade”, diz ele, “não está em compreender que dinheiro é mercadoria, mas em descobrir como, por que e por quais meios a mercadoria é dinheiro” (186): “Uma mercadoria não parece se tornar dinheiro porque as outras mercadorias expressam nela seu valor universalmente, mas, ao contrário, estas é que parecem expressar nela seus valores universalmente pelo fato de ela ser dinheiro” (187, grifos meus).

Em outras palavras, uma vez que exista dinheiro, as mercadorias encontram um meio de medir seu próprio valor simplesmente agindo como se o ouro, tal como surge “das entranhas da terra”, fosse “a encarnação imediata de todo trabalho humano”. Essa, diz ele, é a “mágica do dinheiro” que tem de ser desvendada. “O enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche da mercadoria, que agora se torna visível e ofusca a visão” (167).

Mas há outra questão vital nesse capítulo. Com a “mágica” e o “fetiche” do dinheiro firmemente estabelecidos,

o comportamento meramente atomístico dos homens em seu processo social de produção e, com isso, a figura reificada de suas relações de produção, independentes de seu controle e de sua ação individual consciente, manifestam-se, de início, no fato de que os produtos de seu trabalho assumem universalmente a forma da mercadoria. (167)

Isso se parece muito com a visão de Adam Smith de um mercado de funcionamento perfeito, cuja mão invisível guia as decisões individuais. Ninguém está no comando, e cada um tem de agir de acordo com o que Marx chama mais tarde de “leis coercitivas da competição” (446).

No mundo ideal de Smith, o Estado criaria o arcabouço institucional para o funcionamento perfeito dos mercados e da propriedade privada e a riqueza do Estado e o bem-estar dos cidadãos cresceriam rapidamente, à medida que a iniciativa individual e o empreendedorismo, guiados pela mão invisível do mercado, produzissem resultados que beneficiassem a todos. Nesse mundo, segundo acredita Smith, as intenções e as motivações dos indivíduos (que variam desde a ganância até a missão social) não importam, pois a mão invisível do mercado se encarregaria de tudo.

Esse capítulo apresenta-nos uma charada. De um lado, Marx dedica uma nota de rodapé para condenar o fato de Proudhon aceitar as noções burguesas de direitos e legalidade, alegando que isso não contribui em nada para a construção de uma alternativa revolucionária. No entanto, no próprio texto do capítulo, Marx parece aceitar a teoria liberal da propriedade, a reciprocidade e a equivalência da troca mercantil não coercitiva entre indivíduos jurídicos e até mesmo a mão invisível do mercado tal como proposta por Adam Smith. Como resolver essa contradição aparente? Creio que a resposta é bastante simples, mas a pergunta tem ramificações importantes sobre o modo como leremos o restante d’O capital.

Marx está engajado numa crítica da economia política liberal clássica. Por isso, acredita que é necessário aceitar as teses do liberalismo (e, por extensão, as do neoliberalismo) para mostrar que os economistas políticos clássicos estavam profundamente equivocados em seus próprios termos. Assim, mais do que dizer que os mercados de funcionamento perfeito e a mão invisível não podem ser construídos e que o mercado é sempre distorcido pelo poder político, ele aceita a visão liberal utópica de mercados perfeitos e mão invisível para mostrar que eles jamais produzirão um resultado benéfico, mas, ao contrário, tornarão a classe capitalista inconcebivelmente rica e empobrecerão os trabalhadores e o restante da população na mesma proporção.

Isso se traduz numa hipótese sobre o capitalismo realmente existente: quanto mais estruturado e organizado segundo essa visão utópica liberal e neoliberal é esse capitalismo, maiores são as desigualdades de classe. E é desnecessário dizer que há evidências suficientes para apoiar a visão de que a retórica do livre mercado e do livre-comércio e seus supostos benefícios universais, à qual fomos submetidos nos últimos trinta anos, produziu exatamente o resultado esperado por Marx: uma concentração maciça de riqueza e de poder numa ponta da escala social, concomitante ao empobrecimento crescente de todos os demais. Mas, para prová-lo, Marx tem de aceitar as bases institucionais do utopismo liberal, e é precisamente isso que ele faz nesse capítulo.”

 

 

“O que Marx conseguiu com seu modo de análise foi construir um caminho convincente de entendimento do nexo frágil e problemático entre o valor (o tempo de trabalho socialmente necessário incorporado nas mercadorias) e as formas com que o sistema monetário representa esse valor. Ele revela não só o que é fictício e imaginário nessas representações e em suas consequentes contradições, mas também que o modo de produção capitalista não pode funcionar sem esses elementos ideais. Não podemos eliminar o fetichismo, como ele mesmo observou, e estamos condenados a viver num mundo às avessas, de relações materiais entre pessoas e de relações sociais entre coisas.”

 

 

“Marx afirma que só podemos entender corretamente a história se olharmos retrospectivamente do ponto em que nos encontramos hoje.”

 

 

O dinheiro pode ser usado para fazer circular as mercadorias, para medir o valor, para armazenar riqueza, e assim por diante. O capital, no entanto, é dinheiro usado de modo determinado. Não apenas o processo D-M-D é uma inversão do processo M-D-M, mas, como Marx observou no capítulo anterior, “o dinheiro não se apresenta como meio de circulação, como mera forma evanescente e mediadora do metabolismo, mas como a encarnação individual do trabalho social, existência autônoma do valor de troca, mercadoria absoluta” (211). A representação do valor (dinheiro), em outras palavras, torna-se o escopo e o objetivo da circulação. Esse processo de circulação, no entanto, “seria absurdo e vazio se a intenção fosse realizar, percorrendo seu ciclo inteiro, a troca de um mesmo valor em dinheiro pelo mesmo valor em dinheiro, ou seja, £100 por £100” (224). A troca de valores iguais é perfeitamente correta com respeito a valores de uso, portanto o que importa é a qualidade. Mas a única razão lógica para entrar na circulação D-M-D, como vimos no capítulo 3, é ter mais valor no final do que no começo. Depois de certo esforço, Marx chega à conclusão bastante óbvia:

Assim, o processo D-M-D não deve seu conteúdo a nenhuma diferença qualitativa de seus extremos, pois ambos são dinheiro, mas apenas à sua distinção quantitativa. Ao final do processo, mais dinheiro é tirado de circulação do que nela fora lançado inicialmente. O algodão comprado por £100 é revendido por 100 + £10, ou por £110. A forma completa desse processo é, portanto, D-M-D’, onde D’ = D + ΔD, isto é, à quantia de dinheiro inicialmente adiantada mais um incremento. Esse incremento, ou excedente sobre o valor original, chamo de mais-valor (surplus value). (227)

Com isso, chegamos pela primeira vez ao conceito de mais-valor, que, evidentemente, é fundamental para toda a análise marxiana.

O que acontece é que “o valor originalmente adiantado não se limita, assim, a conservar-se na circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa grandeza um mais-valor, ou se valoriza. E esse movimento o transforma em capital” (227). Aqui, finalmente, está a definição de “capital”. Para Marx, o capital não é uma coisa, mas um processo – mais especificamente, um processo de circulação de valores. Tais valores são incorporados em diferentes coisas em vários pontos do processo: inicialmente, como dinheiro e, em seguida, como mercadoria, antes de retornar à forma-dinheiro.

Ora, essa definição do capital como processo é de extrema importância. Ela marca um distanciamento radical em relação à definição que encontraremos na economia política clássica, em que o capital era tradicionalmente entendido como um estoque de recursos (máquinas, dinheiro etc.), assim como em relação à definição predominante na ciência econômica convencional, na qual o capital é visto como uma coisa, um “fator de produção”. Na prática, a ciência econômica convencional tem uma grande dificuldade em medir (valorar) o fator de produção que é capital. Assim, eles simplesmente o rotulam de K e o inserem em suas equações. Mas, na realidade, se você pergunta “o que é K e como obtemos uma medida dele?”, a questão está longe de ser simples. Os economistas lançam mão de todos os tipos de medidas, mas não conseguem chegar a um consenso sobre o que o capital realmente “é”. Ele existe, com efeito, na forma de dinheiro, mas também existe como máquinas, fábricas e meios de produção; e como atribuir um valor monetário independente aos meios de produção, independente do valor das mercadorias que eles ajudam a produzir? Como ficou evidenciado na assim chamada controvérsia sobre o capital no início dos anos 1970, toda a teoria econômica contemporânea corre o perigoso risco de estar fundada numa tautologia: o valor monetário de K na forma física de riqueza é determinado por aquilo que ele deveria explicar, a saber, o valor das mercadorias produzidas[1] (186-7).

Uma vez mais, Marx vê o capital como um processo. Eu poderia fazer capital agora mesmo, bastando tirar dinheiro do meu bolso e colocá-lo em circulação para fazer mais dinheiro. Ou eu poderia tirar capital de circulação simplesmente resolvendo recolocar o dinheiro no meu bolso. Segue-se, então, que nem todo dinheiro é capital. O capital é dinheiro usado de uma certa maneira. A definição de capital não pode ser divorciada da escolha humana de lançar o dinheiro-poder nesse modo de circulação. Mas isso coloca todo um conjunto de problemas. Antes de tudo, há a questão de quanto incremento o capital pode render. Lembremo-nos que uma das descobertas no capítulo sobre o dinheiro foi que a acumulação de dinheiro-poder é potencialmente ilimitada; Marx a repete aqui (210-1, 230-1). Seu significado pleno, no entanto, só será desenvolvido mais tarde (particularmente nos capítulos 21 e 22).

Diz Marx: “como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro” (229). Disso se segue que “o valor de uso jamais pode ser considerado a finalidade imediata do capitalista”. Quer dizer, o capitalista produz valores de uso apenas para ganhar valor de troca. Na verdade, o capitalista não se preocupa sobre qual ou que tipo de valor de uso é produzido; poderia ser qualquer tipo de valor de uso, contanto que ele permita ao capitalista obter o mais-valor. A finalidade do capitalista é, o que não surpreende, o “incessante movimento da obtenção de ganho” (229). Isso parece o enredo de Eugênia Grandet, de Balzac[d]!

Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça apaixonada ao valor é comum ao capitalista e ao entesourador, mas, enquanto o entesourador é apenas um capitalista louco, o capitalista é o entesourador racional. O aumento incessante do valor, objetivo que o entesourador procura atingir conservando seu dinheiro fora da circulação, é atingido pelo capitalista, que, mais inteligente, recoloca o dinheiro constantemente em circulação. (229)

Portanto, o capital é valor em movimento. Mas é valor em movimento que se manifesta em diferentes formas. “Ora, se tomarmos as formas particulares de manifestação” – note a repetição desta frase – “que o valor que se autovaloriza assume sucessivamente no decorrer de sua vida, chegaremos a estas duas proposições: capital é dinheiro, capital é mercadoria” (169). Agora Marx explicita a definição processual do capital:

Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, ao mesmo tempo que assume constantemente a forma do dinheiro e da mercadoria, modifica sua própria grandeza, distanciando-se de si mesmo como valor original ao se tornar mais-valor, ao valorizar a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de adicionar valor. Ele pare filhotes, ou pelo menos põe ovos de ouro. (230) (...)

Nesse exemplo, as qualidades “ocultas” do capital e sua capacidade aparentemente mágica de pôr “ovos de ouro” existem apenas no reino da aparência. Mas não é difícil ver por que esse construto fetichista poderia ser tomado como real – o sistema de produção capitalista depende exatamente dessa ficção. Você já se perguntou de onde vem o crescimento? Tendemos a supor que essa expansão simplesmente pertence à natureza do dinheiro. (...) Mas parece que o dinheiro que você tem guardado no banco cresce de acordo com a taxa de juro. Marx quer saber o que está por trás desse fetiche. Esse é o mistério que tem de ser solucionado.

Segundo ele, há um momento nesse processo de circulação ao qual sempre retornamos e que, por essa razão, parece ser mais importante que os outros. Esse é o momento do dinheiro: D-D. Por quê? Porque o dinheiro é a representação universal e a medida definitiva do valor. Portanto, é apenas no momento do dinheiro – o momento da universalidade capitalista – que podemos perceber onde estamos em relação ao valor e ao mais-valor. É difícil perceber isso apenas olhando para a particularidade das mercadorias. O dinheiro “constitui, por isso, o ponto de partida e de chegada de todo processo de valorização”. No exemplo de Marx, a conclusão do processo, que começou com um investimento de 100 libras, resulta em 110 libras: “O capitalista sabe que toda mercadoria, por mais miserável que seja sua aparência ou por pior que seja seu cheiro, é dinheiro, não só em sua fé, mas também na realidade; que ela é, internamente, um judeu circuncidado e, além disso, um meio milagroso de se fazer mais dinheiro a partir do dinheiro”. (...)

Retornando ao texto, encontramos Marx ainda às voltas com a aparência fetichista:

Se na circulação simples o valor das mercadorias atinge no máximo uma forma independente em relação a seus valores de uso, aqui ele se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras formas. E mais ainda. Em vez de representar relações de mercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação privada consigo mesmo. Como valor original, ele se diferencia de si mesmo como mais-valor, tal como Deus Pai se diferencia de si mesmo como Deus Filho [...]. O valor se torna, assim, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. (230-1)

O próximo passo na definição fundamental de capital é: valor em processo, dinheiro em processo. E isso é muito diferente de capital como estoque fixo de recursos ou fator de produção. (Mas é Marx, e não os economistas, que é criticado por suas formulações supostamente estáticas e “estruturais”!) O capital “sai da circulação, volta a entrar nela, conserva-se e multiplica-se em seu percurso, sai da circulação aumentado e começa o mesmo circuito novamente” (231). O poderoso sentido do fluxo é palpável. Capital é processo, e ponto final.

Marx retorna brevemente aos capitais comercial e usurário (seu ponto de partida histórico, mais do que lógico). Embora o que realmente lhe importa seja o capital industrial, ele tem de reconhecer que existem estas duas outras formas de circulação: o capital comercial (comprar barato para vender mais caro) e o capital a juros, por meio dos quais também se pode realizar uma aparente autoexpansão do valor. Vemos, assim, diferentes possibilidades: o capital industrial, o capital comercial e o capital a juros, todos na forma de circulação D-M-D + ΔD. Tal forma de circulação, conclui ele, “é a fórmula geral do capital tal como ele aparece imediatamente na esfera da circulação”. É essa forma de circulação que temos de analisar em detalhes para desmistificar suas qualidades “ocultas”.”

[1] Marx cita a mesma definição tautológica do capital apresentada na teoria da circulação de J. B. Say.

[d] Em A comédia humana (3. ed., Rio de Janeiro, Globo, 1955), v. 5. (N. E.)

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