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domingo, 17 de janeiro de 2021

Os limites do capital (Parte II), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-358-5

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 592

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Sinopse: Ver Parte I


Quando o capital é mantido na forma de mercadoria ele existe como capital-mercadoria. Mas como o capital só permanece capital se for valor em movimento, esse capital-mercadoria deve ser continuamente convertido em capital monetário para manter o seu caráter como capital. A velocidade e a eficiência dessa transformação são de grande importância para o capitalista. O tempo de curso (período em que o capital assume a forma de mercadoria) afeta o tempo de rotação e, assim, a taxa de lucro. A transformação incorre em alguns custos que são deduções necessárias do mais-valor produzido – negociar uma mercadoria aufere valor, mas não o cria. Reduzir o tempo de circulação e economizar nos custos de circulação necessários é importante para os capitalistas envolvidos na produção, porque, por ambos os meios, aumenta o mais-valor que permanece em suas mãos. Isso proporciona uma oportunidade para o capital mercantil. O comerciante assume todos os custos e a responsabilidade pelo marketing em troca de uma fatia do mais-valor produzido. Com a equalização da taxa de lucro, o comerciante deve receber exatamente a mesma taxa de lucro que o produtor sobre o capital adiantado. A vantagem de tudo isso para os produtores capitalistas é, evidentemente, uma redução do tempo de rotação e economias nos custos de circulação (por meio de economias de escala, especialização da função etc.).

Colocado em termos de valor, isso significa que os produtores vendem abaixo do valor para os comerciantes, que então vendem a mercadoria pelo seu valor. A diferença é uma apropriação do mais-valor que cobre as necessárias despesas incorridas e o lucro sobre o capital que o comerciante adianta. Isso coloca o capital dos comerciantes em uma relação estranha com a produção de mais-valor. Por um lado, a relação é parasitária no sentido de que o comerciante não cria valor, mas simplesmente se apropria dele. Por outro lado, o capital dos comerciantes pode expandir o mais-valor obtido pelo produtor mediante a aceleração da rotação do capital e da redução dos custos necessários da circulação.”

 

 

“Quando o capital assume a forma-dinheiro e se torna capital monetário, ele se manifesta como capital em sua forma mais pura – como valor de troca divorciado de qualquer valor de uso específico. O paradoxo, é claro, é que ele não pode manter seu caráter como capital sem ser colocado em circulação em busca de lucro. O processo normal de circulação no modo capitalista de produção envolve o uso do capital monetário para criar mais-valor mediante a produção de mercadorias. Isso implica que o valor de uso do capital monetário seja capaz de regular a força de trabalho e os meios de produção, que podem então ser usados para produzir valor maior do que o dinheiro originalmente representado. A capacidade para produzir mais-valor parece ser então uma força do próprio capital monetário. O capital monetário, em consequência, torna-se uma mercadoria como qualquer outra. Ele processa um valor de uso e um valor de troca. Esse valor de troca é a taxa de juros.

O “capital que rende juros”, observa Marx, “é o fetiche automático consumado […], dinheiro fazendo dinheiro, e dessa forma ele não mais carrega nenhum traço da sua origem”[73]. “[Para o] economista comum, que deseja representar o capital como uma fonte de valor independente, uma fonte que cria valor, essa forma é, evidentemente, um presente dos deuses, uma forma em que a fonte do lucro não é mais reconhecível.”

O resultado é que o juro sobre o capital monetário torna-se separado do que Marx chama de “lucro da empresa” – o rendimento obtido do envolvimento na produção real de mercadorias. A separação surge porque, quando os capitalistas individuais seguram o dinheiro, eles têm a escolha de colocá-lo em circulação como capital monetário gerando juro, ou colocá-lo diretamente em circulação por meio da produção de mercadorias. Essa escolha de algum modo depende da organização da própria produção, porque a aquisição de grandes itens – fábrica e maquinário, por exemplo – envolve o açambarcamento ou um sistema do capitalista economizando e fazendo empréstimos para amenizar o que do contrário seria um processo de investimento extremamente irregular. (...)

Nosso interesse, aqui, é mostrar que a diferença entre o capital em forma de dinheiro ou em forma produtiva finalmente conduz à separação entre o juro sobre o capital monetário e o lucro da empresa. Essa distinção atinge uma divisão do excedente em duas formas diferentes, que podem finalmente se cristalizar em uma divisão entre os capitalistas monetários e os empresários produtores. Embora ambos tenham um interesse comum na expansão do mais-valor, eles não necessariamente se entendem quando se trata da divisão do mais-valor produzido.”

[73] Idem, Theories of Surplus Value, cit., parte 3, p. 455.

 

 

“Marx frequentemente faz uso do conceito de equilíbrio em sua obra. Devemos especificar a interpretação a ser dada a ela; do contrário estamos correndo o risco de interpretar mal a sua análise. Ao considerar a oferta e a demanda, por exemplo, Marx comenta que “quando duas forças operam igualmente em direções opostas, elas equilibram uma à outra, não exercem influência externa, e nenhum fenômeno que ocorra nessas circunstâncias deve ser explicado por outras causas além do efeito dessas duas forças”. Por isso, “se a oferta e a demanda equilibram uma à outra, elas deixam de explicar qualquer coisa”, e, em consequência, “as verdadeiras leis internas da produção capitalista não podem ser explicadas pela interação da oferta e da demanda”[23]. O equilíbrio entre a oferta e a demanda é alcançado apenas mediante uma reação contra a constante perturbação do equilíbrio.

Como prova dessa última proposição, Marx cita os eternos ajustes alcançados por meio da competição, o que inquestionavelmente mostra “que há algo a ajustar e, por isso, a harmonia é sempre apenas um resultado do movimento que neutraliza a desarmonia existente”. Além disso, “os necessários equilíbrio e interdependência das várias esferas da produção” não podem ser alcançados exceto “através da constante neutralização de uma desarmonia constante”[24].

Tudo isso soa e é bastante convencional. O que diferencia Marx da economia política burguesa (tanto antes quanto a partir dela) é a ênfase que ele coloca na necessidade de saídas do equilíbrio e o papel fundamental das crises na restauração desse equilíbrio. Os antagonismos incorporados dentro do modo de produção capitalista são tais que o sistema está sendo constantemente obrigado a se distanciar de um estado de equilíbrio. No curso normal dos acontecimentos, insiste Marx, um equilíbrio só pode ser alcançado por acidente[25]. Assim, ele inverte a proposição ricardiana de que o desequilíbrio é acidental e procura identificar as forças internas ao capitalismo que geram desequilíbrio. Mas, para fazer isso, Marx tem de gerar conceitos de equilíbrio adequados para tal tarefa. E é exatamente por essa razão que ele achou necessário ir além da aparência superficial da demanda e da oferta e até mesmo das caracterizações da produção e do consumo para articular uma teoria do valor apropriada ao seu propósito. Só depois que a teoria do valor fizer o seu trabalho podemos voltar às questões da oferta e da demanda e da produção e do consumo para explorá-las em detalhes. Enquanto isso, o centro da atenção se desloca para aquele da produção e da realização do mais-valor como capital – pois, afinal, é realmente nisso que se resume o modo de produção capitalista.”

[23] Ibidem, p. 190.

[24] Idem, Theories of Surplus Value, cit., parte 2, p. 529.

[25] Idem, Capital, Livro II, cit., p. 495.

 

 

“Lembre-se, antes de tudo, que o capital é definido como um processo – como um valor “em processo” que passa por uma expansão contínua mediante a produção de mais-valor. (...) Em sua forma mais simples, e considerado a partir do ponto de vista do capitalista individual, o capital circula através de três fases básicas. Na primeira, o capitalista atua como um comprador nos mercados de mercadorias (incluindo o mercado para a força de trabalho). Na segunda, o capitalista atua como um organizador da produção; e na terceira, ele aparece no mercado como um vendedor. O valor assume uma aparência material diferente em cada fase: na primeira, aparece como dinheiro, na segunda como um processo de trabalho e, na terceira, como uma mercadoria material. A circulação do capital pressupõe que as translações contínuas possam ocorrer de uma fase para outra sem qualquer perda de valor. As translações não são automáticas, e as diferentes fases são separadas tanto no tempo como no espaço. Em consequência, “surgem relações de circulação e também de produção que são muitas minas para explodir” o funcionamento tranquilo da sociedade burguesa:

O ciclo do capital só se desenrola normalmente enquanto suas distintas fases se sucedem sem interrupção. Se o capital estaciona na segunda fase D-M, o capital monetário se enrijece como tesouro; se na fase da produção, tem-se, de um lado, que os meios de produção restam desprovidos de qualquer função, e, de outro, que a força de trabalho permanece ociosa; se na última fase M’-D’, as mercadorias não vendidas e acumuladas bloqueiam o fluxo da circulação.[26]

No entanto, as confusões surgem porque Marx confere um significado duplo à palavra “circulação”. Como “circulação do capital” pensamos no capital se movendo por todas as suas fases, uma das quais é a esfera da circulação – o tempo em que uma mercadoria acabada está no mercado a caminho de ser trocada. A circulação do capital pode ser concebida da seguinte maneira: o mais-valor se origina na produção e é realizado através da circulação. Embora o momento fundamental no processo possa ser a produção, o capital “que não passa no teste da circulação” não é mais capital.

Marx define a “realização do capital” em termos do movimento bem-sucedido do capital através de cada uma de suas fases[27]. O capital monetário deve ser realizado por meio da produção; o capital produtivo deve ser realizado na forma de mercadoria; e as mercadorias devem ser realizadas como dinheiro. Essa realização não é conseguida automaticamente porque as fases de circulação do capital são separadas no tempo e no espaço.”

[26] Ibidem, p. 48.

[27] Alguns tradutores e teóricos preferem o termo “processo de valorização” para cobrir a criação de mais-valor mediante o processo do trabalho (ver a introdução de Ernest Mandel à edição da Penguin d’O capital ). Embora este tenha a virtude de fazer uma distinção clara entre os processos de realização na produção e os processos de realização no mercado (e enfatize as diferenças fundamentais entre eles), tem a desvantagem de desviar a atenção da necessária continuidade no fluxo do capital através das diferentes esferas de produção e troca. Como estou interpretando o valor em termos da unidade de produção e troca, prefiro usar o termo “realização” para me referir ao movimento perpétuo e à autoexpansão do capital e deixar o contexto ou um modificador adequado para indicar se estou falando sobre a realização através do processo do trabalho (valorização), realização através da troca ou a unidade de ambos.

 

 

“Em cada momento ou fase na circulação do capital encontramos tipos específicos de problemas, e vale a pena examinar cada um destes sequencialmente enquanto consideramos a transição do dinheiro para meios de produção e força de trabalho, e a translação desses “fatores de produção” para uma atividade de trabalho que produza uma mercadoria que deverá então encontrar um comprador no mercado.

(a) Se os capitalistas não conseguirem encontrar no mercado as quantidades e qualidades certas de matérias-primas, meios de produção ou força de trabalho a um preço apropriado às suas exigências de produção individual, então seu dinheiro não é realizável como capital. O dinheiro cria um açambarcamento. Essa barreira parece um pouco menos assustadora porque o dinheiro é a forma geral de valor e pode ser convertido em todas as outras mercadorias sem qualquer dificuldade. O capitalista tem ampla variedade de opções. Essas opções são estreitadas se o capitalista emprega grandes quantidades de capital fixo que têm uma vida relativamente longa. Para realizar o valor do capital fixo, o capitalista é obrigado a manter um tipo específico de processo de trabalho com exigências específicas de insumos durante vários anos. Entretanto, quando vemos isso agregado, não conseguimos ser tão confiantes de que todos os capitalistas terão suas necessidades totais satisfeitas para os insumos de matéria-prima e para a força de trabalho. Além disso, com uma parte do excedente sendo reinvestido, esses capitalistas que produzem meios de produção para outras indústrias devem expandir sua produção prevendo exigências futuras que podem ou não se materializar. Uma expansão agregada na demanda por força de trabalho também cria uma série de problemas. Alguns dos problemas estruturais que surgem no caso agregado serão examinados posteriormente. O importante aqui é reconhecer que as dificuldades e as incertezas surgem até mesmo nessa primeira fase, em que o dinheiro tem de ser convertido em insumos de matéria-prima e força de trabalho.

(b) Dentro dos confins do processo de produção, os capitalistas devem desfrutar dessa relação com a força de trabalho e devem possuir a tecnologia que permite que o valor das mercadorias adquiridas seja preservado e o mais-valor adicionado. Marx observa, um tanto ironicamente, que a realização do capital na produção depende da “desvalorização” do trabalhador[37]. A afirmação é bastante pertinente. Os capitalistas devem moldar o processo de trabalho para se adaptar pelo menos à média social e impor um ritmo e intensidade de trabalho ao trabalhador adequados à extração do mais-valor. Eles devem reagir à incessante guerra de guerrilha que acompanha a luta de classes no local de trabalho e impor, se puderem, um controle despótico sobre o processo de trabalho. Se não conseguirem, isso significará que o mais-valor não será produzido e que o capital monetário que estava inicialmente no bolso do capitalista não foi realizado como capital. E a competição impõe outra obrigação ao capitalista: acompanhar o processo geral da mudança tecnológica. A reorganização do processo de trabalho conduz a “revoluções no valor”: o tempo de trabalho socialmente necessário é reduzido e o valor do produto da unidade cai. O capitalista que não consegue acompanhar o processo experimenta uma desvalorização do capital – o capital é perdido porque as condições de trabalho específicas concretas e individuais não correspondem às condições para incorporar a mão de obra abstrata. Há, evidentemente, muitas barreiras a serem superadas para o capital monetário ser realizado na produção.

(c) Como vendedores, os capitalistas se veem na posse de mercadorias materiais que devem encontrar usuários dispostos a abrir mão de um valor de troca equivalente ao valor incorporado em cada mercadoria. A conversão de valores de uso materiais específicos na forma geral de valor de troca – dinheiro – parece mais difícil em princípio do que a conversão de dinheiro em mercadorias. Por essa razão, Marx coloca uma ênfase particular nisso. Encontramos aqui a barreira do consumo. Essa barreira tem um aspecto dual. Antes de tudo, a mercadoria deve preencher uma necessidade social; ser um valor de uso social. Há limites claros para tipos específicos de valores de uso – quando cada um na sociedade capitalista for um orgulhoso possuidor de uma bicicleta, por exemplo, o mercado para bicicletas estará estritamente limitado às exigências de reposição. Diante de uma saturação de mercado desse tipo, o capital é obrigado a estimular novos desejos e necessidades sociais por meio de vários estratagemas. A evolução contínua dos desejos e necessidades sociais é, por isso, vista como um aspecto importante da história capitalista – um aspecto que expressa uma contradição básica. No Manuscritos econômico-filosóficos, Marx declara que o capitalismo “produz, por um lado, o refinamento das carências e dos seus meios; por outro, a degradação brutal, a completa simplicidade rude abstrata da carência”[38]. E há muita coisa nos Grundrisse e n’O capital para validar essa disputa.

Mas do ponto de vista dos capitalistas que procuram converter suas mercadorias em dinheiro, o problema não é simplesmente satisfazer os desejos e necessidades sociais, mas encontrar clientes com dinheiro suficiente para comprar as mercadorias que eles querem. A demanda efetiva do produto – a necessidade apoiada pela capacidade de pagar – é a única medida relevante[39]. Se não existir uma demanda efetiva por mercadorias, a mão de obra incorporada na mercadoria é uma mão de obra inútil e o capital investido em sua produção é perdido, desvalorizado.

Por isso, é nesse ponto da circulação do capital que os capitalistas estão mais vulneráveis. Como detentores do dinheiro ou senhores do processo de produção, os capitalistas exercem um controle direto. Mas quando a mercadoria tem de ser trocada, o destino dos capitalistas depende das ações de outras pessoas – trabalhadores, outros capitalistas, consumidores não produtivos etc. –, todas possuidoras de dinheiro e que devem gastá-lo de determinadas maneiras para que o valor incorporado nas mercadorias seja realizado.”

[37] A. D. Magaline (Lutte de classe et dévalorisation du capital, Paris, Maspero, 1975) constrói um argumento muito interessante baseado nisso.

[38] Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos (trad. Jesus Ranieri, São Paulo, Boitempo, 2010), p. 140.

[39] Idem, Theories of Surplus Value, cit., parte 2, p. 506.

 

 

“A acusação de que Marx trata o trabalhador como um “objeto” em certo sentido é verdade. Era precisamente o objetivo de Marx que o mundo não fosse entendido apenas pela experiência subjetiva direta dele, e que a própria visão da classe trabalhadora de suas potencialidades e poderes ficasse seriamente enfraquecida sem o avanço de uma ciência verdadeiramente materialista. Apresentar esse argumento não nega a validade das experiências subjetivas dos trabalhadores nem diz que a absoluta criatividade e variedade das reações dos trabalhadores não merecem ser comentadas ou estudadas. É vital entender como os trabalhadores enfrentam, os “jogos” que inventam para tornar suportável o processo de trabalho, as formas particulares de camaradagem e competição mediante as quais eles se relacionam um com o outro, as táticas de cooperação, confrontação e a sutil maneira de evitar lidar com aqueles que estão em postos de autoridade e, acima de tudo, talvez, as aspirações e o senso de moralidade com os quais eles investem suas vidas cotidianas. É também imperativo entender como os trabalhadores constroem uma cultura distinta, criam instituições e captam outros para as suas próprias, e constroem organizações para sua autodefesa.

Mas o que Marx busca é um entendimento do que os trabalhadores estão sendo obrigados a lidar com e a se defender contra; para chegar a um acordo com as forças manifestas que lhes são impingidas a cada passo. Por que os trabalhadores têm de enfrentar novas tecnologias, acelerações, dispensas, “desqualificação das habilidades” e autoritarismo no local de trabalho, e inflação no mercado? Entender tudo isso requer que construamos uma teoria materialista do modo de produção capitalista, da circulação e acumulação do capital mediante a produção de mercadorias. E a teoria mostra que, do ponto de vista do capital, os trabalhadores são na verdade objetos, um mero “fator” de produção – a forma variável do capital – para a criação de mais-valor. A teoria exibe para os trabalhadores, como em um espelho, as condições objetivas de seu próprio estranhamento, e expõe as forças que dominam sua existência social e sua história. A construção dessa teoria, por técnicas que foram além da simples replicação da experiência subjetiva, foi, certamente, a realização mais notável de Marx.”

 

 

Já mostramos por que o capitalismo é, por necessidade, tecnologicamente dinâmico, por que ele existe sob o imperativo: “inovar ou morrer!”. Muito simplesmente, as relações de classe dominantes do capitalismo reforçam e asseguram reorganizações perpétuas do processo de trabalho na busca pelo mais-valor relativo. Certamente, os capitalistas não operam em um vazio, e encontram vários impedimentos – a luta de classes dentro do processo de trabalho, os limites do conhecimento científico e tecnológico, problemas de cancelamento dos valores incorporados em máquinas e equipamentos velhos, o custo completo da mudança etc. A velocidade, a forma e a direção da mudança tecnológica são restringidas de maneiras importantes. E também sabemos que o imperativo básico para revolucionar perpetuamente as forças produtivas (entendidas como uma proposição abstrata) pode ser negociado mediante o alcance de ampla variedade de estados tecnológicos reais (entendidos como a configuração particular dos equipamentos físicos e a organização social que preserva e promove a produtividade do trabalho). E, acima de tudo, temos visto como é importante enfatizar que, no fim, o que importa é a produtividade do valor no trabalho. As mudanças na produtividade física são apenas um meio para atingir esse fim. Por isso, a mudança tecnológica existe como a principal alavanca para aumentar a acumulação do capital mediante aumentos perpétuos na produtividade do valor da força de trabalho.”

 

 

“Ao que parece, toda a história da mudança organizacional no capitalismo pode ser interpretada como uma progressão ditada por uma luta em busca da perfeição na operação da lei do valor. Por esse relato, o capitalismo se tornou mais, e não menos, receptivo à lei do valor. A aparência superficial de um movimento afastado da competitividade e em direção às formas de monopólio e monopólio estatal – embora descritivamente precisa em alguns aspectos – ao ser inspecionada torna-se histórica e teoricamente equivocada, se considerada de forma literal. O capitalismo nunca foi perfeitamente competitivo ou mesmo remotamente situado em conformidade com esse ideal. Lutando para se tornar mais competitivo, o capitalismo desenvolveu estruturas que divergem de uma imagem predominante do que deve parecer uma organização verdadeiramente competitiva. Mas em suas práticas ele desenvolveu novos modos de competição que permitem que a lei do valor opere de maneiras diversas, mas cada vez mais efetivas. A vida diária para a massa das pessoas mantidas cativas nas relações sociais do capitalismo passou a ser cada vez mais competitiva. A competição no estágio internacional se aviva; a disciplina dos governos pelos mecanismos financeiros torna-se parte da nossa dieta diária de notícias. Os gerentes divisionais sentem a borda afiada da competição diariamente em suas comunicações com a gerência central. De todos esses pontos de vista, percebemos as leis de movimento do capitalismo ainda no curso da perfeição, a lei do valor finalmente se envolvendo em si mesma como o ditador absoluto de nossas vidas.

Mas dizer que a lei do valor está sendo aperfeiçoada não sugere que estejamos entrando em uma era de harmonia capitalista. Longe disso. A lei do valor incorpora contradições e os arranjos organizacionais que são moldados de acordo com seu funcionamento não podem, em tais circunstâncias, estar isentos de contradições. O resultado é uma tendência de instabilidade organizacional dentro do modo de produção capitalista[24].

O impulso para controlar todos os aspectos da produção e da troca tende a criar uma supercentralização dos capitais – tanto no setor privado quanto no estatal –, que é na verdade uma ameaça à perpetuação da própria produção capitalista. Na medida em que as forças mitigadoras que contribuem para a descentralização são difíceis de entrar em movimento, o sistema entra em estagnação, fica atolado e é mantido cativo pelo peso e a complexidade da sua própria estrutura organizacional. Inversamente, a descentralização excessiva e a oportunidade e o capricho do mercado podem criar tal clima de incerteza, tantas lacunas entre a produção e a negociação, que isso também tem de ser compensado por movimentos rumo à centralização. O ponto de equilíbrio entre essas duas tendências opostas é inerentemente instável. Ele é, no máximo, atingido apenas por acaso, e não há mecanismos para impedir as relações antagonistas do capitalismo que empurram as estruturas organizacionais para o desequilíbrio. Nesse ponto podemos perceber que as crises têm um papel construtivo a desempenhar não somente impondo novas tecnologias no sentido estrito, mas também forjando novas estruturas organizacionais que estejam mais de acordo com a lei do valor, na medida em que proporcionem a base para uma acumulação renovada mediante a produção de mais-valor.

Além disso tudo, existe uma ironia ainda mais profunda. A lei do valor é um produto social. E a relação social que está no fundo dela não é outra senão aquela que existe entre o capital e o trabalho. Mas a própria lei do valor envolve toda uma série de transformações organizacionais que não podem ser realizadas sem uma transformação simultânea das relações de classe. A ascensão de uma “classe gerencial”, separada e distinta dos donos do capital, das estruturas de intervenção e regulação do governo, de disposições cada vez mais hierárquicas na divisão do trabalho; a emergência de burocracias corporativas e governamentais – tudo isso obscurece o capital simples – a relação de trabalho que dá suporte à própria lei do valor[25].

O fato de essas extensas mudanças sociais serem o produto da lei do valor não deve ser encarado com surpresa. Isso simplesmente confirma a proposição marxista básica da qual partimos. Procuramos criar uma estrutura tecnológico-organizacional apropriada para um conjunto particular de relacionamentos sociais, apenas para descobrir que estes últimos precisam mudar para se acomodar à primeira – ao tentar mudar o mundo, mudamos a nós mesmos. Ou, colocando na forma marxiana mais clássica, a resolução de um conjunto de contradições dentro do aparato social e tecnológico do capitalismo inevitavelmente engendra outras. As contradições são replicadas em formas novas e frequentemente mais confusas. E é, evidentemente, a elaboração de tal processo que está escrito na história das formas de organização capitalistas e nas transformações que elas sofreram.”

[24] Rudolf Hilferding, em Le capital financier, cit., observou muito claramente que o impacto do oligopólio, dos cartéis etc. distorceu os preços da produção ainda mais do que aconteceria de outro modo, e que, por isso, a monopolização tendeu a exacerbar, em vez de sanar, os problemas fundamentais da instabilidade.

[25] Observamos no capítulo 4, seção I, que a transformação do processo de trabalho tendeu para uma capacidade cada vez maior para obscurecer a origem do lucro no mais-valor, e aqui vemos a imagem refletida daquela ideia como está expressa nas formas de organização capitalistas. Tudo isso indica que o tema do necessário fetichismo que Marx enuncia nessa extraordinária passagem no primeiro volume de O capital é mais relevante do que nunca para o nosso entendimento do mundo.

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