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domingo, 17 de janeiro de 2021

Os limites do capital (Parte I), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-358-5

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 592

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Sinopse: O geógrafo britânico David Harvey é um dos pensadores mais influentes da atualidade, reconhecido por obras já consideradas clássicas, como Os limites do capital, publicado pela primeira vez em português, em versão revista e ampliada. Trata-se de uma análise profunda da história e da geografia do desenvolvimento capitalista, a partir de uma perspectiva marxista.

Publicado pela primeira vez em 1982, o livro lançou as bases para o projeto intelectual de Harvey – autor de vasta obra – e, como diz a economista Leda Paulani, no texto de orelha, é premonitório, pois, aqui, o autor tratou de temas que, ‘uma década depois, migrariam para o centro da arena, onde permanecem até hoje’.

Em Os limites do capital, Harvey une investigação sobre as dinâmicas espaciais do processo de urbanização, interpretação ambiciosa do legado de Marx e sensibilidade aguda para reestruturação econômica em curso. Na nova edição, o autor atualiza sua releitura da crítica da economia política de Marx, com uma discussão substancial em torno da conjuntura política global e da convulsão nos mercados mundiais hoje.

Os limites do capital constitui ‘leitura obrigatória para aqueles que buscam uma compreensão menos superficial da etapa avançada do capitalismo hoje em curso’, afirma Paulani. A obra é considerada peça fundamental para compreender o instigante pensamento de Harvey, com reflexões acerca de alguns de seus mais importantes conceitos como ‘ajuste espacial’ e ‘acumulação por despossessão’. ‘A formação de geógrafo fez com que Harvey voltasse sua atenção não apenas para as questões do tempo, cruciais quando se entende que o capital é um movimento (o movimento de valorização), mas também para as questões do espaço, às quais os economistas são, em geral, cegos. Em síntese, Harvey iniciou, ainda no começo dos anos 1980, a investigação sobre como se articulam e como funcionam conjuntamente os diferentes modos de apropriação e de exploração, o sistema financeiro, o comportamento rentista e os desenvolvimentos espaciais desiguais numa dinâmica que, hoje, é o coração do processo de acumulação’, diz Paulani.

Para o crítico literário Fredric Jameson, além ser uma das tentativas mais lúcidas e bem-sucedidas de delinear o pensamento econômico de Marx, Os limites do capital é também o único livro a enfrentar o problema espinhoso da renda fundiária em Marx, cuja própria análise foi interrompida por sua morte. ‘A revisão e reteorização magistrais de Harvey nos oferecem uma versão plausível do esquema mais complicado que Marx poderia ter elaborado, tivesse ele vivido’, afirma, no texto de quarta capa.

A perspectiva geográfica de Harvey joga luz em aspectos chaves pouco trabalhados no pensamento marxista como o capital fixo, as finanças, o crédito, a renda, as relações de espaço e os gastos estatais. Em sua análise do capital fictício e do desenvolvimento geográfico desigual, o geógrafo britânico leva o leitor, passo a passo, pelas camadas de formação de crise: do argumento controverso de Marx a respeito da queda tendencial da taxa de lucro às crises de crédito e de finança.

Em termos de estilo, Harvey é capaz de destrinchar conceitos de alta complexidade por meio de uma linguagem clara e acessível, avessa aos jargões econômicos de gabinete. Para ele, é impossível compreender o capital a partir de uma argumentação linear, que empilha conceitos isolados como ‘blocos de construção’. Fiel à estrutura de exposição de Marx, o método empregado por Harvey é dialético e processual, como seu próprio objeto de estudo.

Escrito antes do fim da guerra fria, antes da contrarrevolução neoliberal e antes do falatório sobre globalização e financeirização econômica, Os limites do capital desenvolve essas questões através do desdobramento das próprias contradições internas do capital. Como Harvey aponta na introdução à nova edição, Os limites do capital se revelou um texto presciente. Em alguns aspectos, é até mais relevante agora porque descreve uma maneira teórica de se enfrentar as contradições inerentes à maneira como funciona o capitalismo neoliberal’.

 

As dificuldades são em parte ideológicas. A aceitação disseminada dos benefícios a serem atingidos pelo individualismo e as liberdades que um livre mercado supostamente confere, assim como a aceitação da responsabilidade pessoal pelo próprio bem-estar, constituem, em conjunto, uma séria barreira ideológica para a criação de solidariedades nas lutas. Elas apontam para modos de oposição baseados nos direitos humanos e em associações voluntárias (como as ONGs), em detrimento de solidariedades sociais, partidos políticos e a tomada do poder estatal. Por isso, há uma percepção de que todos temos de ser neoliberais. Mas as formas mais tradicionais de luta são difíceis de articular, dada a incrível volatilidade do capitalismo contemporâneo, a evidente diminuição da soberania dos Estados individuais sobre suas questões econômicas e a redefinição da ação do Estado em torno da necessidade de cultivar um bom clima de negócios para atrair o investimento. Por isso, é cada vez mais difícil identificar o inimigo e onde ele está.”

 

 

“Mas a neoliberalização é um enorme sucesso do ponto de vista das classes mais altas. Ela devolveu o poder de classe às elites governantes (como nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha), criou condições para a consolidação da classe capitalista (como no México, na Índia e na África do Sul) ou abriu caminho para a formação da classe capitalista (como na China e na Rússia). Com a mídia dominada pelos interesses da classe alta, foi possível propagar o mito de que os estados fracassaram economicamente porque não foram competitivos, ou seja, não foram suficientemente neoliberais. A desigualdade social aumentada dentro de um território foi construída como necessária para encorajar o risco e a inovação empresariais, que conferiam poder competitivo e estimularam o crescimento. Ao que consta, se as condições entre as classes inferiores se deterioraram foi porque elas falharam, em geral por razões pessoais ou culturais, em melhorar seu próprio capital humano (por meio da dedicação à educação, à ética de trabalho protestante, à submissão à disciplina do trabalho). Seguindo o raciocínio, os problemas que surgiram na Indonésia, na Argentina ou em qualquer outro lugar foram específicos, devidos à falta de força competitiva ou a falhas pessoais, culturais ou políticas. Num mundo neoliberal darwiniano só os mais aptos poderão e irão sobreviver.”

 

 

A teoria da queda da taxa de lucro se baseia na ideia de que a busca competitiva por inovações para a economia de mão de obra desloca a mão de obra ativa (a fonte de todo o valor e do mais-valor na teoria marxiana) da produção. Outras coisas (como o grau de exploração da força de trabalho) permanecendo iguais, isso produz uma tendência secular para uma queda da taxa do lucro. O próprio Marx anexou tantas advertências, condicionalidades e circunstâncias mitigadoras a essa teoria (ver o capítulo 6) que é difícil sustentá-la como uma teoria geral da crise, mesmo que se concentre na questão crucial dos efeitos potencialmente desestabilizadores das mudanças tecnológicas sobre a dinâmica capitalista. Concluí que cada teoria revela algo importante sobre a dinâmica contraditória do capitalismo, mas que todas são manifestações superficiais de alguma outra coisa.

No capítulo 7, declaro que o problema mais profundo é a tendência à superacumulação. As crises surgem quando as quantidades sempre crescentes de mais-valor que os capitalistas produzem não podem ser lucrativamente absorvidas. A palavra importante aqui é “lucrativamente” (e devo deixar claro que esta não guarda nenhuma relação direta com a suposta lei da queda da taxa de lucro). Considero esmagadora a evidência dessa linha de argumentação de “excedente de capital”. O capitalismo surgiu de excedentes acumulados por grupos localizados de negociantes e comerciantes que pilhavam à vontade o resto do mundo desde o século XVI. A forma industrial de capitalismo surgida no final do século XVIII na Grã-Bretanha absorveu com sucesso esses excedentes, ao mesmo tempo que os expandiu. Tendo por base a mão de obra assalariada e a produção fabril, a capacidade de absorção e produção de mais-valor foi internalizada, sistematizada e aumentada, em parte, pela estruturação do mundo capitalista, mais clara e expansivamente em torno das relações sociais capital-trabalho. Isso envolveu a internalização bem-sucedida das forças da mudança tecnológica e da produtividade crescente para gerar excedentes sempre maiores. Onde esses excedentes poderiam ser lucrativamente distribuídos? “Crise” é o nome que se dá às fases de desvalorização e destruição dos excedentes de capital que não podem ser lucrativamente absorvidos.

O capital excedente pode assumir muitas formas. Pode haver uma abundância de mercadorias no mercado (daí o surgimento do subconsumo). Isso pode às vezes aparecer como um excedente de dinheiro ou como um excesso de crédito (daí o surgimento das crises financeiras e monetárias e da inflação). Ou pode aparecer como um excesso de capacidade produtiva (fábricas e maquinário ociosos característicos das fases deflacionárias de desvalorização). Pode aparecer como um excesso de capital investido em áreas construídas (crashes no mercado imobiliário), em outros bens (ondas de especulação e crashes em ações e títulos, futuros de mercadorias ou futuros de moedas etc.) ou como uma crise fiscal do Estado (gastos excessivos em infraestruturas sociais e funções da previdência social – talvez exigidos pela força de trabalho sindicalizada). A forma que o excedente de capital assume não é previamente determinante, mas cada uma confere um caráter específico à crise. Entretanto, mudar de uma forma para outra às vezes alivia as pressões (um excesso de crédito pode ser transferido aos consumidores, o que alivia os problemas de subconsumo e provoca o retorno à operação de fábricas pressionadas). Além disso, é claro, há o fato de que, para todas essas teorias, o onde e o quando se realizam os excedentes de capital estão especificados de maneira temporal, porém não espacial. As duas grandes inovações de Os limites do capital foram introduzir a ideia dos deslocamentos temporais dos excedentes (orquestrados mediante o sistema de crédito e os gastos com financiamento da dívida pública) para os investimentos de capital de longo prazo (como, digamos, o túnel sob o Canal da Mancha) e a ideia dos deslocamentos espaciais realizados através de expansões geográficas – a criação do mercado mundial, o investimento direto e o investimento em carteira, as exportações de capital e mercadorias e, mais brutalmente, o aprofundamento e a ampliação do colonialismo, do imperialismo e do neocolonialismo. A associação dos deslocamentos temporais e espaciais (por exemplo, investimento estrangeiro direto para financiamento do crédito) oferece mecanismos para respostas de base amplos e extremamente importantes, embora muito temporários a longo prazo, para o problema da absorção do excedente de capital. Segue-se então a integração do desenvolvimento geográfico desigual no nosso entendimento da geografia histórica do capitalismo. O efeito disso é abrir a possibilidade de crises localizadas, de desvalorizações de capital altamente localizadas e baseadas na localidade (aqui uma desindustrialização, lá uma crise financeira) como uma maneira de neutralizar o problema global da absorção/desvalorização do excedente. Ocorre também que grande parte do que vemos na maneira da produção de estresses e degradações ambientais é uma manifestação da busca de soluções para o problema de absorção do excedente de capital.

A absorção do excedente é, portanto, o principal problema. As crises de desvalorização acontecem quando a capacidade para essa absorção entra em colapso. Em O neoliberalismo: história e implicações, apresento a história de como esses mecanismos têm operado na economia global a partir da década de 1970. Deixe-me reformular o argumento em termos de excedente de capital. A década de 1970 foi uma fase de excedente crônico de capital, grande parte dele transferido para os Estados produtores de petróleo após 1973 e depois reciclado como capital monetário por meio dos bancos de investimento de Nova York. Usos lucrativos para o excedente eram difíceis de encontrar porque as saídas existentes – especulação nos mercados imobiliários, ondas de gastos estatais com a guerra, gastos crescentes com a previdência social – estavam saturadas ou organizadas de modo a dificultar o lucro. Instalou-se, então, uma crise crônica de estagflação.

A virada subsequente para a neoliberalização incluiu derrubar toda possível barreira ao desdobramento lucrativo do excedente. Se a classe trabalhadora era forte o bastante para constituir uma barreira à lucratividade, então ela tinha de ser disciplinada, seus salários e benefícios reduzidos, eliminando-se inteiramente sua capacidade para exercer um esmagamento do lucro. Esse objetivo foi alcançado por meio da violência no Chile, pelas falências em Nova York, e, politicamente, por Reagan e Thatcher em nome do combate à inflação. Como se tudo isso não fosse suficiente, as corporações podiam resolver as coisas por conta própria e se transferir fisicamente para o estrangeiro, para qualquer lugar onde a mão de obra fosse mais barata e mais dócil. Mas, para isso acontecer, todas as barreiras ao comércio exterior precisariam ser derrubadas. As tarifas tinham de ser reduzidas, acordos comerciais antiprotecionistas criados e uma ordem internacional aberta que permitisse o fluxo relativamente livre do capital no mundo todo. Se isso não pudesse ser realizado de maneira pacífica, seriam empregadas a coerção financeira (orquestrada pelo FMI) ou operações secretas (organizadas pela CIA). A busca por múltiplos ajustes espaciais teve início e explodiu o desenvolvimento geográfico desigual. O fim da Guerra Fria acrescentou ainda mais oportunidades para empreendimentos e expansões estrangeiros lucrativos. Mas o capital tinha de encontrar um regime facilitador e também oportunidades adequadas para aplicar seus excedentes nos países em que penetrava. Ondas de privatização abriram novos setores para a aplicação lucrativa de capital da Grã-Bretanha para México, Rússia, Índia e China. Regimes de baixas taxas corporativas (estabelecidos para atrair o investimento estrangeiro), infraestruturas financiadas pelo Estado, fácil acesso aos recursos naturais, um ambiente regulatório facilitador, um bom clima para os negócios, todos esses elementos tinham de ser fornecidos para os excedentes de capital serem lucrativamente absorvidos. Se tudo isso significasse que as pessoas tinham de ser despojadas de seus bens e de seu patrimônio, que assim fosse. E foi o que a neoliberalização realizou. Por trás disso, arranjos institucionais tiveram de ser feitos para facilitar as transações financeiras globais e para garantir sua segurança. Isso requereu a aplicação de poderes estatais hegemônicos apoiados pelos militares, pelos políticos e pela força coerciva econômica para garantir o regime financeiro internacional. O imperialismo dos Estados Unidos apoiou – em conluio com a Europa e o Japão – os poderes do FMI, da OMC, do Banco Mundial, do Banco de Compensações Internacionais e de uma série de outras instituições que iriam regulamentar o sistema global para garantir um terreno em constante expansão para a absorção lucrativa das quantidades sempre crescentes de capital excedente produzido.

Mas nem tudo vai bem com esse sistema. A incrível expansão na absorção capitalista do mais-valor, associada a outro ciclo desestabilizador de inovações tecnológicas, simplesmente conduziu à produção de excedentes ainda mais maciços. Desde o início da década de 1990, grande parte desse excedente vem sendo especulativamente absorvido, fluindo para todos os tipos de bens – o mercado de ações dos Estados Unidos na década de 1990, os mercados imobiliários após 2000 e agora os mercados de insumos primários e monetários ou os mercados de ações “emergentes” de alto risco na Ásia e na América Latina. A quantia que os fundos hedge administram “disparou de 40 bilhões de dólares há 15 anos para 1 trilhão de dólares hoje”, para que, “no fim de 2004, houvesse 3.307 fundos de investimento, um aumento de 74% desde 1999”[10]. Os ganhos especulativos são hoje fundamentais para a sobrevivência das classes superiores, mas isso evidentemente implica a ameaça de importantes desvalorizações quando várias bolhas de ativos explodirem*. A categoria escorregadia do “capital fictício” é, como Marx observou há muito tempo, algo sem o qual o capitalismo não consegue viver, mas que pode facilmente fugir do controle. Ficções, como as protagonizadas pelo Barings Bank e pela Enron, foram solucionadas, deixando no seu rastro muita ruína financeira. Mas o sistema de crédito se baseia, como Marx também observa, na fé e nas expectativas. O capitalismo vive cada vez mais baseado apenas na fé. O estímulo da confiança, particularmente dos consumidores, torna-se fundamental para um capitalismo sustentável.

Nos últimos trinta anos, a neoliberalização promoveu, de modo surpreendente, a derrubada de inúmeras barreiras no mundo todo para a absorção dos excedentes de capital. Também inventou todas as maneiras de novas formas de especulação em valores patrimoniais que similarmente absorvem quantidades maciças de excedentes de capital, embora a um risco considerável. O que é igualmente surpreendente é a sua capacidade para organizar e orquestrar gigantescas desvalorizações do capital no mundo todo sem explodir – pelo menos até agora –todo o sistema. Quando os excedentes não puderem mais ser absorvidos, eles terão de ser desvalorizados ou destruídos. As desvalorizações têm sido desenfreadas desde meados da década de 1970. As crises fiscais, raras antes de 1970, disseminaram-se por todo o mundo, com efeitos frequentemente devastadores (o México, em 1982 e 1995; a Indonésia, a Rússia e a Coreia do Sul, em 1998; a Argentina, em 2001). Nem os Estados Unidos escaparam de sérios episódios de desvalorização. A Crise das Instituições de Poupança e Empréstimo, em 1987, custou cerca de 200 bilhões de dólares para ser retificada e as imensas falências do Long Term Capital Management e de Orange County, em meados da década de 1990, seguidas de uma quebra no mercado de ações que eliminou 7 trilhões de dólares do mercado de capitais dos Estados Unidos em 2000, foram eventos sérios. Embora alguns capitalistas tenham sido atingidos, o talento da estrutura atual das instituições não está apenas em disseminar os riscos, mas também em disseminá-los assimetricamente, de maneira a garantir que os custos da desvalorização recaiam em sua maior parte sobre aqueles menos capazes de arcar com eles. Quando o México foi à falência em 1982, o Tesouro dos Estados Unidos e o FMI garantiram que os banqueiros de investimento de Nova York sofreriam muito pouco, enquanto as pessoas comuns do México foram obrigadas a arcar sozinhas com uma grande perda. Na verdade, as crises financeiras tornaram-se o meio preferido para acelerar a concentração do poder econômico e político nas mãos da elite.

Os desequilíbrios globais atualmente existentes são de proporções impressionantes. Os excedentes de capital estão em toda parte, mas agora particularmente concentrados no leste e no sudeste da Ásia. Por outro lado, os Estados Unidos estão administrando uma economia devedora em escala inédita. A capacidade para contornar essa situação, como declaro em O neoliberalismo: história e implicações, está sobre o fio da navalha. A retificação dos desequilíbrios globais atualmente relacionados provavelmente será dolorosa, senão catastrófica. Mas, além de tudo isso, temos de reconhecer que quase todas as nossas aflições ambientais, políticas, sociais e culturais são produto de um sistema que busca o mais-valor para produzir mais mais-valor, o que requer, portanto, uma absorção lucrativa. As desastrosas consequências sociais, políticas e ambientais da infinita “acumulação pela acumulação e produção pela produção” estão aí, diante de nossos olhos. No meio do que Marx, nos Grundrisse, chama de “contradições agudas, crises, convulsões”[11], talvez devêssemos prestar atenção à sua conclusão de que “a destruição violenta de capital, não por circunstâncias externas a ele, mas como condição de sua autoconservação, é a forma mais contundente em que o capital é aconselhado a se retirar e ceder espaço a um estado superior de produção social”.”

[10] Jenny Anderson, “Fund Managers Raising the Ante in Philanthropy”, New York Times, 3 ago. 2005, seção Business, p. 1, 3.

*: Destaque-se que o livro é de 1976 e este trecho é de um prefácio de 2006 – antes, portanto, da crise de 2008, quando de fato ocorreu a explosão aqui prevista.

[11] Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 627.

 

 

Marx trata a simples forma da mercadoria como o “germe” da forma do dinheiro. Uma análise do escambo direto mostra que as mercadorias podem assumir o que ele chama de formas “equivalentes” e “relativas” do valor. Quando uma comunidade mensura o valor dos bens que estão sendo adquiridos em contraposição ao valor isolado de um bem que está sendo descartado, então este último funciona como sua forma de equivalente. Em um estado inicial, cada comunidade ou agente de barganha possuirá mercadorias que operam como a forma de equivalente. Com a proliferação da troca, uma mercadoria (ou um conjunto de mercadorias) provavelmente vai emergir como o “equivalente universal” – uma mercadoria-dinheiro básica, como o ouro. Os valores relativos de todas as outras mercadorias podem então ser expressos em termos da mercadoria-dinheiro. O “valor”, consequentemente, adquire uma medida claramente reconhecível, única e socialmente aceita. O deslocamento de muitas determinações diferentes (subjetivas e, com frequência, acidentais) do valor de troca para uma medida padrão de dinheiro é produzido por uma proliferação de relações de troca até o ponto em que a produção de bens para troca se torna “um ato social normal”. Mas, por outro lado, também podemos ver que um sistema geral de troca de mercadoria seria impossível sem o dinheiro para facilitá-lo. Por isso, o aumento da troca e a emergência de uma mercadoria-dinheiro necessariamente andam juntos.

A mercadoria que veste “a capa do dinheiro” torna-se distinta de todas as outras. E a análise de suas características especiais mostra-se esclarecedora, uma vez que “o enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche da mercadoria, que agora se torna visível e ofusca a visão”[20].

A mercadoria-dinheiro, como qualquer outra mercadoria, tem um valor, um valor de troca e um valor de uso. Seu valor é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário em sua produção e reflete as condições sociais e físicas específicas do processo de trabalho sob o qual ele é produzido. Os valores de troca de todas as outras mercadorias são mensurados em relação ao parâmetro formado por essas condições de produção específicas da mercadoria-dinheiro. Desse ponto de vista, o dinheiro funciona como uma medida de valor, e o seu valor de troca deve presumivelmente refletir esse fato. O valor de uso do dinheiro é o fato de ele facilitar a circulação de todas as outras mercadorias. Assim, ele atua como um meio de circulação. Porém, no curso de sua atuação como meio de troca, o dinheiro adquire um valor de troca derivado da “ação social de todas as outras mercadorias”, que excluem “uma mercadoria determinada, na qual todas elas expressam universalmente seu valor”[21]. O dinheiro se torna o valor do que ele vai comprar. Resultado: a mercadoria-dinheiro adquire um valor de troca duplo – ditado por suas próprias condições de produção (seu valor de troca “inerente”) e pelo que ele vai comprar (seu valor “reflexo”).

Marx explica que tal dualidade surge porque o valor de troca, que inicialmente concebíamos como um atributo internalizado de todas as mercadorias, é agora representado por um padrão de medida que é externo e totalmente separado das próprias mercadorias[22]. O problema de como representar e medir os valores fica desse modo resolvido. Mas a solução só é alcançada à custa da internalização da dualidade do valor de uso e do valor interno ao valor de troca do próprio dinheiro. O dinheiro, em suma, “só resolve as contradições tanto da troca direta como do valor de troca na medida em que as põe universais”[23].”

[20] Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 167.

[21] Ibidem, p. 161.

[22] Idem, Grundrisse, cit., p. 95.

[23] Ibidem, p. 147.

 

 

O capital, insiste Marx, deve ser definido mais como um processo do que como uma coisa. A manifestação material desse processo existe como uma transformação do dinheiro em mercadorias e de volta ao dinheiro mais o lucro: D-M-(D+ΔD). Já que definimos o dinheiro como a representação material do valor, podemos também dizer que o capital é um processo de expansão do valor. Marx chama isso de produção de mais-valor.”

 

 

“A competição pela acumulação requer que o capitalista inflija uma violência diária sobre a classe trabalhadora no local de trabalho. A intensidade dessa violência não está sob o controle dos capitalistas individuais, particularmente se a competição for desregulada. A busca incessante pelo mais-valor relativo aumenta a produtividade do trabalho ao mesmo tempo que desvaloriza e deprecia a força de trabalho, sem falar na perda da dignidade, da sensação de controle sobre o processo do trabalho, do assédio constante por parte dos supervisores e da necessidade de se adaptar aos ditames da máquina. Como indivíduos, os trabalhadores mal estão em posição de resistir, mais particularmente porque uma produtividade crescente tem o hábito de “liberar” certo número deles para as fileiras dos desempregados. Os trabalhadores só conseguem desenvolver o poder de resistir por meio de algum tipo de ação de classe – sejam atos espontâneos de violência (quebra das máquinas, incêndios e a fúria da massa de épocas anteriores, que de modo algum desapareceram) ou a criação de organizações (como os sindicatos) capazes de travar uma luta de classes coletiva. A compulsão dos capitalistas para captar um mais-valor ainda mais relativo não passa incontestada. A batalha ocorre mais uma vez e as principais linhas da luta de classes se formam em torno de questões como a aplicação das máquinas, a velocidade e intensidade do processo de trabalho, o emprego de mulheres e crianças, as condições de trabalho e os direitos do trabalhador no local de trabalho. O fato de as lutas sobre essas questões serem uma parte da vida diária na sociedade capitalista atesta para o fato de que a busca pelo mais-valor relativo é onipresente e que a necessária violência implicada nessa busca pode provocar algum tipo de reação de classe por parte dos trabalhadores.”

 

 

Antes de tudo, lembre-se de que Marx define o capital como um processo[9]. A expansão do valor ocorre mediante a produção de mais-valor pelos capitalistas que empregam um tipo específico de trabalho – o trabalho assalariado. Este, por sua vez, pressupõe a existência de uma relação de classe entre o capital e o trabalho. Quando submetemos essa relação a um cuidadoso escrutínio vemos imediatamente que o salário não pode de modo algum ser concebido como uma “receita” ou como uma “parcela distributiva” no sentido comum. O trabalhador não reivindica uma parte do produto em virtude da sua contribuição para o valor do produto. A essência da transação é algo totalmente diferente. O trabalhador desiste dos direitos de controle sobre o processo de produção, o produto e o valor incorporado no produto, em troca do valor da força de trabalho. E esta última não tem diretamente nada a ver com a contribuição do trabalho para o valor do produto.

O trabalhador recebe, então, o valor da força de trabalho, e pronto. Tudo o mais é apropriado como mais-valor pela classe capitalista como um todo. A maneira na qual o mais-valor é então dividida nas diferentes formas de lucro no capital industrial, na renda sobre a terra, no juro sobre o capital monetário, no lucro sobre o capital de negociação etc., é apresentada por meio de considerações totalmente diferentes. A relação de classe entre o capital e o trabalho é de um tipo completamente diferente em comparação com as relações sociais mantidas entre diferentes segmentos da classe capitalista (industriais, negociantes, rentistas e capitalistas monetários, proprietários de terras etc.). Quando Marx insiste que nos concentremos na produção para descobrir os segredos da distribuição, ele o faz porque é lá que a relação fundamental entre o capital e o trabalho se torna muito clara.”

[9] Cf. neste volume p. 66-7.

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