Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-709-5
Tradução: Diego Silveira
Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 472
Sinopse: Ver Parte
I
“8. Ius necessitatis, ius resistentiae,
Notrecht
O acúmulo de fatos que pareceriam justificar
o “direito dos pobres à rebelião”, de que fala Henrich, é impressionante. Deve-se,
todavia, notar que os levantes que efetivamente ocorrem nesse período são
aqueles dos ludistas, acerca dos quais o juízo de Hegel é crítico. É verdade
que Lições descreve com extraordinária objetividade a destruição das máquinas
pelos “operários, sobretudo os operários de fábrica” que “ficam facilmente
descontentes” pois “perdem seu sustento por causa das máquinas” (V. Rph., IV,
p. 503; V. Rph., III, p. 613). Numa nota berlinense, porém, fala dos “excessos”
da “plebe inglesa” responsável pela destruição das “máquinas a vapor” (B.
Schr., p. 782*). É natural que tal distanciamento em relação ao ludismo deva ser
explicado com a incompreensão por parte desse movimento do significado
potencialmente libertador das máquinas: não por acaso Hegel destaca que “o
universal deve favorecer a introdução de novas máquinas e, ao mesmo tempo, deve
tentar manter aqueles que perderam seu pão” (Rph., I, 120 A). É característica
no comportamento de Hegel não a teorização, nem sequer propriamente o fato de
se interrogar acerca de um pretenso direito à revolução ou à resistência (um
direito em si contraditório), mas a análise das contradições objetivas que, na
ausência de oportunas reformas, tornam inevitável a eclosão da revolução, esta
última suscetível de justificação apenas post factum, do ponto de vista
do espírito do mundo (supra, cap. IV., § 4).
A teorização do direito da necessidade
extrema não é um apelo à revolução nem à resistência à autoridade, é simplesmente
um apelo à não absolutização do direito de propriedade: “O importante pertence
à vida ética, universal, e as questões que se referem a essas antíteses de bem-estar
e direito e também ao direito da necessidade extrema só se referem a casos de
uma esfera extremamente limitada” (Rph., 126 AL; V. Rph., II, p. 459). O Notrecht
de Hegel não é o ius necessitatis nem o ius resistentiae
da tradição (que Henrich não parece distinguir), mas tem como objetivo
evidenciar o potencial explosivo que a questão social vai acumulando, denunciar
aquilo que de não conciliado e substancialmente violento continua havendo nas relações
sociais existentes. A esperança do filósofo é que a conciliação seja produzida pela
intervenção do poder político. Se, de um lado, a teorização do Notrecht
constitui uma polêmica ao menos objetiva contra a criminalização das agitações
operárias àquela época condenadas em bloco como atentados ao direito de
propriedade, e frequentemente comparadas à delinquência comum, de outro lado,
tal teorização almeja principalmente demonstrar o caráter “abstrato” da propriedade
privada, destacando os embates em que esta inevitavelmente incorre. Em Smith,
Hegel já tinha lido:
Para chegar a uma decisão rápida, os operários recorrem sempre aos meios
mais clamorosos e, às vezes, à violência e às ofensas mais impressionantes.
Estão desesperados e agem com a loucura e os excessos de homens desesperados que
devem morrer de fome ou obrigar seus patrões a acatar suas reivindicações.
Smith descreve com lucidez e frieza a “ruína”
que espera por esses “desesperados” inexoravelmente atacados pela polícia e
pelo Judiciário[65]. Agora, tais “desesperados que devem morrer de fome” veem reconhecido
um direito que não aquele à revolução, mas que, apesar do caráter vago de seu conteúdo,
desempenha bem sua função, que é, como dissemos, principalmente demonstrar o
caráter “abstrato” da propriedade privada, destacando os conflitos em que esta
inevitavelmente incorre.”
*: B. Schr. = Berliner Schriften, organizada por Johannes Hoffmeister,
Hamburgo, 1956.
[65] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and the Causes of the Wealth
of Nations, Livro I, cap. VIII, cit., p. 84-5.
“Não há dúvidas de que, depois das primeiras
tentativas, Hegel se esforça para ser o teórico do mundo moderno e da liberdade
moderna, cujo fundamento está no reconhecimento da dignidade e da autonomia do
indivíduo.”
“Voltemos, aqui, a Rousseau
e Hegel. Se olharmos com atenção, vemos que foram acusados pela tradição
liberal por instituir uma relação entre política e economia, entre liberdade e
condições materiais de vida, por teorizarem com maior ou menor clareza aquilo
que Hegel define como “direito positivo” ou “direito material”. Deve-se acrescentar
que essa nova e mais rica configuração do direito foi pensada por Rousseau num
esforço de permanecer fiel a um ideal de sociedade que está aquém do mundo
industrial moderno, ao passo que Hegel se esforçou para pensá-la a partir dos
problemas e das contradições próprias deste mundo, já que não é mais possível
nem lícito retroceder.”
“Do ponto de vista de Hegel, havia uma
perigosa contiguidade ou continuidade entre as posições liberais e aquelas dos
teóricos da Restauração, umas e outras caracterizadas pela visão de que a
educação e a instrução devem se ater exclusivamente à esfera privada. A intromissão
do poder político não violaria os sagrados direitos da família, sua sagrada
intimidade? Eis a resposta supreendentemente moderna de Hegel: a criança,
porém, também é sujeito de direitos e de nenhum modo pode ser considerada uma “coisa”
(Sache) de propriedade dos pais (Rph., 175). Trata-se de uma afirmação
nada óbvia. Vimos Kant teorizar um “direito dos pais sobre os filhos como de uma
parte da casa”, um direito dos pais de reaver os filhos fugitivos “como coisas”
(Sachen), aliás, como “animais domésticos fugidos” (supra, cap. IV, §
2). Mesmo sem chegar a formulações tão duras, o próprio Fichte afirmara que, no
que se refere à educação dos filhos, “os pais são seus próprios juízes”[13]. Hegel
polemiza explicitamente com Kant a propósito do excerto citado — e
provavelmente tem Fichte também como alvo quando escreve que os pais em nenhuma
circunstância podem ser “juízes” dos filhos, pois o juiz é uma “pessoa
universal” (Rph., I, 85 A).
Nessa ou em outras ocasiões, Hegel destaca a necessidade
de acabar de vez com o direito romano, ou com seus resquícios, que considerava
os filhos escravos dos pais. A criança é sujeito de direitos: “Se ela deve ser membro
da sociedade civil, tem direitos e reivindicações a seu respeito, assim como os
tinha no âmbito da família. A sociedade civil deve defender seu membro, deve
defender seus direitos” (V. Rph., III, p. 700). De quais direitos se trata
aqui? É verdade que, no que concerne à educação, não se trata de “um direito
rigoroso a ponto de poder ser afirmado dessa forma” (V. Rph., IV, 457), isto é,
apelando-se a um tribunal. Como escrevera Fichte, “o filho não tem um direito
coativo (Zwangsrecht) à educação”[14]; todavia, na síntese que o
discípulo Von Henning faz do pensamento do mestre, fala-se a esse respeito de
um “direito absoluto” (V. Rph., III, 550), que, portanto, vai além das leis sancionadas
positivamente.
Era um direito questionado pela prática da
inserção precoce, depois de uma frequência escolar bastante limitada, na
atividade de trabalho da família, difusa na pequena ou média burguesia
comercial e artesã, como fica claro pelo testemunho contemporâneo de
Schleiermacher, que a esse respeito fala de “conflito entre atividade de trabalho
e educacional”[15]. A esse fenômeno parece se referir Hegel quando declara que “os
filhos têm o direito de ser nutridos e educados com base no patrimônio familiar
comum” (Rph., 174). Os filhos podem, assim, reivindicar uma educação à altura
do patrimônio da família a que pertencem. Fichte opinava que “os filhos não têm
qualquer comunhão com a propriedade e não têm qualquer propriedade[16]. Hegel
não só fala de “comum patrimônio familiar”, como acrescenta, de modo ainda mais
explícito: “Os filhos fazem parte do conjunto da família; portanto, têm direito
de exigir [alguma coisa] do patrimônio familiar para suas necessidades e sua educação.
Na medida em que os pais se recusem a fazer isso, deve intervir o Estado para
afirmar e praticar tal direito” (Rph., I, 85 A).
Também a outra prática, aquela do trabalho infantil
nas fábricas ou em demais atividades de trabalho externas à família, faz
referência Princípios de filosofia do direito e as respectivas lições: “O
direito dos pais aos serviços dos filhos, enquanto serviços, encontra
fundamento e limitação nas questões comuns relativas à economia doméstica”
(Rph., 174). Para sermos mais claros: “Os serviços das crianças aos pais se
limitam ao fato de que as crianças nas famílias devem ser ativas” (V. Rph.,
III, p. 549). E até mesmo os serviços no âmbito da família devem ser consoantes
à “relação familiar” (Rph., III, p. 143), não devem configurar uma verdadeira
relação de trabalho. Assim, “não podem ir contra a educação” (Rph., I, 85 A), isto
é, devem deixar tempo livre para a educação e a frequência escolar. A
referência ao trabalho infantil nas fábricas ou em outros setores de trabalho é
explícita:
Os pais não devem almejar apenas obter vantagens do trabalho dos filhos.
Portanto, o Estado tem a obrigação de proteger as crianças. Na Inglaterra,
crianças de seis anos são utilizadas para limpar chaminés estreitas; nas
cidades industriais da Inglaterra, crianças de tenra idade são obrigadas a
trabalhar, e somente aos domingos se provê de alguma forma para sua educação. O
Estado tem, então, o dever absoluto de garantir que as crianças sejam educadas.
(Rph., 1, 85 A)
O direito à instrução/educação não somente é
obrigado a se chocar com a ideologia feudal, como entra em contradição com a
realidade das fábricas do capitalismo nascente, que começa a se manifestar
também na Prússia. Aqui se desenvolve o debate, e a intervenção do Estado para
vetar ou controlar o trabalho infantil nas fábricas é rejeitada com argumentos
liberais[17], aliás, pouco depois da morte de Hegel, contrapondo “o espírito
prático dos liberais” às “teorias dos hegelianos e dos socialistas”, uns e outros
evidentemente doentes de estatismo (supra, cap. 111, § 6).
Podemos agora fazer um balanço da tradição
liberal, retornando a Wilhelm von Humboldt, segundo o qual é decididamente
refutável a visão de que o Estado deveria se preocupar positivamente com o
bem-estar dos cidadãos. Ao contrário, ele só tem a tarefa negativa de garantir
a segurança e, assim, a autonomia da esfera privada: “A felicidade a que o
homem se destina não é senão aquela que lhe atribui sua força”, sua capacidade.
Justamente por colocar em dúvida essa espécie de harmonia preestabelecida entre
mérito e posição social do indivíduo (supra, cap. VI, § 3), Hegel é levado
a se perguntar sobre o papel que escola e educação têm não somente para o processo
de formação cultural do indivíduo, como no nível social como um todo. Não, a
natureza ou o mérito individuais não podem ser invocados para explicar a miséria
de uma classe, miséria que, ao contrário, remete à organização político-social
de conjunto, incluído o sistema escolar. O indivíduo “não tem um direito em
sentido próprio em relação à natureza. Ao contrário, nas condições da
sociedade, quando se depende dela, dos homens, a indigência adquire imediatamente
a forma de uma injustiça cometida contra esta ou aquela classe” (V. Rph., IV,
p. 609). O indivíduo, então, “tem o direito de reivindicar sua subsistência”, e
a esse direito corresponde uma “obrigação da sociedade civil” (V. Rph., IV, p.
604).
Como, porém, a sociedade civil pode cumprir essa
obrigação sem uma adequada política escolar, sem intervir na esfera da
instrução? E eis que a questão da escola se revela indissociavelmente
entrelaçada à questão social:
Se existem desempregados, estes têm o direito de exigir que lhes
consigam trabalho [...]. Os indivíduos devem, antes de mais nada, adquirir as
capacidades (Geschicklichkeit) de satisfazer suas necessidades mediante
a participação no patrimônio geral. Daí a autorização à sociedade civil para
obrigar os pais a darem aos filhos uma educação correspondente. (Rph., III, p.
192-3)
Sem educação, estamos condenados à miséria: “Pobre
é aquele que não possui nenhum capital ou nenhuma qualificação” (Geschicklichkeit)
(Rph., § I, 118 A). Hegel chega a identificar, ou entrever, no sistema escolar,
nas dificuldades de acesso à escola ou a um nível adequado de educação, um
instrumento de reprodução das diferenças de classe existentes: “O pobre não
pode transmitir a seus filhos nenhuma qualificação, nenhuma instrução” (keine
Geschicklichkeit, keine Kenntnisse) (V. Rph., IV, p. 606). Ademais, se a Geschicklichkeit
adquirida é limitada, ela certamente não basta para desviar os golpes da crise
e para se salvar de um destino de miséria. Eis, então, o operário que “talvez
tenha desempenhado um trabalho parcelado numa fábrica que depois faliu, e tal
unilateralidade o impede mais tarde de empreender qualquer outra função” (idem).
Logo após a falência de um ramo industrial antes promissor, o operário é
obrigado a buscar outro trabalho – o que não é fácil, pois é necessária uma
adequada “qualificação” (Geschicklichkeit) (V. Rph., IV, p. 625). A falta
de instrução ou de um nível de instrução adequado marca o destino do pobre. Não
por acaso, entre as tarefas da corporação há também a da educação/instrução (Erziehun)
de seus membros (V. Rph., III, p. 710), com uma indicação correspondente, ao
menos no plano objetivo, aos estatutos das associações sindicais que então nasciam[18].
(...)
Fica claro, então, que, não obstante as
aparências, no fim das contas, a distância para Mandeville não é assim tão
grande: as respostas parecem antitéticas, mas as preocupações político-sociais
que as motivam são as mesmas. Se o pressuposto da estabilidade político-social
é identificado pelo autor de A fábula das abelhas na ignorância das
massas, pelo autor de A riqueza das nações, ao contrário, é identificado
na difusão entre os estratos populares de um mínimo de educação. No intervalo
de tempo entre ambos, a Revolução Industrial deu grandes passos à frente, e a
força de trabalho de que se necessita agora apresenta características muito
diferentes da época de Mandeville. Mantém-se válido, porém, que o problema da
escola e da educação é pensado em função das exigências de estabilidade econômica,
política e inclusive militar da sociedade; nesse âmbito, o liberal Smith
atribui ao poder político tarefas extensas. Para aumentar a coesão em seu
interior, reforçar o próprio potencial produtivo e militar e apagar o
espetáculo de uma degradação repugnante, o Estado tem a faculdade de impor a
frequência escolar — e de impô-la no âmbito de uma escola que não é sequer
propriamente pública (a contribuição do Estado é apenas parcial)[35]. Em todo
caso, a obrigação ou a semiobrigação escolar não surge do reconhecimento dos
direitos da criança e das aspirações à ascensão social por parte de estratos e
indivíduos menos favorecidos, como acontece em Hegel. Assim, uma vez mais (supra,
cap. IV, 3, e cap. VIII, § 9) percebe-se a inconsistência de um esquema interpretativo
que pretende erigir a tradição liberal a juíza do “holismo” atribuído ao filósofo
alemão.”
[13] Johann Gottlieb Fichte, “Grundlage des Naturrechts” (1796), § 52, Fichtes
Werke (org. Immanuel Hermann Fichte, Berlim, Felix
Meiner, 1971) (doravante F. W.), v. III, p. 363.
[14] Ibidem, § 43, em F. W., v. III, p. 358.
[15] Remetemos a Ursula Krautkrämer, Staat und Erziehung. Begründung öffentlicher
Erziehung bei Humdoldt, Kant, Fichte, Hegel und Schleiermacher (Munique,
Johannes Berchmans, 1979), p. 293 e 301.
[16] Johann Gottlieb Fichte, “Grundlage des Naturrechts”, cit., § 57, em
F. W., v. III, p. 366.
[17] Ver Franz Mehring, Geschichte der
deutschen Sozialdemokratie (s.l., s.n., 1897-1898); ed. it.: Storia
della social democrazia tedesca (prefácio de Ernesto Ragionieri, Roma,
Editori Riuniti, 1961), v. I, p. 56-9.
[18] Sobre isso, ver Domenico Losurdo, Tra
Hegel e Bismarck (Roma, Editori Riuniti, 1983), p. 178-9.
[35] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and the Causes of the
Wealth of Nations (1775-1776; 3. ed., 1783), Livro I, cap. I, parte III, art. II, p. 785.
“1. Mundo moderno e ocaso dos heróis da moral
Segundo Kierkegaard, o sistema hegeliano é
desprovido de ética[1]. A acusação é conhecida e foi retomada uma infinidade de
vezes, mas seria justificada? Hegel insiste no fato de que o mundo moderno é
marcado pela centralidade das instituições políticas, pela objetividade da
norma jurídica, não havendo, portanto, lugar para heróis. E os santos, os
heróis da moral, parecem compartilhar o mesmo destino. São Crispim, que roubava
couro para fazer sapatos para os necessitados, hoje terminaria numa “casa de
trabalho” ou numa “penitenciária”; ou seja, aquele que na Idade Média era um
herói da moral no mundo moderno é atacado pelo rigor da lei e tratado como
ladrão. Hegel não demonstra nenhuma compaixão pela sorte de são Crispim: sim, é
um homem pio, mas também é justo que, “num Estado bem ordenado”, receba uma
sanção penal (V. Rph., IV, p. 341, e Rph., § 126 AL; V. Rph., 11, p. 457); “de fato,
o direito (das Rechtliche) enquanto existência da liberdade é uma
determinação essencial diante da intenção moral” (V. Rph., III, p. 399).
O mundo moderno é o mundo da “probidade” (Rechtschaffenheit),
que é definida pelo respeito das leis. A transformação dos heróis, inclusive
dos heróis da moral, em cidadãos membros de um Estado ordenado é também a
transformação da poesia em prosa, da poesia do indivíduo que, da profundidade
de sua personalidade e de sua consciência moral, extrai a prosa do
comportamento fixado para todos pela lei: “Se agora o ordenamento baseado na
lei se desenvolveu mais completamente em sua forma prosaica e se tornou predominante,
a aventurosa autonomia de indivíduos cavalheirescos está fora de lugar” (W.,
XIII, p. 257*). Não é mais o tempo em que o heroísmo moral de indivíduos privilegiados
supria a ausência de instituições políticas objetivas e ordenadas. O fim do período
estético[2] implica, ainda, o redimensionamento do papel da moral. Em Estética,
lemos:
A formação reflexiva de nossa vida de hoje cria em nós a necessidade,
seja quanto à vontade, seja quanto ao juízo, de fixar pontos de vista gerais e
de regular, em consequência, o particular, de forma que universais, leis, deveres,
direitos e máximas valem como motivos determinantes e são o que fundamentalmente
nos guia. (W., XIII, p. 24-5)
A motivação que o filósofo adota aqui e em
outros momentos para explicar a perda da centralidade da arte no mundo moderno
vale também no que se refere à intenção moral.”
*: W. = Werke in zwanzig Bänden, organizada
por Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, Frankfurt, 1969-1979.
“É verdade, a ampliação do mundo ético por
ora se chocou com obstáculos insuperáveis, mas o fim permanece uma sociedade no
âmbito da qual se torne supérfluo o mandamento moral, ou ao menos o mandamento
moral que impõe o auxílio aos pobres; a persistência da beneficência, o fato de
que se é obrigado ainda a recorrer a uma medida ocasional, tudo isso aponta
para os dramáticos problemas que o mundo moderno não consegue resolver. A
polêmica de Hegel se volta mais uma vez contra aqueles que gostariam de dilatar
ao máximo, e eternizar, essa esfera da casualidade, de modo a celebrar a suposta
excelência da própria interioridade moral:
À caridade ainda resta muito a fazer, e é uma visão errada aquela que
ela mesma pretende reservar o remédio para a miséria exclusivamente à
particularidade de seus bons sentimentos e de seus conhecimentos e se sente
ferida e mortificada por ordenamentos e prescrições obrigatórias e universais.
A situação política, ao contrário, deve ser considerada mais perfeita quanto
menos restar a fazer ao indivíduo, com sua particular opinião, diante do que é organizado
de maneira universal. (Rph., 242 A)
Noutras palavras, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento
das instituições éticas reduzem o campo no interior do qual somos obrigados a
fazer apelo à sensibilidade moral do indivíduo.”
“6. Hegel, Burke e o
neoaristotelismo conservador
A restrição da esfera moral em prol dessa
ética não significa a regressão à moral convencional denunciada por Apel e
Habermas no neoaristotelismo de hoje[25]. Porém, tal denúncia não questiona a
validade da interpretação de Hegel tecida por autores como Gadamer e Ritter. É
essa interpretação, no entanto, que aqui pretendemos discutir. Em Hegel, há uma
polêmica cerrada contra o apelo conservador à “sabedoria dos antepassados” e
aos “direitos consuetudinários” (Gewohnheitsrechte): “No costume (Gewohnheit)
enquanto tal toma a frente o acidental, o homem pode se habituar às piores
coisas, pode se habituar a ser escravo, servo da gleba” (V. Rph. IV, p. 534).
Joachim Ritter, que reinterpreta Hegel em tom neoaristotélico, reconhece ao
mesmo tempo que, para Aristóteles, “as leis fundadas no costume são mais
importantes e tratam de matérias mais importantes do que as leis escritas”[26].
Para Hegel, ao contrário, sem um texto escrito, a lei perde a “universalidade”
(Rph., 221 e 215). De tal modo, a liberdade está em perigo ou é negada. Não por
acaso, Filosofia da história celebra a luta conduzida pelos plebeus na
Roma antiga para obter “leis escritas”: a ausência dessas leis consagrava, na
verdade, o “privilégio dos patrícios” na “administração da justiça” (isso
tornava os plebeus “tanto mais dependentes” dos patrícios) (Ph. G., p. 695). E
não é por acaso que Hegel acusa Hugo e a escola histórica do direito de querer
reduzir, com a polêmica contra a codificação das leis, “o resto dos homens” a “servos
da gleba no plano jurídico” (Rechtsleibeigen) (Rph., 3 AL; V. Rph., II,
p. 99). Pensemos, enfim, na celebração da Charte, desvalorizada ou
desprezada por Schelling enquanto “letra escrita” e, portanto, “caduca e fugaz”
e, em todo caso, considerada coisa bem pobre em comparação com a mais íntima disposição
de ânimo” e com a “lei escrita no coração”[27].
Para Hegel, o vício de fundo da eticidade
grega consiste nisto: “É apenas hábito e costume e, com isso, é ainda uma particularidade
da existência” (Ph. G., p. 611). Não se trata de um limite de pouca
importância. Onde domina o costume, não há universalidade, ou, ao menos, a “universalidade
do pensamento é mais turva” (Rph., § 211 A; W., VII, p. 362). Eis, então, a
eticidade grega manchada pela escravidão:
Para que não exista escravidão, é necessária, antes de mais nada [...],
a noção de que o homem como tal é livre. Para isso, porém, urge que o homem
possa ser pensado como universal e que se prescinda da particularidade segundo
a qual ele é cidadão deste ou daquele Estado. Nem Sócrates, nem Platão, nem
Aristóteles tiveram a consciência de que o homem abstrato, universal, é livre.
(Ph. G., p. 611)
Na eticidade hegeliana há o páthos da
razão, da universalidade: “A razão deve ser o elemento dominante, e é assim num
Estado desenvolvido” (Rph., § 3 AL; V. Rph., II, p. 89). Se o mandamento moral-religioso
já é acusado por Hegel de remeter, em última análise, ao saber imediato, isso
vale ainda mais para usos e costumes; também eles podem subsumir o pior dos conteúdos.
A eticidade hegeliana pressupõe os resultados do jusnaturalismo, pressupõe a
consciência da existência de direitos inalienáveis que competem ao homem
enquanto tal, não apenas ao cidadão livre desta ou daquela Pólis ou daquele
Estado. Claro, tais direitos inalienáveis cessam de ser mera exigência moral na
medida em que se realizam nas instituições éticas de um Estado e, no entanto,
não por isso perdem sua intrínseca universalidade.
No lado contrário, remetendo à “política
prática da Antiguidade”, bem como explicitamente a Aristóteles, temos um autor
como Burke[28], empenhado numa implacável polêmica dirigida, ao mesmo tempo, à
Revolução Francesa e a todo “princípio abstrato” e todo princípio geral”. A
lição de Aristóteles parece ter se encarnado no país da Common Law e
naquela “liberdade inglesa” (English liberty)[29], odiosa para Hegel exatamente
porque caracterizada pelo culto supersticioso do costume (a “sabedoria dos
antepassados”) (B. Schr., p. 467-8; ver também Rph., § 3 AL; V. Rph., II, p.
99) e pela falta de universalidade. Aos “abstratos princípios concernentes aos ‘direitos
do homem’”, Burke contrapõe os “direitos dos ingleses entendidos como
patrimônio que chega a eles dos próprios avós”[30]. Sabemos, porém, que para Hegel
a construção da categoria “abstrata” do conceito universal de homem não só
representa um gigantesco progresso, como constitui, em última análise, o fio
condutor do processo histórico enquanto desenvolvimento e ampliação da liberdade.
É justamente o homem enquanto tal, não existente no estado de natureza, mas
historicamente construído por enormes lutas, quem reivindica esses direitos inalienáveis
que já constituem sua “segunda natureza” (supra, cap. III, 2-4). Se
Burke nega os “abstract principles” dos direitos do homem em nome daquela
“sabedoria prática” (practical wisdom)[31] que representa, na
Inglaterra, a herdeira da “política prática” (practical politics) da
Antiguidade”, Hegel denuncia, no assim chamado “senso prático, isto é, aquele
que visa ao lucro, à subsistência, à riqueza”, o obstáculo que impede a nação
britânica” de suprimir os “antigos privilégios” e afirmar um “princípio geral”
(B. Schr., p. 487-8). Se é também em nome de Aristóteles que Burke condena os
princípios gerais da Revolução Francesa, aos quais contrapõe o exemplo da
Inglaterra, Hegel submete a “liberdade inglesa” a uma crítica análoga à que
submete a eticidade grega.”
[25] Ver, em particular, Karl-Otto Apel, “Kann
der postkantische Standpunkt der Moralität noch einmal in substantieller
Sittlichkeit ‘aufgehoben’ werden?”, em Wolfgang Kuhlmann (org.), Moralität
und Sittlichkeit (Frankfurt, Suhrkamp, 1986), p. 217-64; Jürgen Habermas, “Legitimationsprobleme
im modernen Staat”, em Karl-Otto Apel et al. (orgs.), Praktische Philosophie/Ethik,
v. I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 392-401. Sobre o neoaristotelismo como
neoconsewadorismo, ver também Herbert Schädelbach, “Was ist Neoaristotelismus?”,
em Wolfgang Kuhlmann (org.), Morälitat und Sittlichkeit, cit., p. 38-63.
[26] Joachim Ritter, “‘Politik’ und ‘Ethik’ in der praktischen
Philosophie des Aristoteles” (1967), em Metaphysik und Politik
(Frankfurt, Suhrkamp, 1977), p. 114; Ritter cita de Política, 1287b 5-7.
[27] Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, “SchluBwort zur öffentlichen
Sitzung der Akademie der Wissenschaften in München” (sessão de 25 de agosto de
1830), em Sämtliche Werke (Sttutgart/Augsburgo, Cotta, 1856-1861), p.
424. No que se refere à celebração hegeliana da Charte,
bem como da invenção da imprensa, desvalorizada pelos românticos em nome da
tradição “viva”, ver Domenico Losurdo, Hegel und das deutsche Erbe,
cita, cap. VII, § 19; cap. IX, 4; cap. XI, S 3. No que se refere ao
comportamento de Schelling em relação à Charte, ver Domenico Losurdo, L’ipocondria
dell’impolitico, cit., p. 413-41.
[28] Edmund Burke, “Letters on a Regicide Peace”, IV, em The Works of
the Right Honourable Edmund Burke (Londres, Rñington, 1826), v. VIII, p.
400.
[29] Idem, “Letter to the Right Honourable Henry Dundas” (1792), em The
Works of the Right Honourable Edmund Burke, cit., p. 281; idem, “Letters on
a Regicide Peace”, IV, cit., p. 110. Também a
celebração da cardinal virtue of Temperance, cara aos “antigos”, como
pressuposto de “nosso bem-estar físico, nosso valor moral, nossa felicidade
social ou nossa tranquilidade política” – ibidem, p. 376 –, tem forte sabor
aristotélico. O aristotelismo de Burke já foi notado por Jürgen Habermas, “Die
klassische Lehre von der Politik in ihrem Verhältnis zur Sozialphilosophie”
(1961), em Theorie und Praxis. Sozialphilosophische Studien (Frankfurt, Suhrkamp, 1988), p.
48-9.
[30] Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France” (1790), em The
Works of the Right Honourable Edmund Burke, cit., p. 76.
[31] Idem.
“Em conclusão, se de neoaristotelismo se pretende
falar a propósito de Hegel, tal aristotelismo consiste essencialmente na afirmação
do primado da política, na recusa à evasão consolatória do mundano e do
político para uma esfera meramente intimista; consiste na ambição de construir
uma Pólis terrena como lugar da satisfação e do reconhecimento recíproco entre os
homens. E tudo isso remete não a um fato acadêmico, mas à visão filosófica e
política que prepara e acompanha a eclosão da Revolução Francesa. Schelling, em
Stuttgart, acusa os revolucionários franceses justamente de quererem realizar na
terra aquela “verdadeira politeia” que, porém, pode acontecer “somente
no céu”[39]. E a acusação de Stahl, que se considera discípulo de Schelling,
contra Hegel é por ele ter identificado no Estado, isto é, numa comunidade política
terrena, “a solução das contradições” que exaurem a existência humana, por ter “colocado
não mais no além, mas no mundo terreno, a almejada redenção universal, trazendo-a
para o presente” (em V. Rph., I, p. 575-6). Em tal quadro, bem se compreende a
celebração já vista em Stahl da “caridade”, justificada pelo sentimento
religioso e moral interior, em contraposição à objetividade da eticidade
hegeliana.”
[39] Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, “Stuttgarter
Privatvorlesungen” (1810), em Sämtliche Werke, cit., p. 462. Mais tarde, para rechaçar as reivindicações democráticas, Schelling não
hesita em apelar ao Aristóteles teórico da escravidão (“a um compete ser
escravo, a outro, senhor”, Política I, 2ª: ver “Philosophie der Mythologie”, v.
I, em Sämtliche Werke, cit., p. 530, nota 2); aqui, então, ao “aristotelismo”
de Schelling é possível contrapor o “antiaristotelismo” de Hegel, para quem
onde há escravidão não há propriamente Estado: “A escravidão [...] se inclui em
uma condição que precede o direito” (Rph., § 57 AL, em Rph., II, p. 241).
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