Editora: Boitempo
ISBN:
978-85-7559-709-5
Tradução: Diego Silveira
Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 472
Sinopse: Hegel
e a liberdade dos modernos recupera a discussão dos principais princípios políticos
e filosóficos por trás do liberalismo contemporâneo. Por meio de uma interpretação
revolucionária do pensamento de G. W. F. Hegel, Domenico Losurdo (1941-2018), um
dos maiores hegelianos da atualidade, demonstra como o filósofo da dialética estava
totalmente engajado nas controvérsias políticas de seu tempo.
Nesta obra de fôlego, Losurdo revela como as questões abordadas
por Hegel no século XIX reverberam em muitas das principais preocupações políticas
da atualidade, como comunidade, nação, liberalismo, Estado e liberdade. Partindo
do exame de todo o corpus de Hegel, sua análise desmonta o dualismo entre intepretações
‘conservadoras’ e ‘liberais’ do filósofo alemão, e assim fornece uma discussão renovada
a respeito da relação entre a filosofia política de Hegel e o pensamento de Karl
Marx e de Friedrich Engels.
“O intérprete moderno faria bem em evitar assumir
uma postura de profeta, como se a verdade, o significado autêntico da filosofia
de Hegel, tivesse permanecido escondido para todos e inacessível por mais de um
século e meio para se revelar, de repente e de modo fulgurante, a um estudioso afortunado
e genial, estudioso que é, naturalmente, o último a aparecer em ordem temporal.
Vêm à mente as palavras com que Engels descreve a postura dos profetas religiosamente
inspirados, que anunciam o advento de uma nova ordem social, livre, por fim, dos
velhos erros: “O que faltava era o gênio individual que agora entrou em cena e reconheceu
a verdade […]. Esse gênio poderia muito bem ter nascido quinhentos anos antes e,
nesse caso, teria poupado à humanidade quinhentos anos de erros, lutas e sofrimentos”[86].
Em nosso caso, a economia de anos consentida pela nova e inédita interpretação de
Hegel seria inferior, apesar de considerável, mas permaneceria de qualquer forma
imutável o essencial, isto é, a postura de profeta.”
[86] Friedrich
Engels, “Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft”,
cit., p. 191-2 [ed. bras.: Anti-Dühring, trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2015,
p. 47-8].
“O contratualismo protoburguês é a legitimação
do monopólio político dos proprietários e a consagração explícita da subordinação
do poder político à defesa dos interesses da propriedade. E, se é assim, o contratualismo
protoburguês tem pouco ou nada a ver com o “contratualismo” hodierno (assim como
é configurado por Bobbio), no âmbito do qual o Estado tem a ambição de se colocar
como órgão de mediação entre as várias classes, entre os diversos e contrapostos
sujeitos sociais. Deve-se discutir até que ponto tal ambição se realiza, mas permanece
o fato de que ela, de qualquer forma, pressupõe no Estado um mínimo de transcendência
em relação aos diversos e contrastantes interesses. Desse ponto de vista, ao menos
no que se refere a suas ambições declaradas, o Estado burguês moderno está muito
mais próximo da teoria hegeliana do que do contratualismo protoburguês. Ou melhor,
o contratualismo de tipo feudal ou protoburguês continua a se manifestar nos atos
de força ou nas ameaças de atos de força com que, não poucas vezes, os grupos privilegiados
reagiram ou reagem a intervenções sobre o direito de propriedade, sobre as relações
de propriedade e produção, intervenções consideradas não liberais e despóticas.
Sim, a hodierna democracia parlamentar é constituída
de tratativas e de barganhas, mas não é preciso confundir duas definições de contrato
totalmente heterogêneas. Examinando o desenvolvimento das contradições entre norte
e sul que levaram mais tarde à eclosão da Guerra de Secessão, Tocqueville nos fornece
um exemplo esclarecedor de “contratualismo” no mundo contemporâneo. Eis o modo em
que os futuros secessionistas definem sua postura em relação às leis da União tidas
como inaceitáveis: “A constituição é um contrato em que os Estados aparecem como
soberanos. Agora, toda vez que intervém um contrato entre partes que não reconhecem
um árbitro comum, cada uma delas mantém o direito de julgar por si mesma a extensão
de suas obrigações”[32]. O “contrato” implica, então, o direito de veto das partes
contratantes; nesse sentido, a lei é desprovida de um caráter obrigatório enquanto,
mesmo depois da promulgação, depende, para a execução, do beneplácito das partes,
que têm o direito de verificar sua conformidade ao contrato estipulado. Portanto,
as partes contratantes são, em última instância, soberanas ou reivindicam uma substancial
soberania; assim ocorria no período medieval, assim ocorria nos clássicos do protoliberalismo
e assim ocorre nos Estados Unidos quando da secessão do sul. Contra esse contratualismo,
polemiza Hegel, mas também o liberal Tocqueville, que observa com desânimo o esfacelamento
dos poderes da União por obra dos contratualistas-secessionistas do sul.
Bobbio, por sua vez, fala de contratualismo moderno
no sentido que o Estado, antes de proceder com uma eventual intervenção legislativa,
se esforça em levar em consideração os interesses das várias partes em causa, as
estimula e as pressiona para que negociem; ou seja, desempenha um papel ativo de
mediação. No entanto, uma vez promulgada, a lei não passa a depender sistematicamente
do beneplácito das partes em causa. A radical diversidade desse segundo tipo de
contratualismo, em relação ao primeiro, emerge do texto do próprio Bobbio: o Estado
é “o mediador e o garante das negociações” entre os diferentes sujeitos políticos
e sociais. Então, o Estado, mais do que ser uma das partes contraentes, é o garante
das superpartes das contratações entre os diversos sujeitos políticos e sociais.
E não é só isso. Bobbio ainda escreve sobre as modalidades de funcionamento do
“contrato” no nível político-parlamentar: “Um partido que não tem votos suficientes
para levar seus representantes ao Parlamento é um partido que não é legitimado para
tomar parte nas tratativas e no contrato social e, portanto, não tem poder contratual”[33].
O Estado não apenas é superpartes, mas define, em cada circunstância, também as
partes autorizadas a participar da tratativa.
Deve-se acrescentar que não há nenhum tipo de
polêmica com esse segundo tipo de contratualismo por parte de Hegel, o qual, aliás,
exige que as várias corporações, associações e comunidades locais estejam diretamente
presentes na Câmara baixa, de modo a expressar seus reais interesses e permitir
que o aparato governamental e estatal proceda com uma mediação autêntica e eficaz
(Rph., § 308*). Seria o alargamento da rede de tratativas e mediações a prova da
inatualidade da polêmica anticontratualista de Hegel? Hoje, porém, o Estado democrático-parlamentar
não é mais, não pode mais ser, o mero conjunto de vigias da propriedade privada
teorizado pelo protoliberalismo, o simples “guarda noturno” dos bens dos proprietários
denunciado pelo hegeliano Lassalle[34]. Esse contratualismo entrou em crise no momento
em que, por meio de ásperas e complexas lutas, os não proprietários impuseram ao
Estado toda uma série de outros deveres, com intervenções diretas no campo econômico-social,
percebidas pelos proprietários como alargamento indevido da esfera de atividades
do Estado para além das tarefas contratualmente definidas. É dessa nova situação
que surge a exigência de um constante e difícil trabalho de mediação entre as partes
sociais.
Do ponto de vista de Hegel, no entanto, é exatamente
nesse trabalho de mediação que se dá a realização do universal. O Estado se constitui
como comunidade ética na medida em que não se preocupa apenas com a segurança da
propriedade, mas também, como veremos, com a garantia do sustento, do “bem-estar”
dos indivíduos, do “direito ao trabalho” e até com o “direito à vida”, na medida
em que reconhece cada cidadão como titular de direitos inalienáveis – logo, irrenunciáveis
e fora da esfera do contrato. Com Hegel, os direitos inalienáveis tendem a assumir
um conteúdo material. A condição do faminto é comparada à do escravo, e eis que
se impõe uma intervenção pública que garanta de maneira concreta o direito inalienável
à liberdade. Tal intervenção implica inevitavelmente uma restrição imposta ao mercado
e à esfera do contrato. A cada intervenção com que o Estado proibiu ou regulamentou
o emprego de crianças nas fábricas (intervenção explicitamente requerida por Hegel),
reduziu o horário de trabalho etc., os setores mais retrógrados do capitalismo sempre
responderam com altos gritos de protesto pela violação da liberdade de contrato:
basta ler, nas páginas de O capital, a história das lutas que acompanharam a limitação,
por lei, da jornada de trabalho a dez horas. No que diz respeito à Prússia de Hegel,
ou aquela imediatamente posterior à sua morte, o patronato esbraveja contra “hegelianos”
e “socialistas”, que, desprovidos do “espírito prático dos liberais”, eram culpados
de pretender recorrer à intervenção “artificial” do Estado para limitar o emprego
de mulheres e crianças nas fábricas e “organizar o trabalho”[35].”
[32] Alexis de Tocqueville, “De la démocratie
en Amérique”, I (1835), em Œuvres complètes (org. Jacob-Peter Mayer,
Paris, Gallimard, 1951 e seg.), p. 408.
[33] Norberto Bobbio, Il contratto sociale
oggi, cit., p. 25 e 39-40.
*: Rph. III = Philosophie des Rechts. Die Vorlesung von 1819-1820 in
einer Nachscrift, organizada por Dieter Henrich, Frankfurt, 1983.
[34] Ferdinand Lassalle, “Das Arbeitprogramm” (1862-1863), em Gesammelte
Reden und Schriften (org. Eduard Bernstein, Berlim, P.
Cassirer, 1919-1920), v. II, p. 195-6.
[35] Assim se expressa o grande capitalista e
liberal renano David Hansemann, cujas palavras são reportadas por Jacques Droz,
Le libéralisme rhénan (1815-1848) (Paris, Sorlot, 1940), p. 242-3.
“A liberdade formal é o momento do consenso subjetivo
e, nesse sentido, não tem nenhum significado negativo em Hegel, ou melhor, constitui
um momento essencial do mundo moderno, da liberdade moderna: “A liberdade formal
é a elaboração e a realização das leis” (Ph. G., p. 927*). Na Inglaterra, “a liberdade
formal, na discussão de todos os negócios de Estado, tem lugar em sumo grau”; não
se trata de um juízo negativo, pois o que Hegel aprecia na Inglaterra é exatamente
“o Parlamento aberto ao público, o hábito das reuniões públicas em todas as classes,
a liberdade de imprensa”. Essas, no entanto, eram apenas as condições favoráveis
para realizar “os princípios franceses da liberdade e da igualdade” (Ph. G., p.
934). A liberdade formal é a condição para a realização da liberdade “objetiva ou
real”. Nesse âmbito estão inseridas a liberdade da propriedade e a liberdade da
pessoa. Cessa, com isso, toda não liberdade do vínculo feudal, caem todas as normas
derivadas desse direito, os dízimos, os impostos. “Da liberdade real fazem parte
também a liberdade dos ofícios, isto é, o fato de ser concedido ao homem usar suas
forças como quiser, e o livre acesso a todos os cargos estatais” (Ph. G., p. 927).
Assim, liberdade formal e liberdade substancial não são em si termos contraditórios:
A liberdade tem em si uma dupla determinação. Uma concerne ao conteúdo da liberdade,
à sua objetividade, à própria coisa. A outra concerne à forma da liberdade, em que
o sujeito se sabe ativo, porque a exigência da liberdade é que o sujeito se sinta
nela satisfeito e assim assuma a própria tarefa, sendo seu interesse que a coisa
se realize. (Ph. G., p. 926) A liberdade formal deveria ser o veículo da liberdade
real. Quando isso se verifica, temos o livre querer da liberdade, isto é, a adesão
e o consenso consciente em relação às instituições político-sociais que realizam
a liberdade objetiva. No concreto de determinada situação histórico-política, porém,
a liberdade formal pode entrar em colisão com a liberdade real. De fato, “os momentos
da liberdade real […] não repousam sobre o sentimento, porque o sentimento deixa
existir até a servidão da gleba e a escravidão, mas sobre o pensamento e sobre a
autoconsciência que o homem tem da própria essência espiritual” (Ph. G., p. 927).
A imprevisibilidade de sentimentos, hábitos e tradições pode fazer com que falte
consenso para a liberdade real; a liberdade formal pode negar a liberdade real e
se agarrar a instituições que sejam a negação da liberdade. Um exemplo particularmente
ostensivo, do ponto de vista de Hegel, é a Polônia: as contínuas discussões da Dieta,
com certeza, são um momento de liberdade formal, que, entretanto, nesse caso específico,
é utilizada para perpetuar o poder extraordinário dos barões e a servidão da gleba,
ou seja, para perpetuar a não liberdade. Colisão análoga, ainda que menos dura e
de caráter mais limitado, verifica-se na Inglaterra. A liberdade formal não está
em discussão; no entanto, a Idade Média e o feudalismo foram apenas parcialmente
comprometidos: “No conjunto, a constituição inglesa permaneceu a mesma desde os
tempos do domínio feudal e se funda quase exclusivamente sobre velhos privilégios”.
Em teoria, a tradição liberal que carregava em seu passado poderia permitir que
a Inglaterra realizasse de forma mais ágil do que outros países “liberdade e igualdade”,
a liberdade real; mas, por uma série de razões históricas (orgulho nacionalista
etc.), ocorreu o contrário, e não por acaso a Inglaterra dirigiu todas as coalisões
contra os franceses (Ph. G., p. 934). E, como se não bastasse, a aristocracia que
arrancou da Coroa a “liberdade formal” se serve dela para impedir reformas antifeudais
incisivas, para criar obstáculos ou para bloquear o processo de realização da “liberdade
objetiva”, isto é, do “direito racional” (Enc., § 544 A**).
Finalmente, pode-se verificar que momentos essenciais
da liberdade real são impostos do alto, com uma série de reformas que ferem a tradição
feudal e estabelecem liberdade da pessoa e liberdade da propriedade (esta última
é, assim, libertada dos vínculos feudais), mas a esse desenvolvimento da liberdade
real não corresponde, ou corresponde só parcialmente e com atraso, o desenvolvimento
da liberdade formal. É essa a situação da Alemanha e, em particular, da Prússia,
que foi se configurando a partir das reformas da era Stein-Hardenberg. Com tais
reformas, a liberdade objetiva começa a penetrar (segundo Engels, o início da revolução
burguesa na Prússia e na Alemanha tem início a partir delas)[55], mas a liberdade
formal não caminha no mesmo passo: Frederico Guilherme III não mantém suas
promessas de renovação constitucional, embora Hegel continue a esperar que a
liberdade formal alcance o mesmo nível da liberdade substancial, mais uma vez
com o processo de reforma pelo alto, mesmo que estimulado por baixo por uma
restrita opinião pública de intelectuais e funcionários “iluminados” – e
iluminados graças também à difusão da “filosofia”.
É interessante notar que a distinção entre
liberdade formal e substancial está presente, de alguma forma, na própria
tradição liberal, mas com significado diferente e contraposto àquele que
acabamos de ver. Segundo Montesquieu,
em um Estado existem sempre pessoas ilustres de nascimento, riquezas e
honras: se elas fossem confundidas com o povo e só tivessem uma voz, assim como
os outros, a liberdade comum seria então sua escravidão, e elas não teriam
interesse algum em defende-la, pois a maior parte das resoluções seria
contrária a elas.[56]
Cabe observar que Montesquieu desenvolve
essas considerações no capítulo dedicado à constituição da Inglaterra para
ressaltar o papel positivamente exercido pela aristocracia nesse país. É
justamente pelo peso do privilégio feudal que Hegel considera formal a
liberdade inglesa que ignora a universalidade dos princípios e, em última
análise, a igualdade. Para Tocqueville, ao contrário, é nivelamento igualitário
que pode esvaziar a liberdade. Liberdade formal e liberdade substancial são por
vezes definidas de maneira radicalmente antitética; contudo, é indubitável que
essa distinção está presente em ambas as tradições de pensamento aqui
confrontadas.”
*: Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte,
organizada por Georg Lasson, Leipzig, 1930.
**: Enciclopedia delle scienze filosofiche
in compendio.
56 Charle-Louis de Secondat de Montesquieu,
De l’Esprit des lois, XI, 6.
“O individualismo por sua natureza não é revolucionário”.
(Wilhelm von Humboldt)
“De tal maneira — nota o jovem hegeliano Karl
Marx — os defeitos objetivos de uma instituição são imputados a indivíduos
para, sem melhoramento essencial, insinuar a aparência de um melhoramento”[25].
O problema perde sua dimensão objetiva, a atenção é retirada da coisa para se
concentrar na pessoa. “No exame da situação estatal somos facilmente tentados a
negligenciar a natureza objetiva das relações e explicar tudo a partir da
vontade das pessoas agentes”. No entanto, uma correta análise política exige
que se identifiquem “relações”, Verhältnisse — o termo, como já vimos,
remete diretamente a Hegel — “lá onde, à primeira vista, parecem agir apenas
pessoas”[26].
Por comparar o rei a um pingo no “i”, por
desvalorizar o indivíduo até de um nível mais alto, na pessoa do monarca, Hegel
é considerado por Haym em irremediável contraposição à inspiração de fundo do
liberalismo moderno. Mais uma vez, porém, vem à tona a inconsistência da
alternativa liberal/conservador, pois Haym indica no individualismo a barreira
mais eficaz não contra a conservação, mas contra a “revolução”. É verdade que,
por um lado, o autor de Hegel e seu tempo denuncia o autor por ele
investigado como um teórico do absolutismo, mas isso se encaixa no tópos
liberal, já visto, que busca assimilar
sob a égide do absolutismo tudo o que não se encaixa na tradição liberal
propriamente dita.
3. Instituições e questão social
É certo que o individualismo liberal não tem
a configuração irredutivelmente intimista própria dos teóricos da reação. Ao
menos em sua fase revolucionária, é obrigado a reivindicar leis e instituições
que garantam objetivamente a liberdade do indivíduo; mas, com um dos olhos
voltado para a miséria da massa, já tende a dissolver a questão social em um
problema concernente, exclusivamente ou em primeiro lugar, ao indivíduo, a um problema
que não chama tanto em causa a configuração objetiva das relações jurídicas e
sociais, como a capacidade, as atitudes, bem como a disposição de ânimo do
indivíduo aflito pela pobreza. E isso, para Hegel, é absurdo: “Todos os
indivíduos, o coletivo é algo bem diferente dos indivíduos isolados” (Rph.,
III, p. 154). E dessa observação poderia se aproximar aquela feita algumas
décadas mais tarde pelo jovem Engels, para quem o “socialismo” repousa “sobre o
princípio da não imputabilidade dos indivíduos”[27], entenda-se, no plano político.
A objetividade da questão social não pode emergir sem que a atenção se desloque
do indivíduo para as instituições político-sociais.
Mais uma vez, pode ser útil uma comparação
com a tradição liberal: partamos de um contemporâneo de Hegel. Para Von
Humboldt, deve ser rechaçada com firmeza a visão de que o Estado deve se
preocupar positivamente com o bem-estar dos cidadãos. Não, ele tem apenas a tarefa
negativa de garantir a segurança e, portanto, a autonomia da esfera privada: “A
felicidade a que o homem se destina não é senão aquela que lhe dá a sua força”,
sua capacidade[28]. Contrariamente a tantas representações consolidadas, é essa
visão liberal que — fazendo coincidir riqueza e mérito individual, atribuindo
ao indivíduo a responsabilidade exclusiva de seu insucesso — desemboca na
consagração ideológica do status quo, senão para as instituições
políticas, pelo menos no que diz respeito às relações sociais e de propriedade.
Justamente porque coloca em dúvida essa espécie de harmonia preestabelecida
entre mérito e posição social do indivíduo, Hegel destaca as tarefas positivas
da comunidade política para resolver ou atenuar o drama da miséria. Segundo a tradição
do liberalismo político e econômico, o fim do direito e da vida em sociedade é “a
tranquila segurança (Sicherheit) da pessoa e da propriedade; esse
objetivo não é posto em discussão por Filosofia do direito, que, porém, dele aproxima, significativa e polemicamente, a garantia ou
a “segurança (Sicherung) da subsistência e do bem-estar (Wohl) do
indivíduo, isto é, do bem-estar (Wohl) particular” (Rph., 230). Aquela “felicidade”
que, segundo Humboldt, remetia apenas à iniciativa e à responsabilidade do
indivíduo agora, após ter conquistado uma configuração menos intimista e mais
material e objetiva, depois de ter se tornado Wohl, “bem-estar” ligado não a um
indefinível estado de ânimo, mas, em primeiro lugar, à “segurança da
subsistência”, esse Wohl não só constitui uma “determinação essencial”
(V. Rph., III, p. 689-90*) no plano da vida em sociedade, mas exige ser “tratado
e realizado enquanto direito” (Rph., 230).
A miséria já se configura em Hegel como uma
questão social, que não é explicável simplesmente por suposta preguiça ou por
outras características do indivíduo reduzido à miséria. Nítida é a
diferenciação em relação a Locke. Segundo este último, o indivíduo pode sempre
se dirigir à natureza para assegurar a sobrevivência. De fato, por mais povoado
que o mundo pareça”, há sempre terra pronta a dar frutos “em uma região interna
ou despovoada da América” ou em outro lugar:
Ouvi dizer que, na Espanha, um homem pode arar, semear e colher
despreocupado num terreno ao qual não tem outro direito senão aquele derivado
do uso que dele faz. Aliás, os habitantes do lugar são gratos àqueles que,
doando o trabalho em terras incultas e, por isso, desertas aumentaram a
provisão de trigo de que necessitavam.[29]
Então, o indivíduo deve recriminar apenas a
si mesmo pela eventual miséria. Hegel parece responder a Locke quando afirma
que “a natureza é fecunda, mas limitada, muito limitada”, e que, no âmbito de
uma sociedade desenvolvida, não existem mais terras sem dono e “não se lida
mais com a natureza externa” (V. Rph., IV, p. 494). Se em Locke a miséria não
chama em causa o ordenamento político-social, o contrário se dá em Hegel: não
faz sentido reivindicar um direito em relação à natureza, mas “nas condições da
sociedade, no momento que se depende dela e dos homens, a indigência adquire
imediatamente a forma de injustiça cometida contra esta ou aquela classe”. Na
sociedade civil desenvolvida, o homem não tem mais como referente a natureza, e
a miséria não pode mais ser colocada na conta da natureza por meio da categoria
de “desgraça” ou calamidade natural (V. Rph., IV, p. 609). Mais uma vez, fica
evidente a superioridade ou, talvez, a maior modernidade de Hegel em relação à
tradição liberal. Já falamos de Locke. Para Bentham, “a pobreza não é consequência
do ordenamento social. Por que, então, recriminá-lo por ela? É uma herança do
estado de natureza”[30]. Ao polemizar com o jusnaturalismo, Bentham ironiza o
recurso à natureza para fundamentar direitos que fazem sentido apenas no âmbito
da sociedade, mas agora a natureza desponta para apagar do âmbito do ordenamento
social a responsabilidade pela miséria. E até Tocqueville denuncia como
perigosa demagogia querer fazer a “multidão” acreditar que “as misérias humanas
são obra das leis, não da providência”[31]. Aqui, providência é outro nome para
natureza, serve para indicar uma esfera independente das instituições políticas
e das relações sociais que, assim, proclamam a própria inocência.”
[25] Karl Marx, “Bemerkungen über die preuBische Zensurinstruktion”
(1843), em MEW, v. I, p. 4.
[26] Idem, “Rechtfertigung des **
Korrespondenten von der Mosel” (1843), em MEW, v. 1, p. 177.
[27] Friedrich Engels, “Die Lage der
arbeitenden Klasse in England” (1845), em MEW, v. II, p. 505 [ed. bras.: A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra, trad. B. A, Schumann,
São Paulo, Boitempo, 2008, p. 328, com alterações para melhor adaptação à
tradução oferecida por Domenico Losurdo]
[28] Wilhelm von Humboldt, “Ideen zu einem Versuch die Grãnzen der
Wirksamkeit des Staats zu bestimmen”, cit., p. 117.
[29] John Locke, Two Treatises of Civil Government, II, § 36.
V. Rph. = Vorlesungen über Rechtsphilosophie, organizada por
Karl-Heinz Ilting, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1973-1974.
[30] Assim o discípulo e colaborador de
Bentham, P. E. L. Arago, sintetizava fielmente o pensamento do mestre. Ver
Jeremy Bentham, “Théorie des peines et des recompenses” (1811), em Œuvres de
Jérémie Bentham (3. ed., org. Etienne Dumont, Bruxelas, Hauman, 1840), v. II, p. 201; ver Jeremy
Bentham, “Principles of the Civil Code”, em The Works (org. John Bowring, Edimburgo, William Tait, 1838-1843), v. I, p. 309.
“A negação da questão social é ainda mais
radical no jornalismo neoliberal de nossos dias, que, não por acaso, também em
tal negociação, acaba unindo-se a Nietzsche. Hayek não se cansa de repetir que
é absurdo falar de justiça ou injustiça “social” diante de um estado de coisas que
não é “resultado da vontade consciente” de alguém, diante de um estado de
coisas que, não sendo “deliberadamente produzido pelos homens, não tem nem inteligência
nem virtude, tampouco justiça ou qualquer outro atributo dos valores humanos”[32].
Nietzsche, por sua vez, polemizando com aqueles que falam de “profundas injustiças”
no ordenamento social, acusa-os de ter “imaginado responsabilidades e formas de
vontade que não existem de modo algum. Não é lícito falar de injustiça em casos
em que não estão presentes as condições preliminares para a justiça e a
injustiça”[33]. Assim como em Nietzsche, o protesto social, longe de remeter a condições
objetivas e a uma real “injustiça”, remete ao ressentiment, ao rancor
que os falidos nutrem pelos melhores e mais afortunados, também para Hayek, o
que alimenta a demanda por “justiça social” são “sentimentos” nada elevados,
como “o desprezo por pessoas que estão melhor do que nós ou simplesmente a
inveja” e “instintos de rapina”34. A objetividade da questão social
dissolve-se, dessa forma, na responsabilidade individual e até na psicologia
dos indivíduos que sofrem com a condição de miséria.
4. Trabalho e otium
Constant nega os direitos políticos aos não
proprietários pelo fato de que eles são desprovidos do “lazer (loisir) indispensável
para a aquisição da cultura e de um reto juízo”[35]. É nítida a continuidade em
relação à tradição de pensamento conservadora e reacionária. O Schelling tardio
remete a Aristóteles para se declarar de acordo com ele quanto ao fato de que
não pode existir nenhum tipo de ordenamento que não implique, “desde o
nascimento” distinção entre dominadores e dominados. Outro acordo se apresenta
quanto ao fato de que “a primeira função do Estado é garantir o otium
aos melhores”[36]. A demarcação entre dominadores e dominados coincide com a demarcação
entre beneficiários do otium e aqueles que são obrigados a uma vida de
esforços e dificuldades. Para Nietzsche, o otium é uma condição tão
decisiva na aquisição da cultura e da existência de uma civilização em geral
que ele não hesita em teorizar a escravidão para aqueles que devem se empenhar
na produção material de bens. A linha de continuidade é clara. Constant deixa escapar
uma excusatio não solicitada: os trabalhadores manuais obrigados a uma “eterna
dependência” porque desprovidos de otium e obrigados a trabalhar noite e
dia não são “escravos”, mas apenas “crianças”[37]. Burke não parece ter os
mesmos escrúpulos: é natural que as atividades mais humildes sejam “servis”, e
aquele que executa uma delas pode bem ser comparado a um instrumentum vocal[38]
O whig ou liberal inglês não menciona o erudito romano Varrão[39], de
quem cita a definição, mas Nietzsche conhecia muito bem a Antiguidade clássica
para não saber que o instrumentum vocal não era senão o escravo.
Essa celebração do otium como pressuposto
indispensável da liberdade é um motivo totalmente ausente em Hegel: não por
acaso, um celebérrimo capítulo de Fenomenologia demonstra a
superioridade cultural do trabalho dos escravos em relação ao otium de
seus senhores. Também em relação ao operário moderno, o proprietário que tem a
comodidade da riqueza e do otium não pode reivindicar nenhum título de
superioridade. Riqueza e propriedade não são, de forma alguma, sinônimo de
probidade cívica e de maturidade política, como na tradição liberal. Ao
contrário, há um curso de filosofia do direito em que a dialética do escravo e
do senhor, que conhecemos de Fenomenologia, parece ser aplicada às novas
relações capitalistas: é o escravo antigo ou moderno que representa o momento
do progresso e até da cultura substantiva (infra, cap. VII, 7).
Uma análoga celebração do trabalho estaria
presente também na tradição liberal? Convém não confundir problemas bastante
diferentes. Por trabalho podemos entender a relação homem-natureza, a
progressiva ampliação do domínio do homem na natureza, e então é óbvio que essa
temática se encontra bem presente em autores como Locke e Smith, que filosofam
no país com desenvolvimento capitalista mais avançado, enquanto se delineia a
Revolução Industrial. No entanto, quando no trabalho se ressalta a relação
homem-homem, é óbvio que estamos na presença de dois comportamentos nitidamente
diferentes. E apenas em Hegel que está presente a celebração da superioridade,
tanto no plano produtivo quanto no cultural, do trabalho do escravo em
comparação ao ócio estéril do senhor. Não, decerto, em Smith. O trabalhador
assalariado, devido à obrigação e monotonia do trabalho, “em geral, tão
estúpido e ignorante quanto possa ser uma criatura humana”, incapaz de tomar
parte em qualquer conversa racional” e até de “conceber qualquer sentimento
generoso”, é contraposto em Riqueza das nações àqueles que têm “muito
tempo livre, durante o qual podem se aperfeiçoar em todo ramo de conhecimento,
útil ou decorativo[40]. A tradição liberal é bem capaz de captar o aspecto
alienante do trabalho assalariado, mas não o aspecto formativo e emancipador da
atividade produtiva, que, porém, não escapa a Hegel (e a Marx). Uma confirmação
evidente desse fato é oferecida por Locke, que, apesar de exibir uma situação
real, dá uma descrição em tom quase animalesco dos trabalhadores manuais e dos
assalariados, que “vivem geralmente da mão à boca (from hand to mouth)
e, de toda forma, obrigados a lutar pela “mera subsistência”, não têm “[...] nunca
o tempo e a oportunidade de elevar seus pensamentos acima dela”[41]. Também
nesse caso, o otium é o pressuposto da cultura e até de uma existência realmente
humana. Não é capaz de vida propriamente intelectual “a maior parte da
humanidade, que se dedica ao trabalho e se torna escrava das exigências de sua condição
medíocre e cuja vida se consome apenas no suprimento das próprias necessidades”.
Esses homens são todos “absorvidos pelo esforço de acalmar as queixas de seu
estômago ou os gritos de seus filhos. Não se pode esperar que um homem que se
esforça por toda a vida num trabalho pesado saiba da variedade das coisas que
existem no mundo, assim como não se pode esperar que um cavalo de carga, levado
da casa ao mercado e vice-versa, por trilha estreita e estrada suja, seja
conhecedor da geografia do lugar”. Tudo isso não só é um dado de fato, como é
um dado de fato imodificável: “Por isso grande parte dos homens, devido ao
natural e inalterável estado de coisas neste mundo e à constituição das
questões humanas, é inevitavelmente abandonada à ignorância invencível das provas
sobre as quais outros constroem e que são necessárias para fundamentar suas
opiniões”. Locke não hesita em afirmar que “existe entre alguns homens distância
maior do que entre alguns homens e alguns animais”. É verdade que se trata de
um tópos clássico presente também em Montaigne, mas é significativo que Locke,
para explicitar essa enorme distância que existe entre homem e homem, dê o
exemplo, por um lado, do “palácio de Westminster” e da “Bolsa” e, por outro,
dos “asilos de mendicância” (além do “manicômio”)[42]. Não se trata, em Locke,
de uma ideia isolada, mas de um motivo recorrente: “A diferença é grandíssima
entre alguns homens e alguns animais; mas, se compararmos o intelecto e as
habilidades de alguns homens e alguns bichos, encontraremos uma diferença tão
pequena que será difícil dizer que as habilidades do homem são mais claras e
mais extensas.”[43]”
[32] Friedrich August von Hayek, Law,
Legislation and Liberty (1982; as três partes que compõem a obra são
respectivamente de 1973, 1976 e 1979); ed. it.: Legge, legislazione e
libertà (trad. Pier Giuseppe Monateri, Milão, II Saggiatore, 1986), p. 271
e 509.
[33] Friedrich Nietzsche, “Nachgelassene
Fragmente 1887-1889”, em Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe (org.
Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Munique, Deutscher Taschenbuch, 1980)
(+KSA), v. XIII, p. 73-4.
[34] Friedrich August von Hayek, Law, Legislation and Liberty,
cit.; ed. it., p. 304.
[35] Benjamin Constant, “Principes de
politique” (1815), em Œuvres (org. Alfred Roulin, Paris, Gallimard, 1957), p.
1.147.
[36] Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, “Philosophie der Mythologie”,
v.I, em Sämtliche Werke (Sttutgart/Augsburgo, Cotta, 1856-1861), p. 530 e nota.
[37] Benjamin Constant, “Principes de
politique”, cit., p. 1.146.
[38] Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France”, cit., p.
105; idem, “Thoughts and Details on Scarcity” (1795), em The Works of the
Right Honourable Ednumd Burke, cit., v. MI, p. 383.
[39] Marco Terêncio Varrão, De re rustica,
I, 17.
[40] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and the Causes of the
Wealth of Nations (1775-1776; 3. ed., 1783), Livro I, cap. I, parte III, art. II, p. 782 e 784 (citamos as obras de Smith a partir
da reimpressão, Indianápolis, Liberty Fund, 1981, ed. Glasgow: v. I).
[41] John Locke, “Some Considerations of the Consequences of Lowering
the Interest and Raising the Value of Money?’ (1691), em The Works
(Londres, Thomas Tegg, 1823; ed. Fac-similar: Aalen, 1963), v. V, p. 23-4 e 71.
[42] Idem, An Essay Concerning Human Understanding (1689), IV, XX, 2, e IV, XX, 5. Quanto a Montaigne, cf. Essais (1580), I, 42. Quem, ao contrário,
aproxima, sobre o tema do trabalho, Locke e Hegel, é Norberto Bobbio — Studi
hegeliani (Turim, Einaudi, 1981) p. 181-2 , que, em tal caso, desiste da
tese a ele cara da heterogeneidade entre Hegel e a tradição liberal. Mais uma vez, a tese de Bobbio é
também a de Karl-Heinz Ilting, “The Structure of Hegel’s Philosophy of Right”,
em Walter Kaufmann (org.), Hegel’s Political Philosophy (Nova York, Atherton,
1970), p. 107, nota 45.
[43] John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, IV, XM, 12.
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